quarta-feira, 27 de julho de 2011

PÓS-ESCRITO (ou P.S...)

Dentro de mim jogo um jogo
Onde posso viver e morrer várias vezes
Onde escalo montanhas e venço rios sem esforço
Onde mato sem culpa
Onde transformo sangue em ouro

Dentro de mim jogo um jogo
Onde os inimigos são vermelhos e os companheiros, azuis
Facilmente distingo todos
Onde troco as armas no primeiro clicar do botão
Onde recarrego, no segundo clique, a munição
Onde conduzo a vida com apenas dois cursores
Onde pauso o tempo,
Onde adianto o tempo,
Onde venço o tempo,
O tempo todo
E há sempre tempo de novo
Para salvar as fadas e chacinar dragões

Há dentro de mim um jogo
Onde venço de mim mesma
Onde perco de mim mesma
Onde, sobretudo, me perco de mim mesma
Distraidamente
Sem fome,
Sem sono,
Sem dores,
E esqueço
Do jogo que fora de mim há
E sempre haverá
E sempre haverá?

Isso importa?

Há dentro de mim um jogo
Onde sempre haverá outras portas
Onde me alimento de tesouros,
Onde não há cama, quiçá sono,
Onde a dor não me alcança,
Apenas aos controles que tremem,
Simulando-a

Há dentro de mim um jogo,
Onde roubo os mortos
E compro armaduras que nem sempre valem o que pago
Mas sempre custam caro
É quando lembro: viver, por si só, é caro!
Mesmo na virtualidade

Há dentro de mim um jogo
Onde os monstros são realmente vencidos
Onde o game over nunca é definitivo
Onde meus escritos nunca serão pós-escritos
Pois não haverá lápide para mim
Eis que, na tela escura, letras amarelas me perguntam:
Continuar?
Sim.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A CAIXA DAS HORAS II

O tempo tarda
E porque não passa
Alarga a espera
Sobre o ponteiro espesso
Deito-me esticada
E porque nele caibo
Giro a fria madrugada
Coberta pelos sonhos que me restam

Ao acordar, descubro-me
Dos sonhos e de mim mesma
Já não sou aquela que jazia esticada
Sou um dia a mais que, ansioso, me espreita e chama
Raios de sol pelas persianas,
Saliva de luz,
Mingau das almas das janelas

Sem surpresa,
Bocejo e vejo:
O tempo ainda gira
Mas desço do ponteiro
Da carruagem do tempo alheio: o relógio
E vou caminhar em meu próprio tempo
Onde os segundos não se contam em macios e temperados sonhos
Mas em dura execução de salgado planejamento
Temo

E mais um dia parte
Enquanto minha outra parte
Em mais uma noite
Se inquieta

O tempo passa
E porque corre
Estreita a espera
Sobre o ponteiro fino da pressa
Equilibro-me, bambeio
Encolho-me, seguro
Segundo que não mais gira
Arrouba-se linear tal qual flecha

Ao acordar, caio, mas não morro
Ergo-me e volto a galgar o cavalo que badala em horas: o ponteiro
Ajeito-me na sela
Retomando as rédeas, finjo que freio
Temendo a vida?
Temendo a morte?
Temendo o tempo


É quando lembro:
A caixa das horas
É caixa que guarda tesouro
Jamais sepultamento

Desço do cavalo e o desengato da carruagem
Ao passo que também me liberto
Vou ousar novamente
Andar com meus próprios pés
Em meu próprio tempo:
Terreno onde me construo
Mas, desta vez, sem medo.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A CAIXA DAS HORAS I

A caixa das horas
Pende, demora
Padece cheia de sonhos
Enquanto a pressa, inquieta,
Espera do lado de fora

Por vezes, com as mãos tremulas e as unhas roídas
Avançamos sobre a caixa lacrada
Buscamos abri-la, pedindo vida
Mas ela não cede
Mantém-se cerrada
Só a caixa das horas sabe a hora certa de ser devassada

Por vezes, com as unhas pintadas
Esmalte requintado, mais caro do que prato de comida
Cutículas impecavelmente tolhidas
Como se podadas tal qual jardim raro
Irritamo-nos com o supérfluo
Com os dias ocos de ofícios
Bate-nos na cara a futilidade
É quando buscamos manter a caixa fechada
Para que as horas não jorrem ao nada
Mas a caixa se abre insolente
Impulsionando-nos para a frente
É o tempo que, impiedoso e mesmo desperdiçado,
Passa

O laço que prende a caixa das horas é de cetim vermelho
Tingido pelo sangue dos que não suportaram a espera e cortaram os pulsos
O nó do laço é justo
E não se apieda dos mais apressados
Daqueles que tentam burlar a fita que guarda o tempo

Soube que o desenlace requer esquecimento:
Que esqueçamos o sangue, que esqueçamos o laço
Que esqueçamos a caixa, que esqueçamos o próprio tempo
Que lembremos apenas de nosso real alimento:
Não consumimos ponteiros, degustamos agoras
Não mastigamos relógios, saboreamos momentos
Quando, finalmente, não demarcamos em horas o que vivemos
É que, realmente, viveremos
Pois desatar a vida requer, antes de tudo, liberdade
Ser livre é descobrir que a caixa das horas não dormita fora de nós,
Mas sim dentro
Façamos, portanto, de um ano árduo, um segundo
E de um segundo, um século intenso
Se assim exigir nosso próprio calendário.