segunda-feira, 20 de junho de 2011

A ÚLTIMA LETRA

Eu vejo coisas
Eu cito nomes
Eu decoro novamente o que já esqueci

Leio em voz baixa
Penso em voz alta
Calo enquanto leio outra vez o que já li

As páginas passam
As lições se rasgam
Como se, ousadas, ganhassem vida própria
As próximas palavras, mesmo não escritas, chamam-me “idiota!”
Enquanto sigo me designando apenas “aprendiz”

Em meio ao sufoco
Os pedaços soltos, de papéis e ódio, se espalham em mim
Sou mesa empilhada, quase empoeirada, de onde, ao longe, ainda se avista o jardim
Sou estante cansada, sempre carregada, onde o tédio intercala-se com livros em dialetos que nunca aprendi

Diante das línguas mortas, silencio
Diante do desconhecido que persiste vivo, grito
Sou analfabeta para muito do que escolhi
Sou palavra escrita em água
Sou a última letra de alfabeto sem fim
Que pede ponto final e o coloca
À revelia de mim

Sou quadro negro riscado, apagado e riscado novamente
Sou inteligente, estúpida e, outra vez, inteligente
A ponto de minimamente saber que
Eu vejo coisas
Eu cito nomes
Eu decoro novamente o que já esqueci
Por isso repito tanto
Releio tanto
Apago tanto do que fui, do que sou, do que serei
Pois antes me tornar risco indelével, sou giz

Mas ainda há a mesa a ser arrumada aqui dentro,
Há a janela que pode ser aberta e o jardim visitado
Há a estante a ser desocupada, ao menos, pelo tédio
Há livros a serem inteiramente decifrados
Pois hei de aprender todos os dialetos
Sobretudo o das palavras nunca ditas
Apesar de sentidas de forma pungente
E quando pronunciá-las sem medo, traduzidas pela vida
Tornar-me-ei quadro negro estampado de textos poéticos,
Outrora mortos,
Escritos pelo mesmo giz que, um dia, deixei apagar sem sentir
Não sou a letra Z
Mas sou o que me fizer ser
Sou eu meu próprio fim.