sábado, 28 de junho de 2008

INTROVERSÃO (Poesia)




Esta mesma lente que me esconde os olhos
Revela-me o mundo
Com seus olhares fundos,
Que, ousados,
Ainda que em silêncio,
Interrogam-me:
“Quem está aí dentro?”

E eu,
Sem erguer os óculos,
Em época de introversão,
Porém educadamente,
Revelo a quem me bate à porta:
“Alguém que, hoje, se nega a habitar aí fora!”

O LIVRO (Poesia)




Dentro deste livro que,
Aberto à minha frente,
Se entrega,
Eu moro

E, no compasso de nosso trato,
A ele também me entrego
E respiro

Mas o ar que em mim adentra
Insuflando meu espírito
Não vem da janela aberta,
Tampouco daquela porta

Vem da fresta de meus olhos que,
Povoados de promessas,
Captam o vento que açoita
O cenário da história.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

ZOOLÓGICO (Crônica)


Era domingo. Aliás, não era domingo, era uma terça com ar de domingo, já que feriado. Detesto domingos, mas decidi que não odiaria aquela terça disfarçada. Afinal, ela não tinha culpa de ter aquela cara.

Pois bem. Para cumprir minha promessa, resolvi fazer algo diferente. E considero “diferente” para mim, pois o mesmo passeio se faz comum para muitos! Enfim, fui ao zoológico.

Graças às chuvas do mês de junho, tudo estava por demais verde, apesar de enlameado. As gotículas brilhavam bravamente dependuradas nos arbusto, emprestando às folhas um certo encantamento. Mas este atributo se resumia às plantas. É que os animais, molhados, não pareciam nada encantados! Não sei se por frio ou tristeza, muitos tremiam e, apesar da diversidade das espécies, todos possuíam algo idêntico: o olhar opaco.

Era um olhar de quem pede, de quem pode, mas não sabe o que pede nem o que pode. Era um olhar de quem, mesmo vivo, morre. A prisão faz destas coisas. E eles, por detrás das grades, me pareceram menos ferozes. E eu, defronte às grades, mais covarde.

Indignada – comigo e por eles – me questionei como poderia ter imaginado ser aquele um passeio divertido? Na seqüência de minhas constatações, notei que aquele pesar mórbido ostentado por cada animal duplicou meu próprio peso e eu, arrastando os derradeiros passos, tentei sair dali...fugir.

Entretanto, antes de atravessar o portão, uma última pergunta: haveria um motivo exato para aquela tristeza que, contrariando a natureza do sentimento – que aprendi desde sempre abstrato –, me pareceu palpável? E a resposta me veio mais rápido do que o último passo: sim! Aquela amargura se devia a um simples fato: àqueles animais se impõe a mais severa e cruel missão. A de represar a própria natureza e sucumbir ao desejo do “sim”, na obrigação do “não”.

E chegar a esta conclusão, longe de me aliviar, intensificou minha angústia. É que, mesmo saindo do zoológico, eu continuaria a captar, dali em diante, aquele tipo de olhar em muitas pessoas que, feito aqueles animais, represam sua natureza, lutando contra si mesmas. Mas com uma sutil – e esmagadora – diferença: as grades são suas próprias mãos, sua própria carne, seus articulados “nãos”. E as chaves elas mesmas giram por fora de sua única prisão: o coração.

Lamento profundamente por esta “espécie” humana que, apesar do avançar dos séculos, nunca entra em extinção. Mas, aqueles compõem tal categoria que me perdoem. É que, ainda que me fira mortalmente, transpassarei sempre às grades para estar – e muito – longe do habitat onde eles, ilusoriamente, insistem em viver para sempre.

E foi com esta convicção que encerrei meu domingo...aliás, minha terça-feira, feriado. E que venham os sábados!


VIDROS DE PELE (Poesia)


Nestas águas,
Ora negras,
Ora claras,
Liquefeita,
Me abrigo

Nesta águas,
Ora fundas,
Ora razas,
Desfaço-me
Tanto quanto me solidifico

Nestas águas,
Ora frias,
Ora cálidas,
Afogo-me
Emergindo

Nestas águas
Onde morro
Vivo
Sempre me defrontando em meus próprios vidros:
Minha carne

Nestas águas
Onde nado,
Onde moro,
Finjo
Amplitude maior que a de um mero aquário.

domingo, 22 de junho de 2008

UM AVISO...

Desde quando concebi, ainda mentalmente, o conto “O Primeiro Lugar”, o fiz muito mais extenso, tanto em enredo, quanto em personagens. Entretanto, por motivos que não cabem aqui, terminei findando-o nas primeiras páginas.

Por ironia da vida, minha vontade de continuá-lo – ensaiada, inclusive, nas derradeiras linhas que, nas entrelinhas, clamam prolongamento – foi captada por alguns leitores que, para minha surpresa, têm me escrito perguntando se haverá ou não uma continuação.

Pois é...em consideração a todos – inclusive a mim mesma, que desde o começo quis dar um final mais robusto e significativo ao texto – estou aqui, hoje, justamente para dizer que sim: o conto continuará!

Em virtude disto, transformarei o título principal de forma que “O Primeiro Lugar” seja apenas o primeiro capítulo do “livro” virtual que começa a nascer desde já. E a este chamarei: O Avesso da Tela.

Em alguns dias virá o segundo capítulo que, gradativamente, migra de dentro de mim para a tela, literalmente, avessando-a, tanto quanto me avessa. Tudo em consonância com o título.

Um grande abraço a todos, ajustado pelo agradecimento que aumenta a cada incentivo recebido!

Marina Porteclis.

sábado, 21 de junho de 2008

LUTO (Poesia)


Algumas vezes
(Tantas vezes!)
Aquilo pelo que padeço, ironicamente, traz-me vida
E, na confusão de meus pesares,
Acalento o que tenho,
Muito embora não me despeça inteiramente dos desejos que nutro
Por tudo aquilo que ainda não tenho

E uso luto de mim mesma
Pois é certo que morro a cada final de dia
A cada final de frase
A cada final de plano
A cada engano e acerto que me abate
Tanto quanto mereço

E uso luto por mim mesma
Por tudo que enterro,
Ao passo que proclamo a paz que ainda não tenho
Por tudo que, intimamente, espero
Enquanto finjo que não quero
Enquanto finjo que não posso
Enquanto me desespero

E uso luto em mim mesma
Neste corpo que veste o preto
Ainda quando se despe
Pois a roupa que o encobre vem de dentro
E se faz – tanto quanto me faz – espessa

E é assim que, de luto,
Luto por mim mesma.

terça-feira, 10 de junho de 2008

ABAJUR (Poesia)

É sábado,
É noite,
Sem sono,
Sem lua

Queria luz e comprei um abajur
Ele, agora, ligado
Obediente desde sempre
Ilumina meu teclado
Minhas letras mortas
A cama onde não deito
Minhas mãos suas
Mas pouco importa:
Permaneço escura.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

TELA (Poesia)


É por esta tela que me guio
Com a pretensão de transpor o mundo sem, sequer, visitá-lo
É por ela que todos julgam me ver
Sem que eu os veja, nem mesmo, de resvalo
Sem que eu saiba, sequer, a cor dos olhos que me lêem
E que podem ser rasos ou profundos
É nesta tela que sigo, insone
Travando meus monólogos desertos
E diálogos impunes
Entre os personagens que crio e os que calo
Entre as histórias que invento e as que relato
Tendo, sempre, o escuro por pano de fundo
E o silêncio por resposta

Mas o que importa ao fim?
Que os outros suponham que me vêem
Quando, de fato, o que enxergam
É tão somente o que projetam de si mesmos
Em mim.

(06/05/2008)

terça-feira, 3 de junho de 2008

MÉTRICA (Poesia)


Sem métrica,
Sem ética,
Apenas sigo
Ainda que sem rumo,
Sem prumo,
Sem pontuação
E começo frases as quais não termino
E termino impulsos que não se começam
E finjo juízo, enquanto enlouqueço
E invento regras que não obedeço
E corrijo em mim o que já resta certo
Ao passo que erro gramaticalmente,
Em concordância nominal e técnica com tudo aquilo de que mais discordo
Em discordância imoral e cética com tudo aquilo que mais desprezo
Colocando rótulos no que não se nomeia
Só para citar em nome o que não posso sentir em pele
E peco, ainda que não seja este o intento, em concordância verbal, pronome e sujeito
Agindo em tempo presente, como não fiz no passado
Desejando para um futuro, ainda que distante, o que sei imperfeito
Como se mais-que-perfeito fosse
Como se mais que suficiente desse
Fazendo de cada oração verdadeira prece
E, sem maiores rodeios ou escrúpulos, ouso, enquanto peço:
Rogai por nós pecadores
Livrando-nos do mal que nós mesmos procuramos
Oferecendo algum sentido de organização ao caos que nós mesmos provocamos
Seja por sermos inquietos, insatisfeitos, ambos ou virginianos
Para que no derradeiro embate entre o que somos e o que queremos
Tenhamos um ponto final e não uma interrogação
Tenhamos alguma certeza em meio tudo e tanto que morre
À beira de um “sim” ou um “não”
Pois, ainda que sem métrica,
Sem ética,
Sem rima,
Sem perdão,
Prefiro ser palavra escrita sem linha
A ser linha sem retidão.

domingo, 1 de junho de 2008

AQUÁRIOS (Conto Erótico Feminino)



Aluga-se. Era esta a mensagem estampada numa placa branca, em letras vermelhas e de fôrma, pendurada no portão baixo de madeira polida da casa vizinha, frente a qual Raquel teve dezenas de lembranças e uma premonição desagradável, ao chegar em casa, no final de uma tarde de quinta-feira.

Dentre as lembranças lhe veio a do casal de cubanos que resolveram veranear bem ali, ao seu lado, e que escutavam rumba, salsa, merengue, xangô e sabe-se lá mais o quê o dia inteiro, fazendo os ouvidos e miolos de Raquel tremerem, chacoalharem, ferverem dentro de sua cabeça que tanto necessitava de paz e silêncio. Sua audição, desde então, restou perturbada, tamanho o barulho que causaram. Às vezes, durante a noite, ela ainda acordava aturdida com o som de “ehh, makarena!”

Logo em seguida, lembrou-se dos hippies, o cara e as duas mulheres, amigos de Nayara, que viviam em trio, um amável trio que fumava maconha o dia inteiro, deixando as narinas de Raquel vermelhas, irritadas, entupidas daquele cheiro forte e enjoado, fazendo-a desejar que realmente viajassem, mas para o quinto dos infernos, de onde, provavelmente, vieram.

Depois se lembrou da família de Rottweilers que trouxe seu próprio bichinho de estimação. Era Augusto, aquele almofadinha, dono dos cachorros, que dava em cima de Raquel o tempo todo e ainda teve a capacidade de presenteá-la com fotos e fotos de tartarugas marinhas, peixes, corais e tudo o mais que viesse do mar, até uma latinha de cerveja! Fotos estas, diga-se de passagem, amadoras e mal-feitas, tiradas pelo próprio galanteador. Até hoje, Raquel lembrava delas, coladas naquele cartaz ridículo que lhe deu com a seguinte declaração: Tu és muito mais bela do que todas estas fotos juntas. Aliás, és o resumo estudado de todas, minha querida bióloga marinha! Deixe-me ser o seu novo projeto de pesquisa. Não se arrependerás...Um beijo molhado de Augusto, seu Netuno. Raquel sentia asco só de lembrar. Aquele idiota, além de poluir sua visão com aquela mensagem e imagens medonhas, tratou ainda de conturbar sua audição, já prejudicada, e seu olfato, já poluído, graças àqueles cães chatos, que latiam o tempo todo e fediam como se estivessem sempre molhados. Além de tudo, implicaram com Merlim, seu cachorro, o que a deixou ainda mais nervosa, afinal, todos os cães passaram a discutir o dia inteiro, através do muro e em forma estridente de latidos múltiplos.

Por fim, não houve como esquecer do casal de alemães que se mudou, a princípio, definitivamente, para o seu lado e que havia morado na Bahia, anteriormente, durante dois anos. Aquela idéia cultivada por ambos, sem dúvida, não poderia ser pior: montar, como de fato fizeram, um restaurante de comida baiana, com tempero alemão e húngaro – afinal, também já tinham morado por aquelas bandas –, naquela singela casinha, ao lado da de Raquel! Mas o sufoco não terminou por ali! Na inauguração, a convidaram como cliente especial, para provar, em primeira mão, o vatapá com chucrute, prato principal da casa. Mesmo a contragosto, Raquel não quis ser indelicada e caiu na besteira de prestigiar os vizinhos para, por fim, prejudicar seu paladar com a pior gororoba que já havia provado na vida! Por sorte, ela não foi a única a detestar a receita e ter indigestão no dia seguinte. O restaurante não durou uma semana e o casal partiu para mais um destino, o que lhes renderia, sem dúvidas, mais um novo tempero para as próximas receitas.

Pronto! Depois das lembranças tristes que lhe afetaram os quatro sentidos, lhe veio a premonição: os novos vizinhos, com certeza, agrediriam seu quinto sentido, o tato. Era só o que faltava, literalmente! Esperava que não fosse com o primeiro aperto de mãos...

Pensando nisso, Raquel não teve como rir de seu mau-humor e exagero. Com esse sorriso, bateu os pés sujos de areia da praia no carpete, em frente à soleira de sua porta, e entrou. Dentro de seu pequeno e aconchegante mundo, a bióloga não teve como evitar o remorso que sentiu por praguejar tanto contra os vizinhos que tivera. Afinal, graças a eles, naquele momento, valorizava muito mais a paz que sentia ao chegar em casa e poder deitar na rede, na varanda, diante daquela visão maravilhosa que tinha do mar azul, emoldurado pela areia branca e pelo verde calmo dos coqueiros. Era imenso o prazer de ficar ali, ouvindo apenas o som das ondas, às vezes acompanhado de uma canção suave do Pink Floyd ou Led Zeppelin, tomando água de coco, esperando dar coragem para levantar-se e ir preparar o jantar, enquanto a fome era atiçada pelo balanço da rede e pelo cheiro bom da maresia, que lhe lembrava a infância e os dias de sol.

E foi exatamente isso que fez ao chegar em casa naquele dia. Deitou-se na rede e pôde perceber que seus sentidos não foram, deveras, prejudicados, mas, ao contrário, aguçados, preparados para reconhecerem e aproveitarem o que era realmente bom. E sua vida era boa.

Raquel, aos vinte e sete anos, fazia o que realmente gostava: era bióloga marinha e, depois de muitas economias e trabalho, havia conseguido comprar aquela casinha na qual morava, bem em frente à praia, para aliar seu trabalho de pesquisas com sua paz interna.

Sua aparência física denunciava toda a saúde e firmeza que havia adquirido ao longo daqueles vinte e sete anos de praia, literalmente. Era uma mulher que realmente chamava a atenção. Tinha os cabelos castanhos claros e longos, com alguns fios dourados pelo sol que tomava todas as manhãs. A pele era bronzeada, os ombros, costas, abdome e pernas, torneados, o que lhe resgatava um pouco do ar de surfista que possuíra na adolescência. Os olhos claros, esverdeados, combinavam em seu rosto de traços fortes e angulares, entre o rústico e o agressivo, entre o belo e o diferente. Era assim, sui generis, em compasso com seu estilo de vida.

Morava só desde os dezessete anos, quando saíra de casa em virtude de discussões intermináveis com os pais, por causa de sua orientação sexual. Desde então jurara para si mesma que somente faria o que queria, fosse o que fosse, custasse o que custasse. E, diante desse lema, escolhera a profissão que mais lhe agradara, pois queria trabalhar com o mar, com a natureza, mesmo que jamais se tornasse uma pessoa rica e famosa. O que queria mesmo era ser feliz.

Naquele instante, deitada na rede, em sua varanda, com Merlim deitado logo abaixo, abanando o rabo, ela pôde constatar que realmente havia conseguido. Era feliz sim, do seu jeito, com pouco dinheiro, muito trabalho, mas, sobretudo, muita tranqüilidade, sol, praia e amigos.

Depois daquela pequena retrospectiva, arrematada pela constatação de sua vitória, levantou-se, preparou uma salada leve, sentou-se na mesa de madeira que havia do lado esquerdo de sua varanda, em oposição à sua rede, e, finalmente, começou a comê-la. Já era noite e a lua despontava enorme no céu. Enquanto encarava as folhas verdes a sua frente, lembrava-se das algas marinhas que tinha que colher no dia seguinte, para sua mais recente pesquisa. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz de Nayara. Lá do portão, era a amiga que a chamava, com suas insubstituíveis saias estilo hipponga, balangandãs pendurados no pescoço, pulseiras de couro e búzios chacoalhando nos pulsos, enquanto acenava para Raquel, chamando-a com o sotaque carioca inconfundível:

- Ei, Quel, não está vendo a lua não?

Raquel caminhou para abrir o portão, com Merlin já latindo e acompanhando-a, para saudar com alegria Nayara:

- Claro que estou! Ela está linda e daí?
- E daí? – Nayara deu um abraço na amiga, beijando-a com carinho no rosto – e daí, minha amiga, que está todo mundo lá no bar, tocando violão e cantando! Está rolando o maior luau e eu vim aqui só pra te chamar! Olha que prestígio, hein?! Vamos?

A anfitriã puxou a visitante pela mão e as duas sentaram na varanda. Raquel na rede, Nayara na cadeira de balanço que tanto gostava. No segundo seguinte, já estava com os pés livres das sandálias de dedo, coçando a barriga de Merlin, que sempre se deitava escancarado a seus pés.

- Pôxa, teu cachorro está sempre carente, Quel! Você não dá carinho nem pra ele? – disse Nayara fazendo cara de carente também.
- O que você quer dizer com isso? – Raquel perguntou sorrindo, já entendendo o recado da amiga, que tinha a capacidade de enxergá-la nitidamente, intimamente, por trás dos olhos escuros e franjados, parecidos com os de uma cigana ou feiticeira.
- Que todos nós estamos sentindo sua falta, ué! Você nunca mais apareceu! Agora só quer saber de seus sargaços e peixinhos dourados!
- Mas falta pouco, Nayara, falta pouco...logo, logo encerro esse projeto e teremos nossas manhãs de sol e banhos de mar de volta. E nossas noites de luau também, é claro...avisa ao pessoal que hoje não vai dar. Estou cansada demais!
- Eu posso te dar uma daquelas massagens orientais que eu aprendi com aquela japonesa maravilhosa, lembra? – e Nayara riu antecipadamente, sabendo da cara que Raquel faria de reprovação, também misturada com riso.
- Sei aonde a Srta. quer chegar e eu também estou cansada para isso!
- Nossa Quel, na época daquele nosso lance você tinha mais saúde, lembra!? – Nayara fechou os olhos e suspirou, tirando onda, como se lembrasse de cada detalhe – humm...era tão bom! – fez uma pausa, olhou pro rosto corado de Raquel e continuou – Bem, se cuide direito, meu amor. Descanse, veja a lua e dê um pouco mais de carinho a Merlin. A rejeitada aqui vai partir De volta ao luau! Led Zeppelin me espera. – dizendo isso, Nayara alisou os cabelos longos da amiga, deu um beijo na testa de Raquel e partiu, com sua saia varrendo suavemente a areia do caminho.

Raquel realmente se sentia cansada. Passara os últimos dias no sol, colhendo algas e dissecando-as com toda a paciência do mundo. Nem o protetor com fator cinqüenta que usava deu resultado. Estava com as costas toda queimada e os olhos ardendo de sono.

Por instantes teve vontade de ir ao barzinho. Ele ficava a menos de quinhentos metros de sua casa. Era um lugar simples, mas aconchegante. Erguido com pilastras de troncos de coqueiros, tinha por teto as folhas que, outrora, farfalhavam sobre eles. O piso era a própria areia do mar e as mesas foram feitas de fibra, no formato de pranchas multicoloridas, pintadas pela própria dona, Nayara. A luz que iluminava o ambiente era apenas a da lua e o som – a voz, as percussões, violão – vinha de Nayara, que cantava muito bem, e dos demais amigos que formavam a Ex-galera do Mau, nome dado por Raquel para a banda dos surfistas já veteranos, que, em outros tempos, faziam rock pesado nos bares da vida e hoje só queriam saber de paz e rock suave. Os pesados eram sós para as noites de festa, quanto a galera se juntava para fazer barulho de verdade e impressionar os jovens que vinham de fora, diretamente da vida urbana, ou os próprios estrangeiros, que passavam o verão naquela praia. Nessas noites, Nayara relembrava com saudade dos tempos antigos e gritava como ninguém, em homenagem aos Primeiros Berros, sua primeira banda, enquanto os violões e percussões cediam espaço para as guitarras distorcidas de Gerônimo e Marçal e para a bateria bem batida de Fandangos. De quebra, ainda entrava uma grana para patrocinar o projeto de viagem da Ex-galera do Mau ao Havaí. Iriam todos juntos, como juntos sempre estavam. Raquel até prometeu ir também, mas do jeito que as coisas iam, era provável que eles conseguissem o dinheiro antes dela, foi o que ela pensou, quando desistiu de ir ao bar, optando por dormir cedo e concluir o projeto amanhã mesmo. Afinal, tempo era dinheiro, até na biologia marinha.

Depois de concluída a salada, Raquel lavou os pratos, colocou comida para Merlin e deitou-se mais um pouco na rede, com sua prancheta e anotações do dia. Era a hora de sua revisão e programação para o dia que viria. O som continuava ligado e tocava baixinho Wish You Were Here, do Pink Floyd, uma das músicas preferida de Raquel.

Ela fechou os olhos por alguns minutos e pensou na letra, que fala de duas pessoas que se desejam a distância e permanecem por anos, sem se encontrar. Uma delas propõe a outra trocar o confortável paraíso pelo inferno, o céu azul pelo sofrimento, seus heróis por fantasmas, enfim, a paz e a comodidade em que a outra pessoa vive por um encontro, por uma vida em comum, apesar das dificuldades, deixando de lado os zelos e receios. A parte que Raquel mais gostava tocava naquele instante e dizia que ambos, separados, eram como duas almas perdidas, nadando em dois aquários, separados por dois vidros espessos, paralelos, anos após anos, sempre fugindo, sempre correndo e, finalmente, o que encontravam? Essa é a pergunta e a resposta vem em seguida: os mesmos velhos medos e o antigo desejo de que um estivesse ali, ao lado do outro... e era o que continuam desejando.

Raquel, desde a adolescência, se comovia com essa música e não sabia exatamente o porquê. Devido ao seu amor por peixes e pela liberdade, em sua ingenuidade adolescente, atribuía a emoção que sentia quando ouvir a música ao fato de imaginar o quanto deveria ser doloroso para eles – os peixes – serem afastados de seu mundo e trancafiados num montinho mesquinho de água, cercado de vidro por todos os lados. A ilha dos peixes: o aquário.

Mas, apenas com a maturidade veio a perceber que a dor que a música lhe causava não vinha da metáfora dos peixes separados em aquários distintos, mas da sensação que ela própria sentia de solidão e de espera, presa que estava em seu próprio mundo, em sua própria ilha, em seu próprio aquário, cercada, não por terra, nem por vidros, mas por uma proteção especial, mais forte e densa, que ela mesma criara, para cultivar sua felicidade, para impedir que outros a magoassem, a entristecessem. E, de fato, conseguira. Era feliz, mas isto já não parecia o bastante naqueles momentos de reflexão. De tanto se proteger, de tanto evitar a tristeza, ironicamente, por vezes, se sentia só e triste. Queria compartilhar o que havia conseguido, o que havia construído, seus planos, aquela planilha à sua frente. Desejava que alguém chegasse e a libertasse, que entrasse no seu mundo e a resgatasse, a levasse para o mar aberto, que a fizesse deixar de temer as ondas, o caos, o próprio medo, só não sabia quem seria ou quando seria. Enquanto isso, intimamente seguia, vivendo em seu aquário, deitada em sua rede, guardada em sua casa, apenas desejando que esta pessoa estivesse ali...whish you were here.

Estava quase adormecida em meio a seu devaneio, quando a música terminou e foi despertada pelo barulho de um carro que derrapava na calçada vizinha, em frente ao portão e à placa de “aluga-se”. As íris de seus olhos se comprimiram, preparando-os para ver, finalmente, quem seria os próximos vizinhos, aqueles que poriam seus sentidos, novamente, à prova.

Do furgão luxuoso, de vidros escuros, desceu um homem de, aproximadamente, quarenta anos, alto, de cabelos cheios e negros, com uma roupa formal e óculos de grau, que também lhe emprestavam formalidade. Ele se encaminhou ao portão e o abriu com cautela. Em seguida, voltou ao carro e o estacionou com precisão na garagem.

Raquel, que a tudo observava, já fazia suas primeiras observações e conclusões: “pelo menos ele parece um cara sério, apesar de aparentar, também, ser meticuloso e metido”. Em seguida, a mala foi aberta e o homem retirou as bagagens que trazia, pousando-as no chão para, em seguida, dirigir-se ao outro lado do carro, abrindo a porta para sua provável esposa, o que, aos olhos da observadora, foram interpretados como sinais de gentileza e educação.

Naquele instante, Raquel viu descer uma mulher muito, mas muito bonita e bem cuidada, com os cabelos lisos, brilhantes e acobreados, presos num coque bem feito, com apenas alguns fios levemente soltos, adornando-lhe o pescoço, a pele muito clara, acentuando a visível maciez, os olhos escuros e puxados, as sobrancelhas bem feitas e igualmente escuras, dando-lhe um ar exótico, sagaz, dona de um corpo e porte perfeitos, caramente vestido, por assim dizer.

Aos demais pensamentos e conclusões que poderia tecer em relação àquela mulher, Raquel sequer deu margens amplas para surgir, tamanho o efeito de sua imagem. Limitou-se a pensar que era, realmente, a esposa daquele homem! Isso punha um ponto final em sua imaginação. E ele deveria ter se agarrado a ela com unhas e dentes, afinal, se era mesmo meticuloso e amante da perfeição, aquela mulher era, sem dúvidas, o espelho de suas características prediletas.

O casal, em silêncio, arrastou as malas para dentro de casa, sem, sequer, notar a presença de Raquel. Esta voltou para a rede e ali ficou, quase escondida, para não ser notada mesmo. Preferia observá-los a ser observada.

Meia-hora depois, quando já catava suas sandálias embaixo da rede e despedia-se de Merlim, para ir dormir, Raquel pôde ver sua mais nova vizinha sair de casa e caminhar lentamente pela varanda. Como se fosse um ritual à lua, a bela mulher espreguiçou-se, esticando, com suavidade e languidez, os braços alvos para o alto e, de olhos cerrados, respirou fundo, como se quisesse sentir o cheiro do mar, da noite e, porque não, da própria lua? Os cabelos, antes presos, estavam agora soltos, movimentando-se a cada passo seu, pelo vento, e se derramavam até o meio das costas, pesados. Raquel sentiu o impulso de fechar os olhos também e tentar resgatar o cheiro daqueles cabelos sedosos e bonitos, o perfume daquela mulher magnífica que estava ali, absorta, quase ao seu lado, mas não o fez. Um muro, literalmente, as separava. Deveria continuar em seu aquário e, com esse pensamento, entrou em casa em silêncio, mais uma vez, sem se fazer perceber.

Olívia, mais relaxada da viagem, finalmente fez o que, há tantos anos, queria. Respirou fundo! E foi um ar fresco, com cheiro de maresia. Com calma e mansidão, desceu os degraus da escada que separava a varanda do quintal, tirou os sapatos que lhe incomodavam e os largou na grama. Pôde, então, deliciar-se com a frieza da areia branca, sob seus pés, que se estendia num caminho estreito que circulava o pequeno jardim, cercado de seixos igualmente alvos. Era a areia trazida da praia, também sua vizinha. Podia sentir o cheiro do mar e o barulho das ondas, logo ali, à sua frente. Apenas uma cerca baixa de troncos de coqueiros a separava da praia. Sentiu-se tentada a andar, beirando o mar, molhar os pés um pouco na água salgada para ver se lavava suas tristezas, as mágoas daqueles últimos anos que passara trabalhando, se estressando e em silêncio, levando a vida que não queria. Apesar da vontade, se conteve. Estava acostumada a limitar seus desejos e o fez mais uma vez. Poderia ser perigoso ir andar sozinha.

Diante de seu pensamento, pôde refletir sobre o quanto ainda se sentia presa e limitada! Afinal, mesmo tão longe de São Paulo, no litoral nordestino, ela ainda temia a violência, os assaltos, o escuro e, ironicamente, a liberdade que poderia ter.

Depois de cinco anos de casada, a cada final do dia Olívia sentia como se tivesse envelhecido um ano. Era médica em vários hospitais públicos de São Paulo e trabalhava dando plantões quase que diariamente, sob constante tensão. Apesar de amar a Medicina e exercê-la com afinco, Olívia sentia que, às vezes, exagerava. Dedicava-se demais à profissão e ocupava todo seu tempo – na verdade, mais do que o necessário –, com seus pacientes e seu trabalho. Bem sabia que, talvez, essa fosse a forma mais fácil de fugir de suas insatisfações e frustrações pessoais.

Em cinco anos, aprendera a gostar de Marcelo, mas, sem dúvidas, ainda não o amava. Resolvera casar-se por livre escolha, mas o relacionamento de ambos nunca fora o que Olívia planejara ter.

Marcelo era um homem bom, inteligente, educado e bem sucedido. Tinha três clínicas em São Paulo e era um dos neurocirurgiões mais bem cotados no momento. Podia lhe dar, como de fato dava, todo o luxo que uma mulher poderia querer, era apaixonado, delicado, culto, mas possuía ideais e valores muito diferentes dos seus. Era um homem ambicioso e sofisticado, que se preocupava com status além da conta e gostava de estar no topo da sociedade, o que nunca fora do feitio de Olívia.

Entretanto, justiça seja feita: desde o começo Olívia sabia que seria assim. Nunca fora apaixonada por Marcelo, nem o seria. Na verdade, o casamento também fora uma fuga, uma estratégia, embora relutasse em assumir tal fato.

Em toda sua vida, Olívia se apaixonara apenas uma vez, mas, como bem descreveu Oscar Wilde, fora um daqueles amores platônicos, mundanos, uma paixão arrebatadora por alguém cujo nome sequer se ousa dizer. E tudo foi sempre silêncio, como deveria continuar a ser.

Depois de três anos seguidos, sem férias, sem trégua, o casal decidiu viajar. O destino ficaria a critério de Olívia, como Marcelo havia prometido há tempos. E ela escolheu: queria ir para uma praia pouco badalada, tranqüila e calma, onde pudesse respirar ar fresco, exatamente como fazia agora.

Marcelo, que sempre unia o útil ao agradável, cuidou de providenciar os preparativos para satisfazer o desejo da esposa, entretanto, sem esquecer de satisfazer aos seus interesses também, é claro. Exatamente naquele mês de setembro haveria um congresso nacional sobre radiocirurgia em Alagoas, mais precisamente em Maceió, que reuniria os grandes especialistas da área. Ele não poderia faltar. Pensando assim, tratou de alugar aquela casa em Garça-Torta, praia pouco conhecida e contígua a de Riacho Doce, que ficava próxima à cidade. Assim, confabulou seu plano: durante a semana ficariam em Maceió, hospedados justamente no Hotel Jatiúca, onde ocorreria o congresso, para que pudesse participar ativamente das palestras e solidificar seu nome na área de radiocirurgia, e nos finais de semana, iriam para a casa alugada na praia, para solidificarem também o casamento que, há tempos, não ia bem. Entretanto, Olívia não concordou com a idéia inicial. Achava simplesmente inadmissível que Marcelo, mesmo de férias, não conseguisse se desvincular de sua ambição profissional e pessoal. Ele que ficasse no hotel durante a semana, ela ficaria na praia sozinha e aproveitaria do seu jeito. Nos finais de semana ele iria para lá e pronto. Assim seria. Ela estava realmente cansada, afinal não era fácil trabalhar no serviço público. O mesmo não poderia dizer Marcelo, que trabalhava apenas em suas clínicas particulares, as horas que queria e nos dias que queria.

Naquela noite de quinta-feira foram diretamente do aeroporto para a praia. O congresso começaria na sexta e, logo pela manhã, Marcelo partiria, retornando apenas no sábado.

Depois de sorver um pouco da luz da lua, Olívia finalmente resolveu deitar-se. Ao lado de Marcelo, tudo o que conseguia pensar era em como sua vida seria mais feliz se deitasse ao lado de alguém que realmente amasse e quisesse. Qualquer lugar seria perfeito, até mesmo São Paulo.

Enquanto isso, Raquel, já na cama, sentia as costas ardendo e a cabeça rodando, imersa em seus pensamentos. Em sua mente, tudo estava misturado e as imagens se distorciam, se repetiam. Pedaços de seu dia, feixes de lembranças: algas, as águas, o sol, as pesquisas, os cardumes, os projetos, a bela mulher que, provavelmente, já dormia, bem ali ao lado, sua solidão, seu cansaço, seus medos, seus desejos, seu sono, seus zelos...até que adormeceu.

Há aproximadamente quinhentos metros daquelas duas casas, Nayara, alheia aos sentimentos das duas mulheres que se avizinhavam, simplesmente cantava a parte da música que Raquel tanto gostava e era nela, totalmente nela, que a vocalista pensava... e era ela, sempre ela, que Nayara desejava: How I wish, how I wish were here/ We’re just two lost souls swimming in a fishbowl, year after year/ running over the same old ground, what have we found?/ The same old fears/ Whish you were here...

O dia seguinte prometia ser de sol. Já às cinco horas da manhã Raquel estava de pé. Havia separado seus sacos coletores, os vasilhames e redes necessárias, as lâminas e espátulas, sua máquina fotográfica, seu protetor solar, que, somente agora, já exposta ao sol, começava a espalhar pelo rosto corado. Os cabelos estavam presos num longo rabo-de-cavalo e ela usava apenas uma camiseta branca sobre o biquíni, sua inseparável bermuda de neoprene e os óculos escuros. Nos pés, sua sapatilha emborrachada, apropriada para andar nas pedras. Na sacola, a máscara e outros apetrechos para o mergulho. Ao seu lado, Merlim caminhava todo faceiro, abanando o rabo. Antes de atravessarem o portão Raquel foi interrompida pela voz masculina que vinha da casa vizinha:

- Bom dia! – era o novo vizinho que se aproximava, estendendo-lhe a mão – meu nome é Marcelo Paes Leme. Vamos passar quarenta dias como seus vizinhos, eu e minha esposa. Como vai?
- Bom dia! – disse Raquel, tentando limpar as mãos sujas de protetor solar antes de apertar a mão do homem educado e polido, que já estava à sua frente – meu nome é Raquel...e, vou bem, obrigada. Espero que tenham uma boa estada – encerrou séria, tentando igualar-se na polidez.

Em seguida, Raquel deu as costas e continuou seu caminho, sem deixar de ser admirada por Marcelo que ficou visivelmente impressionado com a musculatura e boa forma da vizinha.

Já na praia, Raquel despiu-se e começou seu trabalho diário: mergulhar e colher as algas que faltavam para encerrar sua pesquisa. Só retornaria quando houvesse colhido todo o necessário. E assim, passaram-se quatro horas.

Olívia, sentada sobre sua canga estendida na areia, embaixo de uma sombra, a tudo observava, tentando imaginar de onde vinha a resistência daquela mulher ao sal, ao sol e à água. Ela mergulhava como um peixe e, mesmo sem tubo de oxigênio, passava alguns minutos embaixo d‘água. Até o livro que Olívia havia levado para ler ficou sobre seu colo. Era mais interessante observar aquela mulher e seu trabalho.

Absorta, Raquel concentrava-se no mar, sem sequer voltar-se para a areia. Foi Nayara quem a chamou, do barzinho da frente.

- Ei, sereia! Vem almoçar! – mas Raquel parecia não escutar e ela repetiu, mais alto ainda – Raquel, pelo amor de Deus, sai daí, criatura! Vem comer com a gente! Suas costas já estão em carne viva!

Só então Raquel veio à tona de vez. Saiu da água, tirou a mascara que lhe comprimia o rosto e soltou os cabelos longos e molhados. O corpo musculoso estava mais queimado do que antes e a imagem fez Nayara pensar numa estátua de bronze que brilhava ainda mais pelas gotículas de água salgada que escorriam. Olívia também admirou a imagem que emergia, sem, entretanto, deixar de observar também a expressão de satisfação da outra mulher que chamava Raquel com certa pressa.

Enquanto Raquel caminhava para o bar, Olívia continuava a observá-la, atraindo sua atenção. A bióloga, ao deparar-se com a nova vizinha, reconheceu-a imediatamente e não teve como recuar. Cumprimentou com um leve menear de cabeça.

No bar, Nayara esperava Raquel curiosa. Antes mesmo de deixá-la sentar-se à mesa, com sua salada preferida já preparada e posta, a amiga foi questionando:

- Quem é a bonitona ali?
- Minha nova vizinha – respondeu Raquel rapidamente, não querendo dar margens para outros comentários de Nayara.
- Humm..sei, sei...quero só ver se a senhorita vai continuar cansada como está com uma vizinha destas por perto! – disse Nayara rindo, tentando ocultar o ciúme que sentia.
- Por favor, Nayara, deixa de graça. Ela está lá com o marido e eu nem sei seu nome.
- Grande coisa! Você também não sabia do meu e em dois minutos estávamos na cama!

Raquel riu do tom de voz da ex-namorada. Conhecia de longe seu ciúme, mas a sessão “velhos tempos” foi interrompida pela bela mulher que se aproximava, impecavelmente vestida com um maiô clássico, de cor escura, uma saída de banho discreta, torneando-lhe a cintura bem feita, os óculos de sol e um chapéu que emprestava a seu rosto e colo uma sombra generosa, capaz de tornar seus traços mais misteriosos ainda e distingui-la das simples mortais que ali estavam, suadas e sujas de areia, a observá-la. Foi assim que Raquel se sentiu diante de Olívia.

- Bom dia... – disse a médica num tom de voz baixo, olhando-as por trás das lentes escuras – gostaria de uma água de coco, por favor.
- Pois não, senhorita! Num minuto ela estará aqui, em suas mãos. – disse Nayara, com simpatia e completou, dirigindo-se à bióloga – Com licença, Raquel...volto já! Em seguida, afastou-se em busca do coco solicitado.

No instante seguinte, Olívia dirigiu-se à Raquel.

- Acho que ainda não fomos apresentadas – disse a moça, estendendo a mão para a bióloga, que já havia se levantado para cumprimentá-la – eu sou Olívia, sua vizinha.
- Eu sou Raquel... – disse limpando a voz, sem esconder a surpresa, afinal, não sabia que Olívia já a tinha visto.

Percebendo o pé atrás de Raquel, Olívia logo explicou.

- Hoje, pela manhã, eu te vi saindo de casa – disse, sorrindo –... e era muito cedo para qualquer tipo de apresentação. Preferi um outro momento do dia.

As duas foram interrompidas por Nayara que trazia o coco verde, gelado, do jeito que Olívia havia imaginado:

- Prontinho, madame! Aqui está. Bem-vinda e fique à vontade. Meu nome é Nayara, qualquer coisa, estou às ordens – falou a jovem de cabelos longos e escuros, partidos no meio, parecendo uma figura da época de Hair, o filme.
- Obrigada! – foi o que Olívia pôde dizer, antes de se despedir e procurar uma mesa.

Raquel pensou em convidá-la para sentar-se ali, mas ficou meio sem graça, afinal, ela parecia uma mulher muito distinta e sofisticada. Talvez ambas ficassem pouco à vontade em vista da falta de intimidade e mesmo afinidade.

Nayara prontamente aboletou-se na cadeira de frente para Raquel, observando-a enquanto degustava a salada colorida. As duas conversaram sobre amenidades, sobre o luau da noite passada e sobre a pesquisa de Raquel. Mas esta, vez por outra, olhava discretamente na direção de Olívia, para ver se ainda estava ali. Sua presença, de certa forma, fez com que Raquel perdesse um pouco a naturalidade, preocupada que estava em limitar seus gestos, em escolher as palavras, os tipos de conversa. Em menos de trinta minutos, o almoço estava encerrado e Nayara, com carinho, despediu-se da amiga, que rumou para casa. Raquel recomeçaria os trabalhos à tarde, quando o sol estivesse mais fraco. Merlim a acompanhou, faminto, doido para devorar sua ração assim que chegassem em casa.

Durante o percurso Raquel caminhava absorta. Lembrava-se da imagem, da voz, do jeito de falar de Olívia. Tentou imaginar o que faria uma mulher daquelas escolher aquele lugar para passar suas férias. Tentou imaginar o que ela fazia para ganhar a vida. Por certo era alguma coisa que dava dinheiro, afinal, era tão bem cuidada, tão fina, grã-fina, na verdade. Ao erguer a cabeça, voltando-a para trás, seus pensamentos foram interrompidos pela imagem de Olívia que corria, desesperada, tentando achar espaços no chão nos quais houvesse um resquício de sombra ou plantas, afinal, estava descalça e o solo queimava. O sol estava fortíssimo! Raquel teve vontade de rir da cena. A mulher sofisticada tomava ares de criança, pulando entre os espaços, catando um pedacinho de chão mais úmido, menos escaldante para seus pés delicados.

Imediatamente, Raquel retrocedeu no caminho e, interpelando Olívia, tirou rapidamente as sapatilhas de borracha e as ofereceu, dizendo:

- Pode calçar. Eu já estou acostumada.
-
Olívia arregalou os olhos puxados, surpresa pela presença de Raquel naquela circunstância constrangedora, oferecendo-lhe ajuda. Mas estava realmente necessitada. Seus pés pareciam derreter, queimar por inteiro. Não houve espaço para hesitação ou embaraço. Logo aceitou o auxílio. Apoiou-se nos ombros de Raquel para calçar as sapatilhas oferecidas.

Ao toque, Raquel retesou o corpo, por dois motivos: em primeiro plano, porque sua pele estava queimada e ardida, em segundo, porque o toque das mãos de Olívia, a aproximação e falta de intimidade entre as duas, a fizeram recuar instintivamente. Raquel era um tanto quanto arisca, podia-se dizer assim. Além disso, sentia-se tentada a pensar naquela mulher da forma como não deveria e isso reforçava suas barreiras naturais.

Percebendo a reação de Raquel, Olívia soltou o ombro no qual se apoiava e tentou equilibrar-se sozinha até estar totalmente calçada.

- Seus ombros parecem estar mais queimados do que meus pés. Desculpe... – dizendo isso, Olívia sorriu, olhando firme nos olhos de Raquel, de modo a poder contar os risquinhos escuros que se espalhavam ao redor de sua pupila, mergulhados no verde claro da íris, numa tentativa de apreender o verdadeiro motivo da atitude da bióloga.
- Tudo bem. Está desculpada, mas agora quem vai correr sou eu...meus pés, na verdade, estão quase acostumados. Eu menti ao dizer que já o eram... – Dizendo isso, Raquel retribuiu o sorriso e disparou rumo à sua casa.

Na verdade, a bióloga correu mais do que precisava. A presença de Olívia mexia com ela, a deixava meio atrapalhada, aturdida. Até sua pele parecia mais sensível e não era apenas a pele dos ombros queimados ou a que cobria a planta de seus pés, já calejados. Na verdade, seu corpo inteiro parecia ficar em estado de alerta quando Olívia estava por perto. Raquel lembrou-se da sensação que teve com um simples toque daquelas mãos suaves em seus ombros. Diante dessa constatação, a bióloga lembrou-se também de sua premonição. Então estava certa: Olívia, sua mais nova vizinha, afetaria seu quinto sentindo, o tato. E o mais irônico era que nem fora preciso tocar aquela mulher para saber o quanto a afetava. Pronto! Agora o único sentido que lhe restava intacto era o sexto e ele lhe dizia para ter muito cuidado! Foi o que Raquel pôde concluir.

Olívia ficou rindo sozinha, enquanto observava Raquel fugindo. Intimamente sentia que deixava a bióloga nervosa. Olhou para os pés, já calçados, e caminhou vagarosamente até sua casa, lembrando-se dos olhos de Raquel e, sobretudo, de seu jeito de olhá-la.

A primeira coisa que fez ao chegar, instintivamente, foi procurar pela bióloga na varanda da casa vizinha, mas ela não estava. Tinha que devolver as sapatilhas, esse foi o motivo que Olívia se deu.

Em casa, Raquel não conseguia parar de pensar em sua atitude infantil. Que coisa ridícula sair correndo, no meio da rua!, constatava. Mas Olívia era tão envolvente, tão sensual em tudo! Até o jeito como seus lábios se moviam ao falar, seu sotaque, a voz, os gestos usados para mexer nos cabelos, tudo nela era atraente! Olívia fazia Raquel se sentir desengonçada perto dela, como se fosse uma adolescente cheia de espinhas e de aparelho nos dentes! O que era aquilo, afinal? Sabia, mas não ousou responder a si mesma...não naquele instante.

Por volta das quatro horas da tarde, Raquel preparou-se para voltar às suas atividades. Concluiria impreterivelmente o trabalho naquele dia.

Quando Raquel ia saindo de casa, Olívia pode vê-la na varanda e sentiu-se tentada a chamá-la para devolver as sapatilhas. Imediatamente controlou seu impulso e ficou quieta. Mas, minutos depois bateu o remorso, pois imaginou que Raquel iria andar pelas pedras descalça e poderia ferir-se de verdade. Pelo menos, essa desculpa era mais convincente! Pensando nisso, rumou à praia.

O sol já estava se ponto, quando Olívia avistou Raquel, dentro d`água. À beira mar, ela a chamou, com as sandálias penduradas entre os dedos, demonstrando sua intenção. Raquel foi ao seu encontro.

Já fora do mar, em frente à Olívia, Raquel sentia-se mais à vontade. Talvez por estar em seu habitat natural, ali à beira da água, ou simplesmente por estar cansada demais para qualquer tipo de tensão. Com serenidade, a bióloga tirou a máscara de mergulho e passou a mão pelo rosto, afastando a água que escorria por sua face, num gesto natural. Olívia a admirava de perto, pensando que Raquel não deveria ter consciência do quanto era bonita e envolvente. Talvez fosse exatamente a falta de consciência do próprio poder que desse o charme a Raquel.

- Vim lhe trazer as sapatilhas e agradecer mais uma vez...espero que não seja tarde demais e você já tenha se ferido.

Raquel achou graça...olhou para os pés, um pouco cortados, com gotículas de sangue brotando dos leves arranhões e tentou afogá-los na espuma da onda que se estendia, para esconder os ferimentos dos olhos escuros de Olívia. Mas a médica já os havia percebido:

- Vejo que cheguei tarde – a expressão de preocupação e constrangimento de Olívia era visível – ...você já se machucou!
- Não foi nada demais, obrigada pela preocupação – disse Raquel, praguejando contra a onda que retrocedeu, descobrindo seus ferimentos, mas intimamente adorando o fato de Olívia parecer preocupada. Dizendo isso, a bióloga calçou-se e ia fazer menção de voltar ao mar, mas Olívia a interrompeu:

- Você não cansa nunca? Suas costas já estão tão vermelhas, vai terminar tendo uma insolação e aí a culpa não vai ser minha... – somente após seu comentário, Olívia se deu conta de que já estava se metendo demais. Afinal, não deveria demonstrar preocupação ou interesse em relação a Raquel e acabara de fazê-lo.

- É verdade...já está tarde, mas tenho que terminar esta coleta hoje, impreterivelmente.

Raquel falava ora como se fosse tímida, ora como se fosse arredia e essa mistura intrigava ainda mais Olívia.

Quando a médica pensava que a sereia fugiria novamente para a água, foi surpreendida com um convite:

- Você pretende voltar para casa agora?
- Não...na verdade ia fazer uma caminhada – mentiu Olívia.
- Então, quando você voltar já deverei ter terminado e te acompanho...seus pés podem ser sensíveis à lua também, só não sei o que vou fazer quanto a isso, mas... – Raquel riu e deixou Olívia boquiaberta.

Então a senhorita bicho do mato, ou melhor, da água, sabe ser sutil e prestativa também! Muito interessante! Foi o que Olívia pensou ao dar o primeiro passo de sua caminhada, já prevendo o tempo que levaria para voltar. Andou cerca de trinta minutos e retrocedeu. De longe, pôde ver que Raquel a esperava, sentada na areia. A lua começava a surgir.

As duas se encontraram e voltaram para casa, conversando e rindo, cada uma a seu modo, com seus sotaques, seus receios, suas cautelas, mas felizes, visivelmente felizes e leves. Olívia contou que era médica em São Paulo e outras coisas cuidadosamente escolhidas sobre sua vida. Raquel, por sua vez, também falou de sua profissão, de como era morar num lugar daqueles e viver como ela vivia...sem tantas coisas a esconder e medindo menos as palavras do que a médica. Olívia ria do sotaque nordestino de Raquel e tentava imitá-la, em vão, dizendo o quanto o achava diferente e gostoso de se escutar. Aos poucos, elas iam se sentindo próximas e descobrindo quão eram parecidas, por incrível que parecesse! A lua deitava-se sobre o caminho, em forma de luar, e não incomodou a nenhuma das duas. Ao contrário, fez o cenário parecer mais propício para aquele encontro.

Na frente das casas, se despediram com pesar.

- Eu passaria a noite inteira escutando você falar, sabia? – disse Olívia sem pensar, sem frear...deixando entreaberto se se referia ao sotaque de Raquel, às suas palavras ou simplesmente ao interesse que tinha em ouvi-la, em ficar perto. Na verdade, nem Olívia sabia exatamente o porquê daquilo, mas não queria se despedir, ao reverso, queria ouvir mais sobre Raquel, sobre seu modo de ser, de se portar diante da vida, queria senti-la um pouco mais.

Em resposta, Raquel completou:

- Não, não sabia...mas é muito bom saber – disse a bióloga, dessa vez sem se portar de maneira tímida ou arredia. Falou com a mais pura sinceridade, antes de dar as costas e entrar em casa.

Olívia fez o mesmo. Deu as costas e entrou, mas, quando atravessou a porta, sentiu que seu coração ia explodir! Não tinha como negar a si mesma que, novamente, uma mulher a havia despertado o interesse de maneira arrebatadora, enlouquecedora. Não havia como fugir daquilo, nem com o casamento, nem com a profissão. Seu corpo queimava. Sentiu vontade de voltar, abrir a porta, chamar Raquel e continuar a conversa até a madrugada, estendendo-se durante o resto do dia, durante o resto do verão...queria entrar em sua casa, ver suas fotos, entender seu jeito, tocá-la, saber o que pensava sobre aquilo tudo. Queria saber se ela sentia o mesmo. Queria tê-la! Era isso!

Raquel, por sua vez, sequer entrou em casa. Ficou ali fora mesmo, na varanda, na rede, olhando em direção à casa vizinha. Buscando, entre as frestas da janela, uma pista de Olívia. Tentando usar de sua telepatia para atraí-la até a varanda... sua varanda! Buscando aguçar seus sentidos – os seis! – para senti-la, de qualquer forma. Raquel fechou os olhos e foi inevitável lembrar-se de sua música preferida. Afinal, ali, naquele exato momento, as casas vizinhas nada mais eram do que os dois aquários da metáfora, separados, paralelos, que guardavam duas pessoas, dois mundos distintos, distantes, separados por vidros espessos, blindados, fincados... por muros de tijolos, muralhas de ideais. Seria difícil transpô-los. Talvez impossível, quem poderia saber? Em sua cabeça havia muitas dúvidas e apenas uma certeza: a de seu desejo. E desejava que Olívia estivesse ali... wish you were here.

O dia seguinte finalmente chegou. Foi de alívio a sensação de Raquel ao ver o sol despontando pelas frestas de sua janela, afinal passara a noite em claro, o esperando. Não conseguira pregar os olhos nem por meia hora. O foco de seus pensamentos estava na casa vizinha e chamava-se Olívia. Até o fato de haver, finalmente, concluído sua pesquisa, perdera a importância. Tudo parecia pequeno perto de sua ansiedade. Enquanto isso, pensava Raquel, a dona de seu desejo provavelmente estaria adormecida, tranqüila, em sua cama, enquanto ela estava ali, inquieta e insone, ansiosa por vê-la novamente.

Olívia, em seu aquário, também passara a noite acordada, lembrando de Raquel, sentindo-se culpada pelo desejo que lhe despertara, pelo frio na barriga que sentia quando pensava em seu sorriso, em seus olhos, em sua boca bem feita. Sentia-se tomada por uma mistura atordoante de felicidade, excitação, pressa, mas também de culpa, de medo, de receio. Sentia-se como se estivesse guiando e, de repente, se pusesse diante de uma curva enorme e perigosa, a partir da qual o caminho de vida poderia mudar por completo! Isso era, sem dúvidas, assustador, mas também inebriante! Era indescritível o prazer de simplesmente imaginar que essa reviravolta era possível, naquela altura do campeonato, quando já se sentia adormecida para esse tipo de emoção e imune a esses atropelos adolescentes. Chegava a ser maravilhosamente constrangedor sentir-se feliz e apaixonada novamente! Sentir o quanto era arrebatador e desconcertante querer alguém com todo o fogo e desejo que existiam em seu corpo. Todos estes pensamentos e sentimentos dividiram a cama cm ela, naquela noite. E como gostaria que, nas próximas, Raquel ocupasse aquele espaço! Foi tudo o que conseguiu arrematar naquele instante insone.

Mas, com a chegada do sol, ergueu-se e deixou a cama vazia. E apenas dois sentimentos a acompanharam durante o resto do dia: o de tristeza, pela vinda de Marcelo, e o de angústia, por querer, mas não poder, criar uma situação para ver e falar com Raquel novamente.

Raquel havia planejado chamar Olívia para irem à praia juntas, tomar banho de sol e de mar, quem sabe ficar jogando conversa fora no barzinho de Nayara, apresentá-la a Marçal, Gerônimo, Fandangos e ao resto do pessoal. Com certeza riria bastante com a Ex-galera do Mal. Raquel sentia necessidade de apresentar a Olívia seu mundo, seus amigos, as dádivas daquele lugar... ao concluir o pensamento, logo percebeu que, em verdade, queria compartilhar sua felicidade com ela. Logo com ela! E isso era um problema! Foi o barulho do carro de Marcelo que a fez lembrar deste porém: Olívia era proibida.

À medida que o carro de Marcelo adentrava na garagem, Raquel saía de casa, com pressa e um nó na garganta. Não ficaria para ver Olívia abraçar o marido, pendurando-se em seu pescoço, formando uma cena típica daquelas novelas convencionais e caretas do horário das seis, que geram com perfeição as fotos dignas de álbum de família... a sacramentada família! Só faltariam as crianças, os animaizinhos de estimação e a moldura. Pronto! Definitivamente Raquel jamais se encaixaria naquela cena, concluiu com pesar.

Olívia foi receber Marcelo na varanda com uma única intenção: a de tentar pescar uma imagem fortuita de Raquel, ainda que fosse saindo de casa. O que, sequer, conseguiu.

Na praia, em frente ao mar, Raquel praguejou contra seu receio, sua culpa e seu desejo; praguejou contra o destino que colocou Olívia em sua frente, ou melhor, ao seu lado; por fim, praguejou contra o frio das águas, quando mergulhou fundo, “furando” uma onda enorme que se formava. E nadou durante um bom tempo, tentando esfriar o corpo, a raiva, a cabeça; tentando parar de pensar em Olívia! Depois de cansar, de perder o resto do fôlego, Raquel foi procurar Nayara no bar e contou-lhe sobre toda a perturbação. Em resposta, escutou pouco e, ao mesmo tempo, muito:

- Não fuja, nem finja, Raquel. Vá à luta e pague pra ver! Às vezes, minha querida, não é uma questão de escrúpulos. É de salvação mesmo. Salve-se...e salve-a! Talvez ela esteja esperando por isso há tempo!

Raquel passou o resto do dia pensando nas palavras da amiga. Nayara, mais do que ninguém, a conhecia e sabia o que precisava escutar. Talvez estivesse certa!, pontificou.

Mas, quando a bióloga chegou em casa, já no meio da tarde, e, finalmente avistou Olívia, as dúvidas ressurgiram. Ela estava na varanda e parecia entretida, falando com Marcelo. Os dois estavam sentados à mesa, almoçando. Mais uma cena típica entre o casal perfeito para o cinema. Riu, com amargura e tédio.

Quando Olívia avistou Raquel, instantaneamente levantou-se e chamou-a, acenando. Seu coração disparou. Marcelo até surpreendeu-se, afinal, nem sabia que as duas já se conheciam. Mas não achou ruim a idéia de ter Raquel ali, à mesa. Ao convite, Raquel respondeu:

- Acabei de almoçar, obrigada! – e forçou um sorriso para Olívia, que já chegava ao portão – ...também não quero atrapalhar. Vocês estão em lua-de-mel, não é mesmo? – concluiu em voz baixa e forçando graça.

Olívia não soube o que responder. Uma parte de si queria acreditar ter ouvido uma pontinha de ciúme naquela pergunta, mas outra lhe dizia que estava era ficando maluca! Na verdade, Olívia queria puxar Raquel pela mão e lhe dizer que não, que não estavam em lua-de-mel coisa nenhuma! Que estavam era tendo uma conversa chata e entediante, fria e sem graça, que preferia infinitamente sair por aquela porta e ir andar pela praia, durante horas e horas com Raquel e depois preparar um jantar para as duas, com um bom vinho, naquela mesma varanda ou em qualquer lugar do mundo, não importava! Ao invés disso, baixou a cabeça, sem conseguir disfarçar o quanto estava contrariada. Ao erguê-la, Raquel pôde ver em seus olhos que estava triste e que não parecia, em nada, a mocinha da novela, enamorada do ator principal.

É, Nayara tinha razão. Olívia precisava ser salva! E não era inescrupuloso ou feio tentar sentir de perto se ela queria ou não ser resgatada daquela vidinha medíocre que tinha, ponderou a bióloga. Entretanto, Raquel não forçaria a barra. Apenas ficaria por perto, quando houvesse espaço e se houvesse. Mas, sem dúvidas, aquele não era o dia. Não com Marcelo ali. Ela esperaria...afinal, era isso o que vinha fazendo durante todos aqueles anos!

À noite, para tirar Raquel do “bode”, Nayara e os meninos chegaram à sua casa com o que chamavam de “kit festa”. Era o quadriciclo de Marçal, puxando a carroceria que engatava cuidadosamente em sua “máquina” – era assim que ele chamava o veículo! – com todos os instrumentos da banda, algumas garrafas de vodka e bastante comida. Fariam um luau ali mesmo, com direito a jantar e tudo, no jardim enluarado de Raquel. Arrastaram a mesa de madeira para o gramado, colocaram todos os bancos da casa ao redor, preencheram a mesa com as bebidas e comidas, ocuparam as mãos com os instrumentos e o resto dos espaços com o som acústico da banda.

Raquel recebeu-os com alegria e alívio, afinal, se tinha que esperar, que fosse, ao menos, com os amigos queridos e ao som de boa música. Nayara ficou feliz de ver o sorriso de Raquel. Chamou-a num canto e lhe disse:

- Isso também faz parte do plano, querida! Temos que ficar um bom tempo aqui fora que é pra ver se avistamos Olívia. Aposto que você passou o dia inteiro querendo uma desculpa para isso, não foi? Aqui está!
- Você não existe, Nayara! Não existe... – e as duas olharam para o lado, mas a varanda continuava vazia.

Dentro de casa, Olívia se roia por dentro de vontade de está ali, na casa vizinha. Enquanto isso, alheio ao desejo da esposa, Marcelo assistia ao Jornal Nacional. Quando, finalmente o programa terminou, foi ele quem convidou:

- Vamos à varanda, Olívia? Parece que o pessoal é animado! Vamos ver que tipo de amigos nossa vizinha cultua. Aposto que é um bando de hippies metidos a intelectualizados, feito ela, mas, pelo menos, tocam bem. Vão nos distrair. Vamos?

A consciência de Olívia, até aquele momento, havia dito que não, que não deveria ir até a varanda e fazer-se presente na festa de Raquel. Isso seria errado, afinal, a desejava e a intenção não era, nem de longe, ouvir a boa música que rolava no quintal ao lado. Mas, diante do comentário preconceituoso de Marcelo, todo resquício de culpa que Olívia poderia ter desapareceu. Merecia mesmo que ela fosse! Sua prepotência, o ar de superioridade, a arrogância faziam dele merecedor daquela traição e ela foi.

Os olhos de Raquel pararam nos de Olívia instantaneamente assim que ela apareceu na porta, acompanhada de Marcelo. Uma procurava a outra, uma esperava para ver a outra e ambas sabiam disso, ambas perceberam de imediato.

Nayara cochichou ao ouvido da bióloga:

- Vai, criatura, tá esperando o que para chamar o casal 20 pra cá?

A pergunta bastou para dar coragem a Raquel. Ela ergueu-se e foi até o muro baixo que separava as casas:

- Por que não mudam de lado? – foi sua maneira de convidá-los.

E mudaram. Olívia arrastou Marcelo pela mão, feliz e com pressa. Raquel apresentou a Ex-galera do mal e fez Olívia rir do nome da banda e de seus participantes. Marcelo estava abismado. Nunca havia participado de um encontro tão descontraído e agradável. Concluíra que os hippies que o cercavam não eram metidos a intelectualizados. Definitivamente, eram intelectualizados! As conversas se faziam interessantes, as músicas, bem escolhidas e de um bom gosto indiscutível, até a comida era simples, porém, cheia de estilo!

Raquel parecia tão natural e feliz ali, no seu lugar, entre seus amigos, sentada sobre um banco de madeira, apoiada nos próprios joelhos que abraçava, descalça, os cabelos enormes e soltos, o sorriso nos lábios que Olívia não conseguia parar de querer o mesmo para a sua vida. As duas sentaram-se em lados opostos na roda e isso as permitiu olharem-se durante toda a noite. Nayara, com perspicácia, escolhia as músicas que cantava a dedo. Queria letras que falassem do que aquelas duas mulheres deveriam estar sentindo, queria que Raquel pudesse dizer a Olívia, através das músicas, tudo o que gostaria e não podia. Com essa intenção, mesmo com o coração doído, pediu a Marçal a introdução de Wish You Were Here... a música preferida de Raquel e a que Nayara tantas vezes havia escutado e cantado pensando nela.

Diante dos primeiros acordes do violão, Raquel tremeu nas bases. Reconheceu imediatamente. Era a música! Tudo o que gostaria de propor a Olívia seria, naquele momento, dito pela letra de Pink Floyd, na voz de Nayara! Que coisa louca! Respirou fundo, fechou os olhos e sentiu a cabeça rodar um pouco, pelo efeito da vodka e, principalmente, pela emoção do momento. O que sentia era tão forte que chegava a assustar. Ao abrir os olhos, Olívia a observava. As duas, mais uma vez, falaram-se pelo olhar e a música começou.

Raquel, mesmo sem jeito, cantou baixinho cada palavra daquela música, olhando fixamente para Olívia, que, do outro lado de seu hemisfério, assistia com total dedicação e encanto aos lábios de Raquel movendo-se lentamente e aos olhos verdes que falavam tanto quanto aquela boca linda. Olívia entendeu a mensagem com precisão. Percebeu o recado, o chamado e jurou para si mesma que teria, ao menos, uma noite com a mulher que lhe convidava. Queria mais do que tudo e merecia, nem que fosse apenas um momento, um encontro com Raquel, para que pudesse respirar o resto da vida, suspirar o resto da vida, lembrando-se dele. Um instante com quem verdadeiramente queria lhe daria a energia que iria precisar para viver o resto de seus dias de tédio. Seria a lembrança guardada, escolhida a dedo, cultivada e consumida nas noites de tristeza e nos dias que seguiriam de solidão e cansaço. Olívia ficaria ao lado de Raquel, atravessaria o abismo, pelo menos uma vez, para que pudesse finalmente partir e levá-la dentro de si, inteiramente. Estava decidido.

A música chegou ao fim e com ela, o luau. Todos se despediram e partiram. Já eram quase duas horas da manhã. Marcelo agradeceu a Raquel e beijou-lhe a mão, num gesto de galanteio, antes de rumar à casa vizinha. Tudo o que conseguira pensar durante toda a noite era em como aquelas pessoas e seus estilos de vida eram diferentes do seu e do de Olívia. Como aquelas duas mulheres, Raquel e Nayara, eram diferentes de sua esposa! Cada qual com seu encanto, com suas vestes e seus feitiços. Nem de longe captava o quanto eram da mesma espécie, da mesma natureza, dos mesmos artifícios.

Olívia deixou Marcelo ir à frente. Vagarosamente, querendo ficar o máximo possível, encurtou os passos para que o percurso até a casa vizinha rendesse mais tempo. Raquel a acompanhava. De frente ao portão da casa vizinha, as duas colocaram-se também frente a frente e Raquel, num impulso, tomou as mãos de Olívia, que, àquela altura, estavam frias feito gelo. E apenas a médica sabia que não era pela temperatura da noite, mas pelo nervosismo, pela sensação de estupor que ela sentia por dentro, naquele momento. Ao toque, ambas se encararam e Raquel foi quem quebrou o silêncio:

- Desculpe qualquer coisa que tenha soado mal. Talvez você não esteja acostumada com esse tipo de gente ou de conversa. De qualquer forma, espero não tê-la assustado ou constrangido – esse foi o modo dúbio que Raquel encontrou para desculpar-se realmente sobre as “doideiras” dos amigos e a descontração de tudo, a simplicidade da casa, da comida, do encontro. Através das entrelinhas, também se desculpava pelos olhares que não havia conseguido evitar em direção de Olívia, pelo fato de ser mulher e, ainda assim, mostrar-se tão envolvida por outra, pela música, pela letra, pelo desejo cantado e, sobretudo, sentido, se é que a médica havia entendido...Na verdade, ainda não sabia exatamente o que se passava na cabeça de Olívia e tinha medo de ter passado dos limites.

Em resposta, Olívia aproximou-se e beijou-lhe o rosto de maneira cálida e lenta, passeando as mãos, já quentes, em sua face para depois se afastar e dizer:

- Tudo foi perfeito...E eu também desejo que você esteja por aqui o tempo todo... me assusta apenas o fato de você ainda não saber disso... – foi tudo o que Olívia pôde dizer e o bastante. O resto era apenas desejo mútuo, vontade mútua de saírem correndo dali para se terem por completo. E, agora, ambas sabiam disto!

Quando Olívia deu as costas e entrou em casa, Raquel caminhou contendo os passos e a alegria para, finalmente, dentro de casa, explodir, saltar alto e girar no ar, feito uma criança exultante e enlouquecida! Ali estava a fresta, a brecha, a rachadura no aquário, a porta entreaberta, a placa fluorescente indicando a saída daquele labirinto, daquele emaranhado de caminhos que sua vida havia seguido, em meio aos quais havia, tantas vezes, se perdido, se consumido. Estava pronta para sair de si, literalmente. Pronta para romper o vidro espesso do aquário que a prendia e, finalmente, nadar rumo ao mar aberto, ao incerto...e ela o faria, custasse o que custasse, ela seguiria.

O domingo foi longo para as duas. Sentiam-se tão ansiosas por mais um momento juntas e a sós que até evitaram se ver enquanto isso não seria possível. Leia-se, durante aquele dia.

Raquel saiu de casa por volta das oito horas com Merlim de um lado e a prancha, longboard, do outro, embaixo do braço. Foi surfar com Fandangos e Marçal para extravasar sua energia. Sentia que ia enlouquecer se ficasse em casa, vendo Olívia apenas de relance, do outro lado do muro, do hemisfério, ao lado de Marcelo, onde menos queria. Saíram do mar quase às três horas da tarde, cansados e famintos. Nayara e Merlim, como sempre, os esperavam, ele com o rabo abanando de alegria, ela com um almoço farto e colorido que havia preparado com Gerônimo, seu ajudante preferido. Todos comeram e riram bastante. Depois, ficaram até o cair da tarde sentados à beira do mar, na areia, lembrando dos velhos tempos e planejando os próximos...falaram bastante da viagem para o Havaí. Mas Raquel não estava inteiramente presente na conversa...grande parte de si estava em Olívia e esperava por ela, muito embora o encontro com os amigos fosse sempre agradável e descontraído. Por alguns instantes, sentiu-se menos incomodada pela pressa e pela tensão que agitavam sua respiração e seus gestos.

Já Olívia passara o dia quase todo dentro de casa. Marcelo estava preparando a palestra que daria no dia seguinte e ela não teve coragem de ir até a praia. Sabia que Raquel estaria lá com os amigos, em seu mundo e se sentiria mal de não poder participar daquilo por completo. Esperaria o momento certo.

À noite, Raquel trancou-se em casa com Merlim e tratou de fazer o relatório conclusivo da pesquisa. Foi difícil se concentrar. O tempo todo ela resistia ao impulso de ir à varanda para captar alguma imagem de Olívia, mas não o fez. Deitou-se por volta das onze horas e depois de algum tempo e muitos pensamentos, finalmente adormeceu.

Já Olívia, em seu quarto, com seus medos, zelos e, sobretudo, seu desejo, dizia um sonoro “não” a Marcelo. Ele queria fazer amor, mas ela não cederia. Não trairia seu corpo, nem seu instinto naquela noite em que se sentia tão preenchida por Raquel. Estava em sua mente e em seu corpo, apesar de caminhar do outro lado da rua, de dormir em outra cama, no aquário vizinho.

Finalmente segunda segunda-feira chegou. Marcelo partiu deixando um certo remorso em Olívia, acompanhado, é claro, por uma imensa alegria. Estava livre e nadaria até a casa vizinha imediatamente. Da porta, chamou Raquel, que em frações de segundo apareceu.

- Vim lhe convidar para tomar café da manhã comigo!

Em resposta, Raquel apenas sorriu e cedeu ao convite, caminhando ao lado de Olívia.

As duas comeram, brincaram, riram e conversaram durante horas e horas, sentadas na varanda, enquanto Merlim tomava sol no gramado. Depois saíram pela praia, andando feito loucas, sem destino, sem pressa, sem sentir o sol que as queimava, deixando marcas. Já possuíam tantas outras deixadas pela vida e agora, naquele instante, nem mais estas incomodavam ou doíam! Nada tinha importância. Estarem juntas fazia a diferença. Entraram no mar com os corpos quentes. Se fizessem algum esforço seriam capazes de ouvir o barulhinho da pele escaldada na água fria. Mas não estavam para esforços naquele dia, queriam apenas a paz dos preguiçosos, dos inocentes, a Felicidade Clandestina, tão bem descrita por Clarice Lispector, aquela que só sentimos ainda muito jovens, quando a leveza nos permite aproveitar os passos do percurso, mesmo quando ainda não chegamos exatamente onde queremos. E ficaram horas e horas driblando as ondas até chegar a calmaria da tarde. Era assim que deveriam também fazer em suas vidas? Esperarem o tumulto passar, as ondas se deitarem, a lua mudar e com ela, o mar secar e deixá-las em paz? Não se preocuparam em responder a esta questão naquele momento...era mais importante saber com o tempo. Que o presente não fosse estragado pelas conjecturas sobre o futuro, nem manchado pelas nódoas do passado.

A noite chegou depressa. Nada como se sentir leve para que os ponteiros voem, foi o que Raquel disse ao observar o relógio que lhe apertava o pulso. Eram sete horas da noite. As duas caminharam pela praia, de volta para suas casas, sob a luz da lua nova. A areia cedia espaço para que as pegadas de ambas se fizessem juntas, lado a lado. E assim, caminharam.

No quintal de Raquel, um chuveirão as esperava literalmente plantado no meio do gramado. Merlim foi o primeiro a fugir da água fria que saía dali. Bem sabia o que lhe esperava. Mas Olívia estava inocente na história. Aceitou o convide de Raquel para apenas tirar a areia dos pés. Fora tudo o que havia dito.

Enquanto a médica terminava de tirar as sandálias, Raquel já havia se livrado da bermuda e da camiseta, trajando apenas o biquíni. Olívia não pôde deixar de admirar, mais uma vez, o corpo musculoso e bronzeado que, demonstrando grande coragem, atravessou os pingos “chovidos” pelo chuveiro. Raquel, rapidamente, atravessou para o outro lado e, de supetão, puxou Olívia de roupa e tudo, colocando-a no meio do aguaceiro. A princípio fez cara de susto, depois de criança, depois de mulher e puxou Raquel para a “chuva”... afinal, quem está nela é pra se molhar. As duas pararam a centímetros de distância. Próximas, caladas, molhadas por fora e por dentro, a pele fria pela água, o ventre quente pelo desejo, tocaram os rostos, uma da outra, alisaram os cabelos, afastaram as gotas que lhe encobriam os olhos e se quiseram mais do que antes, mais do que nunca! Imersas naquela água, no mesmo desejo, pela primeira vez sentiram-se do mesmo lado, no mesmo aquário, rumo ao mar aberto ou ao deserto, quem se importava em descrever, em rotular a cena, em intitular o filme? Era mais importante vivê-lo!

Com este intuito, Raquel convidou Olívia para entrar de casa, puxando-a pela mão. Olívia, por sua vez, limitou-se a acompanhá-la e, já no meio da sala, deixou-se despir de toda culpa, de todo pudor, de todo receio, de toda a roupa, de todo zelo. Raquel fez o mesmo e as duas se juntaram, se misturaram, em água e desejo.

Raquel tomou a boca de Olívia e explorou cada espaço encontrado, cada gosto da saliva que sentia, que sorvia, que bebia com sofreguidão e sensualidade. As línguas dançavam juntas, queimavam juntas, buscavam-se.

Olívia sentia-se tremer de excitação. Os corações de batiam descompassadamente. Seus corpos se colavam, se amoldavam, se contorciam e as pernas ficaram bambas e cederam, e desceram até o chão, onde se encaixaram com mais perfeição ainda.

As línguas se separaram e Raquel passou a buscar o gosto de outros espaços do corpo de Olívia. Percorreu com lentidão o pescoço, sentindo o cheiro dos cabelos, mordiscando levemente a nuca de Olívia, fazendo-a gemer rouco. Em seguida, desceu até os seios firmes, sugando os mamilos róseos com cuidado, com os lábios, com afagos. Continuou o caminho pelo abdome, pelo umbigo, provocando gemidos, gritos, silêncio, até chegar ao ventre, protegido por uma penugem suave que guardava uma umidade quente. Raquel enfiou-lhe a língua, lambeu-lhe, sugou a seiva que lhe era oferecida, embebedou-se, devassou-lhe a intimidade, os pudores, as cautelas, fez com que abrisse mais as pernas e pedisse mais, conduzido os dedos de Raquel para a beira do precipício, e, em seguida, afundando-os no abismo de seu mais íntimo espaço. Olívia gozou forte, como nunca havia gozado.

Logo em seguida, com o fôlego ainda alterado, os corpos, molhados de água, gozo e suor, mudaram de posição. Naquele momento, era Olívia quem conduzia. Sussurrando no ouvido de Raquel, pedia mais, dizia, sem qualquer pudor ou cautela, que depois de gozar em sua boca, queria gozar em suas mãos e deitou-a, subindo em cima dela. Sobre o apoio dos joelhos, Olívia pousou nos quadris de Raquel e começou a mover-se, afundado os dedos experientes da bióloga em seu ventre, sedento de desejo. Depois do engate as duas começaram a mover-se. Era Olívia quem cavalgava as mãos de Raquel, subindo e descendo em cima dela, ambas na espera, com sofreguidão, no chão. Raquel fechara os olhos. Uma de suas mãos afundava os dedos em Olívia, enquanto a outra lhe apalpava os seios, os quadris, as ancas, as costas, os ombros...quando a boca de ambas se encontraram, as duas gozaram novamente, Raquel dentro de Olívia e Olívia por toda parte em Raquel.

Permaneceram alguns minutos abraçadas, unidas em suor e desejo, as bocas unidas em línguas, saliva, beijos. O mundo parecia não ter chão...tudo o que restava dele era apenas aquele pequeno pedaço que estava sob elas.

Após se recomporem do cansaço, ainda sob a emoção daquele instante compartilhado com tanta intensidade, levantaram-se e trocaram o piso frio de cerâmica da sala pela cama de alvenaria do quarto de Raquel, cuidadosamente coberta por um espesso colchão, uma colcha rústica e muitas almofadas, que se encarregavam de tornar aquele recanto ainda mais aconchegante.

Chegando ao quarto, ainda tomadas pelo efeito explosivo daquilo tudo, se olharam como se ainda estivessem se reconhecendo, incrédulas, encantadas, nuas, inteiras, delas...somente delas! Sorriram e Raquel quebrou o silêncio:

- Eu ainda nem consigo acreditar que você está aqui, comigo...eu desejei tanto isso, sabia? Esperei tanto...você foi a melhor coisa que já me aconteceu na vida, gostaria apenas que você soubesse e acreditasse nisso – concluiu, olhando Olívia nos olhos para, em seguida, puxá-la pela mão para a cama.

Antes de ceder ao impulso de deitar-se ao lado de Raquel, Olívia disse:

- Eu também, Raquel, também quis muito estar aqui, com você, desse jeito... – mas as palavras faltaram. Foi tudo o que conseguiu dizer.

Olívia não conseguia ainda acreditar naquilo, tudo tinha sido tão rápido, tão mágico, mas tão louco...queria muito que aquela noite não passasse, queria paralisar a vida naquele momento, mas sabia que isso era impossível! O frio no estômago lhe lembrava de que amanhã tudo poderia ser diferente, que em poucos dias iria embora, que no final de semana Marcelo estaria ali e ela também, na casa vizinha, longe de Raquel...de repente retesou o corpo e levantou-se bruscamente, dizendo:

- Vou dar um pulo lá em casa, pego umas roupas e volto.

Em seguida, saiu pela porta, colocou o biquíni que estava no chão da sala e, literalmente, fugiu. Quando caminhava para a casa ao lado, respirava fundo, tentando controlar o choro. Ao abrir a porta, correu para o quarto, rodou feito louca, sentindo-se abafada, triste, presa novamente aos medos, aos receios, à mediocridade... sim, era medíocre sua vida e ela também, foi essa a conclusão. Enquanto se livrava do biquíni, ainda molhado, tentando vestir-se com pressa, numa tentativa, quem sabe, de proteger-se, o celular tocou. Era Marcelo. Olívia sentiu a cabeça rodar ao ler aquele nome no display. Um enjôo a tomou repentinamente e o suor frio brotou na testa, nas mãos trêmulas, que atenderam ao chamado:

- Alô... – foi tudo o que saiu de sua garganta.
- Olívia, meu amor, onde você estava? Já é a quarta vez que ligo!

Ela quis desligar, correr para a casa ao lado e pedir a Raquel que a levasse dali! Queria abraçar-se a ela com toda força que havia em seus braços e fugir para qualquer lugar do mundo! Mas, ao invés disso, com a voz fraca, disse:

- Eu estava na varanda, lendo, e não escutei. Estava distraída... – começava a ter vontade de chorar novamente.
- Sei, mas como estão as coisas? Estou com saudades...
- Está tudo bem – definitivamente, não tinha condições de dialogar.
- Acho que você estava era dormindo...tá até com preguiça de responder! Amanhã conversamos melhor – Marcelo deu uma pausa, para ver se Olívia reagia e dava margens para alguma conversa, mas ela não o fez. Percebendo, ele tentou chamar-lhe a atenção de alguma forma e lembrou-se de um assunto interessante...na verdade, o assunto do dia, no congresso e continuou... – Ah, meu amor, quase me esqueço! Lembra-se daquela sua amiga de faculdade, aquela que estava sempre com você, a todo instante e hora? Mariza Venturine, se não me engano, cardiologista?

Era só o que faltava! Olívia perdeu o compasso da voz e da respiração. Justamente naquele momento, o nome de Mariza vinha à tona! Sim, havia sido ela sua primeira e única paixão, antes de Raquel, a única pessoa que a conhecera a fundo, que alimentara seus desejos, seu fogo, sua fome de vida, de loucura, a que havia feito suas mãos tremerem, sua pele queimar, sua vida ficar de cabeça para baixo até que o medo do preconceito superou a emoção e ela fugiu, casou-se com Marcelo e tentou mudar, recompor-se e levar uma vida convencional, como a que vinha levando até Raquel aparecer. Olívia respirou fundo e tentou fingir naturalidade:

- Sim, lembro, o que é que tem? – Olívia fechou os olhos e sentou-se para escutar o que viria. As pernas estavam fracas, a vista escura, as mãos frias.

- Imagine que ela casou-se com Daniel Bittencourt, aquele meu colega, neurologista, passaram três anos juntos e agora o abandonou e está de caso com outra mulher! Virou sapatão! Já imaginou? Ele ficou enlouquecido, virou alcoólatra e tudo o mais. Parece até que largou a medicina. E o pessoal não perdoa, né, você sabe! O assunto tá em alta...todo mundo só fala nisso! Mas é que não é mole ser corneado pela mulher e o pior, por outra mulher! Você sabia dessa preferência da sua amiga, Olívia? – Marcelo falou em tom de riso, mas surpreendeu-se com a reação da esposa, que, definitivamente, não tinha condições de encarar a brincadeira.
- Não, Marcelo, não sabia e nem me interessa. Durma bem, estou cansada demais para esse tipo de fofoca.

Quando Olívia desligou o telefone, sentia-se como se uma bomba tivesse explodido em sua cara, justamente quando se sentia mais vulnerável e frágil. Imaginou que aquilo aconteceria com ela também, que sua vida, seu desejo, sua imagem, tudo viraria uma historinha engraçada na boca dos outros, um motivo de riso, uma galhofa...lembrou-se do sacrifício e do sofrimento causado por ter acabado seu relacionamento com Mariza, lembrou-se da decisão de ter casado com Marcelo e ter se submetido a conviver com ele, a transar com ele, sem amor, sem vontade, sem paciência, lembrou-se dos anos que passara trabalhando com afinco para esquecer de sua frustração, de suas emoções, enfim, lembrou-se do quanto já havia investido para que tudo o que sentia fosse abafado e sua tendência escondida, concluindo que agora era tarde para voltar atrás. Depois de tanto sacrifício, sua escolha já havia sido sacramentada e agora ela não podia ceder, nem retroceder. Continuaria abafada, escondida, reprimida...era isso o que vinha fazendo, era isso que tinha de fazer para que todo o sofrimento de seu passado não fosse em vão! Não estava preparada para jogar tudo pra cima e sabia que, se voltasse, naquele momento, para a casa vizinha, abraçasse Raquel e a beijasse mais uma vez tudo estaria perdido. Não a abandonaria nunca mais e isso implicaria mais sofrimento! Não tinha estômago para aquela mudança. Não tinha coração para aquela paixão. Aliás, não poderia ter. Não depois de tudo que fizera! Eram essas as certezas que a invadiam naquele instante de pânico.

Raquel, inquieta, alheia a perturbação e arrependimento de Olívia, esperava. Depois de quase uma hora foi até o portão e a chamou. Olívia respirou fundo, terminou de vestir a roupa, a culpa, a máscara de frieza e apareceu na janela:

- Raquel, acho que vou dormir aqui mesmo – foi tudo o que disse. As mãos escondidas, para não demonstrarem o nervosismo em forma de tremor.

Mas a bióloga percebeu a cara de choro, os olhos vermelhos e questionou:

- O que aconteceu? Vamos conversar?
- Não há o que conversar – Olívia tentava não demonstrar nenhuma emoção, apenas distância, descaso – não quero que você confunda o que tivemos com um romancezinho de verão. A transa foi muito boa, mas é só. É melhor permanecermos, cada uma, do seu lado, no seu caminho. Não quero lhe magoar, não vou me envolver, nunca lhe enganei e não quero fazer isso agora.
- Olívia, eu não sei o que houve, mas o que você está me dizendo é simplesmente ridículo. Não quero um romancezinho de verão, acho que podemos ter muito mais do que isso! Se você quer ficar só, pensar, refletir, tudo bem, mas vamos conversar...
- Não quero conversar, Raquel, você não entendeu... – Olívia tinha de ser cruel e o seria. Era seu único modo de afastar Raquel. Se não o fizesse, abriria aquela porta e sairia correndo para a casa vizinha, a abraçaria ali mesmo, do lado de fora, naquele momento, e largaria tudo, mesmo sabendo que sofreria demais e a faria sofrer também, com suas fraquezas e medos. Pensando assim, escolheu as palavras com precisão, conteve as lágrimas e disse, com todo fingimento de que foi capaz – Acho que nos entendemos muito bem na cama, não vamos estragar isso com conversa. Eu tive atração por você e meu desejo foi satisfeito. Acho que o seu também. E pronto. Foi isso, só isso, não há espaço para mais... nem mais uma palavra. Boa noite.

Raquel sentiu-se morrer por dentro. Não queria acreditar no que escutara, mas era difícil não fazê-lo, afinal Olívia fora convincente demais, fria demais, distante, calma, parecia sincera, decidida, objetiva, calculista. Sentiu-se uma palhaça, um objeto, uma criança enganada, burra, estúpida, ali, no frio da noite, com o corpo ainda quente de desejo, o coração acelerado e uma paixão enorme por uma mulher simplesmente assustadora. Sim, Olívia a assustara, a magoara, a humilhara. Não esperaria mais nem um instante ali fora, no mar aberto. Fechou-se novamente em seu mundo, retornou ao aquário e quase o inunda de choro. Chorou muito, arrancou os lençóis da cama, jogou o colchão no chão e deitou-se na alvenaria fria. Também se tornaria fria, dura e áspera, feito aquela alvenaria que a consolava, sobre a qual, muitas horas depois, adormeceu.

Enquanto isso, Olívia não se reconhecia diante do espelho. O rosto vermelho, os olhos inchados, a boca infantilizada pelo choro, o corpo ainda marcado pelas mãos de Raquel, as próprias mãos impregnadas pelo cheiro daquela mulher que a arrebatara, que a enlouquecera, minutos antes. Ela não a merecia, tinha certeza disto. Sentia-se fraca, incapaz e desprezível pelo que havia dito e feito. Sua atitude só a provara que não era digna de Raquel e morreria por dentro por isso, mas morreria só. Fugiria mais uma vez, antes que fosse tarde, antes que causasse mais danos a Raquel e a si mesma.

Os dias seguintes foram longos, difíceis para ambas. Evitaram-se com tanto afinco quanto se queriam.

Raquel saía de casa cedo demais e voltava tarde. Havia procurado Nayara e conversado, desabafado várias vezes. A amiga, sempre presente, buscava consolá-la e juntas tentaram encontrar uma explicação para aquilo tudo. Mas nenhuma cogitação parecia capaz de justificar a postura de Olívia, a frieza, as palavras.

Enquanto isso, Olívia passava o dia em casa e a noite também. Não tinha com quem desabafar e nem conseguia pensar direito no que havia dito e feito com Raquel. Doía demais! Não se atrevia a ficar, sequer, na varanda. Não suportaria os olhos verdes de Raquel fuzilando-a, fosse de ódio, de decepção ou de desejo. Fato é que não suportaria olhá-la e ser olhada. Por dentro, se consumia, se mutilava.

Por muitos instantes ambas pensaram em se procurar. Cada uma por seus motivos, mas o orgulho era enorme, a mágoa também, os medos. Permaneceram inertes, imóveis, distantes e tristes. Cada uma em seu aquário.

Quando o final de semana chegou, Olívia estava desgastada mental e fisicamente. Marcelo percebeu o abatimento e estranhou. Mas a preocupação não durou muito tempo. No domingo, quatro médicos, amigos de Marcelo, viriam passar o dia com o casal e a preocupação dele voltou-se para isto. A notícia pegou Olívia de supetão. Era tudo o que menos precisava: ter de fingir simpatia e entusiasmo diante de quatro estranhos que, provavelmente, eram tão tediosos e metidos quanto o marido.

O domingo chegou e com ele, os visitantes. Estava certa. Pareciam bastante com Marcelo, em prepotência e meticulosidade. Era um casal de neurologistas, Marcos e Regina, e dois neurocirurgiões, Bebeto e Alex. Olívia até se esforçou para parecer simpática e receptiva, pelo menos durante o começo do dia, mas não obteve muito êxito. Depois de algumas horas de fingimento, chegou ao seu limite e trancou-se, ficou séria e na sua. Que explodissem, se não gostassem!

Enquanto Marcelo e os amigos conversavam animadamente na varanda, Olívia sentou-se numa poltrona, dentro da sala e ficou imóvel, perdida em seus pensamentos. Lembrou-se de Raquel, do luau, do quanto havia rido com ela, com seus amigos, lembrou-se da praia, da caminhada, da noite que tiveram e do desejo que ainda sentia. A queria demais! Chegava a doer ficar ali, parada, enquanto a vida passava e desperdiçava o tempo vivendo como não queria.

O devaneio foi interrompido por Marcelo, que já a chamava pela segunda vez, na porta:

- Olívia, vamos almoçar lá no barzinho. Venha.

Pensou em não ir, mas nada justificaria a atitude. Por outro lado, sentia que ia explodir se ficasse como estava. Precisava de ar...precisava ver Raquel, ao menos uma vez, naquele dia. Levantou-se e foi.

No bar, foram recebidos com simpatia por Nayara. Olívia só conseguia se perguntar se ela saberia do ocorrido. Procurou um vestígio de raiva, repressão ou qualquer outro sentimento nos olhos negros de Nayara, mas, se ela sabia de alguma coisa, não demonstrou.

Sentaram numa mesa de canto e continuaram as conversas de antes. Nenhuma chamou a atenção de Olívia, que permanecia calada. Seus sentidos buscavam apenas captar algum resquício da presença de Raquel. E desejava que ela estivesse ali...

O desejo foi realizado em poucos minutos. Era Raquel quem saía da água, junto com Marçal, Fandangos e as pranchas. Estavam surfando. Olívia sentiu o coração parar ao vê-la. Ela estava linda...perfeita!, constatou a observadora. Lembrou-se da primeira vez que a vira e teve vontade de levantar-se e ir ao seu encontro, mas não o fez. Limitou-se a baixar a cabeça e fingir descaso, frieza.

Raquel, tão desconcertada quanto Olívia, não soube fingir nada. Demonstrou exatamente o que sentia: tristeza e rancor. Os olhos verdes brilhavam, falavam, pareciam querer agredi-la, questioná-la, mas, ao mesmo tempo, possuí-la, abraçá-la. E se odiava por isso! Foi sentar sozinha na mesa mais distante que conseguiu, enquanto Marçal e Fandangos beijaram seu rosto e foram para casa.

Nayara, percebendo que Raquel precisaria dela, foi ao seu encontro e sentou-se:

- Calma, Raquel, calma...isso vai passar, como tudo na vida! Se você surfasse com um celular juro que tinha te ligado para você não vir, mas... – a amiga tentava arrancar-lhe um sorriso com a brincadeira mas não conseguiu – ...foi até bom você estar aqui, não dá pra fugir! Encare de frente o fantasma, meu amor.
- Não quero falar sobre isso, Nayara...mas também não vou sair correndo daqui. Nunca fui de fugir.

Enquanto Olívia e Raquel se contorciam por dentro, Marcelo e os amigos, alheios a todas as perturbações do momento, conversavam e riam alto, o que irritava Olívia. Mas sua irritação, sem dúvidas, chegou ao auge quando Bebeto comentou:

- Uau, vocês viram aquela mulher ali, que chegou com uma prancha? Em São Paulo eu nunca vi igual! Meu Deus do céu...é de tirar o fôlego!

Alex completou:

- É mesmo, mas a “cigana”, amiga dela, também é uma gata...dá pra nós, não acha não, Bebeto?

Marcelo riu e intercedeu:

- Eu não sei não, mas acho que daquele mar, literalmente, não sai peixe, meus amigos. Vocês não devem fazer o tipo delas...uma é a minha vizinha e a outra, a dona do bar. São meio anti-almofadinhas – e riu, lembrando do luau e dos amigos das duas.

Olívia quase levanta da mesa e sai dali. Não suportaria mais comentários daquele tipo em relação a Raquel. Sentia o ciúme tomar proporções inimagináveis dentro de seu corpo. Teve vontade de voar no pescoço daqueles dois e esganá-los com as unhas ferozes e vermelhas, de dizer-lhes que aquela mulher havia sido sua, inteiramente, que ela sim despertara-lhe o desejo, que aqueles dois eram um nada perto de Raquel e que não sabiam nada a seu respeito e nunca saberiam.

Mas, para completar o desespero, foi Marcelo quem sugeriu:

- Aposto que vocês não conseguem, sequer, sentar à mesa com elas!

Pronto. Era só o que faltava!, insurgiu-se em pensamento Olívia, enquanto se segurou com força no braço da cadeira e esperou para ver, se é que conseguiria só ver!

Como era previsível, os dois cederam à provocação de Marcelo e levantaram-se, indo ao encontro de Raquel e Nayara. Foi Bebeto quem começou:

- Bom dia, meninas! Será que podemos nos sentar aqui, com vocês? – sentia-se quase seguro, ostentando um riso galanteador nos lábios.
- Desculpe, mas não...preferimos que não – foi Raquel quem falou, tentando não soar tão rude, como, intimamente, desejava.

Sem se dar conta da inconveniência do pedido, Alex ainda insistiu, olhando em direção a Nayara:

- Isso é porque vocês não nos conhecem. Em cinco minutos, garanto que vão desejar que fiquemos aqui durante o resto da tarde!

Ah, não, aquilo era demais para se escutar, num momento como aquele, pensou Nayara, que era de poucos freios e intercedeu por Raquel. Sem titubear, pegou a mão da amiga entre a sua, com sensualidade e disse:

- Meu amigo, sentimos decepcioná-los, mas nada do que venham a dizer vai nos interessar. No momento, só me interesso por ela, entendeu? E não a dividiria com ninguém, nem mesmo para uma simples conversa numa mesa de bar.

Os dois se olharam, aturdidos. Desculparam-se, totalmente desconcertados e saíram com pressa. Na mesa, contaram o ocorrido e os outros também ficaram surpresos, chocados. Entretanto, o impacto maior quem sentiu foi Olívia.

Então ela superou tudo! Sim, enquanto eu me mato por dentro, ela está ali, bem feliz, com Nayara, publicamente! Foi tudo o que ela pôde concluir, com ódio, com ciúme e paixão. A dose foi forte demais para a tarde. Ergueu-se sem dar explicação e rumou para o banheiro, que ficava trás do bar, assim que viu Raquel ir até lá.

Raquel lavava as mãos, de costas, quando sentiu as mãos geladas de Olívia puxar-lhe pelo braço. Virou-se, olhou para a médica e, em seguida, para as unhas vermelhas cravadas em seu pulso, sem entender muito bem. Olívia esbravejou, entre os dentes:

- Você me surpreendeu! De verdade, Raquel, me surpreendeu. Não pensei que você já estivesse assim, tão bem, que já tivesse arrumado um outro “romance de verão” para se distrair. Mas que bom... – sua voz era irônica, o tom carregado de sarcasmo – ...que bom mesmo, assim me sinto menos culpada! Meu remorso já desapareceu, sabia?
- Você está ficando louca, Olívia? Do que está falando? – Raquel estava confusa, aturdida, revoltada.
- De você e Nayara! As duas “amiguinhas” de cama...perfeito! A palhaça fui eu, não é?
- Olívia, você não entendeu nada! Absolutamente nada! É uma pena... – Raquel estava mais triste ainda. Depois de tudo o que Olívia havia lhe dito, a última coisa que esperava era ciúme, orgulho ferido, ego, de sua parte. Não escutaria nem mais uma palavra daquela “cena”, poderia ser apenas mais uma armadilha, uma maneira de não sair como perdedora. Apenas isso. Infelizmente, depois da decepção que tivera, Raquel achava que Olívia era capaz de tudo – ...eu não tenho nada com Nayara. Na verdade, nem sei por que estou lhe dando alguma satisfação.

Dizendo isso, Raquel deu as costas e fez menção de sair, mas Olívia a puxou com força, ódio e desejo, encurralando-a na parede, com o corpo. Com a boca trêmula, os braços firmes, tomou o rosto de Raquel entre as mãos e sussurrou próximo à boca, com os olhos cheios de lágrimas e sinceridade, despidos de qualquer fingimento ou artifício:

- Você é que não entendeu nada, Raquel, absolutamente nada! – Olívia falava baixo, perto, sentindo o cheiro dos cabelos de Raquel e fazendo-a sentir-se tonta, atônita, surpresa – eu amo você, amo muito! Se eu beijar sua boca agora, terei que largar tudo, mudar minha vida, meus planos, superar meus medos e ficar aqui, porque não conseguiria mais sair de perto de você! E eu não posso... – Olívia já não controlava o choro e fechou os olhos por algum tempo – ...eu simplesmente não posso! Sou fraca, sou medrosa, sou...indigna de você, mas eu te amo! É isso!

E saiu correndo, sem olhar para trás. Sentia-se ridícula. Egoísta. Foi embora para casa, sem, ao menos, avisar a Marcelo.

Raquel sentiu que cairia no chão se não sentasse e o fez. Encostou-se na parede e escorregou até a areia, permanecendo imóvel, incrédula, assustada, escondida dos olhos de todos. Também amava Olívia, mas não se sentia no direito de buscá-la, de tirá-la de sua vida, de seu percurso, de seu mundo, de pedir-lhe para ficar. Ela já parecia estar sofrendo demais...talvez as duas existissem realmente para viver separadas, cada uma em seu lado, em seu aquário, para que não se afogassem no mar aberto. Já não se sentia muito capaz de nadar...na verdade, sentia-se afundando a cada segundo que passava.

O resto da semana transcorreu sem que as duas se vissem.

Apesar de tudo o que havia sido revelado, Raquel sentia-se mais aliviada em saber que não tinha sido apenas um joguete nas mãos de Olívia. Por outro lado, escutá-la dizer que a amava e ter permanecido calada fora uma prova de fogo. A cada segundo do dia pensava em atravessar a porta, o muro e gritar para Olívia sobre o que sentia. Contar-lhe sobre seu amor e seu desejo de impedi-la de partir. Controlava-se ao pensar que isso talvez causaria mais transtornos e não o fez.

Olívia, por sua vez, desejou mais do que tudo na vida que Raquel a procurasse, a fizesse ficar, mas, intimamente, também agradeceu por ela não fazê-lo, pois não resistiria, mesmo sabendo que a faria sofrer e também sofreria bastante.

Na quarta-feira o congresso de Marcelo acabou e ele retornou. Doravante, passaria o resto dos dias com Olívia, conforme o combinado. Mas a médica tinha outros planos e convenceu o marido a partirem no dia seguinte, com o argumento de que já estava cansada da praia, do sol e das pessoas dali.

Na quinta-feira, enquanto o avião decolava, Olívia sentia o peito comprimido e uma sensação de estar pela metade, de estar partindo sem rumo, sem prumo, sem bagagens que valessem alguma coisa perto do que deixava para trás. Nada do que havia comprado ou possuído durante toda a vida preencheriam o vazio que sentia naquele instante. Nem mesmo a profissão, os amigos, a casa lhe trariam conforto e paz. Só conseguia pensar em Raquel...só conseguia querê-la, senti-la, imaginá-la. O resto não tinha cor, sabor ou som. Era esta a sensação.

Raquel, por sua vez, quando percebeu a casa ao lado vazia correu para o mar e entrou na água. Mergulhou e permaneceu no fundo, de olhos abertos, tentando imaginar-se em outro mundo, em outro planeta, longe daquela saudade, daquela tristeza que sentia e sentiria pelo resto dos dias. Ergueu-se sem fôlego e ficou literalmente à deriva, esperando as ondas baterem em seu corpo e levá-la para longe dali.

Os meses se passaram, mas o sentimento de saudade crescia em ambas. Nada havia sido abafado ou modificado pelo tempo. Tudo ainda ardia.

Olívia não conseguia se concentrar em nada. Fazia tudo pela metade e mal feito. Marcelo, que a tudo assistia, lamentava ver a esposa daquele jeito. Ela já não espelhava a perfeição, em atos e gestos, de outrora. Parecia triste, confusa, alheia ao casamento, à profissão, ao mundo E ele odiava vê-la assim e permanecer inerte.

Num dia de chuva, enquanto Olívia olhava pela janela do apartamento, Marcelo a interrompeu. Precisava agir e o fez:

- Olívia, lembra do dia em que lhe contei a história de Daniel e Mariza? Do final do casamento dos dois?

Olívia não queria que aquela conversa viesse novamente à tona e voltou-se ao marido, demonstrando inquietação e pouco interesse. Marcelo, entretanto, continuou, sem lhe dar espaço:

- Calma, me escute...naquele dia eu não lhe contei a história toda. Na verdade, não comentaram apenas sobre o fato de ser homossexual e de haver trocado Daniel por outra mulher. Comentaram também que Mariza estava mais feliz do que nunca, mais bonita do que nunca, muito bem sucedida e...falaram ainda que ela e a namorada formavam um belo par – fez uma pausa, tentando controlar a ansiedade diante de Olívia. Marcelo media as palavras para transmitir-lhe o recado da forma mais sincera, sutil e convincente -...quanto a Daniel, ontem mesmo eu o encontrei. Parece estar se recompondo, retomou os trabalhos, estava de barba feita, todo pronto...ia sair com uma moça que conheceu há alguns dias. Estava até empolgado! Pois é, Olívia. Na verdade, minha cara, tudo passa. Basta que deixemos passar! Era isso o que eu queria lhe dizer.

Olívia escutou cada palavra como se estivesse sendo salva de uma tempestade. O vento havia mudado. Entendeu com perfeição o recado. A voz de Marcelo era calma, compassada e ela, depois de muito tempo, sentiu-se feliz e segura para dizer:

- Marcelo, eu quero o divórcio.
- Eu sei, Olívia, eu sei. Eu também o quero...na verdade, quero vê-la novamente feliz e também quero me sentir assim, como você está agora: aliviada.

Enquanto isso, Raquel, na varanda de casa, assistia com Nayara e Merlim a placa ser novamente colocada na casa ao lado. Daquela vez, os dizeres eram outros. O “aluga-se” cedeu espaço ao “vende-se”, mas nada daquilo fazia qualquer diferença, nada tinha muita importância. Não houve espaço para lembranças dos outros vizinhos, reclamações ou receios. Só uma coisa importava para Raquel: o fato de saber que Olívia já não estava ali.

Poucos dias depois, ainda pela manhã, Raquel levantou-se para cortar a grama e percebeu que a placa não estava mais no portão ao lado. Alguém havia, finalmente, comprado a casa. Agora não se destinaria mais a temporadas. Seria definitiva a vizinhança. Por segundos, cedeu à curiosidade de ver quem ficaria ali, a seu lado, pelo resto dos dias. Ao prestar atenção no carro estacionado na garagem, pôde ver na placa “São Paulo” e seu estômago deu uma volta bem arredia. Tudo lembrava Olívia.

Quando voltou para o gramado novamente, pondo-se de joelho no jardim com o podão em punho, Merlim latiu, denunciado a presença de alguém, bem ali, no muro ao lado. Foi quando os olhos verdes miraram a figura que, debruçada na murada, sorria. Era Olívia.

Raquel ergueu-se muda. Ficou alguns segundos parada até, finalmente, se aproximar com um tom de pergunta no olhar.

Olívia respondeu ao silêncio de Raquel com as palavras que havia ensaiado durante toda a viagem:

- Eu vim lhe perguntar se... – fez uma pausa, com receio de receber um não como resposta, mas continuou – você está disposta a dar continuidade ao nosso “romancezinho” de verão?

Como Raquel permaneceu calada, incrédula, Olívia continuou, desfazendo qualquer mal-entendido:

- Só tem um problema, o verão terá de se estender por muito tempo. Pelo menos uns trinta anos, já que pretendo derrubar esse muro e reformar nossas casas, tornando-a uma só, se você quiser, é claro... se estiver disposta a sair do seu aquário e vir comigo, para um que seja nosso, só nosso...e de Merlim, claro.

Raquel sorriu. Olhou Olívia nos olhos, largou o podão no chão e rachou o vidro que a cercava, pulou o muro, atravessou o hemisfério, deixou a água jorrar, inundou-se de alegria e abraçou-a. Sim, sem nenhuma dúvida, aceitava a proposta!

Em seguida, Raquel puxou Olívia para dentro de casa, sua nova casa, e beijou-a com todo o desejo que havia guardado. Aguçou os sentidos para recebê-la. Sentiu o gosto de sua boca, o cheiro de seu cabelo, sua voz macia, em seu ouvido, olhou-a fundo, nos olhos e, por fim tocou-a, primeiro no rosto, enquanto ela sorria, depois as costas macias, enquanto Olívia cerrava os olhos. A saudade povoava os corpos, assim com o desejo. O sexto sentido, último a ser atiçado, intimamente lhe dizia que aquele romance realmente daria certo e não possuía nada de diminuto. Faria com que desse certo, custasse o que custasse. E daria! Olívia teve a mesma sensação. A mesma premonição.

Um ano depois, no Havaí, a Ex- Galera do Mal, leia-se, Nayara, Marçal, Fandangos e Gerônimo, curtiam o sol, na areia, sentados em cadeiras preguiçosas, confortáveis, ao som de hula hula, tomando água de coco, com os pescoços adornados por colares havaianos, enquanto comentavam o quanto as duas mulheres que namoravam no mar, ali em frente, eram diferentes e, ao mesmo tempo, parecidas: de um lado estava Olívia, com a pele muito branca, coberta por protetor solar, os gestos polidos, o porte elegante, feminina ao extremo, do outro, Raquel, bronzeada, rústica, malhada e descontraída. Entretanto, o sorriso das duas, o amor cultuado e oferecido, o aquário onde moravam e os olharem embevecidos eram os mesmos. E isso era o que realmente importava!, concluíam em uníssono.

No final da tarde, o mar aberto já não estava perturbado pelas ondas. Havia se transformado em um mar calmo, tranqüilo, receptivo. Enquanto ele estivesse assim, ali estariam. Quando as ondas retornassem e a força as perturbasse, tinham para onde voltar: o aquário duplicado e fortalecido que construíram. Ele as abrigaria, quando fosse preciso. Ter esta certeza, por si só, era uma dádiva e lhes dava a força necessária para seguir, dessa vez, do mesmo lado. Dentro ou fora do aquário.