quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

CEIA (Poesia)

Recuso-me
A esta venda de almas,
A este comércio vulgar,
A transfixar vitrines com o olhar
E as mãos espalmadas
A boca infantilizada
O delírio pelo que é caro e se põe do outro lado
Alheio à fome
Às náuseas
E traz o rótulo de imprescindível
Apesar de absolutamente dispensável

Recuso-me
A celebrar a hipocrisia
A participar dessas orgias praticadas sobre as mesas
A ensaiar o absoluto esquecimento dos males em prol de um “Feliz Natal”
A contaminar-me desta mesma cegueira
A ver o piscar de luzes que oscilam alheias às escuridões internas
Que não se tornam menos negras nas vésperas de qualquer dia trinta e um
Tampouco de qualquer primeiro de janeiro

Recuso-me
A alimentar-me desta ceia
Que abarrota estômagos,
Enquanto esvaziam-se os corações alheios.

sábado, 6 de dezembro de 2008

PARALELOS (Crônica)



Era bem assim: um vidro separava os dois mundos, tão distintos, tão distantes, tão injustamente justapostos, paralelos.

Do lado de dentro, o mundo rico, fabuloso, desconhecido àqueles olhos infantis, já marcados pela fome, ainda sujos pelos resquícios do sono. No painel, todos aqueles botõezinhos coloridos, misteriosos, maravilhosos! “Um deles deveria ter um dispositivo muito especial que fizesse o automóvel guiar-se sozinho ou, quem sabe, até mesmo dispensar as pistas e voar, voar”, fantasiava a mente do órfão da rua. Nas poltronas, aquela grotesca aparência de trono, de onde se governa o mundo, de onde é possível atravessar mapas, romper telas, muros, entortar postes, causar medo, admiração, sem, sequer, arranhar-se... “Deveria ser blindado”, continuava ele adivinhando. No volante, adornos especiais de algo que parecia borracha, mas que deveria ser material mais caro, mais sofisticado, mais “fixador”, por assim dizer, de mãos-motoristas, afinal não haveria espaço para deslizes, nem mesmo para suores frios, tensão. Tudo parecia perfeito, futilmente perfeito. E finalmente, no rosto feminino, masculino, infantil, velho ou simplesmente “humano” que se escondia atrás do vidro escuro, havia ainda, sob forma concreta e desumana, um categórico “não”, facilmente captado, fosse através de um menear negativo da cabeça, de um dedo muito bem disposto, num vaivém inconfundível, fosse através de uma palavra sussurrada contra o vidro, fosse tão somente dito sem nenhum sinal: a presença da total ausência de qualquer sinal! Um “não” silencioso, fatal, cortante de alguém que, sem se mover, fingia não ver, tampouco, sentir o menino que, de fora, pedia...

Mas ele pedia! Ainda assim, pedia! E, com sua ingenuidade, pedia inclusive coisas que nem mesmo ele sabia. Pedia, com seus olhos famintos e ainda sonhadores, muito mais do que trocados. Pedia mais do que dinheiro para comprar pão, mais do que esmola para o remédio da irmã doente, mais do que dez centavos para inteirar a passagem de volta, mais do que um real para cheirar cola, mais do que “qualquer moedinha serva” para ajudar a mãe igualmente faminta. Ele pedia, mas ninguém via. Pedia, e nem mesmo ele percebia, para mudar de lado. Para deixar aquele lado em que (sobre)vivia. O lado de fora. O lado da margem, o lado da fome matinal que se perpetuava durante todo o dia e se esticava durante toda noite, passando a chamar-se de fome noturna até a manhã seguinte, quando voltava a ser matinal, constante, igual...fome! Queria deixar o lado dos olhos sujos pelos resquícios do sono, sem sonhos, sem lençol, sem cama, dormido numa calçada mais suja ainda, na qual o corpo magro já se amoldava com perfeição, imitando-lhe a sujeira, absorvendo-lhe a rigidez. Queria, ao menos uma vez, trocar suas roupas sujas por algo descente, que lhe desse o direito de sentar naqueles bancos tão bem forrados e guiar aquele volante, nem que fosse rumo ao seu mundo miserável. Aproveitaria, pelo menos, o percurso.

Mas esse pedido, o dono do carro não ouvia. Aliás, o próprio menino não ouvia já que o fazia em silêncio, inconsciente! Será que Deus ouviu? Nunca foi possível saber...

Dos anos, restou-lhe apenas sua infância adulta e velhice precoce, que lhe consumiu as últimas esmolas. Dos sonhos, restou-lhe apenas o vazio de quem, na vida, permaneceu sempre do mesmo lado: o de fora.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

ELE, O TEMPO (crônica)


Nós, humanos, somos, sem dúvidas, seres curiosos, meticulosos, complicados. Cultivamos em nossa espécie, em nossa sociedade, sérias e solidificadas manias. Uma delas é o hábito de tentar definir o indefinível, conceituar o inconceituável, dar nomes e rótulos ao que existe apenas para ser “sentido” e não “chamado”.

E nessa tarefa árdua, na busca de realizar o impossível, em nome da tão clamada “racionalidade”, tentando comprovar nossa grandeza de espírito, por vezes e ironicamente, tudo o que conseguimos é nos descobrir irracionais e pequenos, diante da complexidade da vida e do tempo.

E por falar nele, o tempo, apenas a título de exemplo do já dito, observemos as atrocidades e injustiças daqueles que tentam definir o que vem a ser o “tempo”, utilizando-se justamente do espaço de vida que nos é dado para viver e não para conceituar o vivido.

Para alguns, a palavra “tempo” remete apenas ao passado, às saudades deixadas, às mágoas e tristezas vividas, às rugas e marcas cravadas na pele, às antigas cartas amareladas e às fotografias onde o sorriso era mais aceso e largo, os ombros mais fortes e capazes de carregar o mundo, os braços mais preparados para sustentar o peso da vida e as pernas mais encorajadas para enfrentarem a grande jornada que estava por vir, rumo aos percalços do desconhecido.

Para outros, “tempo” nada mais é do que o presente, o reflexo do “agora”, a concretização de tudo aquilo que é extremamente fugaz e passageiro, sinônimo de pressa para concretizar os planos, de pressão, em forma de relógio que aperta o pulso, em forma de ponteiros que caminham de segundo em segundo, lembrando-nos do nosso atraso, da rapidez com que a vida passa e nos deixa atônitos, perplexos, cansados.

Há ainda aqueles para os quais a palavra “tempo” remete ao futuro, a tudo aquilo que ainda está por vir e parece não chegar nunca, à espera constante, incômoda, inquietante e confusa por tudo aquilo que realmente nos importa, nos conforta, nos preocupa e que, infelizmente, parece estar lá na frente, fora do nosso alcance, separado de nós por longos e esperançosos anos, o que só vem a confirmar as palavras do poeta Vicente de Carvalho quando disse que, por vezes, “a felicidade está sempre onde nós a pomos, mas nós nunca a pomos onde estamos”.

Pois é, enquanto buscamos conceituar o tempo, dando-lhe forma e imagem, dando-lhe novas roupagens, ele, alheio ao nosso esforço, não espera e vai passando.

Deveríamos, portanto, parar de tentar conceituá-lo usando medíocres letras, parar de tentar vislumbrá-lo olhando a nós mesmos, incrédulos, de frente para o espelho, catando rugas e fios de cabelos brancos, afinal o “tempo” não está no dicionário, em forma de palavra, não está em nosso rosto, em forma de velhice, nem dentro de um armário amontoado, em forma de roupas desbotadas que saem de moda e perdem a cor com os anos.

O tempo é muito mais do que um conceito, muito mais do que uma imagem, muito mais do que poderia dizer este simples texto. Ele é sentimento, é percepção, é coração. Deveríamos, portanto, nos limitar a senti-lo, assim como as pedras à margem do rio sentem as águas que passam, assim como as árvores à beira do caminho sentem o vento que as agita.

As pedras do rio, à medida que as águas correm ao seu redor, inegavelmente perdem a brutalidade e são polidas, delineadas, esculpidas, assim como nós, ao passar do tempo. Nosso espírito aprimora-se, abandona o estado grotesco da juventude arredia e selvagem, perde a rigidez mesquinha do egoísmo, da vaidade exacerbada, da intolerância e passa a ter o brilho especial da maturidade, da sensibilidade, a suavidade das formas torneadas pela sabedoria, pela generosidade, pela capacidade de ceder às forças da água, sem perder a firmeza da rocha.

Do mesmo modo, as árvores, ao sabor do vento que passa, deixam as folhas secas caírem pela estrada, renovando-se com novas e belas folhas verdes e viçosas, estas sim, realmente capazes de gerar a sombra para os viajantes. Bem assim somos nós que, apenas com o tempo, nos tornamos capazes de nos livrar daquilo que é supérfluo, inútil, mesquinho, das coisas pequenas, que cuidam apenas de dar mais peso às nossas vidas, fazendo pender de cansaço nosso “galhos”, fazendo brotar, em nossos “caules”, mais espinhos. O tempo, sem dúvidas, é o filtro dos sentimentos que carregamos em nosso coração. É ele quem cuida para que apenas os sentimentos bons fiquem, à medida que deixa os sentimentos ruins ruírem, caírem pelo chão, abandonados feito as folhas secas que caem das árvores e cobrem o caminho. É também o tempo que fortifica e aprofunda nossas “raízes”, dando maior sustentação aos nossos passos e às nossas decisões É ele que atenua nossa solidão, gerando “brotos” das sementes que plantamos no decorrer de nosso percurso, “brotos” estes que nos farão companhia ao redor da “árvore” de nossa existência, em forma de filhos, amigos e companheiros, viajantes com os quais contaremos durante toda a estrada da vida.

Assim, tomemos o exemplo dos seres inanimados, despidos de qualquer “racionalidade”, e sintamos o tempo passar como a água que esculpi a pedra e o vento que renova as folhas, fortifica as raízes, semeia e faz brotar nossos filhos, nossos frutos; como a força capaz de deixar rugas mas, sobretudo, de levar mágoas, de curar feridas, de nos trazer paz; como a mágica que nos faz esquecer dos inimigos e estar, hoje, cercado pelos verdadeiros amigos que só o tempo traz.

Enfim, sintamos o tempo como o passado, o presente e o futuro reunidos num só instante, no nosso instante, o instante da vida, que é cheia de trocadilhos e perfeita em tudo, inclusive, quando deixa o tempo passar sem nos deixar tempo suficiente para conceituar o que dispensa conceituação.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

ABANDONO (Poesia)

Às vezes é preciso deixar-se sangrar
E que o sangue escoe carregando-nos de nós mesmos
E que possamos partir,
Derramando-nos em vermelho,
O vermelho que clama vida
Mas exige morte anterior

Às vezes é preciso deixar as portas abertas
E o vento solto,
Senhor de sua vontade,
A invadir salas,
A preencher quartos,
A apagar velas,
A desalinhar quadros,
A arremessar chaves
A explodir janelas,
A recriar invernos,
A derrubar cristais,
A devassar mistérios,
A arrastar vidas, forças, folhas
Varrendo nossos quintais internos

Às vezes é preciso deixar-se a deriva
E que a falta de norte seja o próprio norte
E que a falta de vida seja a própria vida
E que a falta de sorte seja uma escusa esquecida
Para a dor que é, de fato, necessária
Ainda que imprevista

Às vezes é preciso deixar-se naufragar
E que a falta de vento seja o próprio impulso
E que a falta de vela corrompa nosso curso,
Arremessando-nos contra as mais grotescas pedras,
Tragando-nos, sem piedade, para o fundo,
Quando a falta de ar será o próprio ar

Vida e anti-vida
Veneno e antídoto
Matéria e anti-matéria
Mar que nos engole e nos expulsa
De dentro de nossas ostras
De dentro de nossas fórmulas matemáticas
Mas que padecem falhas
Pois nem sempre a razão impera

E na ausência do que mais se quer
Na presença do que mais se evita
Finalmente descobre-se uma verdade perdida:
Abandonar-se é única veia,
A única porta,
O único barco,
A única fórmula,
Tão perfeita quanto dolorosa,
De se retomar.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

SEDE E ESSÊNCIA (Poesia)

Em meu percalço, arde minha essência
Me pedindo morte,
Me pedindo água,
Logo me pede vida

Deito minhas guaridas
Deixo-me ser inteira
Embebedo-me de mim mesma
Mas logo minha essência volta a arder:
Aquela que sou pede espaço
E, par e passo, o cede
Para aquela que desejo ser.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

LAMPEJOS (Poesia)

Já não sei quantas imagens me guarda o espelho
E, atenta ao que vejo,
Sinto-me desconhecida de mim mesma
Parada,
Estática,
Defronte ao lago luminoso que me reproduz
Enquanto anseio

Quem sou?
Quem fui?
Que hei de ser no segundo vindouro?
São perguntar mortas diante do tempo
Ave cinzenta que disseca imagens e sonhos
Distorcendo semblantes,
Arrebentando fortalezas,
Sobrevoando-nos no abandono das asas audaciosas
Que nunca fecha

Já não sei quantas imagens me guarda o espelho
E, alheia às surpresas,
Olho e não me encontro
Quem vejo se angustia e pergunta:
Onde se perdeu a que não vejo?
Mas não falo com estranhos
Deito a força do punho no espelho
Que se estilhaça em pedaços de vários tamanhos
E eu, mil vezes desconhecida,
Espalhada em tantos lampejos,
Desfocada em tantas centelhas,
Finalmente me encontro:
Sou o aglomerado das imagens que não se unem
Ainda quando me refletem inteira.

sábado, 15 de novembro de 2008

ENREDO (Poesia)

De há muito abandonei meu enredo
O começo, o meio, o fim
Desconheço-os

Sei das reticências que os interligam
E dos abismos que os afastam
Sei do peso do não vivido
E da presença de tudo que calo
Sei da pressão que me marca a fronte
Sempre que tento conter meu curso
E faço verter horizontes
Em meu semblante confuso
São eles as minhas rugas
Silenciosas, cravadas, difusas
Das quais não mais despontam sóis
Apenas vacilantes luas
E noites que viro insone
Vagando por minhas ruas.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

LAMENTO (Poesia)

Que face é esta a que hoje me apresentas?
Desconheço esses olhos não fixos
Essa boca que me beija a cabeça e me chama de amiga
Esse tom deitado em meus cabelos
Abafado,
Por entre lábios finos e temerosos
Essa polidez intranqüila
Esse coração inóspito

No domínio do não dito,
Tanto nos dissemos
E palavras perderam-se num abismo
Tentando compor um vazio que não se preenche com o silêncio

E hoje, tão desconhecidas
Nos cumprimentamos ao telefone:
De um lado, falo sentida
Com aquela que, do outro,
Reconheço apenas no nome.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

DIGRESSÃO (Poesia)

Dentro de mim há um mundo
Raso,
De avenidas,
De cima, em vertigem, as avisto
Não ouso um passeio:
São caminhos perdidos os que me habitam

Dentro de mim há um mundo
Fundo,
De sótãos e porões,
De baixo, de soslaio, os espreito
Não ouso um mergulho:
São caminhos sem volta
São muralhas sem portas
Diz a placa:
Digressão.

domingo, 26 de outubro de 2008

O OLHO (Poesia)

Um olho me espreita
Fixo,
Ríspido,
Estreito,
Enquadrando o que me habita

Fujo,
Finjo,
Adormeço,
Mas o olho não pisca,
Não fecha
Sua órbita me gravita

Em meu socorro,
Um vento morno
Traz um cisco
O olho fecha

Mas logo abre:
E minha imagem se duplica
Ao mergulhar na água do incômodo
Que, assim como o olho, faz-me presa.

sábado, 18 de outubro de 2008

ALAMEDAS (Crônica)



Sábado e sol. Eis a combinação. Preferia a chuva. Era quando mais se abrigava dentro de si; era quando se permitia, nos dizeres de Clarice Lispector, sentar e deixa-se levar “ao correr da máquina”, confessando no papel o indizível, desprezando o perecível, andando, comendo, vestindo, vivendo o que escrevia; era quando se punha distraída de si para, plenamente, encontrar-se; era quando ousava passear pelas avenidas que a habitavam e, ao longe, se via e se cumprimentava do outro lado: sua imagem, a mais genuína, era avistada pela outra, e lá estava ela, duplicada. A que se sentia livre sorria para a que apenas observava; a que se sentia viva se punha ladeando uma alameda de flores que cresciam alheias ao cinza da cidade morta que, dentro da outra, dormitava. A moça que estava perto das flores era, também, ela: a versão que só aparecia em dias de chuva, chuva externa. O sol brilhava internamente enquanto a chuva derramava-se pelos vidros da janela.

Mas naquele dia não havia chuva. Ainda assim, ousou escrever. Mas para quem escreveria num dia de sol feito aquele? Até onde suas palavras iriam, quando, libertando-se de tanto, ousava entregar-se mesmo quando sequer havia chuva? Não sabia. Não conhecia os expectadores de sua vida ensolarada. Só conhecia aqueles que a liam enquanto chovia, introspectivos feito ela, acalentados feito ela, pelo barulho das águas. Parou.

Não queria escrever para o desconhecido. Não queria escrever naquele irritante sábado de sol. Não queria, sobretudo, caminhar por suas avenidas internas e não avistar, ladeando a alameda de flores, a outra parte de si, a que era capaz de sorrir. Preferiu rasgar o papel e os verbos que ali cabiam, que ali moravam.

Sentindo-se em pedados, feito os que no lixo já descansavam, saiu de casa e foi para a beira da piscina enfrentar o sol, cara a cara. Aquele, definitivamente, não era um dia a ser vivido no domínio do escrito, no arrastar das palavras. Era um dia para conjugar os verbos que não poderia jamais escrever; era um dia para afogar-se nas águas do que simplesmente não se escreve, do que exige pele, do que exige pulso, do que exige curso e nado real; era um dia para ladear alamedas floridas e externas. E elas não só existiam, como estavam bem ali, o tempo todo, em seu quintal.

INSÔNIA (Crônica)


Talvez não precisasse falar para ser ouvida. Talvez não precisasse ser ouvida para seguir. Queria mais do que tudo dar o segundo passo, o que a conduziria ao sorriso. Mas continuava a retroceder em imagens, em medos, em correntes e afins. Não queria a vida que levava.

Não sorria, apenas desejava. Não a tinha, apenas enquanto dormia. E quando dormia, descansava seu espírito nos lábios que não eram feitos de carne. Ela sabia que sonhava. Mas, ainda assim, sugava do beijo aquilo que podia, aquilo que precisava para se sentir livre...sobretudo de si.

A dor que sentia depois do desenlace era a única coisa real que trazia do sonho e que não a abandonava mesmo quando acordada. Era a dor de uma saudade que nunca arrefecia. O que teriam vivido, um dia, em outra vida? O que teriam construído, um dia, em outra vida? O que teriam destruído, um dia, em outra vida? Onde se reencontrariam e depois de quantas vidas? Nada disso sabia. E a dor aumentava, tanto quanto a esperança: uma outra existência haveria de chegar.

Entretanto, quando o sol despontava, era na mesma rotina que continuava, destacada de forma implacável no calendário. Depois do sonho, a mulher de olhos azuis partia e o vazio retornava. Mas havia um alento: a sensação de sua presença, como se solidificada em tintas vivas, não esmaecia. Ao reverso, a cada noite – ela sabia – ganharia novas cores, compondo uma aquarela genuína e quente emoldurada pela fantasia. E assim, a mulher que amava acompanhava a sonhadora no correr das horas, no correr dos anos, no correr da vida medíocre que a tragava, que a fazia perder as forças e dormir pesado na esperança de um outro sonho, de um outro encontro, de um outro quadro.

A tristeza era a tônica de cada despertar. Os pés permaneciam fincados em outro plano, mesmo quando caminhava. Pisavam onde a outra habitava e a outra habitava dentro de si. Por isso não abria as portas, não saia de casa, não permitia a entrada de mais ninguém. A prisão, que era um corpo jovem, resistia e se camuflava com vestes longas, escuras, que serviam de muralhas à sua introversão, à sua solidão. Não queria escadas, nem portas. Queria ela, a mulher sem nome, que mudava de faces, de peles, de idade, conforme o sonho, mantendo como única identidade os olhos azuis.

Mas, para sua tristeza, enquanto a prisão envelhecia, impregnando de rugas suas paredes, seu semblante, os sonhos iam se tornando mais e mais espaçados, mais e mais confusos em palavras, em imagens, em sentido. No último, não houve sequer o beijo. A carne, que não era carne, já não possuía calor, já não possuía desejo. E assim, com um adeus anunciado, a mulher sem nome o findou. Seria o último?

Diante da hipótese, a sonhadora decidiu não mais dormir. Preferia virar as noites insone a ir buscá-la e retroceder do sono sem o encontro, sem o beijo, sem a reciprocidade do amor que guardara durante todos aqueles anos. Aquilo sim seria insuportável. O resto suportaria resignada, enquanto as olheiras derramavam-se no rosto pálido, outrora carmim. A aquarela, agora, só possuía uma cor: o cinza. E era desta tinta que se alimentava, enquanto tornava-se esquálida. Para que ter carne se não havia desejo a povoá-la?

Vez por outra, o sono se intensificava e ela lutava, resistia. Sentia-se tão perdida, tão fraca! Deitava-se, de olhos arregalados. Como não sabia o nome da criatura que amava, sequer podia chamá-la. E mais uma vez vibrava no peito a esperança: talvez não precisasse falar para ser ouvida. Talvez não precisasse ser ouvida para seguir. Queria mais do que tudo dar o segundo passo, o que a conduziria ao sorriso.

Até que um dia, depois de anos de insônia e desencontro, sucumbiu. Adormeceu sem medo e sem retorno, apenas alegria pueril. Num mergulho, lançou-se nos olhos azuis que, feito lagos, a esperavam. E, quentes, cálidos, a fizeram afundar para, verdadeiramente, emergir. Aquele era o segundo passo. Foi quando o cinza dissipou-se, escorrendo com as águas, e, com a alma azulada, sorriu.

sábado, 11 de outubro de 2008

RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo I)

BOA NOITE


Não eram mais apenas os vestígios do mar, levados pelo vento, que invadiam as janelas semi-abertas e de vidro. Definitivamente era a chuva, que começava a cair grossa e inclinada, encharcando inteiramente o piso do bar onde Ingrid estava.

Impávida, permanecia com o olhar vazio e escuro, perdido entre as pessoas que à sua frente se aglomeravam e se moviam, parecendo dançar. A música já não era ouvida. Estava distante demais para ouvir. Escutava apenas o barulho do mar, que estourava em forma de ondas bravias e audaciosas, ensaiando arremessos cada vez mais fortes nas rochas que serviam de murada, erguendo o bar.

Foi preciso que ao sal das gotículas fugidias se misturasse a doçura dos pingos de chuva para que, finalmente, despertasse, captando com os lábios os resquícios daquela mistura. No instante seguinte, as batidas da música eletrônica voltaram a vibrar na cabeça e no piso de madeira que se erguia sobre as palafitas. Logo, os passos daqueles que estavam no meio do salão voltaram a parecer ritmados, possuidores de algum sentido.

Num gesto brusco, antes que a vodka fosse inteiramente inundada, salvou o copo com as mãos longas e frias, ensaiando um gole maior do que o desejado. Sem alternativa, ergueu-se e afastou-se da janela, para que uma das garçonetes a fechasse, dando seqüência aos mesmos gestos com os quais havia vedado as demais, verdadeiros portais que compunham aquele ambiente envidraçado e em forma de meia-lua.

Encostou-se numa bancada e sorveu um outro gole, talvez o último, este sem pressa, apenas amargura. Estava farta daquela vida, daquelas noites que terminavam sempre da mesma forma: os pés sujos de areia, batidos à porta de casa; os sapatos pousados ao lado de um outro par, até então inteiramente desconhecido. Passos até a cama, que passava a ser dividida com uma estranha nos minutos seguintes, até que, numa despedida sem qualquer comoção, o par de sapatos que ladeava os seus partia e nunca mais seria visto.

Aquela noite seria diferente? Certamente não. A vodka era a mesma, a música era a mesma, os rostos eram os mesmos. A chuva era a única novidade e, sequer, estava sendo bem-vinda. As janelas já estavam inteiramente fechadas, o calor passava a deixar o ambiente ainda mais inquietante e os vidros começavam a embaçar, numa reação adversa que tinha o frio do exterior e a respiração ofegante dos visitantes como contraponto.

Na porta de entrada, talvez trazida pela chuva, surgiu uma desconhecida. A mulher, de fato, parecia uma forasteira, diferente em andar e estilo, estranha num ninho de iguais. Desconcertada, ensopada, com a maquiagem parcialmente borrada marcando o semblante pálido, de olhos profundos e um tanto quanto atordoados, pareceu traçar uma linha imaginária até o bar, por onde passou a deslizar em passos precisos, harmoniosos e chamativos. O desconcerto do olhar em contraste com a desenvoltura do andar e do corpo voluptuoso que se movia, enquanto parecia respirar fundo.

Ingrid deu aquele que, de fato, seria o derradeiro gole. Continuou olhando a invasora de soslaio, por dentro do copo, entre o cristal e o gelo. Aquela criatura pareceu-lhe tão intensa e daquele corpo parecia emanar um calor tão explícito que a vodka desceu quente. Em seguida, as mãos longas pousaram o copo sobre a bancada, enquanto a dona do bar voltou a especular a nova cliente.

Com um gesto, chamou Vanessa e lhe pediu para se aproximar da desconhecida, perguntando se precisava de alguma coisa. A garçonete prontamente obedeceu. Mas, num gesto de cabeça, a mulher de preto disse um não incisivo, captado imediatamente pela dona do bar, que continuava a olhar naquela direção.

Erguendo a vista, a intrusa avistou a cabeça loira e alta de Ingrid, que a fitava. Inquisitiva, a mulher arqueou a sobrancelha como se deixasse claro que não queria ser importunada, fosse com gracejos, fosse com garçons. Parecia irritada até mesmo com a educação dispensada por Vanessa, que estava ali simplesmente para servi-la. Sem graça, a garçonete desculpou-se e se afastou, dando a cliente o que ela pedia.

- Deixe-me em paz, foi o que disse – explicava Vanessa à Ingrid.

A dona do bar deu ordem para que nenhum dos garçons se aproximasse da visitante, a menos que fosse chamado. E a mulher arredia logo se sentou à mesa mais distante. Olhando-se detidamente no pequeno espelho que tirou da bolsa, repôs o batom vermelho, com as mãos trêmulas, enquanto parecia ignorar o restante da maquiagem, que também precisava de retoques. Com um aceno de cabeça, chamou Vanessa e lhe pediu uma dose dupla do melhor uísque de que dispusesse a casa. No final da frase, sem erguer os olhos, falou secamente:

- Sem gelo.

E a garçonete questionou para logo se arrepender:

- Mais alguma coisa?
- Se eu quisesse, teria pedido.

“Por que ser tão grossa? O que ela pensa que vai ganhar com isto?”. Ingrid, realmente, não soube responder às perguntas feitas de forma irritada por Vanessa, embora desejasse saber os motivos daquela que, agora, acendia um cigarro, visivelmente aturdida e contrariando os avisos luminosos que a proibiam.

Só então a dona do bar resolveu interceder. Sem qualquer intenção de ser simpática, apenas polida, caminhou até a mesa da desconhecida que, agora, além de misteriosa, lhe parecia extremamente insolente. Alcançando-a, fez o olhar borrado e intenso erguer a vista.

O corpo esguio, sempre vestido com roupas que desciam sem marcar-lhe os contornos, postava-se digno de atenção. A tez branca, o nariz afilado, ao complemento dos trajes, davam-lhe distinção, fazendo-a notória e respeitável em qualquer cenário. Era alta e imponente. Da mesma forma saiu a voz, que não foi amável, apesar do abatimento estampado nos olhos escuros que a fitavam:

- Não é permitido fumar neste ambiente.

Erguendo-se e pegando com a mão extremamente quente a mão fria de Ingrid, a desconhecida, olhando-a no fundo dos olhos, lhe disse com a voz autoritária e envolvente:

- Então saia comigo.

Ao atravessarem a porta principal, a desconhecida fez com que parassem abruptamente, sem explicação. Foi quando, em meio à chuva, surgiu um carro preto, com os vidros igualmente escuros. O pneu dianteiro, ao frear de forma súbita, logo rasgou a folha do jornal que jazia molhada ao chão, marcando o dia vinte de janeiro de dois mil e seis.

A mulher misteriosa abriu uma das portas traseiras do carro, fazendo-a entrar e, agora, era Ingrid a intrusa, dentro do espaço restrito e escuro. Atônita, logo se viu sem rumo, sem juízo, sentada ao lado de uma criatura que sequer a encarava. Tomada de uma estranha euforia, sentindo o corpo trêmulo açoitado pelo nervosismo, a moça loira passou as mãos pelos cabelos lisos e desalinhados, tentando pôr alguma ordem naquele caos de sensações. Entretanto, antes que pudesse se recompor, espantou-se com a ordem dada pela dona do carro ao motorista:

- Siga para o motel mais próximo.

E o carro logo arrancou derrapando na areia do estacionamento, que ficava à beira-mar. Ingrid limitou-se a olhar para os próprios pés, resignada. Ali estava a mesma areia que a acompanhava até a porta de casa. Agora era tarde demais: aquela noite seria outro o destino.

Suíte principal. Foi este o pedido quase inaudível pronunciado por entre a fresta da janela. A boca da desconhecida parecia desenhada a mão, observava a convidada, menos assustada, quase entretida.

Ingrid seguiu, com os olhos e os passos, o movimento dos quadris bem feitos que subiam a escada, sensualmente ajustados numa saia. As pernas bem esculpidas denunciavam o corpo que estava por ser desnudado.

Um giro, dois giros. Estavam trancadas. Olharam-se, sem palavras, a meia-luz. Uma intrigada, a outra apressada. Ambas intrusas num quarto tão imenso quanto desconhecido. Uma cama redonda, visivelmente confortável; uma banheira de tamanho extremado, adornada de mármore de carrara num recanto mais elevado; espelhos espalhados por todos os lados, inclusive no teto; uma bela parede de vidro através da qual se anunciava um jardim interno de estilo oriental, impecavelmente adornado. Ouvia-se uma fonte e música erudita.

A estranha deu o primeiro passo. Ingrid também se sentia irreconhecível. Algo lhe dizia que o próprio espelho a desconheceria e, medindo a audácia, arriscou buscar sua imagem.

Tudo o que viu foi um corpo esguio e alvo sendo desnudado por mãos hábeis e morenas, com as unhas tão rubras quanto os lábios que, sem pedir permissão, tomavam seu pescoço, o colo enfeitado de sardas, os seios já intumescidos, deixando marcas de batom e de vontade. A estranha era ela, aquela Ingrid que se entregava a outra desconhecida.

Traçando o contorno do mamilo com a língua, a boca ávida parecia conter-se, evitando tomá-lo com força e sugá-lo, como Ingrid já desejava. E a dona dos lábios desenhados, de fato, parou, mesmo diante dos olhos incrédulos da que se entregava. Afastando-se por instantes, a estranha respirou fundo, enquanto parecia tentar recobrar a razão. E sem esboçar qualquer explicação, tirou a blusa de seda e, na seqüência, o próprio sutiã, fazendo com que Ingrid prendesse o fôlego diante dos seios fartos e belos recém libertos.

Dando as costas, a mulher despiu-se da saia e, de forma lânguida, caminhou até a cama, sem esboçar qualquer constrangimento com a calcinha de renda escura que entrava em suas ancas de forma absurdamente atrevida. Ingrid não perdeu um instante daquele passeio peculiar pelo quarto.

Na cabeceira, examinou três pênis de borracha. Sem pressa, tomou cada um deles com as mãos, como se medisse o tamanho, a textura, a capacidade, ainda estanque, de fazer gozar.

Ingrid inquietou-se. Nunca havia sido penetrada por um objeto feito aquele e, definitivamente, não era este o desejo que a consumia. Como se adivinhasse o receio, a estranha virou-se e olhou-a detidamente, esboçando um sorriso, que cintilou com ousadia:

- É você quem vai usá-lo...dentro de mim.

E, fazendo o caminho de volta, logo foi ao encontro de Ingrid, que ainda estava encostada à porta, com as mãos novamente frias.

Sem encará-la, a estranha puxou-a para a cama. Mas antes que Ingrid pudesse deitar-se sobre o corpo que, inteiramente despido, já se oferecia, a desconhecida, novamente, a interrompeu. Pondo-se de joelhos sobre o colchão, fez com que a moça fizesse o mesmo. Uma em frente à outra. Foi quando a que adorava manipular retirou a calcinha daquela que manipulava e passou a, propositadamente, roçar os seios já eriçados no abdome, nos pêlos, nas coxas da moça, enquanto a língua quente passeava pelos mesmos lugares e sem pudores.

Com os olhos fechados, sentindo o ventre dilatado, derramando-se por entre as coxas, Ingrid recebia aquilo que parecia ser um atípico carinho. Foi quando sentiu os braços que lhe enlaçavam a cintura serem substituídos por algo que tinha a textura do couro. Era um cinto. Nele estava preso o pênis escolhido pelas mãos experientes que ajustavam a fivela.

Tentando dissipar o constrangimento, Ingrid buscou se familiarizar com aquele novo instrumento. Com certo receio e visível desconforto, olhou para o membro avantajado e de borracha, mas não ousou tocá-lo. E nem foi preciso. A mulher que estava à frente, com ar de riso, olhou-a nos olhos e aproximando-se, confessou próximo à boca:

- Deixe que eu lhe mostro como usá-lo.

Escorregando os lábios pelo tronco alvo, a estranha fez um caminho permeado de saliva e deslizar de dentes, até que, para a surpresa da expectadora, a boca tomou o pênis despudoradamente e passou a engoli-lo, num vaivém explícito e ritmado. Ingrid gemeu alto e logo assustou-se com a reação súbita. Era como se, de fato, aquele falo fosse parte de seu corpo. E, puxando a estranha pela nuca, demonstrou que queria ir mais fundo, como se estivesse prestes a dissolver-se naquela boca.

A estranha obedeceu e deu a permissão que a outra queria: Ingrid sentiu que poderia ejacular ali, caso o membro possuísse dutos de verdade e a quentura da carne. A visão da mulher que se punha de quatro, sugando-a, fazia com que aquele sexo oral chegasse às raias da realidade.

Percebendo a excitação da moça, a estranha, mais uma vez, a surpreendeu, interrompendo o ato. Fingindo limpar a boca, ergueu-se e sussurrou ao seu ouvido:

- Foda-me!

Mais uma vez Ingrid viu-se diante de uma ordem que não podia ser desobedecida. E, com um estranho prazer, empurrou a que comandava com força, fazendo-a deitar-se. As pernas morenas e torneadas logo foram escancaradas pela dona, que cederia à invasão com gosto.

E Ingrid a invadiria, não com o material sintético que outrora beirava o ridículo, mas com o membro ereto que agora parecia pulsar à beira do gozo. E as duas o queriam, as duas criam no poder do absurdo, na força da fantasia.

Ingrid, agora, absolutamente familiarizada, pôs-se no meio das pernas grossas que se abriam e, controlando o próprio corpo com as mãos espalmadas sobre a cama, passou a observar a abertura molhada que lhe era servida e que, em poucos instantes, engoliria sua extremidade.

Lentamente, enquanto as unhas vermelhas eram fincadas nas costas, o membro avantajado passou a adentrar na mulher que, agora, era só euforia. E assim, o corpo esguio, valendo-se de um instinto que, sequer, sabia existente, experimentando o espaço, os limites daquele ventre, gradativamente afundou o pênis grosso até que as pélvis de ambas fossem unidas.

E, como se ganhassem vida, os quadris descontrolaram-se, movendo-se de forma alucinada e firme, enquanto as mulheres se abraçavam, se encaixavam, se serviam, se comiam, se conheciam, em movimentos audíveis, em imagens.

Ingrid não conseguia mais segurar. Foi quando a outra anunciou:

- Goze dentro de mim. Eu também vou...

E o quarto foi preenchido pelos gemidos e cheiro das mulheres que, enlaçadas, finalmente quedaram-se inertes. Ambas estranhas e tão conhecidas. Sem nomes ou sobrenomes, apenas intimidade e pele.

Trocando a cama pela banheira de águas tépidas, as duas ensaiaram algumas palavras. Foi a boca de lábios desenhados que propôs:

- Um brinde ao que está por vir...
- E o que é? – a de boca naturalmente rosada questionou.

E num gole de champanhe, Ingrid despediu-se da noite.

Assustada, despertou com o frio. As águas, outrora quentes, àquela hora estavam extremamente geladas. Confusa, vagou o olhar incrédulo pelo quarto. Mas tudo o que encontrou foi o relógio digital que, ladeando os pênis de borracha dispensados, da cabeceira da cama, lhe dizia: nove horas. Era este o único recado, estampado em letras vermelhas e luminosas.













RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo II)


SCARPINS


Dias e imagens atordoavam o relógio que Ingrid trazia no pulso. No pequeno espaço destinado às datas, os números corriam e logo correram os meses. Sob o vidro, os ponteiros, vez por outra, a confundiam. E a moça lembrava-se, ao ver as aberturas entre o marcador dos minutos e das horas, das pernas torneadas e abertas, que a abrigaram como nenhuma outra.

Aquela criatura, ao contrário de tantas estranhas com as quais terminava as noites, sequer deixara um nome, nem mesmo um fictício. Deixou somente o passar das horas, povoado de um desejo igualmente desconhecido: o do reencontro.

Os pares de sapatos deixados à soleira da porta, uma vez calçados, nunca mais voltavam, nem a dona da casa queria. Era este o costume. Mas, daquela feita, tudo o que desejava era ter seguido os passos dos scarpins pretos e lustrosos que adornavam os pés da estranha.

Bem por isto, a visão de Ingrid, outrora tão altiva, voltavam-se ao chão, a procura daquele par de sapatos. Talvez fosse mais fácil reconhecer a dona por eles. O rosto não havia gravado. Evitou olhá-la detidamente, como desejava. Estava por demais atordoada naquela noite, onde só teve vez o inusitado, e teve receio de se permitir decorar o rosto da figura peculiar que lhe roubou toda a razão. Sabia que, nos dias vindouros, ele a atormentaria caso ficasse marcado. Só não contava com a ironia da memória, que registraria nem que fosse o mínimo, para assombrá-la: em forma de lembrança, como se colado às pálpebras, o par de scarpins ainda lustrava.

Mas não apenas no saguão do bar procurava. Pelas avenidas que cortavam a cidade, tendo por margem as lojas mais badaladas; pelos pisos polidos, de granito acinzentado, que cintilavam trazendo luxo aos shoppings mais sofisticados; pelos carpetes marrons, verde musgo, azul escuro, rajados, que, entre poeira e maciez, encobriam o chão de diversas livrarias, das mais conhecidas às peculiares; enfim, por todos os planos que julgava compatíveis com os scarpins e a dona, Ingrid investigava. E assim, ia e voltava aos mesmos lugares, revivendo aquela estranha história, mas as únicas pegadas que encontrava eram as que estavam fincadas na memória.

Avenida Liberdade. Estava ali, escrito em branco. Por pano de fundo, havia o verde, na placa que se erguia alta, sinalizando o trânsito. O semáforo estava vermelho. Parou o carro e respirou aliviada. Voltando-se para Vanessa, leu em voz alta o restante dos dizeres:

- Cemitério Parque das Flores e... – fez uma pausa, emprestando suspense ao tom e ironia ao fato – Presídio Professor Aníbal Bruno.

De fato, era irônico perceber. Na mesma avenida, que homenageava no nome a liberdade, existia, de cada lado, uma prisão. A primeira, destinada aos mortos, presos por cumprirem as leis de Deus, irretorquíveis, inafastáveis; a segunda, destinada aos vivos, presos provisórios, que cumpriam as leis dos homens, questionáveis, corruptíveis, passíveis de habeas corpus e tantos outros recursos e subterfúgios.

A estrada era larga, enladeirada e de barro. Foi o que constataram logo que o carro dobrou a esquina, com a permissão do sinal verde. No início da avenida, já se percebia que um dos lados era inteiramente tomado pelo muro alto, encardido e longo que compunha a frente do presídio, lhe emprestando ares de muralha. À sombra escassa do muro, havia uma imensa fila, formada apenas por mulheres e crianças. Era dia de visita.

Vanessa não era apenas uma das garçonetes que serviam os clientes de Ingrid. Havia se tornado uma grande amiga, sentimento fomentado, nos primeiros momentos, pela gratidão.

A jovem, de traços harmoniosos e olhos vivos, gestos suaves e modos contidos, família simples e beleza sem artifícios, morava em Nazaré da Mata, cidade localizada na zona rural de Pernambuco. Desde cedo, chamava a atenção, despertando o interesse dos mais afoitos aos mais tímidos. Aos dezesseis anos, foi vítima de estupro, classificado por muitos como provocado, esperado e até merecido. E assim, teve, primeiro, a carne devassada, depois o espírito.

No ano seguinte, com uma mala pequena e um desejo imenso de recomeçar a vida, pôs, pela primeira vez, os pés em Recife. Veio morar com os tios, numa tentativa de desalojar fantasmas e dissipar conflitos.

Num jornal de domingo leu o nome do bar que, nos dias seguintes, leria no letreiro luminoso erguido defronte ao mar de Boa Viagem. Era ali que trabalharia, pressentiu a jovem interiorana.

Tímida, entrou no recinto que, à luz do dia, não era tão atraente. Entre as cadeiras empilhadas, caixas de bebidas e maresia, avistou a cabeça loira de um jovem que, distraidamente, punha-se de costas para a porta arrumando com extrema cautela e delicadeza taças de cristal em badejas de vidro.

Para não assustá-lo, com igual cautela, temendo trincar o próprio silêncio, anunciou a presença com um bom dia. E logo foi surpreendida com um olhar amistoso e feminino; o primeiro, desde sua chegada na cidade, que lhe pareceu confiável, cálido e tranqüilo; um olhar que, certamente, a acolheria sem julgar seu passado, questionando apenas sobre suas intenções presentes e futuras; um olhar que, bem por isto, lhe inspirou gratidão; um olhar bonito, o mesmo que, naquele instante, era lançado, acompanhado do mesmo tom atencioso e seguro:

- Você tem certeza de que quer fazer isto?
Sim. Era esta a resposta. Vanessa precisava perdoar. Precisava visitar e olhar nos olhos daquele que a estuprou e que um dia havia sido seu namorado. Não queria levar consigo aquele ódio e acreditava ser aquela a única forma de dissipá-lo.

Certamente, naquele dia de sol, enquanto sorria e se distraía na companhia tão querida de Ingrid, ambas perdidas nos viadutos que atravessavam a rodovia que levava ao presídio, Damião deveria estar trancado na própria escuridão, naquela que procurou e que tinha por cenário uma cela suja e fétida.

Ele sim, ao contrário dela, era digno de pena. Era infeliz e dificilmente recomeçaria uma vida digna, depois daquela estada, preenchida dos vícios mais malévolos. Por ironia, o predador havia também se tornado vítima e o pior: de si mesmo. E a pena – esta sim perpétua – seria arrastar as correntes que o prendiam, bem como os fantasmas que o atormentavam, para o resto da existência, mesmo quando atravessasse a avenida e fosse habitar o cemitério.

Era esta realidade que Vanessa queria constatar, não por questão de vingança, mas por piedade. Queria visitar o lugar e o algoz, para que ele perdesse este rótulo tão pesado para ambos. Queria olhar Damião nos olhos e voltar a chamá-lo pelo nome para poder, finalmente, perdoar. Acreditava que somente assim o perdão seria genuíno, capaz de libertá-la e, ao mesmo tempo, diminuiria o peso que aquela criatura levaria ao além-vida, onde as leis eram infalíveis e não havia espaço para apelos.

Era esta a crença, a mesma que a fez descer do veículo, tomando a mão de Ingrid com força e suor frio.

A terra seca da Avenida Liberdade subia a cada passo que davam e sujava as vestes de ambas, de forma inquietante. Era uma terra vermelha, que já impregnava os rostos suados das mulheres e das crianças que compunham a fila. Em cada semblante, tudo o que menos se via era a liberdade que homenageava a avenida. A própria terra prendia-se, assim como aquelas vidas.

Pondo-se no final do corredor humano, as duas procuraram os restos da sombra. Era meio-dia. Ao enxugar o suor da testa, Ingrid terminou misturando os fios loiros e lisos à vermelhidão da poeira, que estava, sorrateira, nas mãos. Vanessa riu e, em auxílio, retirou da bolsa um pequeno lenço e o deslizou com suavidade na face que voltou a ser apenas branca.

As duas riram, encontrando alguma suavidade mesmo naquele instante. Estavam juntas e isto, vez por outra, bastava para que estivessem bem.

A atenção de todos foi capturada pela chegada abrupta e barulhenta de duas viaturas da polícia federal. Delas, em instantes, desceram vários policiais vestidos de forma ostensiva e armados fortemente. Diante dos olhares curiosos, logo saiu um homem de terno e óculos escuros, com as mãos para trás, devidamente algemado, que foi conduzido rapidamente para o interior do presídio, sob os flashs das câmeras e lentes das filmadoras que já se aglomeravam na entrada. A maioria parecia saber de quem se tratava e o burburinho instalou-se. Entre as especulações, ouvia-se que, mais uma vez, o figurão retornava de uma audiência e isto sempre era motivo de grande alvoroço.

Para compor o quadro peculiar e esquisito, despontou no início da avenida um carro escuro que vinha em alta velocidade. A poeira vermelha logo o tingiu inteiramente, quando, aos comandos do freio, o mesmo estancou de forma brusca logo atrás das viaturas.

O motorista desceu e, rodeando com pressa extrema o veículo, abriu a porta traseira. Em poucos segundos, os scarpins reluzentes e negros que Ingrid tanto procurava tocaram o chão de terra batida, onde jamais imaginou que caberiam aquelas pegadas.

Atônita, ergueu os óculos escuros. Com as pupilas inteiramente dilatadas pela claridade e, sobretudo, pela visão do absurdo, levou alguns segundos até que, finalmente, pôde ter certeza. Com o estômago embrulhado e a vista não mais turva, vislumbrou as pernas morenas e torneadas da mulher que, um dia, havia se despido bem à sua frente. Indubitavelmente era ela, a mesma intrusa, a única que fora capaz de invadir seu bar e sua vida. Ali, novamente, estava a criatura. E ainda mais desconhecida!

Sem entender a reação da amiga, Vanessa olhou-a assustada, enquanto sentia a mão longa apertar a sua. Ingrid procurou fôlego para contar que, finalmente, havia reencontrado a mulher que tanto procurava, mas não houve tempo.

Enquanto buscava as palavras, baixou a vista e observou as mãos dadas. Num rompante, aquela imagem imediatamente lhe remeteu a outra.

Vinte de janeiro de dois mil e cinco. Um ano antes de ver a desconhecida pela primeira vez. Era esta a data estampada no jornal antigo que embrulhava o último prato da pouca louça que Vanessa possuía. Aquele conjunto havia sido presente da tia. Depois de juntar algumas economias, finalmente a jovem havia se estabilizado e decidido. Alugou um pequeno apartamento em Boa Viagem e, finalmente, moraria sozinha. Ingrid foi a primeira a apoiá-la.

E a ajuda dispensada não se limitou à tomada da decisão. A chefe estava ali, ajudando-a na mudança, sentada em meio à bagunça e à poeira que se espalhava pela sala estreita, desembrulhando a louça, enquanto Vanessa tentava pôr ordem nos poucos móveis que comprara.

Aquela folha de jornal lhe chamou a atenção. Desamassando-a, Ingrid forrou-a no chão da sala, que estava tão sujo quanto as mãos. Logo Vanessa veio ao seu encontro e sentou-se, ladeando-a, em meio à bagunça externa e interna recentemente causada.

Antes que Ingrid pudesse olhar detidamente a ilustração da manchete, examinando a fotografia em preto e branco do homem bem vestido que tinha o braço apoiado no ombro daquela que parecia ser a esposa, Vanessa pegou uma de suas mãos, puxando-a para o almoço. A mudança já estava praticamente acabada e a fome era imensa, foram estes os argumentos para a pressa.

Como Ingrid continuava absorta, observando a imagem que lhe causou certo calafrio, Vanessa puxou a folha e, mesmo sem mirar, terminou por rasgar o perfil da mulher, que despontava harmonioso, com o nariz afilado, apesar do rosto estar parcialmente encoberto por cabelos escuros e revoltos.

Primeiro a data, depois algo naqueles traços, mesmo colhidos furtivamente, lhe fez lembrar da desconhecida. E antes de a folha ser desmembrada em outros tantos pedaços, algumas palavras foram também colhidas: Organização criminosa. Principal acusado. Médico e administrador. Hospitais públicos. Tráfico internacional de órgãos. Homicídios. Lavagem de dinheiro. Vítimas. Métodos diversos. Pacientes indigentes. “Boa noite, Cinderela”.

Mais de um ano havia se passado e, somente agora, as palavras voltavam à mente de Ingrid. Como se movidos à mágica, os pedaços do texto estampado no jornal e, sobretudo, daquele perfil, outrora rasgado, como se ganhassem cola, juntavam-se e faziam pleno sentido.

O quebra-cabeças estava, finalmente, montado e por pouco a cabeça loira não o compôs. O trocadilho de mal-gosto e infantil lhe veio feito um soco no estômago. Atordoada, largou a mão de Vanessa e caminhou até início do muro, onde vomitou.

Ao erguer a fronte, estava sem ar e suava. Novamente passou a mão pelo rosto, avermelhando-o com a terra, mas aquilo já não importava. Apenas uma evidência, igualmente pueril, latejava na testa: depois de tanto procurar os scarpins, terminou por descobrir que ela própria, por muito pouco, não foi a Cinderela.

RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo III)


LENÇÓIS AZUIS


Depois da ida ao presídio, Vanessa aprendeu, enquanto Ingrid desaprendeu absolutamente o perdão. O ódio saiu do coração de uma para ir habitar o da outra.

Não havia como perdoar a criatura estranha que havia lhe seduzido para roubar uma parte de seu corpo. A córnea que guardava a imagem dos scarpins ou mesmo um de seus rins poderia estar sendo negociado, naquele exato instante, no comércio clandestino de órgãos, quem sabe do outro lado do mundo. Aquele teria sido o preço do desatino, a tarifa cobrada para que a areia da beira do mar não fosse parar, naquela noite e novamente, na porta de sua casa. Poderia ter pagado com a vida.

O porquê de ter sido poupada era uma incógnita. O mistério, realmente, era a marca deixada por aquela desconhecida, que agora lhe parecia, também, criminosa. Entretanto, apesar de seu corpo permanecer intacto, Ingrid, depois da descoberta, passou a se sentir como se faltasse um pedaço, talvez o que fosse capaz de perdoar e esquecer aquela história mórbida.

Mais uma vez a marcação das horas, dos dias e dos meses no relógio que, digitalmente, oferecia ao bar orientação, iluminando a parede escura e dando conta dos horários, inclusive o de fechar as portas.

Três horas da manhã, foi esta a marcação daquele instante de susto. Virando-se para a porta, assistiu a entrada da última cliente. Era a intrusa.

Traçando, novamente, a linha imaginária, os scarpins caminharam lentamente, atravessando o saguão quase vazio. O destino, entretanto, não foi propriamente o bar, mas a dona.

Ingrid prendeu a respiração, mas não o suor frio. Estática, aguardou a aproximação gradativa dos olhos profundos que, desta vez, estavam impecavelmente maquiados e fixos, a observá-la. Sem aviso, como se viesse compor o cenário, a luminosidade dos relâmpagos invadiu o espaço, seguida da chuva que começava a cair forte, audível.

Com a velocidade dos raios que açoitavam o céu, arquitetou um plano que lhe pareceu infalível. Queria vingança, queria justiça. A intrusa merecia a prisão.

Quando a linha imaginária chegou ao fim, a estranha estava de frente para Ingrid. Sem rodeios, ergueu a sobrancelha e lhe saudou, enquanto puxava um cigarro, com mansidão convidativa:

- Ainda é proibido fumar aqui?

Saíram. Ingrid puxando-a pela mão, rumo ao próprio carro. A desconhecida indagou o porquê da pressa, ao que foi respondido:

- O que está por vir merece, de fato e imediatamente, um novo brinde.

A que tinha pressa conduziu o carro com velocidade extrema tendo por norte seu apartamento. Dez. Era este o número do andar, sinalizado pelo elevador. Ao atravessarem a porta, o par de tênis foi retirado e, na seqüência, o de scarpins o ladeou. A areia espalhou-se no tapete de entrada, enquanto as duas ensaiaram os primeiros passos, descalças, na sala.

A estranha, com a mesma audácia, tomou Ingrid pelos ombros e logo encostou-a na parede, enquanto ocupava as mãos morenas com a porta. Um giro, dois giros. Estavam trancadas. A intrusa soltou a chave, a presa engoliu em seco.

A boca desenhada aproximou-se, assim como o corpo da que falava:

- Senti saudade.

Quem quisesse que acreditasse naquela explicação absurda. Ingrid é que não acreditaria. O reencontro deveria ter motivo mais sórdido: provavelmente, depois da prisão do marido, a esposa assumira o comando da organização criminosa. Era o que supunha, com o estômago embrulhado, a pretensa vítima. Ingrid só não conseguia imaginar que órgão, daquela vez, era o desejado. O pênis de borracha é que não seria.

Mas a criatura, parecendo alheia às especulações que atordoavam a cabeça loira, continuava a ousar, mordendo o pescoço alvo com os lábios rubros, enquanto desabotoava a própria blusa.

Mais uma vez tomada de insanidade, Ingrid sentiu a repulsa ceder ao desejo. Aquela desconhecida, por mais absurdo que parecesse, a excitava. O cheiro, a textura, o poder daquele corpo era capaz de fazê-la correr novamente riscos. Por um momento, cogitou transar com o algoz antes de destruí-lo. E novamente se desconhecia, ao lado da desconhecida.

Que tipo de mulher faria outra gozar antes de entregá-la a polícia? Não poderia se encaixar naquele perfil quase tão sinistro quanto o de traficante de órgãos. Desvencilhou-se.

A desculpa saiu em tom baixo, rasgando-lhe a garganta:

- Vou buscar champanhe.

Ia, isto sim, procurar na bolsa que perfeitamente combinava com os scapins o tranqüilizante, os bisturis, enfim, as futuras provas de um quase premeditado crime.

A estranha, com o olhar desconfiado, ergueu a sobrancelha, enquanto Ingrid rumou à cozinha. A bolsa estava pousada sobre a mesa que ladeava a entrada da sala.

Parou defronte a geladeira, com o coração aos pulos. A mão tremia intensamente, enquanto abria o congelador, disfarçando, mais a procura de calma do que de champanhe. Não havia qualquer bebida ali e ela sabia. Fechou lentamente a porta, tentando não fazer muito barulho. Caminhou com o mesmo silêncio até obter, da fresta americana, a visão panorâmica da sala. A intrusa, agora convidada, estava deitada no sofá, parecendo distraída, em meio ao escuro.

Sorrateiramente, foi até a mesa e pegou a bolsa. Tentando manter a calma, revirou-a pelo avesso, depositando todos os objetos no chão da cozinha, a procura dos instrumentos que, certamente, serviriam para retalhar corpos.

A carteira, o cigarro, o celular, o isqueiro, o batom vermelho, que já marcava seu pescoço. E mais nada. Nada suspeito. Não havia, portanto, subsídio para ligar para a polícia. Ficou, por alguns instantes, inerte, descrente.

Voltou à sala, caminhando entre o espanto e o alívio. A convidada, agora criminosa apenas suposta, ergueu-se, inquisitiva:

- Estranha você.

Ingrid remendou:

- Estranha você... que sumiu de repente, me fazendo acordar numa banheira fria.

Aquela foi a forma abrupta que encontrou de tocar no assunto que, definitivamente, a cada instante, mais lhe confundia.

A intrusa logo explicou:

- Parti daquele jeito, em primeiro lugar, porque estava com pressa...em segundo, porque sabia exatamente onde reencontrá-la. Aliás, lhe encontrarei sempre no mesmo lugar? – disse sorrindo, dando a Ingrid ares de previsível.

Irritada, abismada, a que não se sabia vitima ou louca, respondeu incisiva:

- No meu bar ou no presídio onde está o seu marido, Helena Bivar.

Helena Bivar. Era este o nome estampado no jornal do dia vinte de janeiro de dois mil e cinco, o mesmo que embrulhava o prato de Vanessa no dia da mudança. Depois da ida ao presídio, Ingrid foi buscar aquele exemplar nos arquivos na internet. Agora lhe restava descobrir se a dona do nome era, de fato, a mulher que se punha à frente.

A desconhecida recuou assustada. E no gesto, entregou-se. Já não era desconhecida. Agora tinha nome. Ingrid concluiu que era, definitivamente, como se chamava.

Pegando-a pelos pulsos, de forma rude, foi a vez de Ingrid encostar Helena na parede, prendendo-a com o corpo.

A vítima agora era a convidada, que desesperou-se, debateu-se, visivelmente assustada, tentando soltar-se.

Sem piedade, Ingrid segurou-a com mais força, machucando-a, enquanto lhe acuava, enquanto lhe acusava, despejando, em meio a palavras entrecortadas, toda a teoria criminosa que, até então, vinha lhe tirando o sono.

Com os olhos perfeitamente delineados, arregalados, Helena parecia não acreditar no que ouvia. As pernas morenas e bem tornadas, pela primeira vez, pareceram fraquejar. Não havia linha imaginária naquele instante que a sustentasse e Ingrid apoiou-a com o próprio corpo, pressentindo que cairia se assim não fizesse.

A reação súbita da outra confundiu ainda mais. E, como se não bastasse, os olhos negros começaram a se derramar em águas, borrando novamente a maquiagem. Diante daquela imagem, Ingrid regressou à noite em que viu Helena pela primeira vez. Ela lhe pareceu misteriosa, interessante, atordoada, desprotegida, e nem de longe criminosa. Aquelas lembranças emaranharam-se no presente e não sabia mais no que acreditar.

Foi nesse instante de hesitação, quando as mãos que prendiam arrefeceram a pegada, que a acusada começou a falar, como se recobrasse a voz e parte da calma.

Para tudo havia uma explicação e as deu com maestria. O marido havia sido preso, isto era fato. Mas até que ponto havia justiça na prisão preventiva decretada?, isto se perguntava todos os dias.

Não sabia do que Armando era capaz, isto era outro fato, mas também não acreditava que fosse capaz de tanto! Os jornais, assim como o ministério público, podiam ter exagerado nas acusações e o juízo, equivocadamente, acatado as razões e determinado a prisão.

E assim, de fato em fato, chegou ao crucial: jamais participara de qualquer ilícito, nem mesmo como coadjuvante. Se a organização criminosa existia e Armando era atuante, no final do processo, uma vez proferida a sentença condenatória, não hesitaria em se separar daquele mostro. Mas, até então, não podia, antecipadamente, julgá-lo, não podia crucificá-lo. Tinha pena de deixá-lo e ser injusta. Por isto foi sim e ainda ia, sempre que podia, visitá-lo, inclusive acompanhando-o nas audiências.

Por óbvio, ainda que pensasse desta forma, a relação havia estremecido. Não suportava olhá-lo e imaginar que, de repente, convivera dez anos com um desconhecido.

Sentindo-se totalmente perdida, desestruturada, procurava o mínimo daquilo que sentia falta: sexo. Não queria trair o marido com outro homem. Por isso, desde a prisão, só transava com mulheres. E Armando sabia. Era um acordo celebrado entre ambos. Aliás, era uma das fantasias do marido, tantas vezes realizada em trio: ver Helena com uma mulher na mesma cama.

E assim tinha sido até entrar, naquela noite de chuva, no bar que beirava a praia de Boa Viagem e conhecer a dona.

Com Ingrid tudo havia sido diferente. Sentiu em seus braços um reduto, um conforto, uma sofreguidão, uma excitação que sequer sentia com o marido. Por este motivo, quis revê-la e desejou mais do que sexo: abrigo.

E ali estavam abrigadas, na sala da casa onde Ingrid a acolhia. E aquela era a razão do beijo que ainda não havia sido dado e que, naquele instante, Helena iniciava, com a boca desenhada e muito desejo contido, misturando saliva e lágrima.

Quando os lábios se encontraram, Ingrid teve uma certeza: era naquela versão que queria acreditar. Queria acreditar naquela Helena e, sobretudo, naquele beijo. E ele foi tão real, quanto preciso.

Naquele momento de trégua, outra mulher lhe era apresentada: a que lhe beijava e, novamente, se despia, parecendo ser de corpo e de alma. E Ingrid, despindo-se também, se entregou, desta vez sem artifícios sintéticos ou de qualquer outro tipo.

No sofá da sala, as duas quedaram-se, autênticas. Os corpos já suados, em contato com o couro e outra realidade.

Helena contornou com a língua o mamilo rosado, já intumescido, e, daquela vez, não hesitou em tomá-lo com a boca, atendendo ao pedido mudo da que lhe servia. E, naquele ato, Ingrid colheu outra certeza: Helena se permitiria, se entregaria de verdade, longe das fantasias. Aceitaria transar com outra mulher e não com um corpo que, temporariamente, fingiria ser o do marido, como havia feito da última vez.

Com esta convicção, Ingrid fechou os olhos e se deixou levar. Com prazer extremo, recebeu a boca desenhada, que, com propriedade, passou a desenhar o corpo inteiro, traçando, com a língua e os lábios, caminhos cada vez mais certeiros.

Quando Helena, alternando a posição, pousou o ventre sobre a boca de Ingrid, esta o recebeu com gosto e, naquele instante, a extremidade que invadiu o corpo moreno foi sua língua, hábil, urgente, em nada comparada ao plástico. Da mesma forma, Helena, também com a língua quente, adentrou ao corpo alvo da outra e as duas provaram-se, gozaram, beberam-se enquanto trocavam os hemisférios.

Adormeceram na sala. Entrelaçadas, satisfeitas, conhecidas.

Com o sol já intenso a açoitar-lhe a face, Ingrid despertou. Recobrando a consciência, tentou sentar-se, mas as pernas estavam dormentes. Respirando fundo, percebeu que estava nua, ainda sobre o sofá. Em todo o corpo, uma sensação estranha de formigamento. Com o coração batendo forte, olhou para a parede e o relógio, novamente, lhe assombrou com o mesmo recado: nove horas.

Foi quando, finalmente, conseguiu mexer os pés. Tinha dormido de mal-jeito. Ergueu-se de supetão, investigando se o corpo estava inteiro. Na sala, não havia sinal de sangue, nem da visitante, só silêncio.

Levantou-se, catando as próprias roupas pelo chão, ainda confusa. Foi quando, olhando para a soleira da porta, percebeu: os scarpins ainda estavam por ali, tão adormecidos quanto a dona. Helena, na madrugada, trocara o sofá pela cama e, naquele instante, parecia sonhar tranqüila entre lençóis azuis.





RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo IV)


SPT


Quanto tempo já havia se passado desde a última vez em que vira Helena? Já não sabia, evitava lembrar-se. Mas, naquele instante, diante daquela sigla e do texto corrente, não resistiu. Procurou a data do jornal e calculou: mais de um ano.

SPT. Era esta a manchete veiculada na primeira página do caderno principal, em letras de fôrma, quase tão patentes quanto sua curiosidade. As linhas subseqüentes pareceram-lhe verdes, pois, ao lê-las, cintilou no coração escurecido a esperança.

Depois daquela noite, a primeira onde o par de tênis adormeceu acompanhado de outro par, Ingrid transformou-se. Desejou os scarpins no umbral de sua vida pelo fim dos dias.

Embora soubesse que Helena estava casada, tal realidade poderia mudar. Era nesta hipótese que apostava, silenciosa e incisiva.

A denúncia oferecida pelo ministério público já havia sido recebida e o processo caminhava com velocidade, era o que noticiavam os jornais.

Sempre sabia da vida de Helena por aquelas folhas encardidas, por aqueles recortes opacos, que, permeando fotos e fatos, se espalhavam sobre as mesas dos bares, nas bancas de revista, no chão dos quintais. Da boca desenhada que beijava pouco ouvia, mas isto não a incomodava.

Embora se sentisse um tanto quanto egoísta, a cada notícia sobre o processo, desejava, mais do que a mídia, que a condenação fosse proferida. Queria que Armando Bivar fosse, de fato, o monstro que pintavam, pois somente nesta hipótese, Helena se separaria, como a própria havia sinalizado ao relatar a história.

Notícias à parte, isto era fato: a dona dos scarpins, apesar de manter certos silêncios e cercar-se de cautelas, fazia o possível para estar em sua companhia.

Helena lhe ligava todos os dias, todas as noites. E não eram poucas as madrugadas que viravam insones, falando sobre amenidades, sobre projetos, sobre sexo ao telefone.

Beijavam-se, tocavam-se, sentiam-se, gozavam pelos fios, pelas vozes, quando não podiam se encontrar, “derretendo satélites”, como dizia a letra da música que tanto gostavam.

Dentre as restrições impostas, Helena era por demais contundente em uma: não se encontravam em lugares públicos. Mais do que justificável. Ainda era casada. E ao frisar o “ainda”, Ingrid sorria e aceitava.

A única vez em que quebraram o acordo, o fizeram a convite de Helena. Visita noturna ao zoológico. Foi esta a proposta da boca desenhada, que logo sorriu, achando graça da cara de espanto de Ingrid.

Interessava-se pelos hábitos noturnos dos animais, havia sido esta a justificativa. A idéia soou estranha, mas Ingrid logo a aceitou, afinal, também se interessava em descobrir os hábitos noturnos daquela que, vez por outra, ainda lhe era tão desconhecida.

Foram. A visita, exatamente por contar com público restrito e ser um tanto peculiar, não poderia ser feita todos os dias. Ocorria apenas uma vez por mês, com data previamente estipulada. E mais: com a supervisão de um veterinário, que conduziria a pequena excursão dos inscritos, servindo de guia.

Ingrid Todorov e Clarice. Foram estes os nomes dados por Helena, quando o guia perguntou com a caneta em punho, fazendo menção de inscrevê-las no passeio. Na seqüência, questionou o outro sobrenome.

Clarice de quê?, foi a pergunta diante da qual Ingrid sorriu e baixou a cabeça, sem encarar Helena, enquanto esperou a continuação, que logo veio:

- Todorov...também.

O rapaz anotou o sobrenome, sem preocupar-se com as diferenças físicas que afastavam a verossimilhança do parentesco inventado. Em verdade, naquela brincadeira de Helena, Ingrid captou outro recado: estava ali a promessa de um novo casamento.

A lua cheia e o céu absolutamente estrelado dissipavam do cenário a visão assustadora que Ingrid imaginou encontrar.

Ao atravessarem o imenso portal que dava acesso ao lugar, tiveram a visão panorâmica de uma longa estrada de paralelepípedos, apenas parcialmente iluminada: em partes, graças ao luar, em outras, pela luz amarelada de postes antigos, semelhantes ao dos velhos engenhos.

Pequenas mariposas cercavam as lâmpadas, assim como os mais assustados membros da excursão cercavam o guia. Não era o caso das duas, que se mantiveram um pouco afastadas dos demais, andando de mãos dadas.

O zoológico ficava localizado no bairro de Dois Irmãos, num reduto de reserva ambiental que contava com rica flora e peculiar fauna. Ornamentado por vários lagos, desde os artificiais aos naturais; cercado por frondosas e antigas árvores, cujas copas erguiam-se, parecendo, naquela noite, prateadas; povoado com o cheiro cítrico das folhas, misturado ao das flores, aquele cenário era tão belo, quanto misterioso.

Diante desta constatação, Ingrid logo viu a patente semelhança entre o local e Helena. Aquele passeio era, literalmente, a cara dela. Daquela criatura ambígua, que ora parecia tão clara, ora tão escura, que ora parecia tão livre, ora mais contida do que os animais que as observavam, com os olhos tristes, por trás das grades.

E a cada passo, estavam mais próximas, sem muitas palavras. Os pensamentos inquietos feito os animais visitados, guardados, também, em jaulas. Cada uma tinha as suas e nem sempre havia chave.

Diante do imenso viveiro reservado à Hárpia, Helena ousou uma confissão. Aquele era seu animal favorito, foi o que segredou ao ouvido de Ingrid. Sentindo a pele arrepiar-se, a que escutava, com suavidade, virou o rosto e beijou a face da que confessava, como se agradecesse o mínimo e esperasse. Quem sabe um dia ouviria mais.

E assim, resignada, sequer ousou perguntar o porquê da preferência, constatando que o animal era tão exótico quanto Helena.

No estacionamento, antes de alcançarem o carro, Helena parou repentinamente. Dando as costas para Ingrid, começou a se afastar em passos largos, como se fosse entrar novamente no zoológico. A explicação foi dada de costas, com pressa, por cima do ombro:

- Esqueci algo lá dentro!

Inquieta, Ingrid limitou-se a observá-la. Nunca conseguia desvencilhar o olhar daqueles quadris quando, à frente, caminhavam. Somente quando Helena entrou no portal, a expectadora deu as costas e caminhou até o carro. À porta, procurou a chave dentro da bolsa. Revirou-a, vasculhou-a. Alarmou-se. Nada. Tinha certeza de que estaria ali.

E assim ficou por alguns segundos: atônita, revisitando de modo cada vez mais contrariado a bolsa, de costas para o zoológico.

Como se estivesse submersa na mesma escuridão onde dormitavam seus pertences, Ingrid sequer percebeu a aproximação do corpo que, de forma brusca, colou às suas costas. Prendeu o fôlego ao sentir o metal gelado deslizando em seu pescoço, seguido da ameaça:

- Entre no carro. É um seqüestro.

Mas eu nem sei onde está a chave! Foi o primeiro pensamento que passou pela cabeça loira, antes de virar-se agressivamente e interromper Helena, tomando a chave que fingia ser uma navalha.

Irritada, bradou que não havia gostado da brincadeira. Helena fez cara de magoada, entregando a orquídea azul que trazia na outra mão e que, graças à brutalidade de Ingrid, estava amassada. Aquele havia sido o motivo do retorno ao zoológico. Queria presenteá-la e a surpresa havia terminado daquela forma tosca.

Ingrid desculpou-se, ainda contrariada. Não gostava de mentiras. Foi o que fez questão de falar com ênfase e raiva. E mais uma vez Helena suavizou o momento, em tom de enigma:

- Minhas mentiras sempre têm bons motivos. Mais cedo ou mais tarde eles aparecem.

Parecendo não ter compreendido a extensão do aviso, olhou-a de forma investigativa. Helena sorriu e desfez o mistério:

- O seqüestro tinha por destino o mesmo motel de nossa primeira vez, boba. Hoje faz um ano que nos conhecemos. Deixe-me continuar a cometer o crime que planejei e em instantes faço sua raiva desaparecer.

Mais uma vez Ingrid cedeu e deixou-se seqüestrar. Helena sempre a surpreendia e, nas semanas seguintes, não seria diferente.

No meio de uma conversa, dentre as tantas que contornavam as madrugadas, Helena pediu um favor, classificado como imenso:

- Deixe-me ir morar com você.

E foi naquela mesma noite. Sem muitas explicações, desfez a pequena mala onde, certamente, não estava nem um terço das roupas.

Intrigada, mas extremamente feliz, a anfitriã recebeu Helena em sua casa e em sua vida e, daquele dia em diante, novos planos passaram a ser feitos nos lençóis azuis de cetim.

Helena precisava ficar em Recife até ser ouvida como testemunha de defesa. A data da audiência já estava marcada. Somente depois de depor a favor de Armando, se sentiria capaz de abandoná-lo, pois teria, ao menos, feito sua parte. Só então partiria tranqüila para iniciar uma nova vida, ao lado de Ingrid, em outra cidade. Era tudo o que queria, dizia com convicção a boca desenhada.

Até a data designada, ninguém poderia saber que estava ali. Sempre que Helena frisava este detalhe, Ingrid sentia como se sua casa fosse um esconderijo e não um lar onde as duas habitavam. Mesmo assim, cumpria o acordo, enquanto contava os dias, riscando de vermelho o calendário.

Vende-se. Era o que se lia abaixo do letreiro que sinalizava o bar de Boa Viagem. Se tudo desse certo, no final do mês, estariam bem longe dali.

O suor das mãos de Ingrid começava a molhar as passagens que apertava. Sentada no saguão do aeroporto, em meio ao vai e vem de tantos desconhecidos, esperava. O vôo sairia em quinze minutos e Helena não chegava. A audiência havia começado às oito e já passava das quinze horas! Certamente, no correr daquele tempo, o depoimento havia sido encerrado e nada. Nenhuma notícia de Helena, nem um telefonema para avisar de um suposto atraso.

Angustiada, ligou mais uma vez. O celular, agora, sequer chamava. Temporariamente desligado, foi esta a frase que veio para aumentar o desalento.

Dias que viraram noites sucederam àquele. Helena desapareceu. Ingrid não se conformava, não acreditava. Tinha medo, tinha saudade, tinha desespero, tinha miragens, só não tinha notícias. Até que, mais uma vez, os recortes dos jornais vieram para desestruturá-la.

Armando Bivar havia sido, finalmente, condenado. A esposa, arrolada como principal testemunha de defesa, no exato dia da audiência, havia mudado de lado.

Em pormenores dignos de relatos verdadeiros, Helena Bivar havia acusado o próprio marido e, na seqüência, esclarecido o nome dos outros integrantes da quadrilha, muitos deles estrangeiros renomados.

E assim, a maior organização internacional de tráfico de órgãos de todos os tempos havia sido desbaratada. Na seqüência do depoimento de Helena, fora decretada a quebra dos sigilos telefônicos, telemáticos, fiscal e bancário dos nomes mencionados pela testemunha chave e, certamente, os demais também seriam condenados. Para tanto, havia provas mais do que suficientes.

Era esta a notícia que tomava a página inteira do dia vinte e seis de agosto de dois mil e oito, meses depois do desaparecimento de Helena, que ainda era um mistério.

O sumiço da testemunha crucial também vinha sendo constantemente veiculado nos jornais. As teses eram diversas. Assassinato era a mais destacada nos recortes que Ingrid já se recusava a ler. Especulações à parte, uma coisa era certa: ninguém que delatava aquele tipo de gente permanecia ileso. Era esta a certeza unânime reforçada não apenas nos periódicos, na televisão e nos demais meios que levavam as notícias, mas, sobretudo, na cabeça loira que se desesperava mais a cada dia.

Vanessa, cada vez mais próxima, assistia preocupada o abatimento da chefe. Numa noite de chuva, depois de aceitar carona, com poucas palavras, a jovem, finalmente, criou coragem e pediu para conhecer o apartamento de Ingrid. E o fez com a voz suave e o coração carregado de vontades, tão silenciosas quanto a que, sutilmente, se convidava. O par de tênis, naquela noite e nas seguintes, passou a ter companhia.

E assim, novamente, veio o correr dos dias e dos ponteiros. E a vida parecia seguir o curso, apesar de tudo que, mesmo despedaçado, permanecia inteiro.

Até que, aquele domingo, por ironia ou destino, começou diferente. Ao lado dos dois pares, à soleira da porta, dormitava um jornal, quando Ingrid, sequer, era assinante. E eis a manchete: SPT.

Serviço de Proteção à Testemunha, era este o significado que se aglomerava na sigla. Na seqüência da leitura, vinha o texto que, aos olhos de Ingrid, pareceu verde.

Aquele era um sistema internacional cuja denominação, por si só, se explicava: em crimes de complexidade e gravidade incontestes, envolvendo pessoas poderosas, com influência em diversos segmentos da sociedade e mesmo do mundo, as testemunhas que se dispusessem a oferecer informações seriam acobertadas.

Para tanto, perdiam a identidade, enquanto outra seria forjada. No processo de desaparecimento, ganhavam novo nome, novos documentos, novo paradeiro e até mesmo um novo rosto, se fosse preciso.

E assim, feito mágica, verdadeiramente sumiam do mapa, devendo, entretanto, tal procedimento ser para sempre mantido no mais absoluto sigilo. E era este o pacto de proteção que jamais poderia ser rompido por qualquer daqueles que viessem a fazer parte do SPT. Era esta a reportagem. E só então Ingrid consultou a data do jornal: mais de um ano sem Helena.

No ponto final, sentiu o coração explodir. Atordoada, derrubou o jornal e, ao agachar-se para apanhá-lo, foi arrebatada por mais uma surpresa, agora estampada na segunda página: Armando Bivar havia sido assassinado dentro do próprio presídio.

Talvez agora Helena pudesse retornar. Aliás, talvez já o houvesse feito! Quem sabe não teria sido a própria que, valendo-se da fresta, havia depositado o jornal na soleira da porta?

Eram estas as indagações que Ingrid faria naquela mesma noite, no bar que não havia vendido, enquanto permanecia impávida, com o olhar vazio e escuro, perdido entre as pessoas que à frente se aglomeravam e se moviam, parecendo dançar. A música já não era ouvida. Estava distante demais para ouvir. Escutava apenas o barulho do mar, que estourava em forma de ondas bravias e audaciosas, ensaiando arremessos cada vez mais fortes nas rochas que serviam de murada, erguendo o bar.

Foi preciso que ao sal das gotículas fugidias se misturasse a doçura dos pingos de chuva para que ela, finalmente, despertasse, captando com os lábios os resquícios daquela mistura. No instante seguinte, as batidas da música eletrônica voltaram a vibrar na cabeça e no piso de madeira que se erguia sobre as palafitas. Logo, os passos daqueles que estavam no meio do salão voltaram a parecer ritmados, possuidores de algum sentido.

Na porta de entrada, talvez trazida pela chuva, surgiu, finalmente, uma desconhecida. A mulher, de fato, parecia uma forasteira, diferente em andar e estilo, estranha num ninho de iguais. Desconcertada, ensopada, com a maquiagem parcialmente borrada marcando o semblante de olhos tão profundos quanto bonitos, a estranha pareceu traçar uma linha imaginária até a mesa mais distante do recinto, onde sentou. Ao cruzar as penas, enquanto acendia um cigarro, fez brilhar um par de scarpins.

Contrariando a inércia, foi a vez da dona do par de tênis traçar uma linha imaginária até a forasteira, por onde caminhou lentamente.

Pondo-se defronte à mesa, captando com os próprios olhos os da estranha, ousou lançar-lhe o código cuja senha apenas Helena conhecia. E assim, fingindo um ar displicente, sentindo um aperto intenso no peito, como se ali estivessem presos os mais caros sonhos, libertou o maior deles:

- Não é permitido fumar neste ambiente.



FIM






sábado, 4 de outubro de 2008

RAZÃO (Poesia)

Eu, que nunca fui dada a prisões,
Eu, que nunca sucumbi a ameaças e regras,
A moldes e reservas,
A estúpidos grilhões,
Hoje mostro as barras de ferro que seguro com as mãos

Entre ambas, meu rosto repousa aturdido
Entre ambas, trinco os dentes, suo frio
Entre ambas, meus olhos encurtam a visão

Mas as barras não são estanques, nem fincadas no concreto;
Não são polidas, tampouco forjadas por imposição;
Sequer são frias, nem verdadeiramente feitas de ferro:
São feitas de razão
A mesma que prende tanto quanto liberta
A mesma que corrompe os impulsos e dita os “nãos”.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A VIDA DURA (Poesia)

E a vida dura
Mesmo quando se perde a chave do carro,
Mesmo quando se chega atrasado,
Mesmo quando se anda estressado,
Com o preço do combustível,
Com o cheiro dos esgotos,
Com o vazio que corroí a alma,
Com a inquietude que dissipa a calma,
Com a angústia que fere, mas não mata

E a vida dura
Mesmo quando não se tem fome,
Mesmo quando não se tem cura,
Mesmo quando se esquece o nome,
Daquilo que se sente quando se perde o que não se tem
Ou se acha o que não procura

E a vida dura
No silêncio das palavras,
No barulho das ausências,
Nas varandas, nas janelas, nas sacadas
De onde a vista é encurtada
E não se põe horizonte
Nem se semeia violetas, rosas ou verbenas

E a vida dura
Mesmo quando já não há espanto,
Mesmo quando já não há encanto,
Mesmo quando se preserva o que não mais dura

E a vida dura
Mesmo quando tão pungente
Mesmo quando de repente
Deixa de valer a pena
E o poeta diz que vale
Se a alma não é pequena
E a vida dura mesmo quando se mente

E a vida dura
Com ou sem o pão nosso de cada dia
Com ou sem o pai nosso de cada dia
Sempre há alimento
Viva-se de mentiras ou de verdades,
Viva-se de aleluias ou lamentos

E a vida dura
E, sem poesia ou piedade, nos segura
Pelos últimos fios,
Pelas últimas seivas,
Pelas últimas crenças,
Até que, cansada, nos liberta,
E, traiçoeira, nos arremessa
Para a morte de mais um corpo
Enquanto se cava mais um fosso
Em meio à terra plana e adubada de sonhos

Mas nem aí jaz nosso último embate
Pois mesmo quando se morre
A vida dura
E é dura também na imortalidade.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

RÉGUA (Poesia)

Nascemos embalados por mitos, paradigmas, desatinos,
E desde cedo engolimos o que, fatalmente, nos servem aos estoques:
Verdades que já nascem prontas, tontas, inverossímeis,
Certezas que morrem quando saltam dos livros e ganham o chão,
Sentidos que existem apenas no domínio do possível, do previsível, do digerível,
Histórias legendadas, limitadas, mediocridade em horário nobre

E assim crescemos consumindo fórmulas, molduras, modelos, antídotos
Incapazes de nos curar dos males que criamos
E que descem pontiagudos por nossas gargantas inflamadas de vícios
Enquanto nossas vozes e vontades restam represadas, pavimentadas, amarradas
Por um nó tão cruel quanto invisível

Sufocados, poucos seguem abandonando as regras e as rédeas,
Escapando das réguas com as quais o outro ousa pautar-lhe o destino;
Cansados, muitos morrem à beira do caminho;
Indignados, tantos se perdem mirando um vale que não existe;
Miragens feitas de sombras e luzes que oscilam e encandeiam
Aqueles que ousar enxergar além do permitido e do espelho

E eu, que já saltei dos braços de tantos mitos,
Não aceito esta garganta seca, tampouco os entraves de cada gole sorvido
Não aceito esta placa que sinaliza o “não” frente ao meu desejo contido
Não quero o antídoto que me servem para cada frustração
Não quero a falta de ar, a margem, nem a miragem do caminho vão
Não quero o que já nasce construído

Quero a verdade que eu criar, ainda que impossível
Quero devassar de antemão todos os meus jazigos
Quero a régua curva, trincada, inservível para a retidão
Quero a régua curta, incolor, sem medição de centímetros
Tudo o que exijo é conduzi-la com minhas próprias mãos
O projeto que me cabe é o que tracejo
Ainda que tosca, ergo minha construção
E da janela de vidros fechados e espessos
Lamento por todos aqueles que se solidificam feito gelo
Em cubos pré-moldados que, ao mínimo sol, derreterão.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

RECIPIENTES (Poesia)

Despejo na palavra meu conteúdo
Seja ela feita de vidro,
Seja ela feita de muro,
E assim tudo o que digo
Cabe no vazio que desnudo
Entre a letra e sua ausência
Entre mim e meu escuro

A palavra é recipiente do qual me sirvo
Para derramar o que sinto
Para conter o que não seguro
Se calo ou se minto
Não importa
De tudo se diz mesmo em letra torta

Quem me conhece, me decifra
E eu, finalmente, desponto
No domínio do escrito,
Sobretudo do não escrito,
Nas reticências ou ponto.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O JARDIM SECRETO (Capítulo I)


CAPÍTULO I


VIOLETAS


Imagens disformes e vacilantes formadas pelas sombras das árvores no chão, que pareciam dançar mesclando o sol e sua ausência no piso do terraço, graças ao vento da tarde que arremessava os eucaliptos para todos os lados. Era esta a cena que atraía a atenção de Marília.

Deitada em uma das redes que rodeava a casa, observava aqueles desenhos formados ao acaso. Instintivamente, introspectiva desde sempre, voltou-se para dentro de si, comparando e mesclando também as imagens de seu presente e passado.

As imagens da infância eram tão turvas e desconexas quanto as que se formavam nos recantos do piso, beirando a parede e os umbrais das portas da varanda que davam para dentro de casa. Quando criança vivia com os pais, mas guardava de ambos pouquíssimos detalhes.

Da mãe, recordava-se dos olhos esverdeados e puxados feito os seus, do cheiro adocicado do hálito e do tom cálido da voz, que, vez por outra, lhe entoava canções antes de dormir.

Do pai, lembrava-se da textura grossa das mãos, donde advinham afagos tão raros quanto pesados, da barba impecavelmente aparada, que exalava um perfume cítrico, semelhante ao dos eucaliptos que naquele instante se embalavam.

Dos dois juntos, mal se recordava. Talvez de um passeio de mãos dadas num final de tarde feito aquele, o qual nem mesmo Marília soube ser real ou inventado. A vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.

Os recortes da adolescência eram os mais claros. A nitidez, capaz de arder na íris e na alma da que lembrava, advinha, sobretudo, de um fato: aos dezesseis anos expulsaram-na de casa. E tal evento deveu-se também a uma cena, esta menos nítida e vista não propriamente por Marília, mas por seus pais, no espaço restrito da fechadura de uma porta: a de seu quarto.

Ironicamente, no dia em que a observada descobrira-se viva, pensando-se guardada e protegida em seu quarto, num primeiro beijo partilhado com uma jovem igualmente apaixonada, os pais desejaram-na morta. Diante da impossibilidade do concreto, retiraram-lhe o chão e o teto.

Atravessando o jardim que adornava a casa paterna, ela foi arrastada por entre a alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas suas favoritas. Par e passo, as pegadas dos pais, ladeando as suas, iam sendo fincadas no solo de tão pesadas e duras. Enquanto as folhas e flores eram arrancadas pelos passos trôpegos da menina aturdida, a terra subia e sujava as vestes que usava, únicas que levaria. Não sabia que se sentiria impregnada por aquela terra escura durante tantos anos, tampouco sabia que as pegadas deixadas por aquele dia continuariam marcando o solo de sua jornada, mesmo depois que as primeiras chuvas apagassem as que marcaram o caminho de sua antiga casa.

Enquanto atravessava o portão baixo, de ferro adornado, que separava seu antigo lar do mundo, Marília sentiu formar-se dentro de si um imenso deserto. E, naquele instante de choro e vazio, não soube se, um dia, algo de bom ainda brotaria por ali.

O choro já não era audível, nem externo, quando Marília foi deixada na porta daquela que se tornaria sua casa. Parada diante do portão imenso, na mansão do único tio, limitou-se a olhar para frente, ainda que, naquele momento, visse tão somente um muro alto e de pedras escuras.

Acompanhou, apenas com a audição, a partida dos pais que, acelerando o carro, deixaram-na para trás. Mas ela seguiria em frente. Com o pouco de força que encontrou, abraçou-se ao tio Abílio, que, naquela época, era para si um desconhecido, mas o único capaz de lhe oferecer abrigo. Ele lhe abriu os portões, ela entrou.

E agora estava ali à sua frente, o seu presente. O tio era um grande amigo e, alheio à retrospectiva que Marília, involuntariamente, fazia, vinha ao seu encontro, chamando-a para o chá da tarde. Com a cabeça branca e os olhos claros, com um sorriso amistoso e um beijo suave pousado na cabeça da sobrinha, despertou-a do devaneio proporcionado pelas imagens. Instantaneamente as sombras se dissiparam e Marília, erguendo-se da rede, aceitou o convite, mas, antes de dar o primeiro passo rumo à sala, o abraçou.

Abílio, com estranheza, apertou-a nos braços, afagando com graça os cabelos curtos e lisos de Marília, já desalinhados pelo vento. Curioso, perguntou o porquê daquela demonstração súbita de afeto, o que era uma raridade. E aquela que, para ele, ainda era uma menina, com a voz de adulta, prontamente lhe explicou:

- Saudade.

Se ela sentia saudade do contato proporcionado pelo abraço ou de algum fato perdido no passado, Abílio não soube precisar. Na verdade, nem mesmo Marília sabia do que sentia saudade. Talvez de um tempo bom que ainda não havia vivido, apesar dos trinta anos de idade.

O portão imenso que um dia lhe deu passagem, guiado pela mão de Abílio, depois da entrada de Marília, fechou-se tanto quanto a jovem que, durante os anos vindouros, imitando a fortaleza e imponência dos portais, não deu acesso a mais ninguém, a não ser ao tio. E talvez a falta que sentisse naquele instante fosse exatamente de um tempo em que, mais do que muralha, ainda se sentia capaz de ser ponte ou cais.

Antes de entrar na sala, a moça ousou olhar para o chão da varanda e já não existia nem luz, nem sombra. Era noite. A noite que sempre lhe restou.

Ela e o tio se entendiam, mesmo sendo ambos extremamente calados. Seus olhares eram, na maior parte das vezes, o bastante para travarem os mais diversos e sinceros diálogos. Eram cúmplices e parecidos, em silêncio e em semblante. Poucos sabiam que naquela casa não morava pai e filha, mas tio e sobrinha.

O casarão ficava em Aldeia, recanto conhecido pelo clima frio, pela tranqüilidade, pelo ar de campo, pelas frondosas árvores, pelo sabor de fazenda, apesar de distar poucos quilômetros de Recife, a grande cidade. Morar ali era feito morar no interior. Nada mais apropriado para dois intimistas bem peculiares.

Com vários quartos, salas, dentre outros tantos ambientes, todos adornados de forma aconchegante e condizente com a personalidade de ambos, a mansão contava ainda com uma imensa varanda, que, povoada de redes e plantas, verdadeiramente a circundavam.

O terreno, por sua vez, era composto por vários lotes, alguns planos, outros em relevo rebaixado, de modo que, no próprio quintal de casa, existia um genuíno vale formado graças a um córrego estreito que atravessava o derradeiro lote, avizinhando-se à mata.

E foi à beira daquele vale que Marília, livrando-se, dia a dia, de seu deserto, construiu seu jardim secreto, onde nem mesmo o tio ousava passear. Ele bem sabia das manias da sobrinha e, sobretudo, sua necessidade de solidão. E era ali que a moça, exorcizando fantasmas, construíra anos a fio uma alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas, ainda, suas favoritas.

E o jardim secreto, por si mesmo, falava. A plantação não era aleatória, mas permeada de significados. As violetas eram plantadas em dias de tristeza; as roseiras, em dia de inquietude; as verbenas, em dias de alegria, bem por isto o canteiro destinado às últimas era o mais curto, tomando o mínimo de chão.

Naquela tarde, mesmo debaixo de chuva, Marília havia plantado meia dúzia de violetas, cuja cor ainda lhe parecia confusa. As comprara como azuis, mas, na dúvida, preferiu não apostar na futura tonalidade daquelas flores, como não apostava nos tons dos dias vindouros.

O irmão, que há anos não via e com quem pouco convivera, regressaria a Recife. O real motivo de sua volta, ela e Abílio não suspeitavam. A desculpa dada ao tio tinha sido simplória e pareceu a Marília um tanto quanto desconfiável: o rapaz, de vinte e sete anos, depois de levar uma vida desregrada em São Paulo, sustentado pela escassa herança dos pais, já falecidos, viria tentar a vida com a noiva em Recife. Dizia sentir saudade dos verdadeiros laços. Queria rever o tio e Marília, os únicos que possuíam seu sangue e com quem poderia trilhar novos passos. Estava cansado da loucura que experimentava desde adolescente, perdido naquela cidade entre os maiores lunáticos, envolvido no meio artístico e de marketing, onde conheceu as figuras mais esquisitas e intragáveis. Foi o que, com ênfase, relatou ao pedir uma chance a ambos, além de hospedagem. Queria o aconchego de um lugar calmo e de uma nova vida, onde pudesse, realmente, tomar ares mais suaves.

Apesar de pouco convencido, desconfiado que era por natureza, Abílio estancou diante do instintivo não. Respirando fundo, olhou para Marília, que, ao lado, supunha o teor da conversa, tanto pelas palavras intercaladas que ouvia, quanto pelo silêncio de consternação que demarcava a testa franzida do tio. Também contrariada, mas sem muita opção, a moça assentiu com a cabeça, dando suporte à decisão. Em verdade, o fez mais por receio de cometer uma injustiça do que por seguir o que lhe dizia a razão. A ligação interurbana era cara, dizia o rapaz, enquanto relatava com exagero sua atual situação financeira, com o intuito de apressar a deliberação. E ela veio do jeito que ele e Sarah esperavam.

O plano era tão simples quanto sórdido: Abílio estava doente e possivelmente aquele seria o último ano de sua vida. A notícia chegou aos ouvidos de Rafael, causando-lhe um sorriso nada disfarçado. O tio era um grande empreendedor, possuidor de patrimônio incalculável. Não tinha esposa, nem filhos, apenas os dois sobrinhos. Marília era, por óbvio, a única considerada em termos de herança. Mas aquela situação poderia, certamente, ser revertida. E isto seria, a seu ver, inteiramente fácil.

Apesar de o assunto sempre ter sido escondido pela família, Rafael já tinha ouvido, por entre as paredes, os pais comentando sobre a orientação sexual da filha, motivo pelo qual expulsaram-na de casa. E, em seu imaginário, trazer a tona tal circunstância e de maneira politicamente incorreta seria o bastante para que o tio, possivelmente tão conservador quanto a irmã, deserdasse a sobrinha e, novamente, a deixasse sem nada.

Na seqüência, somente a ele caberia a fortuna a ser herdada, até por que pretendia ganhar a confiança e carinho do tio. Para tanto, não hesitaria em articular a forma exata de enlamear a imagem da irmã, que, a seu ver, nem deveria ser tão casta.

Para pôr o plano em prática precisaria de uma coadjuvante e logo lhe veio um nome à mente: Sarah. Ela, dentre todas as namoradas de Rafael, fora a única que chegou a participar de suas escolhas equivocadas com igual entusiasmo. A ousadia lhe era um atributo nato. Da forma de se vestir, à de se portar, ousava. Ademais, sua beleza, que beirava a estranheza do excêntrico, fatalmente envolvia a todos que desejasse. Era segura de si e, por vezes, essa segurança extrapolava o bom senso, tornando-a extremamente arrogante e intimidando quem quisesse enfrentá-la. Mas nada que ela não soubesse remediar, ainda mais quando era necessário seduzir e ludibriar o adversário.

O namoro durou pouco tempo. A irresponsabilidade de ambas as partes era tanta que, juntos, concluíram que se matariam. As noitadas, as drogas, as companhias, as brigas sempre exacerbadas, culminaram com tantos atropelos e desgastes que decidiram terminar. Entretanto, vez por outra ainda se encontravam. A atração nunca deixara de existir e, pelo menos fisicamente, eles a arrefeciam quando, esporadicamente, transavam.

Sim, somente Sarah, que era tão sórdida quanto o próprio articulador do plano, aceitaria o convite. Ainda mais com pagamento garantido e em curto prazo. Foi com este pensamento que, na última semana, Rafael a procurou.

Os dois se encontraram no estúdio de um artista plástico que se dizia amigo de Rafael, desde que este lhe servisse algumas carreiras de cocaína ou coisa mais “louvável”, era este o pacto. O pequeno e bagunçado espaço, cujas paredes eram tomadas de desenhos sombrios, geralmente era o usado pelo casal quando, no meio da tarde, arrumavam tempo para uma transa, onde nada era muito convencional.

Daquela feita, despiram-se sem dizer nada. Ele já excitado, ela convencida de que se sentiria mais leve depois de alguns orgasmos. Vinha se sentindo tão pesada, tão cansada daquela vida vazia de sentido, apesar de cheia de fatos.

Tomando-a de forma vigorosa e apressada, Rafael a empurrou num sofá acinzentado feito o céu daquela tarde fria em São Paulo, fazendo-a abrir as penas com um sorriso sarcástico enquanto anunciava a novidade. Sarah cedeu com a respiração já alterada e, enquanto o sentia invadindo sua carne, olhava-o nos olhos, como costumava fazer, sempre mantendo o controle e esperando. Ele, então, começou a relatar, com palavras entrecortadas e a respiração sôfrega, o tão estimado plano, enquanto, de forma ritmada, a penetrava.

O prazer estampado em seus olhos encontrou respaldo nos olhos de Sarah, que atentamente o assistia, o ouvia e, sobretudo, o recebia dentro de si, em paridade de vontade e crueldade.

E assim, enquanto se moviam de forma cada vez mais intensa e acelerada, a doença terminal do tio, o patrimônio deste, a herança a ser deixada, as investidas para seduzir Marília, a cunhada, e de mostrá-la como uma lésbica inescrupulosa capaz de roubar a noiva do próprio irmão, serviram de afrodisíacos. E os dois, ao selarem o trato também de forma ritmada, gozaram.

Depois do gozo, os corpos suados deitaram de forma displicente no tapete que se estendia, salpicado de tintas coloridas, sob o sofá. Silenciosos, respiraram fundo, ambos olhando o teto, enquanto acendiam cigarros. Mas, naquele instante, não havia o costumeiro tédio que os assolava depois do orgasmo. Eles ainda se sentiam preenchidos.

Finalmente o dia da viagem chegou e com ele, muita inquietação para quase todos. Enquanto Marília, em seu quarto e insone, assistia a chuva escorrendo pela janela, Rafael, Sarah e Lis inquietavam-se no avião. Cada um experimentado as turbulências que lhes eram inevitáveis.

Marília, com a chegada da noite, já identificava com precisão o sentimento que a tomava, ousando adivinhar a tonalidade e as flores a serem semeadas nos dias vindouros, o que ainda não havia feito no início da tarde. O sentimento era o de inquietação. Sentia-se inteiramente apreensiva com a chegada do irmão, da cunhada e da filha desta, que se daria em algumas horas. E se naquele instante possuísse disposição, se ergueria e plantaria uma roseira na madrugada.

A doença de Abílio vinha sendo a responsável pelas inúmeras noites que Marília virava insone. Graças ao câncer que, gradativamente, tomava o corpo do tio, o canteiro de violentas, também de forma gradativa, crescia e tomava a maior parte de seu jardim secreto. Mas, definitivamente, no dia seguinte, depois de muitas violetas plantadas, Marília voltaria a semear roseiras. E que o jardim, por ela, falasse. Afinal, a inquietação, naquela noite, mais do que a tristeza, lhe aturdia e lhe fazia prever os novos canteiros que estavam por vir, todos feitos de rosas vermelhas.

Já Rafael e Sarah, estes se inquietavam com a farsa que começariam a vivenciar no dia seguinte, trajando as vestes do casal perfeito que, em harmonia, dividia a vida com a menina de sete anos, filha de Sarah.

Rafael seria o jovem de boa índole que pedira ajuda ao tio, aceitando o emprego em sua construtora, especificamente no projeto que se iniciava em Aldeia, onde seria construído, sob os comandos da engenheira, Marília, um grande e luxuoso condomínio.

Sarah seria a noiva solícita e doce, praticamente esposa, que, acompanhando os sonhos e projetos do quase marido, também aceitara mudar de vida e de ares, mesmo que, para tanto, fosse preciso morar momentaneamente e de favor na casa do tão querido tio Abílio. E ela já chegaria dizendo que o sobrinho, do tio, muito falava.

Lis, na inocência de seus tão poucos anos, era a única que não interpretava. Apenas sorria, enquanto percebia a mãe e o ex-namorado vestindo roupas formais e falando sem gírias, forçando bons modos, com os quais não estavam acostumados.

Abílio era o único que, naquela noite, dormia. Já não temia a morte, quiçá as intempéries da vida. Não havia flores a escolher, tampouco farsas a ensaiar. Apesar de doente, sentia-se curado de grandes males.