segunda-feira, 29 de junho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo II )

CAPÍTULO II
VELUDO AZUL

O próximo destino, logo assegurou Laura, seria escolhido exclusivamente por Manuela, tendo em conta tão somente as paisagens que ela quisesse fotografar, ainda que ficassem fora do mapa. Foi esta a promessa.

E, com vigor, a pintora forçou um sorriso amistoso enquanto Manuela sentenciava: Queria fotografar no Brasil, precisamente uma cidadezinha litorânea e modesta perdida no Nordeste, onde sua mãe havia nascido e sido criada até os dezoito anos.

E a fotógrafa, diante da relutância, ainda que camuflada, da outra, logo justificou a vontade: antes de morrer, ouvira a mãe relatar – e com saudade extremada –, que apenas na cidade natal vira o sol brilhar com magnitude. Depois de sair de lá, em alguns anos, a vida havia se tornado inteiramente nublada.

Laura, que sempre tinha por alvo lugares exóticos e distantes, teve que baixar a cabeça diante da outra, que se mostrava, a cada instante, por demais resoluta: iriam passar alguns meses em Espelhos D’água, modesto povoado situado no litoral de Alagoas, que bebia beleza e serenidade na foz do Rio São Francisco, o qual desembocava claro e doce no Atlântico, em forma de águas mornas e cheias de força.

O vilarejo era assim conhecido por formar – tanto no mar, quanto no rio que os marejava –, sobretudo nas épocas de vazante, verdadeiros e cristalinos lagos, que despontavam encravados por entre os bancos de areia fina e alva, onde as águas eram temporariamente estancadas. No brilhar do sol, tais poças terminavam por refletir feito espelhos.

E naquele modesto vilarejo, a transparência das águas e plenitude do sol eram tão intensas que, em meados de maio, quando o maior dos lagos se formava, chegava a refletir-se nele, depois das doze badaladas que marcavam o meio do dia, a cidade inteira, já que as casas se erguia em plano mais elevado, galgando espaço em três montes verdes.

E era naquela época do ano, especificamente ao meio-dia, que os moradores se vangloriavam, dizendo que o pequeno povoado duplicava-se em imagem e importância. Bem por isto, tal poça era designada, com graça, como sendo o Lago das Ilusões, tamanho seu poder de refletir a realidade alta na baixa formada pela água represada, verdadeira miragem tão bela, quanto traiçoeira e enigmática.

A filha prometera à mãe, antes de esta falecer, que a levaria para revisitar Espelhos D’água, mas não o fez. Não houve tempo. E agora, movida pelo remorso, em consideração à memória de Júlia, eternizaria por meio de fotografias as lembranças que a mãe não pôde reavivar antes de morrer.

Júlia fora uma mulher peculiar em tudo. Apesar de haver nascido em uma família de pescadores, desde pequena nutria gostos considerados sofisticados em meio ao seu povo. Enquanto as meninas que tinham a mesma idade aprendiam a bordar as rendas confeccionadas na região, ela interessava-se pelo barro. E assim, introspectiva e astuta, modelava formas e imagens, mesmo sem antever qualquer utilidade, mas que logo começaram a ser admiradas pelos turistas e facilmente vendidas, sobretudo por tal arte advir de uma criança de oito anos.

Aos poucos, a venda das peças passou a ser a fonte de renda dos pais, responsável, inclusive, por viabilizar o início do tratamento do único irmão, que sofria de mal até então desconhecido. No correr dos anos, souberam-no autista e apenas após o diagnóstico do psiquiatra tal palavra passou a compor o vocabulário da moça.

Na época, Júlia já contava com dezoito anos e, com o fito de cuidar do irmão a quem tanto amava, mudou-se. O convite adveio de uma jovem inglesa, que também era artista nata, e, visitando o povoado, ficara deveras impressionada com a habilidade da outra.

O encontro entre os olhares de ambas foi algo inusitado. Júlia, que possuía olhos amarelados, os detinha fixos, baixos, enquadrando o barro; Isabella, que tinha os olhos de um intenso azul, os detinha no Lago das Ilusões, o qual, naquela época do ano, já cintilava sob o sol de meio-dia, duplicando enigmaticamente a cidade e margeando a tenda onde a artista costumava esculpir e expor. Num desviar de foco, ambas se viram e o amarelo, num interesse recíproco, misturou-se ao azul. Daquele misto de cores, mesclou-se também algo indefinido, responsável por tudo que as aproximou.

Em uma semana, as duas moças se conheceram e se reconheceram em tanto, que mais tempo não foi preciso: Isabella fez o convite que Júlia prontamente aceitou. Foram, então, a artista e o irmão, para o Rio de Janeiro, onde a jovem inglesa os hospedou.

A moça, de família abastada, morava com os pais no Brasil desde criança e não foi preciso muito para que o casal aceitasse ofertar abrigo a Júlia e Bianor. O pai de Isabella era embaixador e a mãe, de há muito, envolvia-se com causas sociais e de caráter nobre, motivo, inclusive, de terem escolhido o Brasil como norte. Afinal, bem sabiam: apenas no terceiro mundo poderiam genuinamente servir como salvadores de tantos que, sol a sol, definhavam sem sorte.

E foi na casa imensa, de muros esculpidos em aço e jardins que lembrava os suspensos há séculos na Babilônia, que a jovem oriunda da família de pescadores lançou-se ao mar de seus maiores sonhos.

Os pais de Isabella logo passaram a tratar Júlia como filha, assim como Bianor. E a moça, que até então mal havia estudado, logo fez um intenso supletivo. Em poucos anos passou a cursar artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, enquanto o irmão tratava-se com os melhores profissionais da Cidade Maravilhosa, que os acolheu com todo o esplendor.

E assim o tempo foi sendo virado no calendário, enquanto Júlia atingia suas metas e traçava tantos outros planos, todos acompanhados de perto por Isabella. Ambas estavam no auge da vida e dos sonhos e, mais do que irmãs, eram amantes, muito embora tal nuança não fosse captada pelo olhar dos outros.

Entretanto, não fugindo à regra dos frágeis segredos, este também foi descoberto. Transtornados, John e Vivian receberam nas mãos uma carta anônima, acompanhada de fotos das duas moças numa seqüência de atos que nada tinham de fraternos.

Num rompante pactuado, os dois ingleses, entendendo aquele elo como uma degradante e inconcebível traição, não tiveram dúvidas em tomar a decisão. Em menos de uma hora, Júlia atravessava os portões da mansão levando tão somente o remorso. Ela própria sentia-se traidora e, bem por isto, incapaz de reivindicar qualquer tipo de compreensão ou esboçar tentativa de amenizar o transtorno.

Isabella, por sua vez, igualmente atordoada, não teve forças para lutar contra os pais, tampouco para sair de casa e lançar-se na vida com a outra. Com os olhos azuis violetas escapando pelo aço dos portões, ainda mais acessos pelas águas, ficou.

Daquela seqüência inesquecível de descobertas e fatos, o único poupado foi Bianor, que, trancado em seu próprio mundo, devido à própria enfermidade, nele permaneceu, sendo-lhe inteiramente indiferente a presença ou ausência da irmã, a constância ou inconstância do tratamento ofertado, a estada num imenso aposento ou num quarto decadente de uma imunda pousada, onde dormiria Júlia naquela e nas próximas noites.

E assim os irmãos se separaram. As amantes se separaram. E o sol, na vida de Júlia, se apagou.

Em alguns anos, a moça já não conseguia viver da arte. Depois de inúmeras tentativas de emprego, passou a trabalhar como garçonete em uma boate e, dentro em pouco, com o dono de lá se casou.

Manuela, em pouco tempo, nasceu. Já nos primeiros anos de idade, era capaz de identificar a infelicidade da mãe, que logo se tornou dependente de antidepressivos. Do pai, a criança tinha poucas lembranças. Aliás, da infância lembrava-se tão somente do quanto Júlia chorava a cada final de tarde.

Em meio às parcas imagens do passado, Manuela recordava-se especificamente de uma noite nada tranqüila e que preferia nem tê-la como relembrada.

A criança dormia sossegada quando abruptamente despertou ao som de pancadas advinda do quarto dos pais. Assustada, depois de somar alguma coragem, a menina, pé ante pé, atravessou, no escuro, a sala. Diante do quarto, estancou. A porta estava entreaberta e a mãe continuava imóvel, deitada. Depois de procurar pelo pai, sem vê-lo em qualquer parte, silenciosamente, entrou.

Com o olhar fixo e o rosto ferido, Júlia assistia a um filme. Blue Velvet, em português Veludo Azul, era este o título. A menina jamais iria esquecer daquele nome pronunciado pelos lábios maternos e ensangüentados.

Em estado de estupor, como se estivesse inteiramente sedada, a mãe apontava para a criança a atriz, dizendo-lhe o quanto a considerava bela e, em consonância com tal atributo, a moça chamava-se Isabella... Era Isabella Rossellini quem compunha a tela.

E ao som da música que levava o mesmo nome do filme, a criança assistiu a mãe chorar até adormecer, como se estivesse deveras tomada de dor. Enquanto isto, o enredo transcorria absolutamente incompreensível aos olhos da criança que permanecia insone, parecendo-lhe, a cada segundo, mais denso e estarrecedor.

Depois daquele episódio, Manuela nunca mais viu o pai. Cresceu apenas com Júlia, que, a duras penas, tentava esconder dos olhos tão amarelados quanto os próprios, a dor.

E as duas tornaram-se grandes amigas. A menina aprendia dia a dia a reconhecer no mundo as imagens mais expressivas, todas sinalizadas pela mãe que, sempre que se dignava olhar para fora de si, via algo de bom e que merecia ser consagrado em imagens, fossem fotografadas, fossem esculpidas.

E assim, apaixonada pela arte, Manuela dedicou-se à fotografia, enquanto Júlia retomava a escultura.

Já sem tanta dor a esconder, a escultora, depois de muito tempo, sentia-se novamente viva. Livre dos antidepressivos, nos finais de tarde, já sorria.

E foi exatamente num entardecer de outono, no mês de maio, que muito se elucidou. No alpendre da varanda que se punha defronte ao ateliê de ambas, mãe e filha, com os olhos amarelados, observavam as folhas de mesma cor espalhando-se pelo quintal. Numa decisão tomada em silêncio, as duas passaram a varrer o chão, tentando conter a audácia das folhas que insistiam em dançar ao compasso do vento.

Foi quando, repentinamente, ao estancar da ventania, Júlia também estancou. Olhando na direção da filha, resoluta, convidou: queria assistir novamente Veludo Azul.

Ao ver nos olhos da convidada um misto de receio e dúvida, a mãe prontamente justificou:

- Sinto que chegou o momento de lhe falar algumas verdades que não podem morrer sem cor. Bem por isto, recorro ao Veludo Azul.

E no mesmo quarto, as duas se sentaram próximas, só que, desta feita, ambas inteiramente lúcidas: Júlia não estava sob o efeito de calmantes; Manuela não mais possuía os olhos encobertos pelo véu da ingenuidade própria da infância. Foi quando a mãe contou a filha a história de seu grande amor.

A atriz, que também se chamava Isabella, era incrivelmente parecida com aquela que Júlia amaria por toda a vida. Bem por isto, a expectadora, durante anos, vira e revira o filme, que, naquele instante, novamente ocupava a tela. O enredo pouco importava, o desfecho pouco importava, importava-lhe a imagem da personagem, Dorothy Vallens, e a música. E foi embalada pela trilha sonora que Júlia, relatando paralelamente sua história, mais uma vez chorou.

Meses depois, o corpo ainda belo de Júlia foi tomado pelo câncer. Manuela, que já a admirava desde antes, diante da força e coragem demonstradas, passou a admirá-la com mais fervor.

Novamente, os olhos amarelos tentavam dissimular a dor que, de há muito, não habitava o corpo de Júlia. Ainda assim, a artista continuava a luta. Esculpia dia a dia, dando formas e vida a corpos de barro, enquanto o próprio definhava, perdendo peso e ganhando angústia.

Nos derradeiros dias, a mãe fez um pedido à filha: queria visitar Espelhos D’água antes de partir. Ali havia sido o local onde o sol abençoara-lhe a vida, clareando o cenário no qual os olhos amarelados misturaram-se, pela primeira vez, aos olhos de intenso azul. Desejava passear no mês de maio e ao meio-dia nas margens do Lago das Ilusões, onde a realidade podia ser duplicada em tonalidades ímpares. Quem sabe assim reveria, nem que fosse no durar do meio-dia e mediante uma miragem engendrada pela saudade, seu grande amor?

Mas, antes de ter o pedido realizado, a mãe despediu-se da filha. E era novamente outono, quando os olhos amarelos cerraram-se ao som de Veludo Azul.

2 comentários:

Lene disse...

Olá srta Porteclis, vc ñ mim conhece mas fui apresentada a seu blog e ao seu conto por uma amiga sua,... Achei interessante a sua forma de escrita e a historia em sim, esperarei pelo termino c ansiedade..... xeiroo fica c Deus

Unknown disse...

Marina.. Marina
Eu não esperava encontrar um conto, passei por passar, hábito acho rs... e fiquei como que encantada!
Perfeita. Ou melhor, perfeitos capítulos.
Já tava sentindo falta da tua prosa.
Adorando e aguardando mais.