domingo, 21 de junho de 2009

A ENCOMENDA (Capítulo I)

CAPÍTULO I
O RELATO
Décimo sétimo andar. Ali estavam. No final do corredor de um hotel barato e nada glamoroso, sobre o carpete acinzentado que, insistente e sujo, retirava parcialmente a frieza do solo, as duas, finalmente, se sentaram, uma defronte à outra.

Após um longo abraço embalado pela saudade, olharam-se até se ver mutuamente refletidas, uma na visão da outra. Era uma brincadeira tola que sempre repetiam, como se apenas assim a saudade se compartimentasse e elas coubessem dentro de si, acalmando os corações que batiam forte a cada reencontro.

Somente depois de respirar fundo por várias vezes, como se, desta forma, tentasse acomodar pouco a pouco o entusiasmo que a tomava, a narradora iniciou o relato que, naquele ano, ofereceria de presente à amiga escritora.

Há tempos não se viam e, sempre que se reencontravam, faziam valer o antigo pacto: ofereciam, uma a outra, um presente inesquecível. E, para aquele ano, a amiga que, atualmente, morava no Rio de Janeiro, ofertava à que morava em Salvador o enredo que serviria para um conto.

Mas, antes da primeira frase do relato, uma ressalva: aquela história era por demais preciosa e, infelizmente, restava inacabada. Bem por isto, estava sendo oferecida à escritora para que esta, por meio de sua arte, desse à trama o desfecho que não houve.

E assim, munida desta necessidade, a narradora começou a mexer nas gavetas de sua memória, retirando de lá as mais marcantes imagens e frases daquela que, não fosse a crueldade do acaso, teria sido uma grande história de amor.

Enquanto os pingos grossos de chuva pareciam ser raivosamente arremessados das nuvens, a que olhava para o alto sentia as pupilas se dilatarem em meio à íris amarelada que, enfrentando o céu, buscava o sol em meio aos últimos vestígios de claridade que ainda acendiam aquela tarde nublada.

Em verdade, dentro de si, a dona dos olhos amarelos também procurava a luz e de há muito não encontrava. Com uma imensa mochila nas costas, o peso que mais fazia seu corpo pender era o das nuvens escuras que pareciam existir, de forma quase palpável, em seu íntimo. Ali elas também se aglomeravam e a tumultuavam.

Quatro anos haviam se passado e continuava se sentindo uma forasteira em qualquer cidade que chegasse. Definitivamente, ao contrário de Laura, havia esquecido a sensação de estar em casa, tanto tempo fazia que assim não denominava qualquer lugar. E, a tal ausência, por mais que o tempo passasse, simplesmente não se acostumava.

A namorada havia escolhido aquela vida para si, inclusive pela profissão que desempenhava. Entretanto, onde quer que chegasse, dizia sentir nos braços de Manuela o abrigo que precisava. Mas, infelizmente, consigo não acontecia o mesmo.

Embora amasse Laura, os braços da namorada não lhe serviam de casa. Já não se sentia confortável com as intermináveis viagens que faziam, sem um ponto de apoio, sem um ponto de partida, sem um ponto de chegada, sem um mapa. Possuíam apenas as mochilas que, a cada dia, pareciam mais pesadas, e o objetivo de libertarem-se das convenções, das prisões, das amarras.

De início, é bem verdade, encantou-se com aquele estilo de vida tão genuíno, tão aventureiro, tão despojado, tão desprendido de matéria e de medos, que fazia Laura parecer uma mulher leve feito as diversas flores de lótus que possuía tatuadas nos braços e corajosa feito os tigres e dragões que lhe estampavam as costas.

As duas haviam se conhecido num vernissage realizado em Buenos Aires, para a qual Manuela havia sido contratada como fotógrafa. Uma das pinturas de Laura, como vinha ocorrendo com freqüência nos últimos anos, tinha sido premiada. O modelo que havia lhe emprestado a nudez, pousando para o quadro, logo após o recebimento do prêmio, apontou-lhe, com graça, a irmã, que era exatamente quem, naquele instante, os fotografava, tendo por foco mais a artista do que, propriamente, a arte.

Através da lente de sua câmera, Manuela logo percebeu o quanto aquela mulher que mirava era intensa e pouco se enquadrava em qualquer molde. A moça loira, de boca pequena e rosada, de cabelos curtos e eriçados, de jeans surrado e camiseta escura, era peculiar demais e não apenas pelas tatuagens que lhe adornavam todo o corpo. Era singular, sobretudo, por seus modos, por seus olhos, ambos firmes feito as mãos que, com precisão absoluta, traçavam os desenhos mais perfeitos e os dava vida através das cores.

Na sucessão das fotos e das tentativas de fazer caber em estreitos ângulos tão ampla personalidade, Manuela terminou por se aproximar da que fotografava. Sorrindo, estendeu a mão, enquanto o irmão as apresentava.

Ao toque, ambas souberam: aquele seria o primeiro de muitos outros. Laura, tímida e contida, mesmo a contragosto, ruborizou-se. Manuela, não perdendo um detalhe sequer do desconforto, provocou dizendo-lhe que, definitivamente, a artista ficava bem de vermelho.

E assim, na seqüência do aperto de mãos, logo marcaram um encontro com um objetivo já definido, segredado com graça pela fotógrafa, que, sem rodeios, disse querer encomendar um quadro com flores de cerejeira, suas favoritas, de preferência, tão vermelhas quanto Laura estava. E a pintora, que, aos poucos, retomava a brancura, no segundo vindouro tornou-se ainda mais rubra.

Durante cinco dias da semana seguinte, as flores de cerejeira foram gradativamente estampadas na tela daquela que, com as mãos geladas, ofereceu à pintora, no derradeiro dia de confecção do quadro, mais do que uma aquarela perfeitamente embrulhada para presente: sua admiração.

É que, durante as sessões de pintura, nas quais Manuela fez questão de estar presente, Laura, com sua habilidade, a cada traço delineado, dava vida às flores e, mesmo sem perceber, reavivava também, na seqüência de cada frase pronunciada sobre sua história, aquela que há tempos sentia-se morna.

Manuela escutava com atenção suprema os relatos das viagens da pintora e, com o coração já vibrante feito a tinta que estava sendo usada, desejou também experimentar daquela liberdade, galgar aquela coragem de lançar-se nas estradas em busca de conhecimento, deixando os planos em segundo plano. A moeda mais valiosa era o improviso, dizia-lhe Laura. Afinal, dele havia colhido as maiores virtudes e concretizado os mais valiosos sonhos.

No mês seguinte, já como namoradas, rumaram para a Etiópia. Lá fariam, em conjunto, uma sessão peculiar de quadros e fotos. E a paixão, ao menos naquela fase, era tanta que o quarto com cheiro de mofo parecia perfeito a cada final de dia, quando as duas finalmente se encontravam. Laura passava as tardes tentando diluir em cores a pobreza do continente africano, enquanto Manuela, fazendo uso de sua câmera, andava por horas e horas nas estradas precárias daquela cidade que, através das lentes, lhe parecia ainda mais estranha.

O resultado daquela primeira viagem foi simplesmente fabuloso e visto por todos os ângulos: desde o profissional ao pessoal. A relação fortalecia-se a cada dia, assim como a arte das duas, em fotos e cores.

Entretanto, na continuidade das jornadas, das cidades e, sobretudo, dos anos, a poeira dos quartos começou a incomodar Manuela, principalmente diante do autoritarismo de Laura, que não admitia despender o mínimo de dinheiro com qualquer regalia. E embora Manuela se irritasse, dizendo que lençóis limpos não poderiam jamais ser classificados como luxo, a namorada não cedia: tinha por princípio desprender-se da matéria ainda em vida e, dia a dia, praticava com afinco a ideologia, que, definitivamente, não era a da outra.

Manuela queria o mínimo de conforto e, munida deste desejo, depois de três anos de namoro, sugeriu que utilizassem parte das economias para comprar um pequeno apartamento no Rio de Janeiro, que serviria como ponto de apoio. Esta foi a desculpa elaborada. Mas, em verdade, a moça queria tão somente chamar algum lugar de “casa”: queria um cais para não se sentir eternamente feito barco sem rumo, deslizando ao sabor da corrente em meio ao nada. Estava cansada de desaguar sempre num desconhecido mar e não ter, no desalento das viagens, para onde voltar, tampouco onde ser ancorada. Já se sentia sem forças para continuar naquela tosca jornada.

Mas Laura, como esperado, não concordou. Planejara utilizar as economias para uma longa temporada na Europa e, mais uma vez, seu desejo imperou. Bem por isto, nos meses vindouros, o desencontro foi a tônica da estada. As duas, apesar de dividirem a mesma cama, pareciam dormir em hemisférios opostos. E, nesta seara, nem mesmo Paris, com todo o romantismo a cintilar nas luzes da Torre Eiffel, foi capaz de reuni-las num beijo, como Laura imaginou.

Por dias, mal se falaram. E assim, durante aquela última temporada, as pinturas confeccionadas por Laura pareceram menos vivas, enquanto as fotos tiradas por Manuela eram reveladas em preto e branco, apesar de tantas cores.

E assim, os tons pastel foram tomando conta da vida de ambas, enquanto o desencontro diluía a coloração das imagens que, outrora, habitavam os desenhos de Laura e as fotografias de Manuela. As duas, antes tão preenchidas, agora se sentiam desertas.

De volta ao Brasil, depois de tanto, tudo parecia pouco, inclusive o amor que nutriam uma pela outra. Mas o silêncio havia sido pactuado. Preferiam não falar sobre as ausências, limitando-se a discutir sobre o que restava. E restava-lhes a vontade de superar aquele desencontro, quem sabe, com uma nova estada?

E ali estava iniciado um longo relato.

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