quinta-feira, 29 de outubro de 2009

CARTAZES (Poesia)

Vivo numa cidade emoldurada
Pelos muros de concreto armado,
Por sobre a tintura e o recato,
Avisto cartazes retangulares e quadrados,
Figuras tão geométricas e limitadas quanto os que lêem
Atentos e animados

E em cada um destes letreiros,
Verdadeiros espelhos desta cidade,
De maneira mórbida,
Em tons de lilás e rosa,
Jaz de forma patente,
As mais sombrias propagandas e tantas banalidades diferentes
São bandas de pagode, duplas sertanejas
São grifes da moda, garotas propaganda
Fotoshop emprestando a perfeição que passa longe
Longe da miséria que estampa a cara de quem tem fome e sequer sabe ler
São bares, hotéis, boates
São shows de brega, shows de rock
Forro, apelação e desespero, com dançarinas seminuas
Mau gosto estampado,
Vitrines em papel quadrado,
Tudo à venda, tudo à mostra
Nada se esconde, à exceção do que, realmente, importa
São papas que são pops,
Pastores no horário nobre,
A interconectividade
Inclusive entre as operadoras de telefone
E tudo isto cabe num quadrado,
Confeccionado por gigantes esquadros,
Dentro do qual querem nos ver mergulhados,
Afundando, naufragando
E dia-a-dia a piscina se expande

Vivo numa cidade emoldurada
Mas vivo fora, vivo à margem
Dos outdoors que engolem e cospem
Nossa pobre – que se pensa nobre – sociedade.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ADIANTE (Poesia)

Olho adiante
É mar o que vejo
E sol que fulgura sobre as ondas que chegam
Não mais tenho medo
Tenho sede de nado
E nado adiante
Não retrocedo
Apenas respiro fundo
O ar que insufla as velas
Do navio que me leva:
Eu mesma

Olho adiante
É vida o que vejo
E planos que cintilam sobre tantos montes
Escalo-os,
Venço-os,
Sorrio enquanto avisto o início da escalada
Não canso,
Apenas agradeço
A cada metro vencido de meus campos
Meu norte é o mesmo:
Busco a plenitude
E, depois de tempos de estilhaço,
Dispersa por tantas terras,
Em tantos passos,
Sinto-me o que desde sempre busco:
Inteira

Olho adiante
Sou eu o que vejo
Não mais simples imagem refletida no espelho
Hoje sou dona de tudo o que reflito,
Porque reflito plena,
Em minha inteireza,
Sou dona do mar e dos montes,
Do navio e do cais,
Da coragem e do medo,
Da luz e da ausência de luz
Em mim, mesclam-se o branco e o preto:
Sou o próprio espelho.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

SHANGRILÁ...



Existem, em minha vida, dois cenários para os quais, ao menos em pensamento, sempre hei de retornar. Em ambos vivi muitos dos melhores dias desta minha existência, que se não é eterna, é singular pela força despendida em cada dia e pela vontade de que seja.

Um destes cenários foi homenageado no conto Aquários, onde empresto à rua onde morei e que beirava a praia de Garça Torta, situada no litoral de Alagoas, algumas personagens forjadas em meu imaginário, em meio à maresia e ao som das ondas que até hoje ouço antes de adormecer, embalando meus sonhos. Quem leu o conto sabe bem do que falo.

Findo o texto, senti desde então que restava pendente uma outra homenagem: eu ainda precisava retornar, pelo menos através das palavras, a um outro recanto tão especial quanto o de Aquários.

Entretanto, alguns anos se passaram e outros tantos contos foram escritos antes de, finalmente, me aventurar neste segundo passeio. Até que, num dia cinza e de chuva – como a maioria durante os quais escrevo –, sentei-me defronte à tela iluminada onde dedilho minhas palavras e, respirando fundo, dei o primeiro passo rumo ao meu segundo e querido cenário, palco de tantos sorrisos, tão ingênuos quanto inteiros.

E, valendo-me das paisagens, andando por dentro e por fora de mim e de lá, fui caminhando, caminhando, caminhando de volta, sem pressa, sem hora, até revisitar todas as minhas memórias e chegar a Shangrilá. O que, a princípio, seria um conto, transmudou-se em livro e é este o título que lhes apresento.

Na última página escrita, o alívio: meu segundo cenário restava finalmente e fielmente descrito. Mas, para minha surpresa, a homenagem tornou-se maior ainda e é isto o que hoje venho contar: a Editora Malagueta publicou meu segundo “passeio” e, graças a isto, posso convidar a todos para trilhar também por Shangrilá.

Sejam bem-vindos.

Marina Porteclis.

Lançamento em Recife: dia 17/09/2009, na Livraria Cultura, às 18h30.

Maiores detalhes: http://www.editoramalagueta.com.br

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo V )

CAPÍTULO V


O ENVELOPE


E só então, diante daquela proposta disfarçada de presente, perfeitamente embrulhada por Fernanda, Manuela tomou pé do absurdo vivenciado. Meses haviam se passado; ela e Laura haviam terminado o longo namoro; as fotos de Espelhos D`água tinham lhe rendido vários prêmios; havia comprado um apartamento no Rio de Janeiro e agora morava só naquela grande cidade; mas, apesar de tantas mudanças e do correr do tempo, algo permanecia inabalado: o desejo de rever a mulher, da qual sequer sabia o nome!

Como e onde procurá-la? Esta foi a primeira pergunta lançada pela própria Manuela à amiga, que parecia igualmente entusiasmada.

Nos dias vindouros, nas tardes destinadas às férias de ambas, pelos cafés da Cidade Maravilhosa, as duas articularam vários planos e caminhos. Algum deles haveria de levar a Isabella. Era esta a certeza que Manuela buscava fortalecer, enquanto dissipava a possibilidade de tudo não ter passado de alucinação. Omitiu para Fernanda, inclusive, o fato de sempre ter visto Isabella quando estava a sós, ou seja, a presença da mulher misteriosa não havia tido, sequer, qualquer outro protagonista como testemunha, a não ser o filho, que também poderia, é bem verdade, ter surgido para compor o delírio. Mas tais elucubrações não mereciam ser, naquele momento, erguidas. Que pensassem no concreto e, com base nele, buscassem os vestígios e paradeiro da desconhecida.

Mas a esperança era estreita, afinal, da mulher de olhos de veludo, apenas duas pistas restavam: a profissão do marido; o nome e a doença do filho. E nada mais Isabella havia elucidado. Não havia dito o nome real, tampouco o sobrenome; não mencionara o nome do marido, tampouco da rede de hotéis de que era proprietário; não havia contado em que se formara; não disse, sequer, se estava em Espelhos D`água de férias, se lá morava, se o marido possuía hotel por aquelas partes, se estavam de passagem... Enfim, existiam poucas pontes a serem galgadas.

Foi Fernanda quem sugeriu. Começaria a pesquisa pelos poucos detalhes que circundavam o marido e a rede de hotelaria que lhe pertencia. Com esse intuito, pesquisaram se havia ou não hotel de grande porte pelas mediações de Espelhos D`água, mas nada foi encontrado. Logo deduziram que o casal não estava na cidade a trabalho.

Na seqüência, Manuela entrou em contato telefônico com Dalva, que conhecia praticamente todos os habitantes da cidade. Tentando não dar espaço para maiores questionamentos, depois de disfarçar o real motivo do telefonema e enveredar por uma série de corriqueiros assuntos, lhe interrogou se conhecia algum grande empresário do ramo de hotelaria que costumasse visitar Espelhos D`água, acompanhado da esposa e do filho, que era um jovem de aproximadamente quinze anos, acometido de autismo. E mais uma vez nenhuma informação foi dada. A amiga da mãe não lembrava de nenhuma família que se enquadrasse naquelas características.

Nos mesmos moldes, a fotógrafa ligou ainda para o amigo americano, dono do Recanto das Artes e da pequena pousada, que também não ouvira sequer falar em autismo, nada acrescentando às informações já tão parcas.

Assim, deram por finda a ponte que se originava nas características do marido, seguindo para a outra: a que tinha Lucas e o autismo por norte.

E, naquela direção, numa tarde de chuva, sentadas defronte ao computador, deram então os primeiros passos. Para antever os detalhes da vida de Isabella, certamente deveriam percorrer os da vida do filho, que lhe era tão amado. Pesquisariam, portanto, sobre o autismo. Quem sabe existiria um centro de estudos sobre o tema na Cidade Maravilhosa? Foi o que, acalentado a esperança, questionaram.

Com esse intuito, no Google, sem maiores pretensões, lançaram o nome da doença, seguido do da cidade onde estavam: “autismo” e “Rio de Janeiro”.

No correr das informações listadas em letras azuis, logo se surpreenderam. Com o estômago revirado, Manuela leu em voz alta:

- Fundação Bianor Travassos!

Era o nome do tio, irmão de Júlia, portador de autismo, que estava ali listado. Na seqüência, focava-se o endereço, sendo este prontamente anotado. Manuela não tinha conhecimento da existência daquela fundação e tal notícia, embora não tivesse ligação com sua Isabella, obviamente haveria de ter com a Isabella de Júlia, foi o que pontificou abismada.

Na mesma tarde, as duas, boquiabertas, leram em uníssono as informações contidas na placa que se erguia na entrada da mansão de muros esculpidos em aço e de jardins inigualáveis.

Aquela fundação havia sido inaugurada na década passada por Isabella Montgomery, filha de Vivian e John Montgomery, sendo este embaixador dos Estados Unidos residente no Brasil. O casal habitara a mansão durante anos, na companhia dos dois filhos: a fundadora da instituição e o irmão adotivo, que se chamava Bianor Travassos. O jovem era portador de autismo e, por amor, todos da família haviam se dedicado à causa. Com a morte dos pais e do irmão, Isabella Montgomery havia decidido regressar aos Estados Unidos, mas não sem antes inaugurar a fundação, que deixou sob os comandos da filha, também chamada Isabella, que era quem atualmente a coordenava.

Sem ar, Manuela enquadrou a foto estampada logo abaixo da placa, onde sorriam, lado a lado, mãe e filha: a fundadora da instituição e a atual coordenadora; a Isabella de Júlia e a sua Isabella! Era inacreditável! Finalmente a achara e por caminho inesperado! E ela se chamava, de fato, Isabella. Foi o que Manuela constatou com o coração aos saltos.

Aquele emaranhado de coincidências agitou-lhe o corpo de uma forma inusitada e Manuela, com os olhos semicerrados, levou a mão à fronte, enquanto sentia o sangue fugir-lhe dos braços, das pernas, das faces, das aquarelas externas e internas. Tudo se tornava acinzentado, inclusive a foto à sua frente, que estampava a tão buscada imagem. E antes que sentisse o corpo tombar na calçada, fechou os olhos, à beira do inconsciente. Foi quando lhe veio à mente uma última cena: a de uma secular cerejeira que, ao vento da tarde, despedia-se das sakuras que também tombavam no chão, como se finalmente cedessem após um grande embate.

E foi justamente ao sentir o perfume de sakuras que Manuela, tempo depois, despertou. Com a vista ainda turva, ousou abrir os olhos lentamente, enquanto sentia a cabeça pulsando de dor. Em seu interior, afoitamente, colidiam receios e dúvidas. O corpo pesava sobre uma superfície macia, como se estivesse amoldado em nuvens graúdas, mas de chuva. Era o peso do medo que a fazia ceder sobre a cama, estranhamente coberta por veludo azul.

Ao perceber o tecido, tomada de susto, bruscamente ergueu-se. Foi quando, logo à frente, numa moldura antiga, enquadrou outra fotografia surpreendente: era Júlia, ainda muito jovem, ao lado daquela que, certamente, era Isabella Montgomery, e Bianor.

Aturdida, enquanto piscava repetidamente os olhos, vagueou a vista pelo restante do quarto, notando que os móveis e demais utensílios eram por demais antigos, embora perfeitamente conservados. Sentiu-se em outros tempos. Presente disfarçado de passado ou passado disfarçado de presente? Não soube responder.

Foi quando dentro de si, em meio a uma densa floresta, finalmente se abriu a primeira clareira. Aquele, certamente, fora o quarto habitado pela mãe, quando ainda morava naquela casa, pontuou boquiaberta.

Um frio repentino gelou-lhe o estômago e ela, beirando o pânico, consultou o relógio com pressa. Na parede, ele marcava o meio-dia, embora bem soubesse que desmaiara no final da tarde. Pela janela, viu folhas amarelas despencando das árvores, como se repetissem o outono. Lembrou-se, instintivamente, do Lago das Ilusões, que naquela exata hora, fosse mesmo tal estação do ano, reproduziria de forma misteriosa a cidade. Quem sabe, outra realidade? Quem sabe, outra dimensão? Quem sabe o lago tivesse sido o portal de todas as miragens vistas, de todos os mistérios, de toda a sua perturbação? E ali, pasma, obtinha talvez a explicação.

Em meio ao agitar dos sentidos, Manuela fechou os olhos com força, como se buscasse afastar de si aquela angústia súbita, aquela confusão interna causada pelas imagens presentes, lembranças passadas e expectativas futuras. Foi quando, em meio à escuridão causada pelo cessar da visão, a audição pareceu traí-la. Atônita, pensou ter ouvido ao longe Veludo Azul e, na primeira estrofe da música, o trinco da porta girou.

Ao ser aberta, era a vez de a porta ganhar ares de portal. Como se viabilizasse a comunicação entre dois planos, permitiu o acesso da imagem anteriormente vista na foto que jazia dependurada no quarto. Sem fôlego, Manuela assistiu a entrada de Isabella Montgomery, o grande amor de Júlia.

Com a tez pálida, os olhos de um veludo azul e profundo, a mulher gradativamente se aproximou. Enquanto isto, Manuela permanecia imóvel, incrédula, estática. Lutando contra a insensatez daquela realidade e a impossibilidade daquela aparição, tornou a fechar os olhos fortemente e, respirando fundo, esperou os segundos que pôde, até sentir pousar sobre seus ombros duas mãos.

Era chegada a hora de enfrentar aquele fantasma de uma vez por todas! Foi o que Manuela, já impaciente com tanta covardia, pontuou. Mas, ao abrir os olhos e reacender o amarelo da íris, não foi a mesma Isabella que encontrou.

Não era a mãe, mas a filha que a esperava, segurando-a pelos ombros: era a sua Isabella, e não a de Júlia, que, mais uma vez e de forma inusitada, vinha ao seu encontro.

Sem questionar nada, Manuela pareceu emergir de toda a angústia e, livrando-se das águas turvas da dúvida, encheu-se de certeza quando, com nitidez, escolheu a imagem que simetricamente enquadrou: com as mãos trêmulas, segurou o rosto de Isabella com força, aproximando as bocas. Os desejos já estavam próximos o suficiente. As batidas dos corações de ambas faziam-se quase audíveis, evidentes. E, na sequência do enlace, os lábios fizeram-se resolutos e molhados, quando finalmente se tocaram com saudade e ardor.

Manuela experimentava agora um beijo que não fora roubado, tampouco fruto de desespero ou dor. Isabella a beijava com cuidado, com calma, com certeza, com calor.

Sentindo o corpo ser tomado de estupor e felicidade, como se buscasse comprovar que aquele encontro era fato, Manuela, por sobre os ombros da outra, consultou o espelho que tomava uma das paredes do quarto.

De relance, as viu no reflexo, mas, antes de ser tomada pela tranqüilidade, num piscar de olhos, a imagem das duas mulheres se transformou. E Manuela, com o coração aos saltos, pensou ver no próprio corpo, o corpo da mãe, e no corpo de sua Isabella a outra Isabella!

Interrompendo o beijo, horrorizada, Manuela se desvencilhou, afastando-se da estranha que beijara. Mas, dos poucos metros que distou, logo reviu a Isabella que amava. Os olhos de veludo azul fulguravam, incrédulos diante do afastamento da outra. E Manuela, mais uma vez, se aproximou, vitalmente confusa.

Foi quando a Isabella que parecia ser sua, tomando a frente dos atos, venceu a distância galgada e novamente a beijou. E, naquele beijo, não deixou espaço algum para dúvida. Com pressa, começou a livrar-se das próprias vestes, enquanto Manuela livrava-se das suas.

De pé, os corpos logo se reconheceram. Mais uma vez seios contra seios, rosto contra rosto, lábios contra lábios, ventre contra vente...ambas na ânsia do gozo.

Manuela deitou-se na cama, recebendo Isabella sobre si. No encaixe das pernas, as duas sentiram a umidade que logo as fez deslizar, uma sobre a outra.

O corpo esguio, alvo, sedento de Isabella suava, se movia, subia e descia de forma ritmada, alucinada, enquanto Manuela lhe pressionava as costas, acomodando os quadris, lhe enlaçando a cintura, lhe apertando com força, como se a quisesse mais ajustada, mais sua, mais encaixada em si: ventre com ventre, coxas entre coxas.

Isabella gemeu alto, anunciando o gozo, quando Manuela lhe apalpou um dos seios e começou a sugar o outro. Prevendo que a outra logo verteria todo o desejo em líquido, Manuela, por sobre as ancas que se moviam, buscou o espaço espremido entre as pernas de Isabella e, deslizando os dedos, penetrou-a. A umidade encontrada fez com que o contato imediatamente se aprofundasse e Manuela experimentasse quão dilatada estava a abertura quente que lhe era oferecida sem qualquer pudor. A que era penetrada exigiu mais força e a que penetrava prontamente atuou.

No espelho – que mais uma vez foi consultado naquele instante de sincronia pura –, tudo o que Manuela viu foi a imagem de duas mulheres nuas, misturadas em pernas, poros, líquidos e amor. A que era invadida logo tremeu enquanto engolia os dedos da invasora. E o gozo veio forte para as duas, foi esta a única certeza da expectadora.

Conhecidas ou desconhecidas, elas se amaram e esta era a verdade, foi o que Manuela, retomando a razão, ponderou. O presente de Fernanda fora, realmente, dado: enlaçadas, formavam um belo quadro, ambas despidas e saciadas sobre o veludo azul.

Mas Manuela bem sabia. Precisava recobrar a razão e questionar Isabella sobre uma série de coisas: seria ou não verdade o casamento, o filho, o autismo? Como justificar tantas coincidências: a mesma doença, o reencontro na mesma cidade, a conexão com Júlia, com o tio?

Como se compreendesse as inquietações da outra, Isabella ergueu-se da cama e vestiu-se em silêncio, como se se preparasse para elucidar todas as dúvidas. Manuela fez o mesmo, porém, mesmo depois de vestida, continuou a se sentir despida. É que Isabella, na explicação que logo veio, demonstrou saber muito sobre sua vida e sobre a de Júlia.

No mês de agosto, naquele outono, fazia exatos trinta anos que Júlia e Isabella Montgomery haviam se conhecido. E, assim como Manuela, a filha de Isabella, que possuía o mesmo nome, havia viajado para Espelhos D’água atendendo a um pedido: procurar vestígios de Júlia, por quem a mãe ainda era apaixonada.

Mas a missão era resgatar a história não apenas em imagens, como Manuela havia feito. Isabella Montgomery, a mãe da Isabella que explicava, queria resgatar o paradeiro da mulher que amava. Bem por isto, a filha, atendendo ao pedido, rumou para a cidade onde ambas se conheceram.

Entretanto, a Isabella que procurava não poderia jamais imaginar que a saga de amor proibido continuaria. Mesmo sem esperar ou prever, não encontrou Júlia, mas conheceu sua filha. E, na sequência dos dias, ironicamente, terminou por viver paixão semelhante à de sua mãe, em pele e em sentidos, o que a deixou, de início, absolutamente atordoada e a fez fugir em desatino.

Mas agora, ao rever Manuela, Isabella bem sabia: não se podia fugir do destino. Com os olhos de veludo brilhando, por fim, ela rematou, enquanto olhava dentro dos olhos amarelos: infelizmente Júlia havia morrido e, com ela, a esperança de Isabella Montegomery, sua mãe, viabilizar um reencontro. Mas, se a sorte faltou na primeira história, não faltaria na segunda, que era a delas. Isabella, a filha, estava viva e assim queria continuar a se sentir nos braços de Manuela, caso também fosse a vontade da outra.

Manuela não precisou sequer de um segundo para, internamente, obter a resposta que, na sequência, daria àquela proposta docemente formulada. Ela não tinha dúvida. A certeza era inteira e assim passaria por qualquer porta, mesmo a mais estreita. A vontade de ter Isabella em sua vida era imensa e eterna. Faria de tudo para que aquele amor não sucumbisse aos ventos trazidos pelo preconceito, feito as flores de cerejeira. Devia isso a si, a ambas, às mães, que, ao contrário delas, cederam.

Mas, quando finalmente pronunciou o “sim”, Manuela despertou. Num salto, ergueu-se da cama de solteiro, forrada com uma colcha qualquer, que nem de longe lembrava a de veludo azul. Ao redor, móveis atuais, mas nada conservados, todos sujos. No chão, o mesmo carpete acinzentado. Foi quando constatou: estava em um dos quartos do mesmo hotel barato. Com amargura, imaginou se a altura seria a condizente com o décimo sétimo andar. Ao aproximar-se da janela, viu carros e pessoas que, lá embaixo, pareciam de miniaturas. Sim, nem o andar havia mudado. Ela, aparentemente, não saíra do lugar.

Foi quando, confusa, viu sobre a cômoda um envelope, que já estava aberto. Finalmente lembrou-se: era o conto! Vagamente, sua memória lhe ofereceu algumas lembranças dos derradeiros dias. Fernanda, que novamente visitava o Rio de Janeiro, já o havia escrito e, naquela exata tarde, lhe entregado. Era o prometido e tão esperado presente. Manuela só não se recordava se já o havia lido.

Meses haviam se passado desde o último encontro entre as amigas, foi o que percebeu ao consultar, no envelope, a data. Mas apenas o reencontro entre ela e Fernanda havia sido real, enquanto o com Isabella, ou teria sido fruto de um sonho ou fictício. “A encomenda”, era este mesmo o título.

Com pesar, andou pelo quarto, em busca, talvez, de um único vestígio daquela realidade inventada que, sorrateira e novamente, lhe havia sido furtada.

Foi quando, por baixo da porta, como se o destino lhe atendesse ao pedido, viu um bilhete que, escrito em letras que denunciavam pressa, dizia:

“Estou lhe aguardando do outro lado.”

E mais uma vez o corpo de Manuela tonteou, como se por dentro colidissem todas as dúvidas que julgara haver extirpado. Ali estavam novamente, talvez fortalecidas, sempre inimigas.

A que lado o bilhete se referia? De que lado a que o escrevera se encontrava? Do outro lado da porta, do outro lado do lago ou do outro lado da vida?

Cada interrogação formulada atingia Manuela feito tiro. A resposta, ainda não possuía. Sabia tão somente que em um daqueles lados Isabella haveria de estar. Foi esta a certeza que lhe tomou de súbito, enquanto, com a mesma ênfase, tomou também o trinco da porta, que, já sem medo, abriu num giro.


quinta-feira, 9 de julho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo IV )

CAPÍTULO IV
O RELATADO


Com o calor do sol insistindo em açoitar-lhe a face, Manuela acordou deitada sobre algumas das almofadas que forravam o chão do Recanto das Artes. Estava inteiramente suada. Ao abrir os olhos, instintivamente consultou o relógio. Passava das nove horas. Aturdida, percebeu que Veludo Azul ainda tocava, embora não se recordasse de ter acionado, no som, a reprise.

Antes de erguer-se, com o coração acelerado, passou a mão pela fronte e nem sinal do corte. Novamente os poros arrepiaram-se. Levantou-se de súbito, sentindo uma forte dor de cabeça e os lábios ressecados. Com passos rápidos, atravessou a sala e foi até o estúdio vasculhar as fotos recém reveladas. Nem sinal da última. A imagem da mulher, duplicada no reflexo do lago e à luz da lua, feito encanto, havia se dissipado.

Atordoada, procurou por toda parte e nada. Logo, o calor da manhã misturou-se ao frio do medo que, a cada segundo, parecia tomar proporções inesperadas. Sentia-se vitalmente confusa.

Olhando para uma das estantes, como se procurasse aleatoriamente resposta para tantas inquietações e dúvidas, dentre os livros, um título, particularmente, lhe chamou a atenção. Em letras de fôrma e graúdas leu: “Sonhos: no limiar entre a realidade disfarçada e a nua ilusão”.

Naquele título talvez estivesse a explicação para tudo. Foi quanto respirou fundo, sentindo-se, momentaneamente, aliviada. Poderia, de fato, ter simplesmente sonhado com a foto que, momentos antes, procurava. Seria possível, ainda, que todas aquelas imagens, inclusive a da mulher trajando veludo, não passassem de miragens, frutos da mais pura ilusão. Poderia ter se impressionado por demais com a história vivenciada por Júlia e, nesta senda, disfarçado de forma quase palpável uma “realidade”. E por que não? As hipóteses sugeridas pelo título se misturavam, enquanto a cabeça ainda latejava.

E logo se arrependeu de não ter tentado trazer consigo o veludo azul que lhe serviu de encosto e que, até onde lembrava, havia deixado à margem do lago. Assim tivesse agido, naquele instante possuiria em mãos provas concretas do ocorrido ou, ao reverso, da total ausência de verdade naquelas visagens.

As elucubrações de Manuela foram interrompidas por Laura que, chegando à porta, com expressão interrogativa, alçou vista através do vidro. Alcançando os olhos amarelados, a que procurava girou o trinco e, na seqüência dos passos, questionou o que havia ocorrido. Por que Manuela havia dormido no Recanto das Artes? Foram estas as questões lançadas.

Com toda a sinceridade de que era capaz, Manuela respondeu que simplesmente não sabia. Havia perdido o sono e, ao se dar conta, fora parar naquele lugar, onde a realidade parecia, sorrateiramente, misturar-se à fantasia. Aliás, tal atributo parecia ser inerente não apenas ao Recanto das Artes, mas à cidade.

Foi quando, para a surpresa de Manuela, Laura, com ar de mistério, disse sentir o mesmo. E logo o silêncio voltou a pairar entre ambas e cada uma seguiu para um lado. O dia estava apenas começando e as duas pressentiam: aquele mês prometia além do esperado.

No início da tarde, a pintora anunciou. Iria à tenda onde Júlia esculpia. Era sua vez de reproduzir o Lago das Ilusões em aquarela. Diante da intenção confessada, Manuela titubeou. Teve receio de que a namorada visitasse o local e também se deparasse com a imagem da mulher estranha. Não lhe faltou vontade de pedir para ficar. Entretanto, se segurou. Não poderia relatar o ocorrido a Laura. Deixou-a ir, com o coração apertado, mas deixou.

Porém, assim que a pintora atravessou à porta, a fotógrafa confortou-se: tudo não havia passado de algo imaginado. Era mais sensato pensar assim e soaria ridículo tentar convencer Laura ou qualquer pessoa do contrário. Deveria era estar ficando louca, foi o que, por fim, pontuou.

Ao correr da tarde, enquanto estava sozinha, Manuela resolveu estancar absolutamente todo e qualquer assunto que a reportasse à mãe ou às aparições do dia anterior. Definitivamente, precisava redirecionar o pensamento e a atenção.

Com este intuito, deixou de lado as fotografias e deu-se a um modesto luxo: durante o resto do dia não pensaria em trabalho, apenas deleite. Até porque, como bem observava, a coleção de fotos que tinha por objetivo retratar a cidade através dos olhos de Júlia já estava quase completa, fulgurando numa das paredes do Recanto das Artes como verdadeira promessa emoldurada: a visita a Espelhos D’água havia sido feita e o juramento, de certo modo, cumprido.

Com “A Descoberta do Mundo” em mãos, que, dentre os livros de Clarice Lispector, era seu favorito, rumou para baixo de uma figueira que beirava o rio, no final do quintal, onde se encerrava a murada. Lá, assentando sobre o espesso gramado uma toalha indiana, pôs-se descalça e deitada com a cabeça plana, de modo que a sobreposição do livro lhe causava, à vista, sombra.

E assim ficou por horas a fio, enquanto o sombrear, ao girar do sol, se deslocava. Foi justamente enquanto relia a crônica intitulada “Precisa-se”, que Manuela estranhou o avolumar da sombra sobre a face. Erguendo a vista, foi interpelada pela voz melodiosa e baixa da mulher que, ladeando o filho, se aproximava com um “boa tarde”.

Sentando-se rapidamente, sem disfarçar a surpresa, Manuela respondeu ao cumprimento, enquanto constatava a semelhança entre aquela que chegava e a mulher estranha que, à beira do lago, dia antes, avistara. E, boquiaberta, viu nos olhos dela o mesmo azul do veludo, embora a moça trajasse roupas claras.

Como se receosa estivesse, a recém-chegada logo disse ao que veio. Procurava pela comentada exposição de quadros da pintora chamada Laura Cervantes. Sem conseguir articular muito bem as palavras, Manuela prontamente apontou o Recanto das Artes e para lá a outra fez menção de seguir, sem rodeios.

Enquanto via os dois se afastarem, Manuela tomou fôlego e ergueu-se, indo encontrá-los antes de chegarem à porta. Silenciosamente, ponderou: ou aquela miragem se desvaneceria ou, ao reverso, perceberia que, feita de carne, a tal mulher, de fato, existia e ela não estava louca.

Com a respiração entrecortada, a fotógrafa alcançou o trinco e abriu a porta, tomando a frente do grupo e ensaiando um riso.

Olhando-a da cabeça aos pés, como se estranhasse a atitude, a estranha confrontou os olhos amarelos com os próprios e, diante das tonalidades díspares, ambas retesaram os corpos, supondo-se, também, tão distintas.

A visitante era de uma beleza exótica. A pele, em palidez e textura, lembrava, de fato, as imagens míticas e consagradas em livros seculares de mulheres tão belas, quanto profanas. Ela intimidava. E não era apenas pelas vestes sofisticadas que encobriam o corpo esguio e alto: era, sobretudo, pelo queixo erguido, como se, a todo instante, tivesse em vista um alvo tão previsível quanto fácil. Os cabelos lisos e escuros escorriam até os ombros em contraste com o tecido alvo e leve que adornava o colo, de curva suave e decote discreto. O azul da íris despontava de forma fulgurante por entre o rímel escuro e os cílios longos. O olhar desconcertante, firme, semicerrado.

Manuela, que sempre se sentia à vontade com a beleza sem esforço que possuía – usando roupas simples, despida de artifícios e maquiagem, atraindo os olhares de todos graças ao rosto bem moldado, que ensaiava ângulos perfeitos por entre os cabelos castanhos, que pesavam até o meio das costas, onde anelavam –, estranhamente, sentiu-se em desconforto. Os olhos amarelos, sempre tão elogiados, pareceram, num repente, perder força e encanto diante do azul aveludado.

As duas definitivamente contrastavam e não apenas em cores: em modos, em moldes, em armas. A estranha valia-se do silêncio, Manuela valeu-se das palavras:

- A pintora não está, mas, se a senhora quiser, posso mostrar-lhe sua arte – ofereceu-se, como se assim justificasse a pressa com a qual havia interpelado os dois antes da entrada.

E a estranha logo a dispensou, com o queixo erguido desde sempre e certamente não ao acaso:

- Talvez seja mais conveniente voltar outra hora.

Percebendo a relutância da visitante, Manuela disse-lhe que ficasse à vontade e, tentando disfarçar o efeito que a estranha lhe provocava, sentindo-se um tanto quanto aturdida, fez menção de dar as costas. Mas, antes, foi interpelada:

- Você é assistente de Laura?

Sem ponderar muito a resposta, Manuela foi direta e franca:

- Não. Sou namorada.

Por um segundo, Manuela pensou captar nos olhos de veludo algum espanto, mas, se houve, foi muito bem reprimido e abrigado. Sem mais palavras, a mulher voltou-se novamente à porta, deixando claro que havia reconsiderado. Ficaria para ver as obras.

Manuela, também economizando palavras, circulou por todos os quadros, limitando-se a dar os nomes de cada um, com esforço sobre-humano. Estar perto daquela mulher a deixava tonta e o significado daquela constatação ela nem queria perquirir. Não ali. Não naquele instante. Continuou a apresentar nas aquarelas as cores que, dentro de si mesma, se misturavam, sendo ilimitadas as molduras do espanto.

Nunca antes havia sentido aquele temor reverencial diante de um olhar, o mesmo que a visitante, naquele momento, lhe lançava. Havia uma interrogação na expressão da mulher que a fitava e que estava, justamente, diante do quadro onde flores vermelhas disputavam espaço. Captando a pergunta silenciosa, Manuela esclareceu. Eram flores de cerejeira, suas favoritas.

Pela primeira vez a visitante ensaiou um ar de riso e disse que de há muito achava aquelas flores de uma beleza ímpar, exatamente por serem tão simples, tão singelas. Desconhecia, entretanto, a procedência delas. Não imaginaria nunca que cerejeira fosse a árvore da qual brotavam.

Respirando fundo, Manuela olhou-a nos olhos, enquanto tentava conter o coração. Fingindo calma, aproximou-se um pouco e lhe elucidou em voz suave:

- Sakura... é este o nome da flor – e como pela primeira vez viu algo além de frieza no olhar de veludo, continuou – os japoneses a associam à vida do samurai, que, apesar de toda sabedoria, disciplina e coragem, é tão efêmera quanto a flor de cerejeira, que a qualquer instante pode se desprender da árvore.

No final da explicação, as duas, novamente em silêncio, se olharam. Desta feita, entretanto, de forma mais detida, misturando com menos receio o amarelo e o azul. E, naquele segundo de trégua compartilhada, experimentaram a leveza das pétalas desprendidas. Sorriram, talvez pela consciência mútua do quanto era, deveras, efêmera a vida.

Só então o jovem, de aproximadamente quinze anos, se fez notar por Manuela, que até então havia tido olhos apenas para a mãe. Diante da aproximação gradativa entre ambas, o rapazinho inquietou-se, visivelmente contrariado, o que atraiu a atenção da fotógrafa.

Deslocando o foco, logo os olhos amarelos emolduraram a imagem do jovem, preenchendo-a de detalhes e significados. O menino certamente sofria de algo semelhante a autismo. Foi o que constatou surpresa, lembrando-se imediatamente do tio.

Apiedando-se da história, a observadora pontuou: talvez as barreiras naturalmente impostas pela mulher que trazia a cor do veludo nos olhos houvessem sido erguidas não por capricho, mas pela dor.

Porém, antes que pudesse retomar o curso das imagens, focando novamente a daquela que ainda não tinha nome, Manuela foi impedida.

Dando as costas, a estranha agradeceu secamente e partiu, seguida do filho, sem fazer menção de olhar para trás.

Depois daquele encontro, Manuela, que já vinha submersa numa realidade um tanto quanto inusitada, como se os sentimentos e cenários se confrontassem a todo instante com a névoa dos sonhos, passou a desejar vivenciar tudo aquilo que a entorpecia em carne, distante da mistificação própria das miragens.

Almejou, antes e acima de tudo, outro encontro com a mulher sem nome, mas tão bela! A chamaria de Isabella! Foi a idéia que cintilou nos olhos amarelos que pareciam fulgurar mais e mais a cada lembrança. E, assim, mais uma vez acendia a promessa feita à mãe.

Mas os dias se passavam sem notícias. Cada vez que o Recanto das Artes era visitado e alguém atravessava a porta, Manuela imediatamente buscava a cor do veludo nos olhos de quem entrava. Mas nada. Ela não vinha e Manuela ficava. A esperança a prendia.

E assim, passou a fotografar a cidade não mais a procura das imagens queridas por Júlia. Buscava as próprias imagens. Em todos os cenários, em todos os rostos, em todos os planos, no reflexo de cada espelho d’água, à margem do Lago das Ilusões e dentro das ilusões criadas por si própria, era Isabella que buscava. E a cada foto, a ausência de vestígios. O enigma, escapando das molduras, ampliava-se. Em nada e em ninguém se revelava o paradeiro da desconhecida.

Laura estranhava o afastamento da namorada, mas não mais a questionava. A contrariedade, entretanto, podia ser vista nos quadros que, a cada dia, tornavam-se mais escuros, mais sombrios.

Até que, em mais um entardecer do outono, Manuela permitiu-se esquecer das demais estações do ano. No alpendre da varanda que se punha defronte ao Recanto das Artes, os olhos amarelados, retomando antigo hábito, observavam as folhas de mesma cor espalhando-se pelo quintal. Como se quisesse voltar no tempo, numa decisão tomada em silêncio, passou a varrer o chão, tentando conter a audácia das folhas que insistiam em dançar ao compasso do vento.

Foi quando, repentinamente, ao estancar da ventania, Manuela também estancou. Olhando para a entrada da casa, piscando repetidamente os olhos, enquadrou a imagem da mãe e do filho que, novamente, a visitavam. Em meio ao barulho do riacho e do mensageiro dos ventos, que segundos antes tilintava arredio, pensou ter ouvido Veludo Azul.

A visitante, a cada passo vencido em direção à expectadora, se tornava mais real, mais concreta, mais bonita. Boquiaberta, Manuela erguia a vista e captava cada nuança daquela presença tão inusitada. Depois de percorrer o corpo esguio que sobriamente se amoldava num vestido de cores claras, buscou o azul de veludo nos olhos da desconhecida. Mas, para sua surpresa, um par de óculos escuros e elegantes encobriam o olhar que buscava.

Com o queixo erguido, o nariz naturalmente empinado, afilado, a visitante chegou à soleira do terraço. O vento havia desalinhado os cabelos escuros e lisos, o que fez com que a moça, suavemente, deslizasse os dedos finos repondo os fios nos devidos lugares. Com poucos gestos, dissipou da face de angulação invejável qualquer ar de casualidade. Ela era séria e contida. E assim ofereceu a Manuela um “boa tarde”.

O filho, que caminhava no percalço da mãe, nos segundos seguintes também alcançou o terraço. Seu olhar, entretanto, mantinha-se baixo, como se buscasse no solo algo perdido ou analisasse algo recentemente encontrado.

Com poucas palavras, a visitante explicou ao que vinha. O rapaz, que era de pouco interesse pelas coisas, havia demonstrado raro gosto pelo Recanto das Artes. Inusitadamente, havia chegado a relembrar das telas, demonstrando desejo de retornar ao lugar. A mãe, cedendo ao pedido, novamente ali estava.

Sorrindo, Manuela disse-lhes que seriam sempre bem-vindos. E pela primeira vez o menino ergueu a vista e dignou-se a olhá-la, o que pareceu surpreender a mãe, que se manteve, nos minutos vindouros, absolutamente calada.

A fotógrafa disse que se sentissem à vontade e, contrariando o desejo de ficar perto, abriu as portas do Recanto das Artes, fazendo menção para que entrassem, enquanto ela permaneceria ali, na varanda, findando a tarefa de acalentar as folhas arredias que rodopiavam no sentido horário e anti-horário. Sentia-se atônita demais diante daquela mulher e bem sabia que a melhor opção era manter-se distante.

Entretanto, a visitante, antes de atravessar a porta de vidro que lhe era aberta, pediu:

- Mostre-me novamente as telas. Fale-me de cada uma delas. Não fosse por seus olhos, jamais teria conhecido as sakuras, tampouco a simbologia que trazem em cada pétala.

Manuela prontamente cedeu. E assim, enquanto as folhas insistiam em rodopiar pelo quintal, as duas circundavam por entre os quadros. A fotografa comentava as cores, os traços, as imagens, enquanto a estranha assentia com a cabeça diante de cada detalhe elucidado, reproduzindo os desenhos feito miragens nos olhos, que dos óculos já haviam sido libertos.

O jovem, por sua vez, parecia inteiramente absorto, não nas telas, mas na voz, nos gestos, no andar de Manuela, que, definitivamente, possuía carisma e candura, um misto entre a timidez e a desenvoltura, a simpatia e a introspecção.

A tarde, como se corresse nos ponteiros dos minutos, rapidamente se foi. Várias horas haviam se passado e Manuela viu-se na iminência de despedir-se da desconhecida mais uma vez. Dela, não tinha sequer o nome, quiçá a esperança de um novo encontro. Em meio aos poucos diálogos que travaram, Manuela havia comentado que a achava semelhante à Isabella Rosellini. Em resposta, obteve apenas um meio sorriso, um tanto quanto distante.

Ao circularem a última pintura, já inquieta, a fotógrafa arriscou:

- Disse-lhe tudo o que sabia sobre cada uma das telas e ainda não me deu sequer o seu nome. Vou ter que continuar chamando-a de Isabella?

Sorrindo-lhe, desta vez de forma ampla, a estranha pontuou:

- É um belo nome.

E antes que Manuela pudesse tentar dar continuidade ao diálogo, a estranha agradeceu polidamente pela atenção dispensada e outra vez se foi.

Mas, para a surpresa da que muito se lamentou diante da despedida, aquele tipo de visita viraria um hábito. E assim, no final da próxima e das outras tardes, Manuela passou a receber o jovem e aquela que, com graça, passou mesmo a chamar de Isabella.

E o destino, de modo surpreendente, parecia favorecê-la a cada detalhe, inclusive pelo fato de os horários de visita coincidirem com aqueles em que Laura fazia-se ausente, em suas longas caminhadas pela cidade.

Assim, no correr de dez dias, as duas mulheres já não eram tão estranhas. Aos poucos, Manuela falava sobre sua história. Como eco, Isabella, vez por outra, pontuava também sobre a própria vida. Nada muito pessoal, apenas comentários vagos permeando as narrativas.

Até que, finalmente, em uma das visitas, o assunto tornou-se menos superficial, mais intimista. As horas mais densas dentre as tantas que compunham as tardes, foram justamente as eleitas por Isabella para falar sobre o filho. Lucas, era este o nome do jovem que, naquele instante, punha-se distante das duas, observando as águas do riacho que cantava caudaloso.

De fato, como Manuela havia imaginado, o menino era autista. Foi o primeiro e único filho de um pai extremamente perfeccionista e de uma mãe recém formada, que abandonou a carreira não elucidada para dedicar-se ao menino.

O marido era um grande empresário no ramo de hotelaria. Dono de uma rede de hotéis bastante conhecida, passava a maior parte do tempo em viagens, o que exigiria da esposa dedicação integral ao filho.

Os ideais profissionais ostentados pela mãe, embora formassem um rol um tanto quanto vasto, não foram maiores e mais preciosos do que o amor que nutria pelo menino. E assim ela não hesitou: limitou sua vida e seus anseios a ser uma boa mãe. E, nas horas vagas – que frisou ser praticamente inexistentes – tentava ser também uma boa dona de casa, coordenando os afazeres dos inúmeros serviçais, que, afora o filho, eram suas únicas companhias. Mal via o marido.

Foram estas as derradeiras palavras articularas naquela tarde, encerradas com um sorriso incapaz de esconder a amargura evidente daquela que finalmente se desnudava. Era esta a realidade que há tantos anos vivia.

Manuela escutou a narrativa absolutamente quieta, calada. No final, respirou tão fundo quanto a que narrava. Em seguida, mais uma vez se despediram.

Entretanto, antes que Isabella se erguesse e desse as costas rapidamente, como de costume fazia, Manuela ergueu-se primeiro. Com dois passos largos, venceu a distância entre as duas cadeiras de balanço que as acomodavam na varanda. Pondo-se defronte à outra, com os olhos amarelos e profundos, fisgou os olhos azuis de veludo. E mais uma vez as duas respiraram fundo, enquanto Manuela estendia as mãos, resoluta.

Nos olhos azuis, pairou os tons da dúvida. Como se ponderasse o gesto, Isabella demorou alguns segundos antes de erguer também as mãos. Enquanto isto, o coração de Manuela – naquela espera fugaz, mas que parecia eterna –, como se estivesse suspenso por vibrantes fios de aço, pareceu estancar o compasso. E ela fechou os olhos, na espera do toque.

Mas antes que o enlace das mãos fosse possível, Lucas chegou ao terraço apressado, aturdido, agitado, articulando desgovernadamente uma série de palavras, todas, para Manuela, incompreensíveis.

Isabella prontamente pousou as mãos sobre o colo, fingindo calma, pedindo ao menino bons modos. Lucas logo se acalmou, enquanto Manuela, confusa, também baixava as mãos e dava as costas, buscando o ar que lhe faltava enquanto focava a paisagem, como se esta fosse capaz de atrair sua atenção e dissipar a frustração pela ausência do tão esperado contato.

Com a voz mais baixa do que a de costume, Isabella ensaiou a explicação. Lucas não permitia que ninguém a tocasse. Era esta a sentença, a pena que haveria de cumprir por toda a vida, mantendo-se sempre distante de todos para que o filho permanecesse próximo e calmo. Ela era dele, tanto quanto ele, dela. Estavam, para sempre, presos naquele pacto que exigia rigidez e abdicação.

Manuela não conseguiu olhar Isabella nos olhos. Manteve-se mirando a paisagem, tentando dissimular o impacto daquela anunciação.

Depois daquela tarde, nas demais a ausência se fez presente. Isabella não retornou ao Recanto das Artes, tampouco sua imagem foi captada por Manuela em qualquer lugar da cidade, por onde insistentemente a procurou.

O tempo de estada em Espelhos D`água escoava para o total desespero daquela que, há dias, havia guardado a máquina fotográfica. Manuela não queria mais fotos, queria fatos. Não queria mais imagens estanques, queria vida pungente. Queria Isabella de forma ardente. Queria acalentar aquela amargura que parecia fulgurar nos olhos de veludo azul. Queria resgatá-la daquela vida morna, como parecia ser também o desejo da outra.

Mas, em que pese o desejo pelo encontro, o desencontro parecia ser a tônica daquele amor. As realidades de ambas eram tão distintas quanto os próprios traços que marcavam os semblantes. Manuela era terrena; Isabella parecia etérea, distante. E, feito miragem, de fato, de dissipou.

Na véspera da partida, Laura e Manuela mal se falavam. O fim do relacionamento era um fato, embora ainda não houvesse sido pronunciado. Mas, em questão de dias, o seria. Era o que ambas previam. No dia seguinte deixariam Espelhos D’água e, naquela cidade, deixariam também as últimas esperanças de uma retomada.

Em Manuela não cabia nada além de Isabella e em Laura, não cabia nada além de mágoa.

Para fechar aquele ciclo, a pintora havia decidido realizar um evento para vender todas as telas. Daqueles meses, não queria ficar com nada. Venderia, ainda que por preços irrisórios, os quadros que haviam lhe custado tão caro. E mais: não queria nem mesmo o dinheiro. Doaria o que arrecadasse para o americano, dono do Recanto das Artes. Em contrapartida, pediu-lhe que investisse no lugar, dando aulas de pintura e música para as crianças da localidade que porventura se interessassem. Foi a forma que Laura anteviu de reverter todo o sofrimento daquele final de relacionamento em algo positivo. Era esta a sua vontade e o americano assentiu, com um misto de pesar e de boa-vontade.

E assim, na derradeira tarde vivenciada em Espelhos D’água, Manuela, em meio ao vernissage, experimentava o desalento do desenlace. Sabia que não voltaria a rever Isabella e era impossível deixar de constatar o quanto era irônica a realidade que a circundava: havia viajado para aquele lugar exatamente com o fito de resgatar as memórias de Júlia, inclusive as que levariam a mãe, caso viva estivesse, à sua amada. E, ao assim atuar, quis fomentar um reencontro. Entretanto, terminou por vivenciar justamente o inverso. E o mais inusitado: reencontro e desencontro tendo por protagonista alguém designada por “Isabella”.

Ademais, caso não tivesse sido tudo fruto de uma miragem inusitada, também espantava constatar que Manuela, assim como Júlia, havia visto pela primeira vez o grande amor de sua vida nas margens do mesmo lago, o qual talvez merecesse ter o título modificado para o Lago das Ilusões Perdidas, pontuou a fotógrafa com amargura e resignação.

E, como se não bastasse, coincidia ainda perceber que tanto a história vivenciada por Júlia, quanto a vivenciada por Manuela haviam sido estranhamente marcadas pelo autismo: a da primeira, em virtude do irmão que a fez mudar de cidade, aproximando-a assim de sua amada em época passada; a da segunda, em virtude de Lucas que, ao reverso do primeiro enredo, afastava Manuela de Isabella, num presente doloroso e inacreditável.

Seriam tantas coincidências objetos do acaso? Era o que, em silêncio e confusa, Manuela se perguntava.

Mas, no lugar da resposta, chegou a si um recado. Num bilhete escrito em letras que denunciavam pressa, entregue a Manuela por um meninote nunca antes visto, estava assinalado:

“Estou lhe aguardando do outro lado.”

Como assinatura, o papel estampava o nome “Isabella”.

Com o coração descompassado, Manuela estranhou a mensagem e a releu, entre vários piscares de olhos. Isabella referia-se a que lado? Só poderia ser o lado de fora!

Munida desta certeza, atravessou o umbral da porta de vidro que guardava o Recanto das Artes. Tomando a pequena estrada que atravessava o jardim, levando ao portão, ela respirava o tanto que podia, tentando acreditar na imagem que despontava logo adiante. Era ela, a sua Isabella, que estava de volta!

Ao atravessar o portão, Manuela estancou diante da outra, incrédula, com os olhos amarelos acesos de felicidade.

Isabella não disse uma palavra. Os olhos de veludo azul não eram os mesmos. Estavam avermelhados, circundados pela maquiagem borrada. Resoluta, a dona dos olhos estranhos abraçou-se a Manuela entre soluços e sem qualquer explicação.

Ao toque, a que era abraçada instintivamente lembrou-se de Lucas, que não deixava ninguém chegar perto da mãe, quiçá enlaçá-la. Mas, para sua surpresa, avistou por sobre os ombros de Isabella o jovem que, estático, encostava-se logo adiante numa árvore.

Acuado, o menino permanecia inerte, observando-as, esperando-as, compreendendo-as, como se, pelo menos para aquele momento, concedesse permissão.

Fechando os olhos, Manuela, aturdida, apertou o corpo esguio que se amoldava ao seu. Finalmente estavam próximas. Quis questionar o porquê daquele choro, daquele distanciamento, daquela volta! Mas supôs que teria tempo e o faria depois. Aquela definitivamente não era a hora.

Bem por isto, limitou-se a tentar, com firmeza, sustentar o corpo alvo e visivelmente fraco que estremecia de choro e que parecia a qualquer tempo ceder. Isabella estava abatida e pálida.

E, no abraço partilhado, muito se ganhou e muito se perdeu. Manuela captou as formas do corpo da outra: seios contra seios, ventre contra ventre, rosto contra rosto; experimentou a textura das vestes; o perfume da pele; a suavidade dos cabelos; o compasso do estremecimento que parecia mesclar prazer e desgosto. E, no roçar das faces, misturou-se quentura, frieza, lágrima, sorriso e saliva. Morte e vida enlaçadas.

Até que Isabella, apesar da presença do filho, perdeu os freios, os receios, o decoro. Como se roubasse aquele segundo da vida apenas para si, olhou dentro dos olhos de Manuela e, sem pedir permissão, passou a beijar-lhe o pescoço, deslizando no lóbulo da orelha a língua quente; eriçando, com a boca, os poros da que recebia os beijos e as mordidas; sugando no rosto de Manuela as próprias lágrimas, misturando-as à saliva.

Isabella estava em desespero, era tudo o que se sabia. E, com esta mesma ânsia, tomou a boca de Manuela com a sua, ambas já entreabertas de desejo. E os lábios, famintos, ávidos, se provaram, se sugaram, permitindo a dança entre as línguas, o pulsar dos anseios. O sal do choro e o doce da saliva em mistura que tonteou às duas, cada qual igualmente distante de suas fortalezas.

Até que todos os sentidos de Manuela tornaram-se entorpecidos e ela sentiu que desmaiaria, caso continuasse aquele beijo. Como se sentisse o mesmo, Isabella estancou e se afastou, visivelmente aturdida e corrompida pelo mesmo medo.

O único sentido que se fez alerta, naquele instante de embriaguez em que Manuela sentia-se imersa, foi a audição. E era veludo azul que parecia ecoar de dentro do Recanto das Artes, como se ironicamente servisse de tema para aquela despedida inédita.

E mais uma vez as coincidências povoaram aquele cenário que tinha por fundo, no descer da montanha, o Lago das Ilusões. E foi exatamente pela estrada que levava à margem que Manuela assistiu Isabella caminhar apressadamente, trôpega, em fuga, seguida pelo filho e talvez por assustadora culpa.

Quem poderia saber o que se passava dentro daquele corpo que, ladeira abaixo, seguia? Onde daria aquela trilha escolhida pela mulher que, de maneira misteriosa, na medida em que se aproximava do lago, desaparecia? Manuela, naquele instante, não soube responder.

E nem agora, naquele hotel barato e nada glamoroso, enquanto se punha defronte à amiga escritora, ambas sentadas sob o carpete acinzentado que encobria o chão frio do décimo sétimo, Manuela sabia responder.

E assim, finalmente estava encerrado o relato que serviria de presente para a outra. Que Fernanda, portanto, fazendo uso da ficção e do encanto tão patentes em seus contos, desse àquele enredo o desfecho merecido e tão esperado. Era esta “A Encomenda” feita por Manuela, expressão que poderia, inclusive, servir de título.

Sorrindo, visivelmente emocionada, Fernanda estendeu às mãos para a amiga, como se, naquele gesto, aceitasse o presente. E as duas, mais uma vez, se embalaram num abraço.

Quando se desvencilharam, respiraram fundo e se olharam de forma terna. Agora era a vez de Fernanda presentear Manuela com o inesperado:

- Vou sim viabilizar a continuidade dessa história, mas quero que ela trespasse as palavras. Hei de lhe dar de presente não o conto, mas o resgate: vamos atrás de Isabella!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

DE ONDE VENHO (Poesia)

Eu venho de outros planos,
Tantas andanças,
Alterando destinos
Venho dos tempos em que menino
Crescia em beira de rio
Mergulhando no riso
Correndo na grama
Brincando de se esconder
Talvez mesmo de si
Embaixo da cama
E a tudo isso se chamava infância
Eu venho de onde esta infância vinha
E, apesar de menina,
Tudo isto eu fazia

Eu venho de outras rimas
Ingênuas, pueris, vespertinas
Das que embalavam canções de ninar
Das que encerravam o entardecer
Das que tinham cheiro de cama forrada
De roupa felpuda e limpa
Das que tinham gosto de sopa quente
E beijo de mãe antes de dormir

Eu venho de outros postais
Dos que retratavam cadeiras nas calçadas
Adultos e suas prosas
Crianças e suas bolas
E a rua, a mesma rua de todos os dias
Acesa pelo amarelo dos postes
Forradas de terra batida
Eu venho dos postais que retratavam a vida
Simples, mas preenchida
A vida sempre viva
Apesar do morrer dos dias

Até que esta mesma vida
Perdeu-se de onde vinha
Molduras e dogmas
Falta de encaixe
Preconceito contra poesia
Mapas rasgados,
Planos corrompidos,
Rios transbordando medos escondidos
Tempo, tempo,
Infância se despedindo
As roupas encurtando as mangas
Novas roupas,
Novas rimas,
Pouco riso,
Canções de ninar distorcidas,
Fatalmente substituídas:
Som das boates,
Fumaça dos cigarros,
Madrugada afora
Vodka no lugar de sopa
Beijo de mulher e não de mãe ou de marido
Calçadas vazias,
Velhos e crianças dormindo
Retorno para a casa com o dia claro
Remorso, culpa, desatino

Dúvidas em família,
Perguntas em família,
Respostas em família,
Intolerância em família,
Tudo ou nada:
Nada!

Viagem,
Estudos,
Esforços,
Fracassos,

Viagem,
Estudos,
Esforços,
Vitória

Respeito que se readquire
Mãe, pai, irmãos que novamente lhe olham
E vêm que, apesar do roteiro diverso dado à história,
Continua-se sendo o que se era
E se vindo do mesmo caminho

Ainda hoje venho de outros planos,
Tantas andanças,
Alterando destinos
Venho dos tempos em que menina e menino
Precisavam e precisam ser felizes
Não importa como
Apenas quando:
Agora.

A ENCOMENDA ( Capítulo III )


CAPÍTULO III
A PROMESSA EMOLDURADA


Regressando das lembranças, Manuela, apenas ao ser tomada pela chuva, percebia a ironia da vida: finalmente chegava à cidade natal da mãe e em pleno mês de maio, mas, ao reverso do que Júlia relatara, não foi o sol quem a recebeu, tampouco a claridade irrestrita.

O dia estava nublado, assim como o interior daquela que, com pesar, consultava o céu, afogando a íris tão amarela quanto a da mãe nos pingos da chuva que, grossa, caia.

O povoado era realmente modesto, o que Manuela já esperava. Desceram do ônibus defronte a uma grande cancela, sinalizada metros antes com uma placa de madeira onde restava insculpido “Portal de Espelhos D’água”. Ali parecia ser o único acesso à cidade.

O Portal ficava no alto, ladeado por dois seculares Carvalhos, que podiam ser avistados desde o início da subida íngreme que se lançava ladeira acima. A estrada estreita que serpenteava por entre os montes, fazendo o ônibus erguer a poeira vermelha, própria do barro batido, desde os primeiros metros, causou um incômodo gélido nas mãos de Manuela. Ela realmente não sabia o que estava por vir. Na ânsia de reavivar em fotografias as imagens maternas, mal sabia o quanto reavivaria dentro de si.

Pois foi ao atravessar o chamado Portal de Espelhos D’água que a filha avistou, pela primeira vez, a imagem que a mãe deveria ter carregado dentro de si, por tantos anos, imaculada: os três montes extremamente verdes, onde a cidade parecia incrustada, pareciam disputar em cor com o azul claro do Rio São Francisco, que corria marejando a lateral dos montes, enquanto o mar, do outro lado e de azul mais escuro, se espalhava.

Os tons de verde e azul, misturados ao vermelho, amarelo, laranja e branco das pequenas casas, pareciam compor uma peculiar aquarela, rica em cores, em que pese à simplicidade das pessoas e das construções, tão singelas, quanto precárias.

A cidade havia sido estruturada de forma circular e alta, enquanto as estreitas estradas pareciam imitar rios que corriam para o mar, descendo os montes e indo se encontrar naquela que parecia ser a única praça. E era justamente beirando tal praça que despontava aquele que, incontestavelmente, deveria ser o Lago das Ilusões, logo pontuou a fotógrafa, ainda com a câmera nas mãos.

Entretanto, apesar de o relógio registrar as doze horas de um dia marcado no mês de maio, a ausência de sol, naquele dia nublado, inviabilizava o reflexo na água: a cidade, no lago, não se duplicava. Os pingos grossos de chuva maculavam a limpidez e quietude das águas.

Ainda assim, a simples claridade do dia viabilizava à expectadora a vista que, certamente, seria a responsável pelo nome da cidade: nas margens do São Francisco, graças à vazante, inúmeros bancos de areia fina foram erguidos e entre eles reluziam, apesar da chuva, as poças chamadas espelhos d’água. E a segunda foto foi tirada.

Com um sorriso estampado no rosto, Manuela virou-se para Laura e, depois do silêncio que havia perdurado por toda a viagem, as duas, finalmente, se falaram. Laura pontuou a beleza das cores do lugar, enquanto Manuela relatou os tons escuros da ansiedade: estar ali era a última homenagem que prestaria à mãe, tentando registrar pelos olhos de Júlia as melhores e mais saudosas imagens. Bem por isto, o peso da incumbência e, sobretudo, da emoção a fazia manter a mão firme com certa dificuldade. Estava trêmula e não queria reproduzir tal hesitação nas imagens.

Laura retribui o sorriso e, beijando a fronte da namorada, disse que se acalmasse. Teriam muitos dias pela frente e o tremor das mãos, assim como outros descompassos, haviam de ser sanados. Era esta a esperança que as movia, inclusive a que fez com que ambas, em pegadas firmes, dessem os primeiros passos afastando-se do portal, rumo à cidade.

Nos primeiros dias, ficaram na única pousada com a qual o povoado contava. Mas, da segunda semana em diante, decidiram: precisavam de um lugar mais aprazível para o descanso e mesmo para o trabalho. E diante da chance não havia porque recusar. O dono da pousada, um americano que havia se encantado com Espelhos D’água, foi quem anunciou: iria passar uns meses nos Estados Unidos e alugaria sua casa no povoado. Seria um prazer, por questões de afinidades, alugar para ambas.

Era um pequeno chalé adornado em madeira e vidro, que contava com um quintal preenchido com as mais variadas e exóticas plantas; uma pequena varanda, que circundava a casa, emprestando-lhe charme em forma de redes e espreguiçadeiras coloridas e displicentemente espalhadas; uma pequena sala de estar, rústica e mobiliada apenas no estritamente necessário; um segundo pavimento, onde havia um confortável e amplo quarto; e um terceiro ambiente, que ficava do lado de fora da casa.

E fora sobretudo em virtude deste terceiro ambiente que o americano ofereceu as duas a casa: no final do quintal, por entre arbustos e árvores, à beira de um pequeno riacho que roubava suas águas do São Francisco, funcionava uma espécie de ateliê para pintura, leitura, música e outros ramos da arte. Era ali o recanto mais precioso do mundo. Segundo o americano, o único lugar onde, apesar de revirar os mapas, havia encontrado a paz para sua alma inquieta e desorientada. E foi justamente após esta frase que Manuela pareceu decidir-se. Olhando para Laura, questionou tão resoluta quanto direta:

- Vamos olhar a casa?

E somente no dia seguinte, diante da porta de vidro que dava acesso ao local designado pelo dono como Recanto das Artes, Manuela teve a dimensão do acerto de sua escolha. Nenhum lugar seria mais perfeito para inspirá-las.

A transparência do vidro, mesmo antes da entrada, anunciava o aconchego do lugar. O piso de madeira escura, coberto por tapetes imensos e estampados, restava preenchido nos recantos com almofadas. Nas paredes, intercalavam-se janelões e estantes, estas repletas de livros dos mais variados. Num dos quatro cantos da sala, tomando as formas de uma oca, com a parede curva e o teto rebaixado, o americano havia instalado um potente som e algumas caixas que, ao ensejo da acústica proporcionada pelo formato do espaço, emprestava a qualquer melodia a perfeição de valsa. Antes da entrada da aludida oca, havia também um clássico piano de cauda. Além de todas as nuanças rapidamente captadas, Manuela vislumbrou ainda uma porta que dava acesso a um quarto escuro, provavelmente onde o proprietário revelava as fotos que, aqui e acolá, encontravam-se espalhadas. Por fim, numa parte do ambiente onde o teto havia sido feito de vidro, restavam dispostos alguns tripés e aquarelas iluminadas naturalmente pela claridade do vitral.

E todo o cenário foi captado pelas duas ao som do riacho, que, em plena harmonia com o ambiente, emprestava-lhe trilha sonora própria, composta ainda pelo tilintar de um mensageiro dos ventos, que dançava dependurado na porta. Aquele era o mais genuíno e literal Recanto das Artes, logo ambas pontuaram em uníssono, tomadas de entusiasmo. Na mesma tarde, assinaram o contrato. Passariam um mês em Espelhos D’água.

E logo na primeira noite, depois de quatro anos, enquanto observava as estrelas que despontavam na janela do quarto, Manuela resgatou a antiga sensação de estar em casa.

Dali em diante, voltou a fotografar como de há muito não ousava. As imagens, que tracejavam em cores as ruas, as casas, as gentes, as miragens, os espelhos d’água, pareciam conter também os sons, os cheiros, as texturas, os sabores das tardes pelas quais, vagarosamente, passeava, sempre de mão dadas consigo mesma, como se, internamente, também passeasse.

E assim, introspectiva e em retrospectiva, ela crescia enquanto andava e fotografava, retornando à infância, relembrando Júlia, suas lições, sua coragem, tentando imaginar, pelos olhos da mãe e pelo que, dela, conhecia, quais os lugares da cidade que teriam lhe servido de cenários, marcando os passos de sua jornada.

Aos logo dos dias, ousou ainda mais e, depois de muito ponderar, decidiu ir ao encontro de algumas pessoas que conheceram seus familiares. E assim, dedicou algumas tardes para escutar os amigos de infância de Júlia. Foi quando, pela primeira vez, ouviu histórias sobre os avôs e o tio, Bianor, todas povoadas de graça e peculiaridades.

Na seqüência das descobertas, visitou e registrou em fotografia as imagens da casa onde Júlia nasceu e morou até sair da cidade. E, neste passeio, foi acompanhada de Dalva, a melhor amiga de Júlia, sua grande companheira nas infindáveis aventuras, desde a infância à adolescência, em Espelhos D’água.

E qual não foi a surpresa da filha ao descobrir que a tenda onde a mãe esculpia desde criança havia sido mantida, marejando o Lago das Ilusões, exatamente como a artista tinha deixado. E lá, segundo a melhor amiga da escultora, os moradores da cidade haviam construído algo semelhante a um modesto e rústico espaço cultural em forma de singela homenagem. Emocionada, Manuela decidiu: visitaria e fotografaria o lugar na próxima tarde.

E o dia seguinte não tardou a chegar. Consultando o relógio, os ponteiros marcavam doze horas. A chuva, finalmente, havia ensaiado uma trégua naquela tarde. O sol, ousado e forte, pontuava o meio do céu, quanto Manuela começou a caminhada, descendo a ladeira principal que dava acesso ao Lago das Ilusões. No calendário, ainda lia-se “maio”.

Mas, mesmo antes de alcançar a meta, ao longe, a fotógrafa avistou a cidade duplicada no reflexo da imagem que, feito mágica, mergulhava nas águas. Sem titubear, dali mesmo, do alto de onde estava, eternizou, num click quase inaudível, a miragem através da máquina.

Com o corpo suado e a mente confusa, em alguns minutos, chegou à beira do lago. Mas era preciso continuar o percurso. A tenda mantida em homenagem à mãe, no compasso do vento, vacilava, erguendo-se colorida do outro lado da margem. E, com o coração apertado, a filha trilhou o caminho em forma de meia-lua.

Manuela não sabia definir o motivo, mas sentia-se um tanto quanto estanha. Apesar da claridade do meio-dia, a angústia que carregava a mantinha escura. Respirando fundo – menos por cansaço, mais por desgosto –, relembrou que fora exatamente à beira daquele lago que Júlia viu, pela primeira vez, seu grande e único amor, o mesmo que a fez desejar de forma tão ardente, antes da morte, retornar àquele reduto.

De cabeça baixa e o espírito pesado, a moça deu mais alguns passos e, antes de chegar à tenda, estancou. Uma sensação inquietante de estar sendo seguida fez seu estômago gelar e Manuela, lentamente, se virou.

Enquanto erguia a vista, sentindo os poros arrepiarem-se, avistou, do outro lado da margem, exatamente de onde havia partido, uma mulher de beleza estonteante, estática, pálida e que, apesar do calor da tarde, trajava um vestido longo e de veludo azul.

Apesar da distância, o azul dos olhos que a observavam, como se a cor do tecido imitassem, despontava de forma intensa e estranha. E Manuela, com o coração batendo em sobressalto, também permaneceu imóvel, como se estivesse no aguardo de uma anunciação.

Mas, ao contrário do esperado, ao redor e dentro de Manuela fez-se o silêncio. O sol, repentinamente encoberto por uma nuvem, arrefeceu a intensidade. O dia, de forma astuta, foi roubado em sua claridade. Escureceu.

Os olhos amarelos, nos segundos vindouros, não conseguiam desviar o foco e, atordoados, prenderam na íris a imagem da mulher que mais parecia uma alucinação ornada de sonho e não de carne.

No compasso da tarde que escurecia, os olhos amarelados também escureceram e Manuela perdeu as forças e o tino. Desmaiou.

Quando acordou, sentiu imediatamente o cheiro de flores, mas não de flores quaisquer. Eram de cerejeira, suas favoritas. A fronte latejava e, ao passar as mãos pela testa, colheu o vermelho. Era sangue que timidamente vertia. Estava deitada à margem do Lago das Ilusões com a cabeça suavemente apoiada sobre um encosto que ensaiava ares de almofada. E nem foi preciso tocar o tecido para sabê-lo o mais genuíno veludo azul.

No lago, não mais se duplicava a cidade. Duplicava-se a lua, que ia alta e alheia ao susto da que despertava. Com passos trôpegos e rápidos, Manuela, ainda sem acreditar no que vira, rumou para casa, deixando o tecido azul a flutuar sobre a água.

Não ousou contar o ocorrido a Laura. Dentre vários motivos, sabia que a namorada riria diante da hipótese de “assombração”. E, do ponto de vista de Manoela, aquela história não poderia jamais assumir ares de piada. A imagem captada, fosse ela fruto de miragem ou da visão, certamente teria sido interpretada por Júlia como a reprodução fidedigna de sua amada. Logo, não era passível de contestação, muito menos de graça. Bem por isto, a filha guardaria aquele acontecimento como um valioso segredo, algo inusitado que certamente não teria maior repercussão. Com este pensamento, chegou menos aflita em casa.

Naquela noite, sem sono, Manuela resolveu atravessar as horas no Recanto das Artes, revelando as fotos tiradas durante a tarde. Em contraponto ao silêncio que parecia querer alongar a madrugada, pôs para tocar a melodia que tanto lhe lembrava a mãe: Veludo Azul. Logo à música misturou-se o som de chuva.

Porém, antes que a melodia fosse encerrada e o relógio iniciasse outra volta, anunciando o dia primeiro de junho em doze badaladas, mais uma vez Manuela surpreendeu-se de forma absurda. Sob a luz vermelha do pequeno estúdio, confusa, colheu com as mãos trêmulas de dentro da água a última foto revelada. Daquela, definitivamente, não se recordava. Na imagem emoldurada, um tanto quanto embaçada e escura, se registrava a silhueta da mulher misteriosa à beira do Lago das Ilusões e duplicada à luz da lua.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo II )

CAPÍTULO II
VELUDO AZUL

O próximo destino, logo assegurou Laura, seria escolhido exclusivamente por Manuela, tendo em conta tão somente as paisagens que ela quisesse fotografar, ainda que ficassem fora do mapa. Foi esta a promessa.

E, com vigor, a pintora forçou um sorriso amistoso enquanto Manuela sentenciava: Queria fotografar no Brasil, precisamente uma cidadezinha litorânea e modesta perdida no Nordeste, onde sua mãe havia nascido e sido criada até os dezoito anos.

E a fotógrafa, diante da relutância, ainda que camuflada, da outra, logo justificou a vontade: antes de morrer, ouvira a mãe relatar – e com saudade extremada –, que apenas na cidade natal vira o sol brilhar com magnitude. Depois de sair de lá, em alguns anos, a vida havia se tornado inteiramente nublada.

Laura, que sempre tinha por alvo lugares exóticos e distantes, teve que baixar a cabeça diante da outra, que se mostrava, a cada instante, por demais resoluta: iriam passar alguns meses em Espelhos D’água, modesto povoado situado no litoral de Alagoas, que bebia beleza e serenidade na foz do Rio São Francisco, o qual desembocava claro e doce no Atlântico, em forma de águas mornas e cheias de força.

O vilarejo era assim conhecido por formar – tanto no mar, quanto no rio que os marejava –, sobretudo nas épocas de vazante, verdadeiros e cristalinos lagos, que despontavam encravados por entre os bancos de areia fina e alva, onde as águas eram temporariamente estancadas. No brilhar do sol, tais poças terminavam por refletir feito espelhos.

E naquele modesto vilarejo, a transparência das águas e plenitude do sol eram tão intensas que, em meados de maio, quando o maior dos lagos se formava, chegava a refletir-se nele, depois das doze badaladas que marcavam o meio do dia, a cidade inteira, já que as casas se erguia em plano mais elevado, galgando espaço em três montes verdes.

E era naquela época do ano, especificamente ao meio-dia, que os moradores se vangloriavam, dizendo que o pequeno povoado duplicava-se em imagem e importância. Bem por isto, tal poça era designada, com graça, como sendo o Lago das Ilusões, tamanho seu poder de refletir a realidade alta na baixa formada pela água represada, verdadeira miragem tão bela, quanto traiçoeira e enigmática.

A filha prometera à mãe, antes de esta falecer, que a levaria para revisitar Espelhos D’água, mas não o fez. Não houve tempo. E agora, movida pelo remorso, em consideração à memória de Júlia, eternizaria por meio de fotografias as lembranças que a mãe não pôde reavivar antes de morrer.

Júlia fora uma mulher peculiar em tudo. Apesar de haver nascido em uma família de pescadores, desde pequena nutria gostos considerados sofisticados em meio ao seu povo. Enquanto as meninas que tinham a mesma idade aprendiam a bordar as rendas confeccionadas na região, ela interessava-se pelo barro. E assim, introspectiva e astuta, modelava formas e imagens, mesmo sem antever qualquer utilidade, mas que logo começaram a ser admiradas pelos turistas e facilmente vendidas, sobretudo por tal arte advir de uma criança de oito anos.

Aos poucos, a venda das peças passou a ser a fonte de renda dos pais, responsável, inclusive, por viabilizar o início do tratamento do único irmão, que sofria de mal até então desconhecido. No correr dos anos, souberam-no autista e apenas após o diagnóstico do psiquiatra tal palavra passou a compor o vocabulário da moça.

Na época, Júlia já contava com dezoito anos e, com o fito de cuidar do irmão a quem tanto amava, mudou-se. O convite adveio de uma jovem inglesa, que também era artista nata, e, visitando o povoado, ficara deveras impressionada com a habilidade da outra.

O encontro entre os olhares de ambas foi algo inusitado. Júlia, que possuía olhos amarelados, os detinha fixos, baixos, enquadrando o barro; Isabella, que tinha os olhos de um intenso azul, os detinha no Lago das Ilusões, o qual, naquela época do ano, já cintilava sob o sol de meio-dia, duplicando enigmaticamente a cidade e margeando a tenda onde a artista costumava esculpir e expor. Num desviar de foco, ambas se viram e o amarelo, num interesse recíproco, misturou-se ao azul. Daquele misto de cores, mesclou-se também algo indefinido, responsável por tudo que as aproximou.

Em uma semana, as duas moças se conheceram e se reconheceram em tanto, que mais tempo não foi preciso: Isabella fez o convite que Júlia prontamente aceitou. Foram, então, a artista e o irmão, para o Rio de Janeiro, onde a jovem inglesa os hospedou.

A moça, de família abastada, morava com os pais no Brasil desde criança e não foi preciso muito para que o casal aceitasse ofertar abrigo a Júlia e Bianor. O pai de Isabella era embaixador e a mãe, de há muito, envolvia-se com causas sociais e de caráter nobre, motivo, inclusive, de terem escolhido o Brasil como norte. Afinal, bem sabiam: apenas no terceiro mundo poderiam genuinamente servir como salvadores de tantos que, sol a sol, definhavam sem sorte.

E foi na casa imensa, de muros esculpidos em aço e jardins que lembrava os suspensos há séculos na Babilônia, que a jovem oriunda da família de pescadores lançou-se ao mar de seus maiores sonhos.

Os pais de Isabella logo passaram a tratar Júlia como filha, assim como Bianor. E a moça, que até então mal havia estudado, logo fez um intenso supletivo. Em poucos anos passou a cursar artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, enquanto o irmão tratava-se com os melhores profissionais da Cidade Maravilhosa, que os acolheu com todo o esplendor.

E assim o tempo foi sendo virado no calendário, enquanto Júlia atingia suas metas e traçava tantos outros planos, todos acompanhados de perto por Isabella. Ambas estavam no auge da vida e dos sonhos e, mais do que irmãs, eram amantes, muito embora tal nuança não fosse captada pelo olhar dos outros.

Entretanto, não fugindo à regra dos frágeis segredos, este também foi descoberto. Transtornados, John e Vivian receberam nas mãos uma carta anônima, acompanhada de fotos das duas moças numa seqüência de atos que nada tinham de fraternos.

Num rompante pactuado, os dois ingleses, entendendo aquele elo como uma degradante e inconcebível traição, não tiveram dúvidas em tomar a decisão. Em menos de uma hora, Júlia atravessava os portões da mansão levando tão somente o remorso. Ela própria sentia-se traidora e, bem por isto, incapaz de reivindicar qualquer tipo de compreensão ou esboçar tentativa de amenizar o transtorno.

Isabella, por sua vez, igualmente atordoada, não teve forças para lutar contra os pais, tampouco para sair de casa e lançar-se na vida com a outra. Com os olhos azuis violetas escapando pelo aço dos portões, ainda mais acessos pelas águas, ficou.

Daquela seqüência inesquecível de descobertas e fatos, o único poupado foi Bianor, que, trancado em seu próprio mundo, devido à própria enfermidade, nele permaneceu, sendo-lhe inteiramente indiferente a presença ou ausência da irmã, a constância ou inconstância do tratamento ofertado, a estada num imenso aposento ou num quarto decadente de uma imunda pousada, onde dormiria Júlia naquela e nas próximas noites.

E assim os irmãos se separaram. As amantes se separaram. E o sol, na vida de Júlia, se apagou.

Em alguns anos, a moça já não conseguia viver da arte. Depois de inúmeras tentativas de emprego, passou a trabalhar como garçonete em uma boate e, dentro em pouco, com o dono de lá se casou.

Manuela, em pouco tempo, nasceu. Já nos primeiros anos de idade, era capaz de identificar a infelicidade da mãe, que logo se tornou dependente de antidepressivos. Do pai, a criança tinha poucas lembranças. Aliás, da infância lembrava-se tão somente do quanto Júlia chorava a cada final de tarde.

Em meio às parcas imagens do passado, Manuela recordava-se especificamente de uma noite nada tranqüila e que preferia nem tê-la como relembrada.

A criança dormia sossegada quando abruptamente despertou ao som de pancadas advinda do quarto dos pais. Assustada, depois de somar alguma coragem, a menina, pé ante pé, atravessou, no escuro, a sala. Diante do quarto, estancou. A porta estava entreaberta e a mãe continuava imóvel, deitada. Depois de procurar pelo pai, sem vê-lo em qualquer parte, silenciosamente, entrou.

Com o olhar fixo e o rosto ferido, Júlia assistia a um filme. Blue Velvet, em português Veludo Azul, era este o título. A menina jamais iria esquecer daquele nome pronunciado pelos lábios maternos e ensangüentados.

Em estado de estupor, como se estivesse inteiramente sedada, a mãe apontava para a criança a atriz, dizendo-lhe o quanto a considerava bela e, em consonância com tal atributo, a moça chamava-se Isabella... Era Isabella Rossellini quem compunha a tela.

E ao som da música que levava o mesmo nome do filme, a criança assistiu a mãe chorar até adormecer, como se estivesse deveras tomada de dor. Enquanto isto, o enredo transcorria absolutamente incompreensível aos olhos da criança que permanecia insone, parecendo-lhe, a cada segundo, mais denso e estarrecedor.

Depois daquele episódio, Manuela nunca mais viu o pai. Cresceu apenas com Júlia, que, a duras penas, tentava esconder dos olhos tão amarelados quanto os próprios, a dor.

E as duas tornaram-se grandes amigas. A menina aprendia dia a dia a reconhecer no mundo as imagens mais expressivas, todas sinalizadas pela mãe que, sempre que se dignava olhar para fora de si, via algo de bom e que merecia ser consagrado em imagens, fossem fotografadas, fossem esculpidas.

E assim, apaixonada pela arte, Manuela dedicou-se à fotografia, enquanto Júlia retomava a escultura.

Já sem tanta dor a esconder, a escultora, depois de muito tempo, sentia-se novamente viva. Livre dos antidepressivos, nos finais de tarde, já sorria.

E foi exatamente num entardecer de outono, no mês de maio, que muito se elucidou. No alpendre da varanda que se punha defronte ao ateliê de ambas, mãe e filha, com os olhos amarelados, observavam as folhas de mesma cor espalhando-se pelo quintal. Numa decisão tomada em silêncio, as duas passaram a varrer o chão, tentando conter a audácia das folhas que insistiam em dançar ao compasso do vento.

Foi quando, repentinamente, ao estancar da ventania, Júlia também estancou. Olhando na direção da filha, resoluta, convidou: queria assistir novamente Veludo Azul.

Ao ver nos olhos da convidada um misto de receio e dúvida, a mãe prontamente justificou:

- Sinto que chegou o momento de lhe falar algumas verdades que não podem morrer sem cor. Bem por isto, recorro ao Veludo Azul.

E no mesmo quarto, as duas se sentaram próximas, só que, desta feita, ambas inteiramente lúcidas: Júlia não estava sob o efeito de calmantes; Manuela não mais possuía os olhos encobertos pelo véu da ingenuidade própria da infância. Foi quando a mãe contou a filha a história de seu grande amor.

A atriz, que também se chamava Isabella, era incrivelmente parecida com aquela que Júlia amaria por toda a vida. Bem por isto, a expectadora, durante anos, vira e revira o filme, que, naquele instante, novamente ocupava a tela. O enredo pouco importava, o desfecho pouco importava, importava-lhe a imagem da personagem, Dorothy Vallens, e a música. E foi embalada pela trilha sonora que Júlia, relatando paralelamente sua história, mais uma vez chorou.

Meses depois, o corpo ainda belo de Júlia foi tomado pelo câncer. Manuela, que já a admirava desde antes, diante da força e coragem demonstradas, passou a admirá-la com mais fervor.

Novamente, os olhos amarelos tentavam dissimular a dor que, de há muito, não habitava o corpo de Júlia. Ainda assim, a artista continuava a luta. Esculpia dia a dia, dando formas e vida a corpos de barro, enquanto o próprio definhava, perdendo peso e ganhando angústia.

Nos derradeiros dias, a mãe fez um pedido à filha: queria visitar Espelhos D’água antes de partir. Ali havia sido o local onde o sol abençoara-lhe a vida, clareando o cenário no qual os olhos amarelados misturaram-se, pela primeira vez, aos olhos de intenso azul. Desejava passear no mês de maio e ao meio-dia nas margens do Lago das Ilusões, onde a realidade podia ser duplicada em tonalidades ímpares. Quem sabe assim reveria, nem que fosse no durar do meio-dia e mediante uma miragem engendrada pela saudade, seu grande amor?

Mas, antes de ter o pedido realizado, a mãe despediu-se da filha. E era novamente outono, quando os olhos amarelos cerraram-se ao som de Veludo Azul.

domingo, 21 de junho de 2009

A ENCOMENDA (Capítulo I)

CAPÍTULO I
O RELATO
Décimo sétimo andar. Ali estavam. No final do corredor de um hotel barato e nada glamoroso, sobre o carpete acinzentado que, insistente e sujo, retirava parcialmente a frieza do solo, as duas, finalmente, se sentaram, uma defronte à outra.

Após um longo abraço embalado pela saudade, olharam-se até se ver mutuamente refletidas, uma na visão da outra. Era uma brincadeira tola que sempre repetiam, como se apenas assim a saudade se compartimentasse e elas coubessem dentro de si, acalmando os corações que batiam forte a cada reencontro.

Somente depois de respirar fundo por várias vezes, como se, desta forma, tentasse acomodar pouco a pouco o entusiasmo que a tomava, a narradora iniciou o relato que, naquele ano, ofereceria de presente à amiga escritora.

Há tempos não se viam e, sempre que se reencontravam, faziam valer o antigo pacto: ofereciam, uma a outra, um presente inesquecível. E, para aquele ano, a amiga que, atualmente, morava no Rio de Janeiro, ofertava à que morava em Salvador o enredo que serviria para um conto.

Mas, antes da primeira frase do relato, uma ressalva: aquela história era por demais preciosa e, infelizmente, restava inacabada. Bem por isto, estava sendo oferecida à escritora para que esta, por meio de sua arte, desse à trama o desfecho que não houve.

E assim, munida desta necessidade, a narradora começou a mexer nas gavetas de sua memória, retirando de lá as mais marcantes imagens e frases daquela que, não fosse a crueldade do acaso, teria sido uma grande história de amor.

Enquanto os pingos grossos de chuva pareciam ser raivosamente arremessados das nuvens, a que olhava para o alto sentia as pupilas se dilatarem em meio à íris amarelada que, enfrentando o céu, buscava o sol em meio aos últimos vestígios de claridade que ainda acendiam aquela tarde nublada.

Em verdade, dentro de si, a dona dos olhos amarelos também procurava a luz e de há muito não encontrava. Com uma imensa mochila nas costas, o peso que mais fazia seu corpo pender era o das nuvens escuras que pareciam existir, de forma quase palpável, em seu íntimo. Ali elas também se aglomeravam e a tumultuavam.

Quatro anos haviam se passado e continuava se sentindo uma forasteira em qualquer cidade que chegasse. Definitivamente, ao contrário de Laura, havia esquecido a sensação de estar em casa, tanto tempo fazia que assim não denominava qualquer lugar. E, a tal ausência, por mais que o tempo passasse, simplesmente não se acostumava.

A namorada havia escolhido aquela vida para si, inclusive pela profissão que desempenhava. Entretanto, onde quer que chegasse, dizia sentir nos braços de Manuela o abrigo que precisava. Mas, infelizmente, consigo não acontecia o mesmo.

Embora amasse Laura, os braços da namorada não lhe serviam de casa. Já não se sentia confortável com as intermináveis viagens que faziam, sem um ponto de apoio, sem um ponto de partida, sem um ponto de chegada, sem um mapa. Possuíam apenas as mochilas que, a cada dia, pareciam mais pesadas, e o objetivo de libertarem-se das convenções, das prisões, das amarras.

De início, é bem verdade, encantou-se com aquele estilo de vida tão genuíno, tão aventureiro, tão despojado, tão desprendido de matéria e de medos, que fazia Laura parecer uma mulher leve feito as diversas flores de lótus que possuía tatuadas nos braços e corajosa feito os tigres e dragões que lhe estampavam as costas.

As duas haviam se conhecido num vernissage realizado em Buenos Aires, para a qual Manuela havia sido contratada como fotógrafa. Uma das pinturas de Laura, como vinha ocorrendo com freqüência nos últimos anos, tinha sido premiada. O modelo que havia lhe emprestado a nudez, pousando para o quadro, logo após o recebimento do prêmio, apontou-lhe, com graça, a irmã, que era exatamente quem, naquele instante, os fotografava, tendo por foco mais a artista do que, propriamente, a arte.

Através da lente de sua câmera, Manuela logo percebeu o quanto aquela mulher que mirava era intensa e pouco se enquadrava em qualquer molde. A moça loira, de boca pequena e rosada, de cabelos curtos e eriçados, de jeans surrado e camiseta escura, era peculiar demais e não apenas pelas tatuagens que lhe adornavam todo o corpo. Era singular, sobretudo, por seus modos, por seus olhos, ambos firmes feito as mãos que, com precisão absoluta, traçavam os desenhos mais perfeitos e os dava vida através das cores.

Na sucessão das fotos e das tentativas de fazer caber em estreitos ângulos tão ampla personalidade, Manuela terminou por se aproximar da que fotografava. Sorrindo, estendeu a mão, enquanto o irmão as apresentava.

Ao toque, ambas souberam: aquele seria o primeiro de muitos outros. Laura, tímida e contida, mesmo a contragosto, ruborizou-se. Manuela, não perdendo um detalhe sequer do desconforto, provocou dizendo-lhe que, definitivamente, a artista ficava bem de vermelho.

E assim, na seqüência do aperto de mãos, logo marcaram um encontro com um objetivo já definido, segredado com graça pela fotógrafa, que, sem rodeios, disse querer encomendar um quadro com flores de cerejeira, suas favoritas, de preferência, tão vermelhas quanto Laura estava. E a pintora, que, aos poucos, retomava a brancura, no segundo vindouro tornou-se ainda mais rubra.

Durante cinco dias da semana seguinte, as flores de cerejeira foram gradativamente estampadas na tela daquela que, com as mãos geladas, ofereceu à pintora, no derradeiro dia de confecção do quadro, mais do que uma aquarela perfeitamente embrulhada para presente: sua admiração.

É que, durante as sessões de pintura, nas quais Manuela fez questão de estar presente, Laura, com sua habilidade, a cada traço delineado, dava vida às flores e, mesmo sem perceber, reavivava também, na seqüência de cada frase pronunciada sobre sua história, aquela que há tempos sentia-se morna.

Manuela escutava com atenção suprema os relatos das viagens da pintora e, com o coração já vibrante feito a tinta que estava sendo usada, desejou também experimentar daquela liberdade, galgar aquela coragem de lançar-se nas estradas em busca de conhecimento, deixando os planos em segundo plano. A moeda mais valiosa era o improviso, dizia-lhe Laura. Afinal, dele havia colhido as maiores virtudes e concretizado os mais valiosos sonhos.

No mês seguinte, já como namoradas, rumaram para a Etiópia. Lá fariam, em conjunto, uma sessão peculiar de quadros e fotos. E a paixão, ao menos naquela fase, era tanta que o quarto com cheiro de mofo parecia perfeito a cada final de dia, quando as duas finalmente se encontravam. Laura passava as tardes tentando diluir em cores a pobreza do continente africano, enquanto Manuela, fazendo uso de sua câmera, andava por horas e horas nas estradas precárias daquela cidade que, através das lentes, lhe parecia ainda mais estranha.

O resultado daquela primeira viagem foi simplesmente fabuloso e visto por todos os ângulos: desde o profissional ao pessoal. A relação fortalecia-se a cada dia, assim como a arte das duas, em fotos e cores.

Entretanto, na continuidade das jornadas, das cidades e, sobretudo, dos anos, a poeira dos quartos começou a incomodar Manuela, principalmente diante do autoritarismo de Laura, que não admitia despender o mínimo de dinheiro com qualquer regalia. E embora Manuela se irritasse, dizendo que lençóis limpos não poderiam jamais ser classificados como luxo, a namorada não cedia: tinha por princípio desprender-se da matéria ainda em vida e, dia a dia, praticava com afinco a ideologia, que, definitivamente, não era a da outra.

Manuela queria o mínimo de conforto e, munida deste desejo, depois de três anos de namoro, sugeriu que utilizassem parte das economias para comprar um pequeno apartamento no Rio de Janeiro, que serviria como ponto de apoio. Esta foi a desculpa elaborada. Mas, em verdade, a moça queria tão somente chamar algum lugar de “casa”: queria um cais para não se sentir eternamente feito barco sem rumo, deslizando ao sabor da corrente em meio ao nada. Estava cansada de desaguar sempre num desconhecido mar e não ter, no desalento das viagens, para onde voltar, tampouco onde ser ancorada. Já se sentia sem forças para continuar naquela tosca jornada.

Mas Laura, como esperado, não concordou. Planejara utilizar as economias para uma longa temporada na Europa e, mais uma vez, seu desejo imperou. Bem por isto, nos meses vindouros, o desencontro foi a tônica da estada. As duas, apesar de dividirem a mesma cama, pareciam dormir em hemisférios opostos. E, nesta seara, nem mesmo Paris, com todo o romantismo a cintilar nas luzes da Torre Eiffel, foi capaz de reuni-las num beijo, como Laura imaginou.

Por dias, mal se falaram. E assim, durante aquela última temporada, as pinturas confeccionadas por Laura pareceram menos vivas, enquanto as fotos tiradas por Manuela eram reveladas em preto e branco, apesar de tantas cores.

E assim, os tons pastel foram tomando conta da vida de ambas, enquanto o desencontro diluía a coloração das imagens que, outrora, habitavam os desenhos de Laura e as fotografias de Manuela. As duas, antes tão preenchidas, agora se sentiam desertas.

De volta ao Brasil, depois de tanto, tudo parecia pouco, inclusive o amor que nutriam uma pela outra. Mas o silêncio havia sido pactuado. Preferiam não falar sobre as ausências, limitando-se a discutir sobre o que restava. E restava-lhes a vontade de superar aquele desencontro, quem sabe, com uma nova estada?

E ali estava iniciado um longo relato.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

VERBOS (Poesia)

Ando num terreno incerto e úmido
São os verbos que se movem sob meus pés
Arenosos, perigosos, impuros
Atos, gestos, fatos
Nada é seguro
Tempos presentes e pretéritos
Conjugações irregulares,
Passos trôpegos,
Tropeços impunes

Busco nesse dialeto que ensaio com meus passos
a segurança das pontes,
a fortaleza das vigas,
a certeza dos calos,
que se formam pela repetição assídua do que se conhece:
os mesmos passos

Entretanto,
No lugar da firmeza, a ameaça
No lugar do concreto, a promessa
No lugar do sujeito, os tantos e incertos predicados
E sempre os verbos, os verbos e os verbos
Transitivos diretos,
Indiretos,
Bitransitivos,
Intransitivos

Enquanto eu,
Driblando o charco,
Salto de verbo em verbo,
Emudeço,
Erro,
Rezo,
Transito e não paro.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A CHEGADA (Poesia)

No silêncio de meu cansaço
algo repousa:
É a palavra que me falta
É o não-dito que me sufoca
É o que vai e não tem volta
É a voz que se faz pouca

Chegastes

E no silêncio de minha casa
algo acorda:
Partituras escrituradas
Violão que ganha corda
Ensaio de grupo e de alma
Música que volta.

segunda-feira, 30 de março de 2009

EM PAR (Poesia)

Dá-me tua mão
Atravessemos esta porta
No primeiro passo, o aconchego de um quarto nosso
Que existe além dos muros, além das rotas:
Cá conosco
Quando estou contigo

Dá-me tua mão
Façamos de nossa carne abrigo
Entrelacemos nossos corpos
Dentro de ti, dentro de mim hão de verter preciosos líquidos,
Hão de tilintar cálices de vinho,
Enquanto nossas bocas renascem em tantos beijos nossos

Dá-me tua mão
E gira esta chave
Façamos uso de cada trinco,
De cada porta,
Para que nada além da leveza que nos traga invada
E continuemos próximas

Dá-me tua mão e não tenhamos medo
Nossos desejos são pares, assim como nossos poros
E a cada eriçar de pele sentimos o quanto somos nossas

Estamos de mãos dadas finalmente
Caminhemos
E pouco importa a espera de outrora
E pouco importam os recipientes
Preenchamos nossas almas de presente
Conjuguemos nossos verbos no agora.

terça-feira, 24 de março de 2009

EM TEMPO (Poesia)

É tempo de leveza,
de sentir-se em campo aberto dentro de quarto trancado
de sentir-se de peito aberto em meio a leões enjaulados
e dragões capazes de gerar fogo

É tempo de enfrentar o novo,
de sentir-se livre mesmo de corpo enlaçado,
de pôr-se despida diante de olhos franjados
capazes de enxergar com nitidez as águas outrora turvas de meus vales

É tempo de estar em paz
É tempo de andar em pares
É tempo de estar no tempo em que a fome não se desfaz
Quer-se mais de tudo:
do beijo,
do cheiro,
do gosto,
do mundo

Quer-se mais dos ares:
asas que,
mesmo no compasso dos mais intensos ventos,
não perdem a mansidão da música,
a certeza do retorno,
o caminho do mapa,
a indicação da bússola,
a amplitude do vôo:
é tempo de amar de novo.

quinta-feira, 5 de março de 2009

O QUE NÃO VIVO (Poesia)

O que não vivo me espreita, me vigia
Espera meu desalento,
Meu desabrigo
Para assustar-me,
Afrontar-me,
Amaldiçoar-me,
Chamando-me de covarde,
Devassando-me a carne,
Lançando anzóis,
Alargando feridas,
Erguendo-me em guindastes,
Arrancando-me do que vivo

O que não vivo pesa
Em ausência, em vazio
Em silêncios, em suspiros
São estas suas unidades de medida
Que, ao menor descuido do pêndulo,
Oscilam
Reduzindo o que vivo em metragem,
Em valia,
Em sentido

E assim,
De ombros curvados,
O que não vivo, carrego
Vivo
Comigo.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

COM TANTO ESPANTO (Poesia)

Estou aprendendo
A suportar a falta de sono de olhos bem abertos,
A não sucumbir à falta de fome e à falta de afeto,
A não resistir ao que em mim se mantém desperto,
Tanto quanto tenho andado insone

Estou aprendendo
A não fugir da dor que dilacera,
A não temer o tempo que leva até passar,
Pois ela passa!
E quando passa, ainda resto

Estou aprendendo
A esvanecer as imagens de tantas fotos,
A entrar em casa mesmo quando esta me parece um desconhecido deserto,
A fechar todas as minhas portas
Sem medo de me sentir trancada:
É o que quero

Estou aprendendo
A ouvir músicas queridas distorcendo as lembranças,
Substituindo as metáforas,
Sublimando a saudade,
E a falta da outra voz me acompanhando

Estou aprendendo
Que nada disso era sabido,
Mas sobremodo necessário
E bem por isto aprendo
Com tanto espanto.

sábado, 24 de janeiro de 2009

ANTÍDOTO (Poesia)

Enquanto procuro antídotos
Para o veneno que eu mesma injeto
As curas me escapam pelas mãos
E a vida escoa pelos vãos,
Pelas fendas que não fecho
Quando não me vejo como quero
Quando me nego
Quando me puno
Quando fujo do que sou

E assim meu antídoto tem sido
Mais uma dose do mesmo veneno:
O que me mata tanto quanto me preserva
A dormência, a ausência,
Uma casa sem espelhos,
Uma parede sem janelas,
Um aquário onde,
Cercada de minhas próprias águas,
Nado só.

sábado, 17 de janeiro de 2009

VAZIO (Poesia)

Dentro de mim se aquieta um vazio
Não um vazio gélido,
Austero,
De vento frio:
As janelas estão fechadas

E o vazio faz-se morno,
Cálido,
Quase confortável,
Faz de meu corpo seu abrigo oco
Silencioso,
Desocupado

Na sacada da casa que sou não existem placas
Não há o que vender,
Não há o que comprar,
Não há nada!
Ou o que há resta em repouso,
Quase invisível,
Quase indizível,
Presente fantasiado de passado

No quarto que dormita em meu espírito
Havia uma cama quente e macia,
Onde meu corpo se amoldava
Esta cama não mais existe,
Já não se encosta a qualquer parede,
Aliás, sequer ficaram as paredes!
Sequer ficaram as sacadas!
O que se punha de pé desabou
Junto com todas as vigas que erguiam a casa

Mas hei de novamente reergue-la
Hei de novamente mobiliá-la
E não quero camas, sofás, guaritas, intrigas
Quero mobiliá-la com a vida
A mesma vida urgente que, por entre os móveis, se dissipava

E até lá,
Selando mais uma de minhas mortes,
Retomando mais uma de minhas vidas,
Acomodando o que não me pertence em caixas bem afastadas
Sei que enquanto guardo meu vazio,
Sinto-me por ele guardada.