SCARPINS
Dias e imagens atordoavam o relógio que Ingrid trazia no pulso. No pequeno espaço destinado às datas, os números corriam e logo correram os meses. Sob o vidro, os ponteiros, vez por outra, a confundiam. E a moça lembrava-se, ao ver as aberturas entre o marcador dos minutos e das horas, das pernas torneadas e abertas, que a abrigaram como nenhuma outra.
Aquela criatura, ao contrário de tantas estranhas com as quais terminava as noites, sequer deixara um nome, nem mesmo um fictício. Deixou somente o passar das horas, povoado de um desejo igualmente desconhecido: o do reencontro.
Os pares de sapatos deixados à soleira da porta, uma vez calçados, nunca mais voltavam, nem a dona da casa queria. Era este o costume. Mas, daquela feita, tudo o que desejava era ter seguido os passos dos scarpins pretos e lustrosos que adornavam os pés da estranha.
Bem por isto, a visão de Ingrid, outrora tão altiva, voltavam-se ao chão, a procura daquele par de sapatos. Talvez fosse mais fácil reconhecer a dona por eles. O rosto não havia gravado. Evitou olhá-la detidamente, como desejava. Estava por demais atordoada naquela noite, onde só teve vez o inusitado, e teve receio de se permitir decorar o rosto da figura peculiar que lhe roubou toda a razão. Sabia que, nos dias vindouros, ele a atormentaria caso ficasse marcado. Só não contava com a ironia da memória, que registraria nem que fosse o mínimo, para assombrá-la: em forma de lembrança, como se colado às pálpebras, o par de scarpins ainda lustrava.
Mas não apenas no saguão do bar procurava. Pelas avenidas que cortavam a cidade, tendo por margem as lojas mais badaladas; pelos pisos polidos, de granito acinzentado, que cintilavam trazendo luxo aos shoppings mais sofisticados; pelos carpetes marrons, verde musgo, azul escuro, rajados, que, entre poeira e maciez, encobriam o chão de diversas livrarias, das mais conhecidas às peculiares; enfim, por todos os planos que julgava compatíveis com os scarpins e a dona, Ingrid investigava. E assim, ia e voltava aos mesmos lugares, revivendo aquela estranha história, mas as únicas pegadas que encontrava eram as que estavam fincadas na memória.
Avenida Liberdade. Estava ali, escrito em branco. Por pano de fundo, havia o verde, na placa que se erguia alta, sinalizando o trânsito. O semáforo estava vermelho. Parou o carro e respirou aliviada. Voltando-se para Vanessa, leu em voz alta o restante dos dizeres:
- Cemitério Parque das Flores e... – fez uma pausa, emprestando suspense ao tom e ironia ao fato – Presídio Professor Aníbal Bruno.
De fato, era irônico perceber. Na mesma avenida, que homenageava no nome a liberdade, existia, de cada lado, uma prisão. A primeira, destinada aos mortos, presos por cumprirem as leis de Deus, irretorquíveis, inafastáveis; a segunda, destinada aos vivos, presos provisórios, que cumpriam as leis dos homens, questionáveis, corruptíveis, passíveis de habeas corpus e tantos outros recursos e subterfúgios.
A estrada era larga, enladeirada e de barro. Foi o que constataram logo que o carro dobrou a esquina, com a permissão do sinal verde. No início da avenida, já se percebia que um dos lados era inteiramente tomado pelo muro alto, encardido e longo que compunha a frente do presídio, lhe emprestando ares de muralha. À sombra escassa do muro, havia uma imensa fila, formada apenas por mulheres e crianças. Era dia de visita.
Vanessa não era apenas uma das garçonetes que serviam os clientes de Ingrid. Havia se tornado uma grande amiga, sentimento fomentado, nos primeiros momentos, pela gratidão.
A jovem, de traços harmoniosos e olhos vivos, gestos suaves e modos contidos, família simples e beleza sem artifícios, morava em Nazaré da Mata, cidade localizada na zona rural de Pernambuco. Desde cedo, chamava a atenção, despertando o interesse dos mais afoitos aos mais tímidos. Aos dezesseis anos, foi vítima de estupro, classificado por muitos como provocado, esperado e até merecido. E assim, teve, primeiro, a carne devassada, depois o espírito.
No ano seguinte, com uma mala pequena e um desejo imenso de recomeçar a vida, pôs, pela primeira vez, os pés em Recife. Veio morar com os tios, numa tentativa de desalojar fantasmas e dissipar conflitos.
Num jornal de domingo leu o nome do bar que, nos dias seguintes, leria no letreiro luminoso erguido defronte ao mar de Boa Viagem. Era ali que trabalharia, pressentiu a jovem interiorana.
Tímida, entrou no recinto que, à luz do dia, não era tão atraente. Entre as cadeiras empilhadas, caixas de bebidas e maresia, avistou a cabeça loira de um jovem que, distraidamente, punha-se de costas para a porta arrumando com extrema cautela e delicadeza taças de cristal em badejas de vidro.
Para não assustá-lo, com igual cautela, temendo trincar o próprio silêncio, anunciou a presença com um bom dia. E logo foi surpreendida com um olhar amistoso e feminino; o primeiro, desde sua chegada na cidade, que lhe pareceu confiável, cálido e tranqüilo; um olhar que, certamente, a acolheria sem julgar seu passado, questionando apenas sobre suas intenções presentes e futuras; um olhar que, bem por isto, lhe inspirou gratidão; um olhar bonito, o mesmo que, naquele instante, era lançado, acompanhado do mesmo tom atencioso e seguro:
- Você tem certeza de que quer fazer isto?
Sim. Era esta a resposta. Vanessa precisava perdoar. Precisava visitar e olhar nos olhos daquele que a estuprou e que um dia havia sido seu namorado. Não queria levar consigo aquele ódio e acreditava ser aquela a única forma de dissipá-lo.
Certamente, naquele dia de sol, enquanto sorria e se distraía na companhia tão querida de Ingrid, ambas perdidas nos viadutos que atravessavam a rodovia que levava ao presídio, Damião deveria estar trancado na própria escuridão, naquela que procurou e que tinha por cenário uma cela suja e fétida.
Ele sim, ao contrário dela, era digno de pena. Era infeliz e dificilmente recomeçaria uma vida digna, depois daquela estada, preenchida dos vícios mais malévolos. Por ironia, o predador havia também se tornado vítima e o pior: de si mesmo. E a pena – esta sim perpétua – seria arrastar as correntes que o prendiam, bem como os fantasmas que o atormentavam, para o resto da existência, mesmo quando atravessasse a avenida e fosse habitar o cemitério.
Era esta realidade que Vanessa queria constatar, não por questão de vingança, mas por piedade. Queria visitar o lugar e o algoz, para que ele perdesse este rótulo tão pesado para ambos. Queria olhar Damião nos olhos e voltar a chamá-lo pelo nome para poder, finalmente, perdoar. Acreditava que somente assim o perdão seria genuíno, capaz de libertá-la e, ao mesmo tempo, diminuiria o peso que aquela criatura levaria ao além-vida, onde as leis eram infalíveis e não havia espaço para apelos.
Era esta a crença, a mesma que a fez descer do veículo, tomando a mão de Ingrid com força e suor frio.
A terra seca da Avenida Liberdade subia a cada passo que davam e sujava as vestes de ambas, de forma inquietante. Era uma terra vermelha, que já impregnava os rostos suados das mulheres e das crianças que compunham a fila. Em cada semblante, tudo o que menos se via era a liberdade que homenageava a avenida. A própria terra prendia-se, assim como aquelas vidas.
Pondo-se no final do corredor humano, as duas procuraram os restos da sombra. Era meio-dia. Ao enxugar o suor da testa, Ingrid terminou misturando os fios loiros e lisos à vermelhidão da poeira, que estava, sorrateira, nas mãos. Vanessa riu e, em auxílio, retirou da bolsa um pequeno lenço e o deslizou com suavidade na face que voltou a ser apenas branca.
As duas riram, encontrando alguma suavidade mesmo naquele instante. Estavam juntas e isto, vez por outra, bastava para que estivessem bem.
A atenção de todos foi capturada pela chegada abrupta e barulhenta de duas viaturas da polícia federal. Delas, em instantes, desceram vários policiais vestidos de forma ostensiva e armados fortemente. Diante dos olhares curiosos, logo saiu um homem de terno e óculos escuros, com as mãos para trás, devidamente algemado, que foi conduzido rapidamente para o interior do presídio, sob os flashs das câmeras e lentes das filmadoras que já se aglomeravam na entrada. A maioria parecia saber de quem se tratava e o burburinho instalou-se. Entre as especulações, ouvia-se que, mais uma vez, o figurão retornava de uma audiência e isto sempre era motivo de grande alvoroço.
Para compor o quadro peculiar e esquisito, despontou no início da avenida um carro escuro que vinha em alta velocidade. A poeira vermelha logo o tingiu inteiramente, quando, aos comandos do freio, o mesmo estancou de forma brusca logo atrás das viaturas.
O motorista desceu e, rodeando com pressa extrema o veículo, abriu a porta traseira. Em poucos segundos, os scarpins reluzentes e negros que Ingrid tanto procurava tocaram o chão de terra batida, onde jamais imaginou que caberiam aquelas pegadas.
Atônita, ergueu os óculos escuros. Com as pupilas inteiramente dilatadas pela claridade e, sobretudo, pela visão do absurdo, levou alguns segundos até que, finalmente, pôde ter certeza. Com o estômago embrulhado e a vista não mais turva, vislumbrou as pernas morenas e torneadas da mulher que, um dia, havia se despido bem à sua frente. Indubitavelmente era ela, a mesma intrusa, a única que fora capaz de invadir seu bar e sua vida. Ali, novamente, estava a criatura. E ainda mais desconhecida!
Sem entender a reação da amiga, Vanessa olhou-a assustada, enquanto sentia a mão longa apertar a sua. Ingrid procurou fôlego para contar que, finalmente, havia reencontrado a mulher que tanto procurava, mas não houve tempo.
Enquanto buscava as palavras, baixou a vista e observou as mãos dadas. Num rompante, aquela imagem imediatamente lhe remeteu a outra.
Vinte de janeiro de dois mil e cinco. Um ano antes de ver a desconhecida pela primeira vez. Era esta a data estampada no jornal antigo que embrulhava o último prato da pouca louça que Vanessa possuía. Aquele conjunto havia sido presente da tia. Depois de juntar algumas economias, finalmente a jovem havia se estabilizado e decidido. Alugou um pequeno apartamento em Boa Viagem e, finalmente, moraria sozinha. Ingrid foi a primeira a apoiá-la.
E a ajuda dispensada não se limitou à tomada da decisão. A chefe estava ali, ajudando-a na mudança, sentada em meio à bagunça e à poeira que se espalhava pela sala estreita, desembrulhando a louça, enquanto Vanessa tentava pôr ordem nos poucos móveis que comprara.
Aquela folha de jornal lhe chamou a atenção. Desamassando-a, Ingrid forrou-a no chão da sala, que estava tão sujo quanto as mãos. Logo Vanessa veio ao seu encontro e sentou-se, ladeando-a, em meio à bagunça externa e interna recentemente causada.
Antes que Ingrid pudesse olhar detidamente a ilustração da manchete, examinando a fotografia em preto e branco do homem bem vestido que tinha o braço apoiado no ombro daquela que parecia ser a esposa, Vanessa pegou uma de suas mãos, puxando-a para o almoço. A mudança já estava praticamente acabada e a fome era imensa, foram estes os argumentos para a pressa.
Como Ingrid continuava absorta, observando a imagem que lhe causou certo calafrio, Vanessa puxou a folha e, mesmo sem mirar, terminou por rasgar o perfil da mulher, que despontava harmonioso, com o nariz afilado, apesar do rosto estar parcialmente encoberto por cabelos escuros e revoltos.
Primeiro a data, depois algo naqueles traços, mesmo colhidos furtivamente, lhe fez lembrar da desconhecida. E antes de a folha ser desmembrada em outros tantos pedaços, algumas palavras foram também colhidas: Organização criminosa. Principal acusado. Médico e administrador. Hospitais públicos. Tráfico internacional de órgãos. Homicídios. Lavagem de dinheiro. Vítimas. Métodos diversos. Pacientes indigentes. “Boa noite, Cinderela”.
Mais de um ano havia se passado e, somente agora, as palavras voltavam à mente de Ingrid. Como se movidos à mágica, os pedaços do texto estampado no jornal e, sobretudo, daquele perfil, outrora rasgado, como se ganhassem cola, juntavam-se e faziam pleno sentido.
O quebra-cabeças estava, finalmente, montado e por pouco a cabeça loira não o compôs. O trocadilho de mal-gosto e infantil lhe veio feito um soco no estômago. Atordoada, largou a mão de Vanessa e caminhou até início do muro, onde vomitou.
Ao erguer a fronte, estava sem ar e suava. Novamente passou a mão pelo rosto, avermelhando-o com a terra, mas aquilo já não importava. Apenas uma evidência, igualmente pueril, latejava na testa: depois de tanto procurar os scarpins, terminou por descobrir que ela própria, por muito pouco, não foi a Cinderela.
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