domingo, 23 de março de 2008

ENQUANTO A CHUVA CAI LÁ FORA (Poesia)

Enquanto a chuva cai lá fora
Fecho as portas e as janelas de mim mesma
Para que a melancolia que escorre pelas ruas não me inunde
Para que o tédio deste domingo,
Sempre prenúncio de segunda,
Não me afogue
Para que tudo o que vivi não se torne pequeno, dramático, simplório
E me faça querer sair por esta porta

Enquanto a chuva cai lá fora
Cubro-me de minhas melhores lembranças
Visto-me das mais ousadas promessas
Dispo-me daquelas que não cumpri
Rasgo aquelas que não mais me interessam
E, antes que o frio me invada, congelo
Imóvel, impune, insone

Quero a frieza sim
Não a do mundo, a que vem de mim
A que me estabiliza, ao passo que me petrifica
Quero a insensibilidade sim
Não a da pele, a do humor
A que me faz imune às oscilações do tempo e das medidas
Quero a dormência deste final de semana em casa
Quero a displicência do colchão no meio da sala
Quero não fazer nada e, ainda assim, me sentir repleta de tudo
Quero simplesmente o que já tenho
E a nada mais sucumbo
Quero tão-só o que cabe aqui dentro
Não quero nada que me trasborde,
Nem que me trespasse
Nem que me devore
E por isto não quero esta chuva:
A que insiste em nascer e escoar por dentro de mim
A que, em audácia, no passado, já me inundou
A que, em máculas, num futuro, poderia ser havida como suja
Não quero essas águas escuras
Que sempre, em espaço e futuro, me extrapolam
Quero o que há de claro,
O que há de raro,
O agora
E me protejo de mim e de minha própria chuva
Enquanto a outra cai lá fora.

(23/03/2008)

sábado, 22 de março de 2008

PARA DEPOIS DE “AQUÁRIOS”... (Crônica)


Eu nasci em Brasília e morei lá até os dois anos de idade. Minha mãe, que lá chegou no início de tudo, odiava a cidade, reclamava da aridez que contaminava o tempo e as pessoas, dos caminhos que nunca iam dar em mar algum, apenas em imensas e frias esplanadas, das calçadas geométricas, recém construídas, projetadas feito as famílias, que ali se desenvolviam sem laços, sem passado. Ela vivia à sobra da promessa feita por meu pai: “Um dia você abrirá a porta de nossa casa e pisará na areia do mar.” Promessa cumprida. De Brasília fomos para Maceió, onde meu pai construiu a casa onde cresci. Ela ficava numa praia fora da cidade, chamada Garça Torta, perto de Riacho Doce, praia do livro de José Lins do Rego, de mesmo título.

E, de fato, durante os quatorze anos que se seguiram, eu e minha mãe descíamos de mãos dadas todos os dias o batente da porta da frente de nossa casa e caminhávamos juntas na areia do mar. A casa era enorme! Enquanto a porta da frente dava para o mar, a de trás dava para uma rua que sequer era asfaltada...naquela época – década de oitenta – a praia de Garça Torta era apenas um povoado simples, formado por cabanas de pescadores e casas de veraneio...E nós não nos enquadrávamos em nenhuma das duas categorias, muito embora, desde pequena, já me metesse a pescar sonhos...e para fazê-lo eu tinha até meu local favorito: era em cima da mangueira imensa do quintal que dava para rua. Ali em cima eu passava as tardes e sonhava de olhos bem abertos.

Pois bem, da minha mangueira eu acompanhei a construção de duas casas iguais, milimetricamente equiparadas, coladas, vizinhas, erguidas bem em frente à minha. Dali de cima mesmo eu via pessoas chegarem, passarem meses e partirem...eram casas de veraneio e não de pescadores, estes sim tinha vínculos. O mar os prendia. Já os turistas, os que alugavam as casas, estes eram tão inconstantes quanto a ventania que vinha conforme a maré. E eu lamentava cada vez que alguém partia...não por uma questão de apego – afinal, eu mal os conhecia – mas por uma questão de não saber ainda, naquela idade tenra, exercer a arte do desapego, a qual depois tive que aprender com maestria.

Enfim, depois de muitos anos, quando eu já havia me libertado de meu próprio “aquário”, estourado todos os vidros que me cercavam, inundado com todas as águas tudo o que me acompanhava e não me satisfazia, depois de morar em outras cidades, de escolher como preferidas tantas outras árvores, enfim...um belo dia, sentei e comecei a escrever o conto de nome “Aquários”. E, sem perceber – ao menos no princípio –, fui parar naquela praia, naquelas casas, naqueles dias, naquele cenário que nunca me deixou, mesmo quando eu parti...

Um dia desses, numa de minhas idas a Maceió, logo depois de concluir o conto, por curiosidade, resolvi passar por minha antiga casa...Na verdade, o que eu queria mesmo era descobri o que teria acontecido das duas casas “gêmeas” que cresceram defronte à minha. E, para minha surpresa e tristeza, ao contrário do desfecho imaginário que dei no conto, as duas casas haviam sido inteiramente modificadas, parcialmente demolidas e em nada mais se pareciam...

Aumentei a velocidade do carro – que passasse rápido aquela sensação de lamento! – e, depois de alguns quilômetros e tempo, veio-me a resignação: seria injusto elas continuarem as mesmas, se eu tanto mudei e quase não me lembro quem fui um dia...

Mas, apesar de tudo, e em que pese às mudanças das casas e às minhas, a mangueira ainda estava lá...de pé, frondosa e acolhedora de sonhos como sempre.

sábado, 15 de março de 2008

A-DIVERSIDADE (Conto Erótico Feminino)


Era só o que faltava: chuva. Foi tudo o que Paula pôde pensar quando sentiu as primeiras gotas desabarem sobre seu rosto, já contraído e vermelho de frio. Eram quase vinte horas e ela ainda estava perambulando pelas ruas de São Paulo, sendo inevitável lembrar que saíra de casa exatamente às oito. Doze horas de tempo perdido com entrevistas e currículos deixados nos mais variados lugares em busca de emprego e odiava mais do que tudo na vida o tempo perdido, fosse lá com o que fosse!

Saíra de Brasília há exatos três meses, com apenas uma mochila nas costas, algum dinheiro no bolso e muitas idéias soltas, pairando audaciosamente dentro de si. Apesar de agora achar tudo aquilo uma grande loucura, lembrava-se da satisfação que sentira no dia em que resolveu partir. Estava cansada de sua vida, de morar na casa dos pais, de seu trabalho burocrático que em nada combinava com seu estilo despojado e espontâneo, por isso, não hesitou em acompanhar Cecília e Amauri quando os dois decidiram “se jogar” para São Paulo com o intuito de montarem juntos uma agência de publicidade. Contariam com a ajuda de uma tia de Cecília, que, segundo esta, já tinha uma salinha perfeita para se instalarem, alguns computadores e, o mais importante, alguns clientes. O resto seria por conta deles. Foram. Mas, já na primeira semana, Paula percebeu a furada em que havia se metido. A tia de Cecília era uma doida de carteirinha, porra louquíssima, daquelas que vestem aqueles vestidões coloridos e parecem ter saído diretamente dos anos setenta, cheia de idéias malucas, de boa vontade – sejamos justos – mas totalmente lunática e exagerada. Os computadores eram do tempo em que nem existia o windows, com suas inúmeras versões e inversões, a sala era um cubículo no último andar de num um prédio caixão de quinta categoria, que, é claro, não tinha sequer elevador e os clientes eram o dono de uma padaria, que ficava na esquina da rua esburacada do prédio, e o dono da quitanda, que ficava logo em frente.

Amauri quase teve um ataque de estresse na primeira semana. Arrependeu-se nos primeiros dias, praguejou contra todos os santos pela burrice que havia feito e voltou para Brasília de ônibus, porque não tinha mais grana pegar um avião.

Cecília, que não era de dar o braço a torcer, insistira durante as primeiras semanas em fazer as coisas darem certo. Segundo ela, bastava passar uma tintinha naquelas paredes mofadas, ajeitar as “máquinas de escrever”, arregaçar as mangas e começar o trabalho. O resto viria com o tempo.

Paula, por sua vez, ficou em dúvida. Não sabia se deveria voltar com o rabinho entre as pernas ao lado de Amauri, de bus mesmo, rumo ao Distrito Federal, ou se deveria ficar e pagar para ver. Odiou se imaginar como uma criatura acuada, chacoalhando num ônibus fedorento, desistindo tão facilmente e por isso ficou...e se ferrou! Foi a conclusão a que acabara de chegar, já toda molhada de chuva. Nada deu certo e agora estava ela ali, naquela situação, encharcada, sem dinheiro, sem emprego e, o mais irônico de tudo, numa parada de ônibus, esperando o próprio, para ir para casa, fosse ele fedorento ou não, não tinha outro jeito...mas, dos males o menor, pelo menos a distância era mais curta do que a que separava São Paulo de Brasília. “Coitado de Amauri”, pensou no amigo com pesar.

Enquanto esperava, sentiu o estômago roncar de fome. Só então se lembrou de que não havia almoçado, nem jantado. Enfiou a mão no bolso da calça jeans desbotada que se amoldava em seus quadris, e, meio desengonçada, tirou uma nota de cinco reais do bolso, já toda amassada. Era a única. Olhou a notinha com cautela, enquanto maquinava alguns pensamentos. Os olhos puxados, cuja cor clara era difícil distinguir, se comprimiram ainda mais para evitar que as gotas de chuva lhe afogassem a íris. Pensou no que seria menos trágico/cômico naquela situação? Gastar aquele dinheiro com o ônibus e ir para casa com fome, mesmo sabendo que lá também não tinha nada muito animador para comer, apenas uma lata de sardinhas e um pão dormido, ou entrar naquela lanchonete bem ali, na esquina, e comer um hambúrguer cheio de porcarias dentro, regado com uma coca-cola bem gelada para depois ir para casa andando e chegar lá igualmente faminta, já que, com certeza, faria a digestão no percurso. Optou pelo hambúrguer e companhia, afinal, se era para dormir com fome de qualquer jeito que, ao menos, tivesse o prazer de saborear algo que “prestasse” antes...de quebra, ainda faria uma boa caminhada para colocar os pensamentos em ordem, já que durante o dia isso fora impossível, apesar de haver andado bastante.

Caminhou em direção a lanchonete, já sem pressa, afinal, o que tinha para molhar já estava devidamente molhado. Sentou-se e começou a apreciar as fotos do cardápio, sem deixar, é claro, de ver a segunda coluna, que indicava os preços. Bons tempos aqueles em que eu não me preocupava com isso!, suspirou baixinho para si mesma. Foi quando seu celular tocou e ela levou um susto, não porque estivesse distraída, mas porque pensava que sua linha já havia sido cortada há muito tempo. Riu de sua própria desgraça, afinal, ela ainda tinha bom-humor e atendeu:

- Alô.
- Paulinha, é Cecília! Tenho ótimas notícias...
- Então me fala, pelo amor de Deus, que de ruins eu tô cheia!
- Consegui um emprego!!!
- Putz, que legal, parabéns! Posso ser sua faxineira?
- Acho que não vai ser preciso...Talvez eu desenrole um pra você também!

Paula largou o cardápio e passou a escutar atentamente enquanto Cecília contava que havia conhecido uma garota numa boate com a qual tinha ficado, que ela era maravilhosa, uma jornalista de sucesso que trabalhava numa revista voltada para o público gay feminino, que estavam precisando de alguém para fazer uns cartoons por lá e que Cecília poderia aparecer para mostrar seus desenhos, quem sabe daria certo...e blá blá blá...Enfim, Cecília havia ido e sido contratada.

Até então Paula apenas imaginava aonde ela se encaixaria naquela história, afinal, não sabia desenhar nem uma casinha! Porém, para sua alegria, Cecília fez uma pausa e completou, dizendo que, há quase oito meses, a dona da revista estava procurando uma substituta para sua ex, que era a responsável pelas crônicas e contos publicados como um dos destaques principais da revista. Elas haviam terminado o relacionamento e brigado feio. Por isso, a ex pediu demissão e deixou a dona do jornal, literalmente, na mão.

- Porém, minha cara... – Cecília respirou fundo, causando um certo gelo na barriga de Paula – dizem que ela, a big boss, não é nada fácil de se agradar. Ela tem uma certa fama de exigente, prepotente e arrogante. Mas acho que nada disso será empecilho para você. Seu talento e seus olhinhos puxados a farão baixar a guarda, tenho certeza.
- Eu não tenho tanta certeza assim...mas...já tô ferrada mesmo, o que custa levar mais um fora!
- Anota aí o telefone da Berta, que é minha deusa salvadora...eu falei que você iria ligar. Ela vai marcar uma entrevista para a senhorita levar seus contos, suas crônicas e conversar com a tal da Virgínia Valença, a poderosa, para ver se rola o emprego. Quem sabe é você quem, finalmente, vai substitui a tal da ex dela... – dizendo isso, Cecília riu maliciosamente, dando duplo sentido à frase, e repassou o número.

Pronto, mais um dilema para acalentar o dia de Paula: pedir o sanduíche, que já havia escolhido e etc, ou comprar um cartão telefônico?

- Puta que pariu! Lá se vai meu jantar...– foi o que ela disse quando decidiu o que faria. Levantando-se bruscamente, assustou o senhor que estava sentado ao seu lado, no banquinho giratório, o fazendo pensar que quem visse aquela “carinha de anjo” não imaginaria nunca quão sua boca era suja.

Comprou o cartão e ligou. Marcou para o dia seguinte, às oito horas. Berta pareceu simpática e receptiva. Talvez as coisas começassem a dar certo.

Depois de quarenta minutos de caminhada, Paula chegou em casa e caiu na cama, do jeito que estava, exausta. A roupa já havia até secado no corpo. No outro dia, acordou cedo, tomou um banho demorado, despenteou os cabelos lisos e curtos, desfiados, que lhe davam um ar andrógino, apesar de charmoso, e foi escolher o que vestiria.

A metade de suas roupas estava suja e a outra metade, molhada. Só lhe restava uma calça jeans e uma blusa básica de malha. Não era uma questão de opção. E mesmo que fosse, talvez ela tivesse optado por isso mesmo, diga-se a verdade! Vestiu-se. Olhou-se no espelho. Em complemento, colocou um batom suave, uma sandália leve, sua bolsa carteiro amarela e os óculos escuros. Estava pronta. Uma coisa era certa: não tinha grana, mas charme e estilo, tinha de sobra...era o que Cecília sempre lhe dizia. Pegou os contos e crônicas que havia escrito nos últimos meses, alguns de seus antigos escritos preferidos e partiu.

Em frente ao prédio espelhado e enorme, indicado como o endereço da revista, Paula parou. Ergueu os óculos, com as mãos fez uma concha sobre os olhos claros, dando-lhes alguma sombra e leu: Duas, era esse o nome da revista. Sem dúvidas, era ali. No elevador, pela primeira vez, sentiu um pouco de nervosismo povoando-lhe o estômago. Mas não durou mais do que alguns segundos. Afinal, já havia encarado tantos trancos e barrancos...aquele seria apenas mais um.

No décimo andar, encontrou-se com Cecília que a recebeu com alvoroço e entusiasmo. Em seguida, foi encaminhada à sala de Berta, onde Cecília as deixou sozinhas. Berta era a editora chefe. Sua sala era muito clean, apesar de sofisticada. Berta era uma mulher bonita, de aproximadamente trinta e poucos anos, sem muita frescura, mas muito estilo. Parecia ser inteligente e era extremamente desenvolta. Cumprimentou Paula com cordialidade e iniciaram uma conversa amistosa sobre escritores e livros que já haviam lido. Parecia que Berta queria lhe dizer alguma coisa, mas a estava preparando antes, fora essa a sensação de Paula. Quando o assunto esgotou-se e o silêncio ia começar a ficar constrangedor, Berta parou e olhou-a de frente:

- Veja bem, Paula...Virgínia logo irá recebê-la. Ela é uma pessoa um pouco difícil. Já havia decidido encerrar o espaço para contos e crônicas na revista, pois é muito exigente e não encontrou ninguém que achasse à altura de Claudia. Porém, Cecília disse que você é fantástica no que escreve e pediu que eu desse um empurrãozinho. Eu convenci Virgínia a te receber. Trabalho com ela há quase dez anos, ou seja, desde que ela abriu a revista. Somos amigas, posso dizer isso, mas, ainda assim, não acho fácil lidar com ela. Por isso, lhe aconselho, vá com calma, responda apenas o que ela lhe perguntar e não leve a mal se ela não estiver de muito bom-humor, não será nada pessoal, ok?
- Ok! – foi tudo o que Paula pôde dizer... Parecia que todos tinham medo de Virgínia e isso lhe parecia tão estranho! Não atiçaria a fera, isso definitivamente não faria. Mas medo não via motivos para ter e, de fato, não tinha. Ora, por que teria?, perguntou-se em silêncio.

Foi com esse pensamento que entrou na sala, com os escritos embaixo do braço e sua calma de sempre. Virgínia olhou-a de cima a baixo, antes de pedir que sentasse, indicando a cadeira à sua frente. Paula o fez, lentamente, sem se alterar com o olhar crítico da mulher que parecia medir, com precisão, seus passos, atos e até os centímetros de seu corpo. Paula acomodou-se na cadeira, pousou a pasta sobre o colo, prendeu os óculos escuros na cabeça, deixando algumas mechas de seu cabelo escorrerem sobre os olhos pequenos e franjados e esperou Virgínia começar a falar. Enquanto isso, aproveitou para observá-la também.

Virgínia era uma mulher muito atraente. O porte altivo e as pernas longas, cruzadas com precisão, demonstravam que deveria ser elegante ao andar. Tinha os cabelos longos, claros, presos, a pele impecável, os traços delicados, os olhos escuros e fortes, assim como as mãos, de unhas curtas e bem cuidadas. Parecia ser alta. Talvez fosse pelo fato de se pôr tão inacessível, tão inatingível, ali, atrás daquela enorme mesa polida, sobre a qual se apoiava com tanta classe.

- Você deve ser Paula Duarte – foi o que Virgínia disse, sem olhá-la, parecendo, naquele instante, dar mais importância aos papéis sobre sua mesa. Estava de cabeça baixa, lendo algo.
- Exato – respondeu Paula com sua voz suave e mansa, sem se importar com o descaso que lhe era dispensado. Não era de se importar com muitas coisas.
- Imagino que essa pasta em seu colo contenha alguma coisa sua para eu ler – Virgínia finalmente ergueu a cabeça e encarou-a.
- Pois é. – Paula poupava as palavras e explicações. Sabia que, se Virgínia realmente viesse a ler o que ela havia escrito, a conheceria com mais precisão do que se escutasse mil palavras vindas de sua boca, numa ocasião como aquelas.
- Você é sempre monossilábica?
- Não... só quando minhas palavras são desnecessárias.
- E por que você acha que elas são desnecessárias agora? Por um acaso não lhe disseram que isso era uma entrevista? – Virgínia parecia querer provocar alguma reação de Paula... gostava de alfinetar, desafiar, e, por vezes, de irritar as pessoas. Era quase um hábito seu.
- Disseram sim. Mas eu acho que já “falei” bastante quando escrevi o que trouxe para a senhora ler. Se eu falar bastante agora também, talvez a senhora nem leia.
- Com certeza, lerei. Você acabou de me deixar curiosa – disse Virgínia séria, sem parecer querer provocá-la naquele instante – está dispensada. Berta ligará para você se a senhorita me interessar.
- Tudo bem. Obrigada. – Paula levantou-se com a mesma calma com que sentara, repôs os óculos, esticou a mão e cumprimentou Virgínia suavemente.

Virgínia acompanhou Paula com os olhos, enquanto ela saía da sala, imaginando se Paula era tão interessante quando escrevia quanto o era quando andava. Os movimentos de seus quadris eram sutis e maravilhosos e ela tinha muito charme, mesmo com aquelas calças surradas e aquela “blusinha” barata, calculou a observadora. Isso era um fato.

Virgínia apreciava as pessoas singulares. Apesar de estar acostumada a admirar mulheres sofisticadas e frescas, que em nada pareciam com aquela que acabara de sair de sua sala, teve que admitir para si mesma que Paula tinha lá um quê de sensualidade.

Enquanto esperava a reunião que teria às onze, Virgínia sentou-se em sua poltrona reclinável e começou a ler o primeiro conto de Paula. Foi interrompida quase duas horas depois por Berta, que batia à porta:

- E aí, chefinha, o que achou dela?
- Dela ou do que ela escreve? – disse a chefe, rindo em tom de provocação.
- Das duas coisas, Virgínia, ora, que mania de ser meticulosa em tudo!
- Acho que encontramos a pessoa certa.

Foi tudo o que Virgínia disse, mas o suficiente para Berta concluir que a chefe havia ido com a cara de Paula e, mais ainda, que ela deveria escrever muitíssimo bem, afinal, Virgínia jamais a contrataria apenas por ter uma carinha de anjo e belos olhos puxados. Porém, Berta não resistiu a revidar a provocação da amiga e comentou:

- Nossa, chefe, já vi que a moça é “boa” mesmo, hein? Leu apenas algumas páginas e já se decidiu?

Entendendo perfeitamente o que Berta queria dizer, Virgínia respondeu:

- Antes que você me venha com mais insinuações, lhe digo que, se me conhecesse como julga conhecer, saberia que ela realmente não faz o meu estilo, Berta. Mas, minha cara, ela escreve bem! Nem precisei virar a primeira página para me decidir. Bastou o primeiro parágrafo, que dizia assim – Virgínia ergueu a folha e releu em voz alta: Cansei do marasmo do caminho, virei minha mesa, que já não valia nada, bagunçada que estava, e fui embora, fui com pressa, fui sozinha, fui sem ela, fui descalça e de madrugada. Se vou voltar? Não sei. Se vou ficar? Também não. Só sei que vou e isso basta para me sentir melhor: vou só.
- Bom, muito bom... Senti alguma identificação com sua última história de amor ou foi só impressão?
- Tire você sua própria conclusão – disse Virgínia rindo, já certa de que Berta havia captado com precisão a semelhança entre o que Virgínia havia acabado de enfrentar com Cláudia e as palavras de Paula – pode contratá-la. A moça sabe como dizer as coisas e diz de um jeito que gosto. Vou lhe dar uma chance.

Berta ligou imediatamente para o celular de Paula e a informou da notícia. Apesar de ter ficado bem feliz, Paula não demonstrou surpresa, deixando Berta incrédula e curiosa:

- Você já esperava que ela fosse lhe chamar? – Berta não resistiu e perguntou.
- Acho que sim – disse Paula, com simplicidade e sua voz rouca de sotaque gostoso de se escutar.
- E de onde veio a certeza?
- De um simples fato: ela não me amedrontou – Paula riu.

Berta também sorriu e concluiu que Paula, realmente, havia sabido lidar com Virgínia.

À noite, Virgínia chegou em casa cansada, como sempre. Tomou um banho quente, vestiu seu penhoir e deitou-se sobre a cama enorme que ficava no meio do quarto, igualmente grande. A tensão de seus dias era tanta que, quando ela, finalmente, deitava, sentia todos os ossos do corpo doerem, até se adaptarem à maciez do colchão. Era esse seu ritual noturno, desde que havia se separado de Cláudia: alongava-se com languidez na cama, durante uns dez minutos, numa tentativa de afastar de seu corpo parte do estresse que a consumia. Em seguida, ligava o abajur ao seu lado para espantar a escuridão e a solidão do quarto. Só então começava a ler alguma coisa para dormir. Naquela noite, continuaria a ler os contos de Paula.

Coisa que nunca fazia era levar trabalho para casa. Por isso, muitas vezes ficava na revista madrugada adentro, indo embora apenas quando tivesse concluído o que restava pendente. Mas, naquela noite, encararia os contos, não como a dona da revista, nem como parte de seu trabalho. Eles haviam despertado seu interesse como leitora.

O último deles falava sobre a viagem de uma mulher entediada – seria assim que Paula se definiria?, pensava Virgínia – de Brasília para São Paulo e retratava com um certo humor e, ao mesmo tempo, drama, toda sua jornada rumo à “furada do século”, que era o título do conto. Dentre outras coisas, o texto falava sobre a tia de Cecília, a própria Cecília, o ônibus, a estrada esburacada, a salinha alugada, mas, o foco era a necessidade que algumas pessoas têm de sair da inércia, do tédio, da mansidão. E o mais irônico: mesmo que fossem para um lugar pior, mesmo que fosse para sofrerem ou apenas para se sentirem vivas, mesmo que fosse para se arrependerem depois. Enfim, o importante era “se jogar”, ainda que o destino as levassem à “furada do século”. Virgínia riu sozinha e se perguntou se ela própria era uma dessas pessoas que abominavam a inércia. Diante da resposta afirmativa, se questionou quantas vezes havia entrado numa “furada” para sair do tédio. Lembrou-se apenas de dois episódios: o dia em que conhecera Cláudia e o dia em que a deixara. Sim, fora para não permitir que o tédio a consumisse. Quando a conheceu, sua vida estava um saco: não pensava em outra coisa a não ser trabalho e responsabilidades. E foi muito bom encontrar alguém envolvente e arrebatadora, linda e inteligente, que a excitava em tudo, que a fazia querer sexo a todo instante, de todo jeito. Cláudia a salvou da mansidão em que estava submersa. Porém, no último ano do relacionamento, o trabalho vinha tomando o lugar da paixão. Elas se preocupavam muito com a revista, com o dinheiro, com os negócios que as cercavam e esqueceram da paixão, do romance, que foi se apagando, acinzentando, transformando-se no tão temido tédio. Novamente ele! Virgínia foi quem tomou a iniciativa de conversar e admitir que o tesão havia acabado e Cláudia era vaidosa demais para escutar uma coisa dessas, ainda que sentisse o mesmo. Por isso, fez uma cena de cinema na revista, gritou aos quatro ventos que Virgínia deveria estar de caso com alguma qualquer, saiu pelos corredores enlouquecida, quebrando o que encontrava à sua frente. Virgínia, que odiava escândalos, ficou possessa! No outro dia, Cláudia foi buscar suas coisas no apartamento de Virgínia e as duas acertaram as contas. Enfim, se separaram da pior maneira possível: sem um diálogo decente e com muita mágoa. Tudo, pensava Virgínia, para fugir do tédio. E agora estava ela ali, sozinha, mas, pelo menos, não estava entediada. Os contos animaram sua noite e ela pensava em Paula, tentando colher um pouco daquela mulher “que realmente não fazia seu estilo” em cada palavra.

Enquanto isso, no apartamento de Cecília, ela e Paula comemoravam. Cecília havia preparado um jantarzinho para as duas e comprado duas garrafas de vinho, que já estavam muito geladas. Sentadas à mesa, as duas riam e conversavam, após a primeira garrafa:

- Pois é, Paulinha, viu só? Eu sabia que as coisas por aqui iam começar a dar certo. Amaury poderia ter ficado, mas é um frouxo mesmo!
- Ah, Cecília, cada um sabe de si. Tivemos sorte, mas ainda poderíamos estar desempregadas, comendo sardinha em lata e andando por aí, atrás de emprego.
- É verdade, mas não estamos, minha amiga...não estamos mesmo! E digo mais, acho que ainda vamos crescer bastante por aqui. O pessoal da revista é bacana...gente fina, cheia da grana. Podemos dizer a Amaury que estamos no meio da elite gay de São Paulo! Acho que, dali, nós somos as únicas lisas...por enquanto, por enquanto! – concluiu Cecília, erguendo a taça para um brinde.

Paula tomou mais um gole e continuou o papo:

- E a Berta? Como está o lance entre vocês? – perguntou Paula, espremendo ainda mais os olhos apertados, esboçando um ar de riso maroto.
- Ah, só rolaram alguns beijos na boate. Depois disso, nos encontramos muito pouco e sempre no trabalho. Ela disse que, na revista, não dá pra dar bandeira. Virgínia não admite relacionamentos no trabalho, ao menos, explicitamente, desde que rolou a baixaria lá entre ela e a ex. Mas Berta tem me ligado quase todos os dias. Vamos sair no sábado. Ela me convidou para jantarmos – Cecília fechou os olhos, suspirou fundo, e continuou a falar – Nossa, Paula, ela é uma mulher fantástica, cheirosa e gostosíssima. Nem sei o que fazer direito quando estou com ela. Fico toda desconcertada. Me sinto no desenho A Dama e o Vagabundo...e nem precisa dizer qual dos personagens eu enceno, né?
- Cecília, deixa de besteira. Você é uma pessoa extremamente culta, educada, interessante. Não tem porque ficar por baixo! A menos que ela prefira ficar por cima, né, mas como você ainda não sabe das preferências dela na cama... – brincou Paula.
- Na verdade, eu nem me importo onde eu fique, onde ela fique. Com ela, por cima ou por baixo, deve ser muito bom...mas, mudando de assunto, ela me falou que Virgínia foi com a sua cara, minha querida! Já pensou? Hein? Putz, aquela mulher é um escândalo, né não?
- Cecília, pelo amor de Deus, isso é simplesmente inimaginável! Ela nem olhou direito para mim! Além do mais, nós não temos absolutamente nada em comum! Pelo contrário...ela é fresca, rica, sofisticada, deve ser metida ao extremo...quer que eu continue?
- Não precisa, meu bem...já vi, pelos seus olhinhos, que você apreciou a poderosa!
- Deixa dessa, Cecília!
- Ah, você e suas caretices! Mas uma coisa é certa, ela deve ter gostado bastante do que você escreveu, senão, meu amor, ela não teria voltado atrás na decisão de fechar a coluna de crônicas e contos da revista. E olha que até a Berta se espantou...isso é um bom começo!

O resto do jantar transcorreu leve e regado a vinho, mas não se prolongou por muito tempo, afinal, o outro dia seria o primeiro de Paula na Revista Duas e precisava entrar com o pé direito.

Foi com esse pensamento que, no dia seguinte, atravessou a porta que a conduziria à sala onde trabalharia. Berta a acompanhou, indicou a mesa que ela ocuparia e, em seguida, tratou de apresentá-la ao restante do pessoal que trabalhava ali, na mesma sala. Todos a saudaram, aparentemente simpáticos, mas a curiosidade era explícita no olhar de cada um. Estavam ansiosos para saber quem, finalmente, substituiria Cláudia, a ex da toda poderosa, Virgínia Valença. E ali estava Paula, com a mesma simplicidade de sempre, o porte altivo, suas roupas “cabeça”, nada de pompa, nada de frescuras, apenas estilo e leveza.

O resto da semana transcorreu tranqüilamente. Paula estava fazendo o que mais gostava: escrever. O pessoal era legal, o computador era só seu e a estrutura era perfeita para que fizesse um bom trabalho. Virgínia não havia traçado nenhum tipo de texto ou assunto. Ela tinha toda a liberdade para falar sobre o que quisesse e isso era simplesmente o máximo! Durante os dias que se seguiram, as duas se viram muito pouco e falaram-se menos ainda.

Apenas na sexta-feira, já no final do expediente, Virgínia, do interior de sua sala, exausta e estressada, diante de uma papelada infinita de textos e artigos a serem revisados, resolveu se dar ao direito de “perder” alguns minutos de seu tempo respirando. Ergueu um pouco a persiana que separava seu escritório da sala enorme da redação para observar o movimento e tentar relaxar um pouco, fugir da tensão que a afogava, em forma de papéis e letras já embaralhadas. Porém, a imagem que lhe chamou a atenção imediatamente foi a de Paula, que estava mais do que concentrada, em frente ao seu computador, por certo trabalhando em mais um texto.

Virgínia reclinou-se na cadeira e ficou ali, sorrateiramente, observando-a. Era inevitável compará-la com Cláudia. As duas eram extremamente diferentes! Chocava perceber. Lembrou-se dos cabelos longos e escuros de Cláudia, de seus olhos expressivos, expansivos e acentuados pela maquiagem forte que os delineava, de seu corpo escultural e voluptuoso, extremamente feminino em curvas e gestos, perfeitamente emoldurado por decotes e tecidos caros, finos, que cuidavam de lhe ressaltar mais ainda a sensualidade. No mesmo instante, riu-se ao prestar atenção nos olhos extremamente puxados, quase cerrados de Paula, cuja cor ela ainda não tinha conseguido sequer definir e que pareciam estar sempre sorrindo, de maneira marota, mesmo quando estava séria. Eram olhos cuja expressão beirava o infantil e o felino, o arredio e o doce, ao depender do ângulo. Naquele exato instante, eles pareciam ainda mais apertados, concentrados e belos, diante do computador, pensativos. O rosto era angular, de traços exóticos, porém, delicados. O queixo era bem feito e dividia-se ao meio, dando-lhe mais charme e singularidade. Os cabelos curtos e desfiados emprestavam-lhe um ar de menino, que contrastava com os gestos de mulher, as mãos finas, o corpo pequeno. Ela vestia-se sem muita vaidade. Sempre de calças jeans, camisetas básicas, nada sofisticado ou que lhe ressaltasse a feminilidade, a sensualidade, entretanto, o mais interessante era que ela parecia prescindir desses artifícios para fazer-se atraente, envolvente. Seu jeito sério e concentrado, “intelectualizado”, a deixavam sexy naturalmente.

Enquanto Virgínia nem notava o tempo passar, absorta que estava observando e analisando a escritora, Paula, de súbito, esboçou um leve sorriso. Parecia que, finalmente, havia terminado o que escrevia e ria de si mesma, de suas palavras, de seu conto. Sem consciência de que estava sendo observada e menos ainda do que estava despertando na observadora, espreguiçou-se, erguendo os braços para, em seguida, apoiá-los em sua nuca, repousando no encosto da cadeira, de olhos fechados. Só então Virgínia pode perceber o quanto aquela mulher a atraía, mesmo sendo o avesso de seu gosto. Ela tinha algo de arrebatador dentro de si que inquietava Virgínia, que a enfeitiçava e que a fazia desejá-la. Mesmo dali, detrás do vidro, Virgínia sentia-se constrangida, aquecida, envolvida pela presença de Paula. Pegou o telefone e, antes mesmo de inventar algum pretexto, discou para a mesa da escritora:

- Paula...pode vir até aqui? – depois que Virgínia colocou o telefone no gancho foi que parou para pensar no que diria...as mãos nervosas, o coração acelerado, como há muito não sentia.
- Em um segundo... – respondeu a voz mansa do outro lado da linha, fazendo Virgínia sentir o rosto aquecer-se por imaginar como seria ouvir aquela voz gostosa em seu ouvido, na cama.

Paula bateu de leve na porta e entrou. Virgínia olhou-a e indicou a cadeira. Ela sentou-se e aguardava. Virgínia começou a driblar a falta do que falar com as primeiras palavras que lhe vieram à mente:

- E então? Como está o trabalho? – falava sério, tentando parecer distante.

Paula sorriu antes de responder:

- Está indo bem...eu acho! Tenho me sentido bastante à vontade para escrever e tenho tido boas idéias ultimamente, mas... – Paula parecia incrédula e sorriu novamente – não creio que a senhora tenha me chamado só para isso, alguma reclamação?
- Ora, ora, já vi que minha fama de chata vai longe e chega rápido! – Virgínia sorriu, meio contrariada – Não posso apenas estar interessada em saber se você está se aclimatando ao ambiente, às pessoas?
- Claro que pode, a senhora pode tudo! – disse Paula, de jeito doce e manso, ainda rindo – apenas me surpreendi, só isso.
- Sobre o que você estava escrevendo agora? – Virgínia puxava assunto, tentando parecer impessoal, mas era difícil, pois tudo o que conseguia fazer era olhar para Paula e lembrar de cada detalhe que captara sobre ela em seus contos e todos eles eram muito pessoais, isso sim!
- Bem, acabei de terminar um conto sobre lésbicas que dizem odiar homens, mas que adotam posturas extremamente masculinas, inclusive reproduzindo os piores defeitos deles.
- É, existem muitas assim e isso é deprimente.
- É verdade, deprimente mesmo! – Paula não sabia aonde Virgínia queria chegar, mas continuava duvidando que estivesse apenas interessada em seu bem-estar no trabalho.
- E qual era o motivo do seu riso, enquanto escrevia, se acha isso tão deprimente? – Virgínia não resistiu à curiosidade de perguntar, mas arrependeu-se ao concluir a frase, pois deixara claro que estava observando Paula enquanto ela escrevia.
- Bem... – Paula percebeu na hora – eu estava rindo exatamente porque tais mulheres, como é previsível, com suas “peculiaridades masculinas”, terminam conquistando mulheres que, no fundo, gostam de homens e, às vezes, por ironia do destino, são trocadas por um deles.
- E isso também não é deprimente?
- Depende de quem conte a história.
- E quem contava a história na sua história: a mulher traída, protótipo de homem cafajeste; a mulher traidora, protótipo de lésbica; ou o próprio homem, cafajeste?
- Nenhum deles. Quem conta é a chefe dos três, que observava, durante meses, todo o desenrolar da história por trás das cortinas de seu gabinete – Paula riu, dessa vez com gosto.

Virgínia ficou realmente sem graça, vermelha, sem saber se Paula havia inventado aquele final bem ali, para lhe dizer que havia percebido que ela a estava observando, ou se realmente havia inspirado a história. Na dúvida, calou-se e deixou Paula voltar à sua sala. Não se cansava de perguntar-se o que deveria passar na cabeça de Paula sobre ela, como a veria, se também se sentia atraída e coisas do tipo, típicas de quem começa a se envolver, se apaixonar. E estava incrédula diante daquele novo sentimento, ainda mais, despertado por alguém como Paula. Nunca se imaginaria atraída por alguém assim. Paula faria mais o tipo de Cláudia, foi o que Virgínia pôde pensar para, em seguida, rir da ironia da vida, que cuidava de modificar as pessoas e seus gostos sempre que podia.

Paula, por sua vez, voltou à sua mesa curiosa, afinal, ainda permanecia sem entender o motivo pelo qual havia sido chamada por Virgínia. Por segundos, chegou a pensar que ela apenas inventara um pretexto para vê-la, para tentar uma aproximação, mas, imediatamente achou aquela idéia um absurdo, afinal a sua chefe era sempre tão impessoal e distante! Desde que começara a trabalhar mal trocaram meia dúzia de palavras! Terminou desistindo de tentar descobrir o porquê de sua ida à sala de Virgínia e limitou-se a olhar em sua direção. Surpreendeu-se ao cruzar os olhos com os da chefe, que ainda a observava intensamente. As duas desviaram sem graça, baixaram a cabeça e tentaram se concentrar nas letras que se contorciam na tela dos micros, alheias à cena.

Eram quase vinte e uma horas quando Virgínia finalmente resolveu ir para casa. Quando passou pela mesa de Paula, ela ainda estava absorta, escrevendo, sozinha na repartição. Todos já haviam ido embora, exceto as duas. Virgínia a interrompeu:

- Não havia terminado?
- Estou apenas cuidando de alguns detalhes – Paula parecia continuar concentrada, mas, no fundo, sua cabeça e seu estômago ficavam inquietos sempre que a chefe se aproximava. Na maioria das vezes evitava olhar para Virgínia, nem ela sabia exatamente o porquê. Sentia-se desconfortável diante dela. Era como se ela fosse um grande “mito” criado por todos, digno de ser temido, feito para manter-se distante, respeitado. Na verdade – refletia Paula – talvez, no fundo, ela tivesse simplesmente receio de descobrir que Virgínia não era nada disso! Mas, ao contrário, era uma mulher muito interessante, envolvente, linda, que, particularmente, ia com sua cara, sabe-se Deus por que. E isso sim parecia perigoso! Isso a intimidava, concluiu após poucos minutos de ponderação.

Virgínia, totalmente alheia ao que se passava na cabeça de Paula, apenas sentia a grande barreira que a escritora fazia questão de impor ao seu redor. Mas ela a desfaria, custasse o que custasse, cogitava a chefe. Já havia decidido. Pensando nisso, continuou:

- Já está tarde! Deixe para amanhã o que falta... – sugeriu em tom de pedido, quase uma ordem, e continuou – Quer uma carona? – Virgínia continuava séria. Se não conseguisse fazer Paula aceitar o convite através da simpatia, a faria, ao menos, através de seu olhar impositivo, que deixava quase nenhuma margem para um “não”.
- Bem, acho que atrapalharia seu percurso. Aposto que a senhora não tem noção de onde estou me escondendo desde que cheguei aqui em São Paulo. Garanto que é bem longe de sua casa!

Virgínia sorriu pela primeira vez e Paula parecia incrédula diante da chefe, que continuou a insistir de maneira direta, deixando explícito que queria sua companhia:

- Perguntei apenas se você quer uma carona, o resto não me importa...Ah e, por favor, não me chame de senhora! – Concluiu Virgínia ainda sorrindo, para quebrar o tom austero das palavras.

Ela não sabia direito agir com simpatia, ainda mais diante de Paula, que parecia imune a esse tipo de coisas. A escritora lhe parecia tão independente, tão peculiar, que parecia prescindir até mesmo dos outros, inclusive de Virgínia, foi o que a chefe pensou. No mesmo instante descobriu outra grande diferença entre suas antigas namoradas e Paula: enquanto as outras precisavam o tempo inteiro de sua proteção, cuidados e mimos, Paula parecia saber muito bem se cuidar sozinha. Virgínia lembrou-se de um conto de Paula no qual ela falava sobre suas viagens de ônibus e os “amigos” que fizera e não conseguiu sequer imaginar Cláudia sentada em um ônibus lotado, quanto mais interagindo com os mais esdrúxulos passageiros.

Seus pensamentos foram interrompidos pela voz de Paula, que a surpreendeu dizendo que aceitava sua carona. A escritora arrumou suas coisas, desligou o micro, enquanto Virgínia a esperava, com o coração acelerado. Nem conseguia imaginar como seria tê-la próxima, em seu carro. A intimidade seria constrangedora, mas excitante, sem dúvidas. Era engraçado e estranho tentar misturar os mundos onde cada uma vivia.

Paula, por sua vez, não pensava em nada, não queria mais entender nada, apenas resolveu aceitar o convite e conhecer, literalmente de perto, Virgínia Valença. Seu comportamento a intrigava.

As duas desceram até o subsolo, onde o manobrista trouxe o carro de Virgínia, sem trocarem mais do que três palavras. Paula tentou achar alguma comodidade no banco de couro preto, ao lado de Virgínia, mas naquela situação nem um divã a faria ficar em seu estado normal de calma e conforto. Virgínia sentia-se inquieta do mesmo modo. Aos poucos, as duas começaram a conversar com mais naturalidade e a chuva que escorria pelo vidro parecia esfriar os ânimos, aliviando um pouco a temperatura dos corpos.

Paula era realmente interessante, em todos os sentidos. Era o que Virgínia concluía a cada palavra da escritora, que era culta, tinha bom-humor e o mais incrível: não era pedante, nem esnobe, mesmo quando falava de Nietzsche e outras figuras de seu porte com naturalidade extrema.

Paula, por sua vez, mesmo sem ter a intenção, não conseguia evitar o impulso de analisar Virgínia e se perguntar o porquê de sua fama de arrogante e chata. Com ela, a chefe parecia uma pessoa extremamente educada e polida. Virgínia a escutava com atenção integral e parecia realmente estar interessada em suas idéias e histórias.

E no fundo, realmente estava, porém, o que Paula ignorava era o fato de que Virgínia também estava interessada na forma como Paula movia os lábios, ao falar, nas mãos esguias e bem feitas da escritora, que gesticulavam de maneira peculiar, na textura de seus cabelos lisos, que escorriam sobre os olhos e eram jogados para traz de um jeito que provocava em Virgínia a vontade de puxá-la para si e beijá-la de supetão. A chefe sentia-se tentada a deixar de observar a estrada à sua frente e mergulhar sua atenção apenas na imagem de Paula, tentando captar cada detalhe atrativo de seu jeito, de seu corpo.

Absorta em seus desejos e nas palavras de Paula, Virgínia nem teve como desviar do carro que atravessou o sinal vermelho no cruzamento e chocou-se ao seu. A batida foi lateral e apesar do carro de Virgínia ser grande e pesado, chegou a rodopiar na pista, até ser detido por outro forte impacto num poste. A única reação de Virgínia foi tentar segurar Paula com o braço, para impedir que ela se machucasse. O susto foi grande! Maior do que os danos. Apesar de os airbags terem sido ativados instantaneamente, quando o carro finalmente parou, Virgínia estava com um corte no supercílio. As duas ficaram alguns segundos atônitas, estáticas, incrédulas, com aquelas bolsas enormes infladas comprimindo seus corpos, seus rostos assustados.

Foi Paula quem, saindo da inércia do susto, quebrou o protocolo, livrou-se das bolsas de ar que lhe tiravam o fôlego, soltou o cinto rapidamente e tomou o rosto de Virgínia entre as mãos para tentar estancar o sangue que escorria sobre seus olhos:

- Meu Deus, você se machucou! Tenha calma, o corte não foi muito grande. Você está bem? – Paula estava visivelmente aflita.

Pela primeira vez, Virgínia pôde distinguir a cor dos olhos de Paula, que, de perto, a olhavam intensamente. Eles eram de um cinza incomum e a fizeram lembrar-se do cheiro de chuva num asfalto quente. Em seguida, Virgínia deteve-se, fechou os próprios olhos e passou a sentir o calor das mãos cálidas da escritora, ainda trêmulas pelo susto, a tonicidade de sua pele quente, seu toque cauteloso sobre o ferimento, seu hálito, o cheiro de seus cabelos, de sua respiração, ainda ofegante pelo impacto, o seu perfume. Por fim, apesar das circunstâncias nada apropriadas, Virgínia, ainda de olhos fechados, tonta pela dor e pelo desejo que percorria cada espaço de seu corpo, sentiu também a preocupação e a atenção exclusiva de Paula, que parecia querer pô-la no colo, confortá-la, abraçá-la, apesar da falta de intimidade. Pela primeira vez Virgínia sentiu-se o centro dos cuidados de alguém, aquela a ser protegida e acalentada. A sensação foi estranha, mas, sem dúvidas, muito envolvente. Depois de respirar fundo, recuperou a voz e tranqüilizou Paula, que ainda a observava, esperando alguma reação:

- Acho que você está mais preocupada do que eu. Está tudo bem, estou apenas um pouco tonta, mas não é nada. Dê-me mais alguns minutos.

Virgínia recostou a cabeça no assento e respirou fundo mais algumas vezes. Enquanto isso, Paula, cuidadosamente, inclinou seu corpo sobre o de Virgínia, buscando apoio para apertar o ferimento, tentando estancar o sangue que ainda insistia em brotar e ensopar suas mãos.

- Acho que vamos ter que ir a um hospital, Virgínia.
- De jeito nenhum! – disse a chefe, erguendo-se e abrindo os olhos.

Paula recuou, enquanto Virgínia parecia resolvida. Tirou o celular da bolsa, discou para seu motorista e para o advogado. Em dez minutos, ambos estavam lá aguardando as ordens. O outro carro havia escapado sem deixar nenhum sinal e Virgínia, definitivamente, estava sem condições para resolver o problema. Apenas passou as coordenadas sobre o seguro e deixou o resto por conta dos dois. Paula limitou-se a esperar calada, tentando não se meter.

Porém, assim que Virgínia havia concluído ordens e coordenadas, Paula não se conteve e insistiu para irem a um hospital. Em reposta, Virgínia foi firme:

- Não precisa. Só não quero chegar em casa sozinha...você pode me acompanhar? Depois mando deixarem você em casa.
- Tudo bem... – sabia que não adiantava insistir. A fama de Virgínia, pelo menos a de teimosa, realmente tinha fundamento.

Virgínia morava numa cobertura duplex, digna das revistas mais extravagantes sobre arquitetura e decoração. Paula sentiu-se um peixe fora d’água ao entrarem. A sala enorme, com as luzes apagadas, deu-lhe a impressão de ser bem maior do que seu apartamento inteiro! As luzes da cidade pareciam fazer parte da decoração, refletidas que estavam numa das paredes que era inteiramente de vidro. A distância entre ambas realmente ganhou contornos concretos naquele instante. Virgínia fazia parte de outro mundo, pensou Paula. Um mundo sofisticado demais para ela, com suas calças jeans surradas e sua simplicidade.

Virgínia, alheia ao desconforto de Paula, acendeu as luzes da sala, o que apagou um pouco às da cidade. Em seguida, deitou-se no sofá, segurando a testa, enquanto Paula perguntou aonde poderia encontrar algodão, gaze e outras coisas do tipo, para fazer um curativo. Virgínia fez menção de levantar-se para buscar, mas, em seguida, quedou-se deitada novamente. Estava tonta e Paula a repreendeu:

- Fique aí e quieta. Você vai terminar desmaiando e eu vou enlouquecer aqui sozinha.

Virgínia riu, apesar da dor de cabeça, e indicou o banheiro. Paula pegou tudo o que precisaria e voltou para sala, munida inclusive de uma bacia com água morna, toalhas e sabão. Na volta, percebeu na parede da sala uma foto imensa de uma mulher belíssima, de traços marcantes, convidativa, provavelmente a ex de Virgínia. Após os segundos dedicados àquela imagem – mais do que merecidos, diga-se de passagem, até pela arte imposta na foto – Paula sentou-se no sofá, enquanto Virgínia permanecia deitada.

Com cautela extrema, as mãos da escritora passaram a se dedicar com precisão a outra tarefa que não a de escrever, mas que merecia tanto ou mais cuidado: tratar do ferimento de Virgínia. Esta, de olhos bem fechados, apenas sentia o carinho que Paula lhe dedicava nos mínimos gestos e desejou que aquele momento se prolongasse, silencioso e lento, assim como silenciosa estava a sala e lento era o movimento daquelas mãos. Num dado momento, porém, Virgínia abriu os olhos e falou baixo, com muito cuidado para não quebrar o encanto causado pela ausência do som e não afugentar as mãos que lhe acalentavam:

- Obrigada...
- Não precisa agradecer – respondeu Paula com suavidade, deitando os olhos translúcidos em sua boca, sem a intenção de atiçar o desejo de Virgínia, mas o fazendo, mesmo sem saber.

Com o ferimento devidamente coberto e tratado, Virgínia ergueu-se e só então percebeu que Paula também estava com o rosto abatido.

- E você, não se machucou?

Paula abriu um pouco a gola da camisa, percebendo a marca vermelha do cinto próximo ao seu pescoço, mas, rapidamente, desviou o olhar para não preocupar Virgínia, nem chamar a atenção para si:

- Acho que não.
- Deixe-me ver!
- Não precisa, Virgínia.

Dizendo isso, Paula ergueu-se bruscamente e disse que iria pra casa. Mas Virgínia intercedeu:

- Você não está com fome? Vamos comer alguma coisa, depois vou te levar.
- De jeito nenhum...você vai é ficar aí! Eu pego um taxi.
- Se você fizer isso comigo, vou ficar pensando que minha companhia te incomoda.

Paula não quis se esforçar para convencê-la do contrário, tampouco explicar que, na verdade, a companhia de Virgínia a desconcertava, a confundia. Preferiu ficar.

Virgínia, então, pediu à governanta – que somente agora aparecia na sala, com cara de sono e susto – que providenciasse o jantar e o servisse no terraço. Na seqüência do olhar interrogativo que a senhora lhe lançou, explicou que tudo estava bem, que os maiores transtornos já haviam sido driblados e que o único pendente era a fome.
O terraço era um espaço grande, ornamentado por plantas viçosas, uma pequena mesa, cercada por cadeiras de vime e um patamar mais alto, onde ficava a piscina. A vista era belíssima. Paula foi até a sacada e respirou fundo, sentindo o vento em seu rosto. Virgínia, sentada, a observava. Os cabelos curtos de Paula dançavam com o vento. Virgínia sentiu-se tentada a levantar-se e ir ao seu encontro, mas não o fez. Paula retrocedeu e sentou-se.

- Tem certeza de que você está bem?
- Muito bem...há muito tempo não me sinto tão bem como estou agora – Virgínia olhou-a séria e depois sorriu, sentindo-se boba, feliz...

Paula só pôde concluir que, sim, realmente Virgínia estava envolvida. Sua forma de olhá-la, suas palavras e até seu jeito de sorrir, agora mais inofensivo, infantil, desconcertado, tudo a denunciava.

Paula, no entanto, sentia-se confusa. Admirava Virgínia, a achava intrigante, inteligente, bonita, mas o fato de ser sua chefe e, mais do que isso, uma mulher tão rica e poderosa, a impediam de olhá-la de outro jeito. Não se imaginaria desejada por Virgínia, a situação era surpreendente, tampouco se sentia à vontade para deixar fluir qualquer tipo de desejo de sua parte. Isso traria muitos problemas, muitos dilemas, afetaria seu trabalho e ela evitaria ao máximo que isso acontecesse. Estava se sentindo feliz e realizada como escritora e isso, naquele instante, lhe bastava. O lado pessoal, mais especificamente o afetivo, poderia continuar adormecido, por enquanto. O tédio ainda não havia descoberto seu novo endereço e Paula não estava disposta a arriscar-se por uma aventura amorosa. Estava era entediada de aventuras e, por mais louco que isso lhe soasse, esta era a verdade.

Seus pensamentos foram interrompidos por Glória, a governanta, que trouxe o jantar. Em outras circunstâncias, Paula teria comido bastante, afinal, quanto mais exausta estava, mais fome tinha. Porém, aquela situação havia cuidado de embrulhar-lhe o estômago. Estava nervosa, preocupada. Brincou com a comida no prato, enquanto Virgínia a observava, até que concluiu quase rispidamente:

- Tenho que ir.

Dizendo isso, Paula ergueu-se e fez menção de sair, mas Virgínia a deteve, segurando-lhe o braço:

- Eu vou te levar, Paula.
- Não precisa se incomodar.

Foi o que ela disse, dessa vez realmente de forma ríspida, antes de soltar-se e sair com pressa, deixando Virgínia contrariada. Na saída do prédio, outro motorista a esperava com outro carro e a explicação:

- Tenho ordens para levar a senhorita para casa. Dra. Virgínia acabou de interfonar e me dizer que, caso eu não conseguisse convencê-la, ela mesma viria e a levaria pessoalmente.

Paula sorriu, imaginando que aquele fora o modo sutil de Virgínia demonstrar-lhe que percebia o quanto sua presença a incomodava. A ameaça de levá-la pessoalmente faria Paula aceitar que o motorista a levasse e acertara.

Em sua cama, Paula ainda se perguntava o porquê de ter agido daquela forma. Ora, se estava tão certa de que não se envolveria, de que sua vida estava completa e ela, muito satisfeita, porque a necessidade de fugir de Virgínia? Bastaria esclarecer as coisas com a chefe, caso ela insistisse e pronto!

Com esse pensamento, Paula relaxou um pouco e permitiu ao sono deitar-se ao seu lado. Porém, antes de adormecer, durante seus últimos momentos de lucidez, foi a imagem de Virgínia que a envolveu e Paula lembrou-se com precisão de seu rosto, de seus olhos cerrados, enquanto o curativo era feito, lembrou-se de seu sorriso, da forma como andava, da vontade que teve de afagar seus cabelos e seu rosto, enquanto ela parecia sentir dor. De repente, repreendeu-se por notar que conseguia sim, vê-la como mulher e desejá-la. Fora exatamente esse sentimento que a fizera fugir e não a ausência dele. Diante dessa nova conclusão, Paula chegou a outra: não era preciso sentir-se entediada para se deixar apaixonar e isso era um perigo!

Virgínia, por sua vez, passou a noite insone. A cabeça latejava e o desejo por Paula crescia a cada instante. Imaginou como seria tê-la ali, em sua cama, e jurou para si mesma que a teria, que a conquistaria, por mais arisca que ela parecesse.

O resto da semana passou-se sem que as duas tivessem oportunidade de conversar.

Virgínia estava ansiosa, atrapalhada, queria aproximar-se mais não sabia como ou quando. Não queria invadir o espaço de Paula, tampouco romper grosseiramente as barreiras que a escritora construíra ao seu redor. Sabia que deveria ter calma e ser sutil, mas era difícil conter-se. O desejo afoba as pessoas.

A chefe era forte, mas não tanto. Não resistiu e, na primeira chance que teve a sós com Berta, contou-lhe o acontecido, admitiu sua atração por Paula, sua intenção de conquistá-la e pediu-lhe algum conselho, consolo ou auxílio. Berta, por sua vez, não demonstrou surpresa. Já havia percebido os olhares de Virgínia para a escritora e seu interesse exagerado sobre todos os detalhes que a cercavam. Prometeu tentar arrancar alguma coisa de Cecília, qualquer palavra que Paula houvesse confidenciado à amiga sobre Virgínia, quem sabe a atração era recíproca? Virgínia inquietou-se durante o restante dos dias, na espera, na retaguarda.

Paula, por sua vez, concentrava-se cada vez mais no trabalho, deixando pouco espaço para qualquer outra coisa. Ele, sem dúvidas, era o que mais vinha lhe dando satisfação naqueles últimos meses e cuidaria para que continuasse assim. Não abriria espaço para mais nada: nem para o tédio, nem para o romance. Estava decidido! E fora exatamente isso que havia dito a Cecília e esta, por sua vez, transmitido a Berta. Nem é necessário continuar o “telefone sem fio” para dizer que a informação chegou aos ouvidos de Virgínia, que ficou visivelmente contrariada, decepcionada, mas o abatimento não duraria muito tempo. Ela não desistiria, apenas mudaria de tática...

Os contos de Paula estavam fazendo sucesso. A revista vinha recebendo inúmeros comentários e aplausos graças à nova escritora. A coluna havia sido objeto de elogios em vários encontros de intelectuais da “Irmandade”, onde Virgínia estava presente, é claro. Cada vez que mencionavam o nome de Paula sentia um baque no estômago, como se, de súbito, resgatasse os flashs que havia guardado das mãos de Paula, de seus olhos, de seus cuidados, naquela noite. Ela a queria cada dia mais. E o fato de tê-la tão perto e, ao mesmo tempo, tão fria e distante, a deixava triste e irritada. Logo ela que nunca havia sido rejeitada! Era difícil lidar com aquela situação.

Numa noite de terça, antes de Paula ir para casa, a escritora fez o que sempre fazia: abriu seus e-mails. Todos os dias a caixa estava lotada de várias mensagens, de todos os tipos e estilo. A maioria, escrita por leitoras assíduas da coluna, encorajando-a e parabenizando seu trabalho. Algumas demonstravam enorme entusiasmo, outras teciam elogios exagerados e havia até aquelas que expressavam uma paixão arrebatadora pela escritora, torneada por palavras melosas, outras rebuscadas, outras afoitas e picantes demais para o seu gosto. Apenas sorria baixinho, enquanto apagava uma a uma.

Naquela noite, entretanto, uma mensagem chamou-lhe a atenção. O estilo da escrita era brilhante, envolvente, inquietante. O e-mail tecia comentários sobre o último conto de Paula publicado, intitulado “Audácia Humana”.

Paula teve a sensação de que, nem mesmo ela seria capaz de interpretar seu conto daquela forma, com aquela profundidade, criatividade e de maneira tão audaciosa! No final da mensagem, a leitora, com a mesma audácia do início, lamentou, sem qualquer constrangimento, o final do conto dado por Paula. Justificando sua crítica de forma ousada e convincente. E foi além: pediu permissão para alterá-lo.

A mulher era tão audaz que sequer esperou a permissão solicitada, deixando claro que a pedira apenas para constar. Logo abriu aspas e transcreveu o último parágrafo ipsi literis para, em seguida, recriá-lo, reescrevê-lo, concluindo o conto de maneira totalmente diversa da de Paula, causando-lhe surpresa e, ao mesmo tempo, admiração. Uma verdadeira celebração à “Audácia Humana”.

Ficou perfeito, finalmente perfeito!, pensava Paula segurando o queixo. A perfeição que, sozinha, não havia conseguido lhe dar. Essa mensagem não foi apagada, mas respondida, com as palavras cuidadosamente escolhidas, planejadas, movidas pela vontade de causar na leitora a mesma admiração que ela havia lhe causado. Paula sabia que aquela mente não era medíocre e que aquela mulher era a audácia em pessoa, por isso tivera tanta afinidade com o tema.

No dia seguinte e nos que seguiram, no mesmo horário, Paula não abria sua caixa de e-mails com a mesma calma dos dias anteriores, com os mesmo gestos automáticos, com o mesmo tédio de final de expediente. Ela o fazia com uma certa ansiedade, esperando especificamente pelas mensagens daquela que se identificara simplesmente como Kara.

E, para seu deleite, todos os dias esta lhe escrevia. Aos poucos, as semanas iam passando e as palavras de ambas perdiam o tom impessoal, formal e frio. As telas dos computadores, como um milagre concreto, transformavam-se em verdadeiras janelas onde se encontravam, se viam, se despiam, sem pudores, sem receios, sem vidros ou cortinas. A audácia de Kara havia contaminado Paula e esta, cada dia mais, se permitia. A cada e-mail, as duas iam ficando mais próximas, confidentes, envolvidas e dispostas a se envolverem mais...

Paula, por diversas vezes, desejou propor um encontro, um telefonema, algum contato mais concreto, mas temia que nada pudesse ser tão profundo e especial quanto o contato que mantinham através das palavras...simplesmente das palavras! Também tinha receio de que um romance real, que exigiria mais tempo e dedicação de sua parte, afetasse sua vida profissional, o que vinha evitando todo aquele tempo, a todo custo. Mais uma vez viu-se no dilema. Ainda não sabia se estava disposta a estragar as coisas, a arriscar seu sucesso na revista, sua satisfação como escritora. Por isso, limitava-se exatamente a escrever, seus contos e, agora, suas cartas.

Uma noite, porém, ao abrir seu e-mail, lá estava uma nova mensagem, esta curta e em tom muito objetivo, onde Kara, decidida, fazia o que Paula há muito pensava, mas não fizera. Ela propunha um encontro. Encerrou dizendo que estaria, naquela exata noite, relendo os contos e mensagens de Paula, aprendendo mais sobre ela, para poder encontrá-la na sexta-feira e, finalmente, desvendá-la e desfrutá-la pessoalmente.

Paula engoliu em seco. Sentiu-se estranhamente invadida, curiosa, entusiasmada e excitada. Como saberia onde encontrá-la? Até onde seria capaz de ir? Seria uma louca ou apenas uma mulher inteligente? Uma adolescente que sabia brincar muito bem com as palavras ou uma mulher envolvente, que sabia brincar muito bem com as pessoas? Ela descobriria, mesmo que isso só trouxesse tumulto para sua vida e seu trabalho. Já se sentia muito envolvida para hesitar, para desistir. Sim, havia mudado de idéia e existia apenas uma responsável: a “Audácia Humana”.

A história dos e-mails, por mais que as palavras revelassem muita coisa sobre as duas, já estava parecendo uma brincadeira de esconde-esconde, pois continuava sem saber do rosto, da voz, do corpo, do gosto da mulher que lhe escrevia. Esta, por certo, audaciosa que era, também já deveria estar cansando daquilo. Demonstrara, em sua última mensagem, o desejo pelo físico, pelo concreto, pelo mundo mundano da carne, do desejo partilhado. E Paula, que nunca fora de se esconder, resolvera ceder e aparecer. Portanto, se mostraria, pagaria para encontrar Kara e desfrutar dela também, era esse o seu desejo naquele instante. E, pela certeza contida naquele último e-mail, o encontro já tinha data marcada: seria na sexta-feira!

Poucos minutos depois, Virgínia saiu de sua sala e caminhou na direção da mesa de Paula, fazendo com que fechasse imediatamente as janelas do computador e as portas ao seu redor. A chefe não fez meandros:

- Paula, queria saber se é impressão minha ou desde aquela noite você vem fugindo? – Virgínia falava enquanto se sentava na cadeira à sua frente. O queixo erguido, altiva, como sempre.
- Não tenho fugido de nada. Aliás, não costumo fugir, Virgínia. Apenas tenho evitado, por deliberação e racionalidade, contato com você.

A sinceridade de Paula desarmou Virgínia, que esperava ouvir alguma desculpa ou, quem sabe, causar-lhe alguma inquietação ou constrangimento. Mas Paula não parecia constrangida, tampouco disposta a desculpar-se. A chefe insistiu:

- Posso saber o porquê disto?
- Não quero misturar o lado profissional com o pessoal, é só – Paula estava mais do que decidida e não voltaria atrás, pelo menos em relação a Virgínia, que era sua chefe e com a qual o vínculo profissional deveria prevalecer. Ainda mais agora que estava tão absorta com seu romance misterioso. Ele estava cuidando de trazer para sua vida a emoção da conquista, sem que ela precisasse arriscar seu emprego e isso era menos insensato.
- E porque você acha que isso aconteceria? Acha que corremos o risco de nos envolver pessoalmente? – Virgínia insistia. Queria saber até onde aquela conversa iria dar.

Dessa vez, Paula ergueu-se, decidida a encerrar aquela questão. Aproximou-se de Virgínia de maneira inusitada, parando a centímetros da chefe, no meio da repartição, de modo a poder ver nos olhos dela a surpresa e em seu corpo, o receio. Instintivamente, Virgínia tentou equilibrar o peso de seu desconforto pendendo para trás, com a respiração alterada, os olhos comprimidos, numa nítida expressão de espera. Diante da reação provocada em Virgínia, satisfeita, Paula respondeu, também sem rodeios, sem titubear, deixando a chefe mais pasma ainda:

- Você acabou de responder, com seu próprio corpo, Virgínia...– Paula falava calmamente, com os olhos puxados sorrindo diante do desconcerto da chefe, que não conseguia esconder a atração que sentia. E Paula continuou – Claro que poderíamos nos envolver e eu não quero que esta possibilidade estrague as coisas.

Sem jeito e sentindo-se totalmente despida de sua postura forte e manipuladora, Virgínia odiou-se por permitir que Paula houvesse assumido o total controle da situação, com toda aquela calma e frieza. Naquele momento, desejou insultá-la, ridicularizar Paula por acreditar que exercia algum poder sobre ela, com tanta prepotência! Afinal, quem ela pensava que era para desprezá-la, para dispensá-la, para crer que ela estava apaixonada ou coisa do gênero? Mas foi incapaz de falar qualquer destas coisas, afinal, sabia que Paula tinha razão e seu intuito não era esnobá-la, apenas afastá-la. Ela tinha direito de não querer aproximação. Problema meu que não estou acostumada com esse tipo de mulher!, foi tudo o que Virgínia pensou antes de desculpar-se em voz baixa. Em seguida, pousou sobre a mesa um envelope fechado e falou, em voz mais baixa ainda:

- Era um convite. Gostaria que você me acompanhasse. Agora é apenas uma sugestão para uma saída, que não me inclui, é claro – dizendo isso, Virgínia deu as costas e voltou à sua sala.

Paula sentiu-se estranha. Não esperava que Virgínia já estivesse tão envolvida. Vê-la daquela forma, vulnerável, com os olhos infantilizados, os gestos desconcertados, a fez querer confortá-la novamente, como no dia do acidente e isso só a comprovava que sua atitude estava certa. Deveria afastar-se mesmo. Com essa certeza, abriu o envelope e encheu-se novamente de dúvidas. Era um convite para a inauguração de uma livraria especializada em livros GLS, de um amigo de Virgínia, ícone do mundo gay e...seria na sexta-feira!

Paula encostou-se na cadeira e respirou fundo, sentindo um frio na barriga. Olhou para a tela do computador e, mesmo com a janela fechada, ainda podia ler, em sua mente, o último e-mail de Kara. Mais especificamente, a frase onde a mulher misteriosa – que já começava a deixar pistas concretas! – dizia, com certeza assustadora, que a encontraria exatamente na sexta! Era Virgínia! Só podia ser!

Munida com essa nova certeza, Paula inquietou-se. Sentiu-se enganada, driblada, afinal, Virgínia havia armado tudo aquilo para conquistá-la, mas a verdade era que estava conseguindo! Paula já estava envolvida demais por Kara para voltar atrás, mesmo que ela fosse Virgínia! A raiva misturou-se ao desejo e Paula decidiu que iria, na sexta, encontrá-la e pagar para ver aonde aquilo tudo iria dar. Afinal, não era de ceder ao medo e arriscaria, até mesmo seu emprego, se fosse preciso, para conhecer de perto Virgínia Valença e dar vazão àquela loucura que ela havia lhe despertado, através da mulher misteriosa que inventara.

O dia seguinte arrastou-se. Paula não vira Virgínia hora nenhuma. A chefe permaneceu trancada em sua sala o dia inteiro. A inquietação era enorme e a escritora sentiu-se tentada a procurá-la ou escrever um e-mail para Kara, que agora tinha outro nome e formas concretas. Não o fez, no entanto. Preferiu não avisá-la que decidira ir à inauguração. Dessa vez, ela é quem faria a surpresa.

À noite, Paula arrumou-se e rumou à livraria. Ao chegar, espantou-se com o tamanho do lugar e a quantidade de carros e pessoas pelas ruas, em busca de um espaço lá dentro. Havia uma fila enorme na entrada. As figuras mais famosas do mundo gay, entre artistas e socialites, estavam lá. Alguns chiques, outros fashions e, é claro, muitos que eram por demais extravagantes. Enfim, eram pessoas interessantes, num lugar tão interessante quanto.

Paula olhou-se no reflexo do vidro que contornava a Livraria e sentiu-se bem, mesmo vestindo uma roupa básica, assim como ela. Os ombros à mostra deixavam transparecer parte da tatuagem que lhe adornava a pele branca: o Olho de Horus. Seus cabelos curtos ainda estavam molhados do banho e lhe encobriam, de forma desalinhada, parte dos olhos puxados, cinza feito chumbo, translúcidos, ávidos pelo que veriam.

Depois de quase meia-hora de espera, na fila, aguçou todos os seus sentidos quando finalmente atravessou a porta. Instintivamente procurou por Virgínia nas rodas de seus amigos, mas não a viu em nenhuma parte. Logo se juntou a Cecília e Berta, que estranharam e questionaram sua presença, afinal, Virgínia havia contado a ambas o ocorrido. Paula, entretanto, sem esboçar explicação, resumiu-se a sorrir e pegar uma taça de champanhe que lhe fora servida por uma garçonete linda e vestida de forma nada convencional.

A festa estava fervilhando! A livraria era fantástica! Tinha três andares sustentados por armações de aço e escadarias, duas salas para projeções, uma para exposições e, no centro, um café com várias mesinhas aconchegantes, dispostas de maneira pouco uniforme. Uma das salas de projeção havia sido transformada numa boate especialmente para aquela noite e no telão estavam rolando clipes de artistas e temas gays. Paula afastou-se um pouco do grupo para dar uma olhada no lugar. Nem sinal de Kara. Talvez ela houvesse desistido. Ao pensar isto, Paula sentiu um misto de alívio e frustração.

Depois de uma hora lá dentro, sentou-se um pouco no café e pediu um espumone para saborear antes de ir embora. Já não havia o que esperar. Fora muito rude e Virgínia deveria estar furiosa com sua postura. Afinal, a “Audácia Humana” também tinha limites! Talvez fosse mesmo melhor encerrar aquela história de uma vez por todas e, quem sabe, transformá-la num conto... Mais um conto, pensava Paula, com tédio. Estranho como tudo em sua vida acabava resumido dessa forma: contado em linhas retas, frias, capazes de serem lidas por qualquer pessoa em menos de trinta minutos. Mas, pelo menos, ela era capaz de escolher os seus finais...

O espumone chegou fumegante e, depois de alguns segundos, ela tomou o primeiro gole. Em seguida, pousou-o sobre a mesa. Enquanto observava a fumaça que se erguia da xícara, mágica, densa, cheirosa, deixou-se perder em seus pensamentos, enquanto o líquido, sem qualquer pressa, esfriava. E, anestesiada por seu forte poder de imaginar, hipnotizada por sua própria criatividade, ela se deixou levar...

Com olhar perdido entre as estantes, os olhos espremidos feito os livros que, nelas, disputavam lugar, Paula desejou que Kara não fosse Virgínia, que fosse realmente outra pessoa, com a qual pudesse iniciar uma relação do zero, sem qualquer vínculo profissional, sem qualquer mal-entendido. Esse desfecho, com certeza, futuramente, daria um conto muito mais interessante! Como escritora, havia se tornado capaz de analisar friamente o que geraria um melhor resultado na sua vida, resumida em seus contos, e isso já não a surpreendia, tamanha a naturalidade com que pesava as coisas. Tinha aprendido a ser assim, objetiva, e não podia perder a prática. Por isso, praticava, sendo, ao mesmo tempo que fria, sonhadora. Era capaz de escolher seu destino e, conseqüentemente, o de seus contos. E assim, permitiu-se a sonhar por aqueles breves instantes.

Sua atenção foi desviada para a imagem de uma figura esbelta, toda vestida de preto, que se aproximava com o olhar de procura, feito um radar, captando as pessoas ao seu redor. Era uma mulher alta, mais magra do que a maioria, de beleza nada convencional, singular em gestos e no modo de andar. O cabelo escuro feito a roupa, contrastando com a palidez da pele, lhe dava um ar futurista, os olhos muito bem pintados e a boca vermelha, carnuda, chegavam a afrontar pela sensualidade, pela agressividade do exótico. Um sinal pequeno, do lado esquerdo da face, acentuava-lhe o charme e dava ao rosto angular alguma delicadeza. Ela olhou na direção de Paula e parou em seus olhos cinza. Paula sustentou o olhar os segundos que pôde, mas logo desviou, sem jeito. A mulher sorriu e caminhou em sua direção, fazendo Paula olhá-la novamente, incrédula. Junto da mesa, ela questionou em voz baixa e polida:

- Posso sentar?

Paula não entendeu nada, mas fora incapaz de dizer não, fosse pela ausência de motivos, fosse pelo magnetismo dos olhos que lhe fitavam sem qualquer pudor:

- Claro...fique à vontade.

A mulher sentou-se lentamente e de frente para Paula. Num gesto casual, jogou os cabelos para trás, espalhando parte de seu perfume e de seus fios. Acendeu um cigarro, sem qualquer pressa, e voltou a olhar para a escritora, projetando o corpo sobre a mesa, aproximando-se de onde Paula a assistia.

- Desculpe meu atraso... – Ela sorriu e pegou a mão de Paula, que estava agarrada à xícara. Com suavidade, contornou os dedos da escritora com os próprios, afagou o dorso da mão esguia e de unhas curtas e continuou, desta vez com seriedade – É tão bom saber que você é real! Eu sabia que você estaria aqui esta noite...

Paula continuava atônita, imóvel, em estado de estupor! O perfume daquela mulher, sua voz, suas mãos a fizeram congelar por fora e queimar por dentro. Sentiu o rosto corar. Buscou algum ar ao redor, engoliu em seco e, finalmente, perguntou:

- Eu deveria saber quem você é?
- Creio que sim, minha cara! – respondeu a mulher de forma irônica e, instantaneamente, Paula captou o tom dúplice dado à palavra “cara”...seria Kara? Sua cabeça deu um giro de 360 graus! Então ela havia enlouquecido!

- Kara?
- Você estava esperando outra pessoa, Paula? – a expressão do rosto incomum alterou-se. Por traz da pintura escura, os olhos da mulher de negro enquadraram com nitidez a imagem de Paula.
- Desculpe...eu...eu não estou entendendo nada!
- Eu sou Kara, mais precisamente, Cláudia Carolina Linhares, a ex de Virgínia e ex ocupante de seu cargo na revista, minha querida. Você perdeu algo no percurso da história ou fui eu que perdi?

Paula levantou-se bruscamente e forçou os olhos puxados a abrirem-se. Queria acreditar no que estava vendo, mas era impossível! Cláudia puxou-lhe pela mão, sugerindo que sentasse novamente. Meia-dúzia de pessoas já as observava, curiosas. Paula cedeu e sentou-se.

- Isso é algum tipo de brincadeira?
- De minha parte, não! Por que, deveria ser?
- Eu não sabia que Kara era você...não sabia que era esse seu nome! – Paula estava visivelmente angustiada, perturbada...
- E realmente não é, Paula...meu nome é Cláudia Carolina, como já lhe disse, meu pseudônimo é que é Kara e eu pensei que você soubesse disso! – Cláudia agora já começava a demonstrar inquietação. Suas certezas dissiparam-se, confundiram-se com as palavras de Paula, com sua surpresa.
- Eu não sabia, não cheguei a ler seus contos, suas crônicas, fui uma imbecil esse tempo todo, mas, afinal de contas, o que você queria comigo? Por que essa brincadeira? Por que fez isso?
- Calma, Paula...tenha calma, precisamos conversar. Eu preciso esclarecer muitas coisas...eu...

Mas Paula estava furiosa demais para escutar mais uma palavra. Em sua cabeça, mil idéias absurdas se passaram. Ela levantou-se e saiu sem dizer mais nada, deixando Cláudia atônita e arrependida.

Na verdade, no começo, Cláudia pretendia vingar-se de Virgínia e de sua mais nova amante, a responsável pelo final do relacionamento de ambas, como julgara. Logo se deparou com os comentários sobre a nova ocupante da vaga que ela havia deixado, dentre eles a de que era uma mulher brilhante, inteligente, bonita e que havia conseguido driblar o mau-humor de Virgínia, que já a admirava a olhos vistos.

Não fora difícil concluir que a escritora era a tal amante. O ódio a cegou quando imaginou que, durante todos aqueles meses, Virgínia havia fingido que não encontrara ninguém para ocupar o seu lugar, em ambos os sentidos. Como alguém poderia ser tão sórdida?, se perguntava enquanto pensava que Virgínia já havia encontrado não apenas uma substituta para a sua cama, mas também para a coluna na Revista Duas. Apenas aguardava silenciosamente o momento de deixar Paula vir à tona. E agora, lá estava ela, com foto e tudo, na revista, na sua coluna, estampada, descaradamente. Cláudia guardaria para sempre aquela imagem, aquele pedaço de papel onde estava estampada a foto de Paula e que cuidara de rasgar, sem o auxílio de tesoura, com as próprias mãos, destacando da folha sua mais nova inimiga com todo o ódio de que era capaz. Mas, antes, ela tivera que admitir: Paula não era uma mulher de se jogar fora, pensou Cláudia ao analisar a pequena imagem com muito cuidado, captando todos os detalhes do rosto da escritora. Além disso, realmente escrevia bem, parecia interessante...

Daí surgiu a idéia, a maldade, a obsessão de Cláudia em conquistar Paula para provar a Virgínia que a moça não prestava, que era capaz de traí-la, do mesmo modo como Virgínia havia feito.

E assim, pôs seu plano em prática. Tudo começou com um e-mail, que fora respondido, dando início à sua trama. Os outros que se seguiram, entretanto, começaram realmente a despertar o interesse de Cláudia, um interesse por Paula que ia além de seu jogo. Despertaram também a dúvida quanto ao fato da moça ser realmente amante de Virgínia, afinal ela parecia sempre ser uma pessoa íntegra e sincera.

Por momentos, Cláudia chegou a pensar que estaria indo longe demais com aquela brincadeira, com aquele jogo, que estava ficando perturbada com aquilo tudo. Em sua cabeça, em muitos momentos, enquanto comunicava-se com Paula, confundiram-se os desejos de vingança e de envolvimento concreto, a farsa e a realidade. Ela não sabia até onde a odiava, até onde a queria. Pensou até em deixar seu plano de lado e sumir, deixar de escrever, desistir. Mas já se sentia envolvida além do planejado. Já desejava conquistar realmente Paula, mas não pelo motivo primitivo: já não queria vingança, ainda que houvesse, realmente, sido traída por ambas.

Agora, naquele exato momento, minutos depois do encontro desastroso com Paula e de descobrir que a escritora sequer sabia que ela era a ex de Virgínia, tudo fazia sentido: Paula e Virgínia não tinham um relacionamento, afinal, se tivessem, a escritora já deveria saber de cor o nome e o pseudônimo de Cláudia. Fora uma louca e cega! Com base em fofocas, havia criado uma história e uma vingança baixa, sórdida. E o pior, havia envolvido Paula, que não tinha nada a ver com seus ciúmes e suas frustrações. Agora sim, teria motivos para abalar-se: magoara Paula e, com certeza, cortara o vínculo que havia construído.

Cláudia ergueu-se e saiu atrás de Paula. Devia-lhe uma satisfação. Esclareceria tudo! Seria sincera, pela primeira vez, mesmo que Paula não a compreendesse e se afastasse. Mas a escritora já havia sumido.

No dia seguinte, Virgínia soube do encontro de Paula e Cláudia, no café. Seus “informantes” eram prestativos e lhe deixaram a par da situação logo pela manhã. Desconhecia, entretanto, o teor da conversa. Sabia apenas que as duas estavam sentadas na mesma mesa e com os ânimos alterados. Sem pensar, nem medir a atitude, Virgínia chamou Paula à sua sala e a alertou sobre Cláudia, dizendo que ela era uma mulher complicada, dissimulada e que poderia lhe causar muitos transtornos. Em resposta, Paula foi curta e objetiva, pedindo, polidamente, para que Virgínia não se metesse em sua vida particular. O tom de ciúme carregou a voz da chefe quando ela encerrou o assunto, dizendo um popular “depois não diga que eu não avisei!”.

No final do dia, Paula tentava resistir à vontade de procurar um vestígio de Kara em seus e-mails, quem sabe uma explicação convincente, que neutralizasse o ódio que ela lhe havia despertado, que contrariasse as palavras de Virgínia, quando esta lhe aconselhou a afastar-se de Cláudia, descrevendo-a como uma vilã digna de seus contos mais criativos e passionais. Depois de levantar-se duas vezes para ir embora, Paula sentou-se em frente ao computador e abriu seu correio eletrônico. Nenhuma mensagem.

Enquanto isto, Cláudia, em seu apartamento, observava as luzes da cidade enquanto tentava escrever em sua cabeça confusa uma mensagem para Paula. Precisaria de palavras fortes, que dessem à escritora a certeza de que estava falando a verdade. Depois de muitas horas, sentou-se em frente ao seu notebook e, finalmente, conseguiu contar tudo, desde o início, através de frases curtas, objetivas e sinceras. Falou, inclusive, sobre seu arrependimento e a vontade de revê-la para concertar as coisas. Porém, não se sabe se por destino ou acaso, esse e-mail só fora lido por Paula algum tempo depois, quando ela já havia pedido demissão e voltado para Brasília.

A situação com Virgínia tornou-se insuportável. Depois de perceber que Paula realmente não estava disposta a um relacionamento, a chefe transformou-se. Passou a criticar seu trabalho, vasculhar defeitos em seus contos, implicar com sua postura, invadir sua liberdade de escritora. Enfim, o despeito foi maior do que qualquer outro sentimento e passaram a se desentender de verdade. Cecília tentava contornar a situação de um lado e Berta do outro, mas não houve jeito! Paula arrumou as malas e decidiu-se. Pediu demissão.

Virgínia, diante da decisão de Paula, desesperou-se, arrependeu-se, tentou convencê-la a ficar. Chegou a jurar que agiria diferente, admitiu seu ciúme, pediu desculpas, mas Paula não cedeu. Estava cansada demais. Tudo o que mais temia havia acontecido: o lado profissional tinha sido atingido e, por ironia da vida, não foi preciso relacionar-se nem com Virgínia, tampouco com Cláudia para que isso ocorresse.

A volta à Brasília foi frustrante, afinal ela não era de desistir das coisas. Pelo menos tinha juntando algum dinheiro e fora de avião. Riu de sua própria observação assim que levantou vôo. Foi inevitável lembrar-se da primeira vez em que pensou em voltar para casa de bus, há quase um ano atrás. Talvez tivesse sido melhor, mas era tarde demais para lamentar.

Mais um ano se passou desde sua volta a Brasília e ela produziu bastante nesse período. Conseguiu um emprego num jornal, onde sua chefe em nada parecia com Virgínia, diga-se de passagem, e, finalmente, concluiu seu primeiro livro.

Era um livro denso, crítico e singular, que, certamente, custaria ao leitor muito mais do que 30 minutos de atenção. O título, por si só, falava muito: A-diversidade. Relatava nele seus envolvimentos, desejos, desesperos, percalços, obstáculos, caminhos, enfim, as adversidades que tivera de enfrentar devido à sua condição de homossexual. E, mesmo assim, o livro refletia tanta coragem, tanta força, tanto entusiasmo que levava à conclusão de que, apesar dos pesares, devemos, diariamente, festejar a diversidade, apesar de todas as adversidades trazidas por ela. E era mesmo um grande trocadilho! Grande parte do relato e dos percalços foram inspirados, trazidos e vividos por Paula graças à Kara...depois de Kara. Ela, com suas muitas palavras escritas e apesar das poucas faladas, havia provocado em Paula um turbilhão de dúvidas, sentimentos contraditórios e reflexões, que agora a escritora condensava em forma de livro.

O sucesso de Paula como escritora estava garantido, consagrado, mas a frustração do desencontro persistia, embora a própria houvesse optado pelo desenlace. Naturalmente seu antigo e-mail, cerca de um mês após sua partida – tempo suficiente para que recebesse e lesse a última mensagem de Kara – fora desativado, já que o endereço eletrônico era próprio do quadro de funcionários da Revista Duas e, com isso, Paula, por livre, espontânea e calculada vontade, aniquilou toda a possibilidade de contato com Virgínia e... com Kara, pois não mais escreveu às duas, tampouco ambas poderiam lhe escrever. Não teve notícias de nenhuma delas, durante todo aquele tempo.

Vez por outra, reprimia-se quando lembrava com perfeição de cada detalhe de seu encontro com Cláudia, de sua imagem, de suas palavras, escritas e faladas, dos danos e ganhos que aquela mulher havia lhe causado, inspiradora de seu livro. Tudo poderia ter sido tão diferente e ela sentia-se capaz de compor mais uma história, essa com um típico final feliz, se desse asas à sua imaginação. Fato era que, no meio da noite, sempre que abria seus e-mails, intimamente lamentava-se por não encontrar nenhum vestígio daquela mulher que fora capaz de confundi-la, manipulá-la, insultá-la, envolvê-la, conhecê-la e conquistá-la através, simplesmente, das palavras... Kara.

A noite de lançamento do livro chegou depressa demais! Paula andava tão envolvida com os preparativos, com o trabalho, com a expectativa gerada ao seu redor, que teve a impressão de que o tempo foi pouco para aquele amontoado de coisas e sentimentos.

Todos seus amigos e familiares se fizeram presentes naquela noite de autógrafos. A sala de recepções do hotel, apesar de enorme, fez-se pequena para tantos admiradores e admiradoras. Dentre elas, uma, especialmente, aguardava ansiosa demais!

As mãos começaram a suar frio enquanto ela se aproximava da mesa onde Paula, de cabeça baixa, autografava os exemplares de seu livro. Cada pessoa a menos na fila, que saía com a dedicatória da escritora, causava em si uma sensação de angústia, misturada com excitação. Ela esperava a sua vez.

Paula, absorta, concentrada, sequer tinha tempo para erguer a cabeça, não ampliando a margem de sua visão além da mesa sobre a qual as pessoas pousavam os livros para que escrevesse algo. Limitava-se a perguntar o nome de cada um e dedicar o exemplar, com poucas palavras, ao seu futuro leitor. E assim o fez, de cabeça baixa, quando a próxima se chegou:

- Seu nome? – perguntou Paula sem erguer a vista.
- Carolina... – disse Cláudia com suavidade – ...prefiro que se refira a mim assim.

A voz familiar fez Paula erguer a vista, incrédula. Ela nunca havia esquecido daquele jeito de falar, sensual e rouco. Foram poucas as palavras que trocaram fora da tela de computador, mas suficientes para que Paula registrasse a voz de Kara, que, mesmo nas circunstâncias onde se “conheceram”, a marcou. Ao deparar-se com os olhos negros que a fitavam de forma desconcertante e intensa, limitou-se a baixar a cabeça e deitar no papel as seguintes letras:

Minha “Kara”, devo grande parte das adversidades que vivi e contei nestas páginas a você e à sua insensatez. Erga o seu troféu...Eis o seu troféu: meu livro. Você conseguiu, eu consegui. Obrigada, Paula Duarte.

Cláudia acompanhou com a garganta seca cada palavra escrita. A aspereza de Paula ainda era patente, sua raiva era capaz de fazer as palavras tremerem, assim como as mãos de Cláudia já tremiam e ela sentiu-se péssima. Pegou o livro, assim que Paula concluiu a assinatura, e remendou:

- Eu também deveria ter escrito um...você, de início, me fez muito bem, mas, na seqüência desastrosa dos acontecimentos, me deixou muito mal...embora não acredite... – dizendo isso, deu as costas e saiu.

Durante o resto da noite, Paula, mesmo policiando-se, não conseguiu deixar de procurar por Kara no salão, que se tornava enorme novamente na medida em que as pessoas iam embora. Ela devia ter saído depois da grosseria que Paula fizera, foi o que concluiu a escritora, já exausta. Aquele encontro inesperado com Kara cuidara de sugar todas as suas forças. Odiou-se por tratá-la daquela forma. Na verdade, queria tocá-la, aproximar-se, desculpá-la...mas fora impulsiva demais! Aliás, era impulsiva demais...

Eram quase duas horas da manhã quando Paula, finalmente, foi para casa. Sozinha, no caminho, praguejou novamente por sua atitude, talvez imatura. Queria muito saber onde Kara estava, queria adivinhar um telefone onde pudesse falar com ela, perguntar o porquê de sua presença, ali, naquele dia. Imaginou quantas combinações de números eram possíveis de se obter, em Brasília, para formarem os telefones... Pensamento maluco, ridículo, estúpido – constatava atônita–, apenas uma forma insana de ter a certeza de que jamais discaria para algum deles, aleatoriamente, e ouviria a voz de Cláudia do outro lado da linha. Subiu o primeiro degrau da escada que levava ao seu edifício, pisando com força, desejando esmagar seu próprio pensamento.

No hall do prédio, iluminado apenas pela luz do elevador, distinguia-se na penumbra o corpo de uma mulher, em posição de nítida espera, de pé. Os ombros largos, altivos, a postura longilínea e inconfundível. Era ela! Paula estancou os passos, surpresa. Cláudia quebrou o silêncio:

- Não vai me expulsar antes de me ouvir, vai? Não agüentaria outra humilhação nesta mesma noite...espere para me mandar embora amanhã, pelo menos, Paula. Eu preciso realmente falar com você... – Cláudia falava manso, com mágoa, enquanto se aproximava.

Paula, nem de longe, desejou expulsá-la ou afastá-la. Deixou que ela chegasse perto, tão perto que pôde sentir o perfume de seus cabelos. Olhou-a nos olhos, sem interpor qualquer barreira ou proteção, e, pela primeira vez, a viu como gostaria. Como uma mulher sincera, capaz de ser magoada, vulnerável, de carne e osso, e não a Cláudia, ex de Virgínia, ambiciosa, mentirosa, fria, diabólica.

Cláudia, consciente do espaço que Paula decidira lhe dar, aproveitou a porta entreaberta e tocou o rosto da mulher que lhe causava um desejo estranho, enorme, inexplicável. Gostava daquele rosto de Paula, que não era perfeito em traços, nem possuía uma beleza padrão, ao contrário, era um rosto andrógino, marcante, apesar de delicado. Gostava de seu cabelo curto, desalinhado, que emprestava à escritora um ar moleque, espirituoso, bagunçado, e fez o que há muito desejava, afagou-os sem pressa. Cláudia deixou a sensualidade de seu corpo brotar em suas mãos.

As mãos de Cláudia eram longas, femininas, gentis, quentes e afagavam os cabelos de Paula vagarosamente, vigorosamente, de forma intensa, como se quisessem puxá-la para si, possuí-la, ali mesmo, naquele instante. Paula fechou os olhos e sentiu a umidade escorrer entre suas pernas, o visgo de seu desejo alcançar sua calcinha, o rosto tornar-se vermelho, a garganta secar, a boca salivar, ávida, molhando os lábios de cima, já que os internos já estavam devidamente molhados.

Paula não sabia, mas Cláudia também se derretia em forma de umidade. Seu sexo pulsava, seu desejo escorria, enquanto ela alisava os cabelos da escritora. Seus dedos misturavam-se aos fios, arrastando-se ao couro cabeludo de forma firme, dura, enquanto imaginava como seria adentrar daquela forma em Paula, deslizando por ela de forma vigorosa, estocando-a de jeito, comendo-a com as mãos e com força.

Sem pensar nas conseqüências, Paula segurou as mãos que lhe acarinhavam, desvendando os pensamentos de Kara e, desejando o mesmo que ela, puxou-a para o elevador.

No espaço apertado, Paula encostou Cláudia contra o espelho e as duas se abraçaram, se beijaram, colaram seus sexos e os comprimiram, os esfregaram, com sofreguidão e sem nenhum pudor. As roupas atrapalhavam e, à medida que se tocavam, molhavam, ensopavam as vestes que encobriam-lhe os sexos, já, há muito, ensopados! As bocas, igualmente úmidas, se comiam avidamente, se sugavam, se bebiam, se tomavam, desvendando-se mutuamente, entre línguas, saliva, dentes, desejo. Elas trocavam tudo, misturavam-se em tudo!

Cláudia era impulsiva e atirada, descarada. Arrancou o botão da própria calça, já impaciente e enfiou a mão de Paula para dentro de sua calcinha. Os dedos da escritora já sabiam o que fazer e, dessa vez, não foi preciso nenhuma interferência manual de Cláudia. Paula meteu dois dedos na fenda molhada de Kara, já louca de tesão, que os engoliu despudoradamente, dilatada que estava com generosidade.

Cláudia gemia alto, pedia para ser fodida com força, para ser comida e Paula obedecia e a comia, enfiava os dedos mais fundo, estocava a fenda que lhe era oferecida de forma mais vigorosa do que o normal, encaixando a mão no próprio quadril e metendo os dedos ritmadamente entre as belas pernas que se abriam, à sua frente.

Cláudia não era tão passiva assim e não demorou a meter as mãos entre as pernas de Paula também. Nem fora preciso desabotoar a calça da escritora, que era do tipo largada, folgada, um jeans surrado que agradava e muito a Cláudia. Deliciou-se ao perceber que a calcinha de Paula já estava tão ensopada quanto a sua e, olhando a escritora nos olhos, fez uma expressão de nítida satisfação, enquanto enfiava os dedos na sua cavidade. Paula também pulsava de desejo e Cláudia adorava saber-se desejada. Isso só lhe dava mais tesão, só a encorajava a meter mais e mais no ventre que espremia seus dedos longos de forma indecente.

As duas gozaram forte, enquanto se fodiam. E não havia outra palavra para expressar aquele ato.

Quando o elevador parou no oitavo andar, as bocas continuavam coladas, as mãos de Paula enfiadas em Cláudia e vice-versa, as duas suadas, coradas, sedentas, ainda enlouquecidas de desejo.

Paula afastou-se um pouco e sorriu da situação, enquanto Cláudia a olhava com o fogo estampado nas faces, a boca entreaberta, a cara de safada, os olhos de vilã. Sim, ela os tinha. Paula tentou recompor-se o máximo que pôde, enquanto Cláudia ajeitou as roupas, olhou-se no espelho e acomodou os cabelos negros, espalhando neles parte do gozo que ainda escorria entre os dedos. Ela riu ao perceber o desconcerto de Paula, que percebia, sem jeito, seu líquido, seu desejo, nas mãos de Cláudia.

Com as pernas bambas, ambas entraram no apartamento e, sem trocarem uma palavra, foram direto para o quarto. As duas queriam, novamente, o mesmo. Ainda faltava algo e sabiam o que era. Livraram-se mutuamente das roupas e, dessa vez, fizeram amor, de forma sensual, calma e intensa.

Paula nunca havia se permitido ir tão distante, se envolver tanto na cama, se permitir daquela forma, sem receios ou medos, sem pudores ou zelos. Cláudia era mulher demais e, sabendo que Paula apreciava sua feminilidade, pôs-se sentada sobre sua cara, e, sobre sua boca, dançou, mexendo os quadris de forma sensual e lenta, enquanto Paula captava o clitóris, inchado e vermelho, que lhe era oferecido e o sorvia, o chupava, o mordiscava, o consumia, como se saboreasse o fruto mais saboroso do universo. E o era!

Embriagando-se com a umidade de Kara, que já havia se espalhado por todo seu rosto, Paula, enlouquecida de desejo, meteu-lhe a língua, enquanto segurava com força os quadris que se moviam sobre sua face, fazendo-os controlarem-se, dando-lhes o ritmo da língua que invadia, puxando-os para que pudesse enfiá-la mais e mais.

Cláudia subia e descia, comandada pelas mãos que a capturavam e pelo próprio desejo, sem saber como Paula era capaz de causar tanto prazer em seu corpo! Arrepiava-se, gemia, escorregava, abria-se, espremia-se, tentava adiar o gozo ao máximo para deliciar-se com os lábios quentes e a língua atrevida que lhe fodia. Mas o gozo não teve como ser adiado quando Paula tirou a língua do canal molhado e meteu-lhe os dedos, com força, enquanto chupava o clitóris duro e mais inchado ainda de Cláudia, que se contorceu e gozou da forma mais forte que já havia gozado em toda sua vida!

Exausta, deixou o corpo suado desabar sobre Paula que ainda a queria. Consciente disto, Cláudia logo retomou as forças e deixou que a escritora a tomasse novamente. Dessa vez, Paula deitou sobre o corpo alvo que lhe era oferecido e encaixou-se entre as pernas longas e abertas de Cláudia, que a esperava. Com o sexo pousado sobre o sexo de Cláudia, Paula começou a se mover, primeiro lentamente, até sentir que o tesão da parceira começava a ressurgir.

Quando Cláudia começou a demonstrar que estava enlouquecendo novamente, antes que gozasse, Paula aumentou o ritmo e a invadiu outra vez com os dedos. Sabia como ninguém encaixá-los na própria pelves e enfiá-los como um pênis e assim o fez. Comeu Cláudia como ninguém havia comido e gozaram, dessa vez, juntas.

Saciadas, as duas se olharam nuas e incrédulas. Combinaram tanto seus corpos, seus gostos, seus gestos que riram da sorte que tiveram de se achar. Cláudia beijou a boca de Paula com carinho, sentindo ainda o cheiro forte que deixara em seu rosto e falou em tom de riso:

- Estou perdidamente apaixonada... –fez uma pausa e sorriu marotamente, enquanto Paula demonstrava inquietação e curiosidade pelo que viria – ... por seus dedos, sua língua, sua boca, seu cheiro... e por você, é claro!

Paula sorriu aliviada e desejou que aquilo fosse realmente verdade. Já queria Cláudia por inteira, em corpo, gozo e coração.

Uma dúvida, no entanto, pairava no ar: como Cláudia havia descoberto seu endereço? Foi essa a pergunta que Paula a fez, enquanto as duas descansavam, enlaçadas por braços e pernas.

De súbito, Cláudia ergueu-se e caminhou lentamente pelo quarto, até sua bolsa, enquanto Paula a observava, a admirava. Cláudia tirou um cigarro da bolsa e uma pequena caderneta. Sem pressa, alheia ao frio que começava a povoar o estômago de Paula, acendeu o cigarro e deu uma primeira tragada. Em seguida, sentou-se lânguida, na poltrona que estava disposta em frente à cama, de frente para Paula, abriu o pequeno bloco de notas e leu em voz alta:

- Paula Lins Duarte, Rua Monsenhor Vilaça, 231, apto. 802, Brasília/ DF, telefone: 3231-5555, cel: 8855-5555, e-mail...

Depois de escutar todas as informações pessoais e formais que o caderno possuía sobre sua vida, Paula já começava a sentir uma angústia absurda percorrendo-lhe o corpo. O tom de Cláudia era estranho, sua voz parecia irônica, embargada por algum sentimento que Paula não sabia ainda definir.

Depois da leitura, pacientemente, Cláudia apagou o cigarro num cinzeiro que estava numa mesinha ao seu lado, onde também pousou o bloco de notas. Sorrindo, Cláudia explicou:

- Virgínia não perdeu um detalhe sobre sua vida esse tempo todo.

Somente agora, Paula soube definir o tom que acompanhava cada palavra de Cláudia. Era o tom agressivo e grave do ciúme. Adivinhando que Paula já havia percebido algo, Cláudia continuou a explicação:

- Nós voltamos e eu, exatamente nessa semana, veja só que coincidência... –agora sorria com ironia – ...logo nessa semana, que ela viria à Brasília participar de uma conferência, eu achei essas anotaçõezinhas inofensivas...

Paula escutava a tudo boquiaberta, estática, mortificada.

- Pois é, Paula, Virgínia também não a esqueceu, assim como eu...mas eu, ao menos, tive caráter e, por haver voltado com ela, não vasculhei a sua vida para descobrir o seu paradeiro, embora desejasse isso todos os dias. Pena que ela não fez o mesmo – Cláudia parecia magoada, irada, nervosa, sensível, louca, triste, decepcionada e, com os olhos brilhando, de lágrimas reais ou inventadas, Paula não soube dizer, e ela continuou – ... diante dessa descoberta, a fiz desistir de vir e disse que eu viria à tal conferência! Virgínia não foi boba, nem audaciosa o suficiente para insistir em vir e me contrariar, pois sabia que eu desconfiaria de sua insistência, de sua intenção, de sua vigarice, e aqui estou eu...despida, literalmente, de qualquer culpa. Finalmente fiz o que quis, tive você, como havia planejado desde o começo mas, dessa vez, não fiz por vingança, fiz por paixão.

Concluindo isso, Cláudia ergue-se e caminhou na direção de Paula, com a mesma calma e sensualidade de sempre...

Finalmente, Paula, atônita, percebeu com certo horror que o espumone já havia esfriado há muito tempo. Incrédula, já não achou qualquer vestígio da fumaça encantada que a havia feito escrever aquele conto, ali mesmo, naquela mesa, no meio daquele alvoroço de pessoas, músicas, sons, imagens. Ela não precisou de caneta, papel, nada concreto para a sua criação. Sua mente era fértil demais – sorriu, ao perceber – capaz de criar frases e frases, inventar histórias e histórias, registrar cada palavra, refletir e transformar cada desejo seu. O olhar perdido desapareceu e ela, finalmente, saiu do estado de transe no qual havia mergulhado com uma careta provocada pelo espumone frio e ruim, àquela altura.

Pediu e pagou a conta, e, ao erguer-se, sentiu, com certa estranheza e constrangimento, a umidade sob suas vestes. Lembrou-se então da Kara que inventara, de seu gosto, de seu cheiro. Ainda pensativa, caminhou pelo saguão, quase vazio, respirando fundo, de olhos baixos, tentando criar, ainda naquele instante, antes de sair daquele lugar, o desfecho de seu mais recente conto, ainda inacabado. Nesse momento, teve um insight, uma idéia brilhante!

Rindo sozinha, ergueu a vista e deparou-se com Virgínia que caminhava em sua direção, acompanhada por uma figura esbelta, toda vestida de preto, que se aproximava com o olhar de procura, feito um radar, captando as pessoas ao seu redor. Era uma mulher alta, mais magra que a maioria, de beleza nada convencional, singular em gestos e no modo de andar. O cabelo escuro feito a roupa, contrastando com a palidez da pele, que lhe dava um ar futurista, os olhos muito bem pintados e a boca vermelha, carnuda, chegavam a afrontar pela sensualidade, pela agressividade do exótico. Um sinal pequeno, do lado esquerdo da face, acentuava-lhe o charme e dava ao rosto angular alguma delicadeza. Ela olhou na direção de Paula e parou em seus olhos cinza. Paula sustentou o olhar os segundos que pôde, mas logo desviou, sem jeito. A mulher sorriu e, ambas, ela e Virgínia, continuaram caminhando em sua direção, fazendo Paula olhá-las novamente, incrédula. Ao alcançá-la, foi Virgínia quem questionou a Paula em voz baixa e polida:

- Podemos sentar? – Convidou a chefe, audaciosa, direcionando o olhar justamente para a mesa de onde Paula acabara de se levantar, numa tentativa de fazê-la retroceder.