quinta-feira, 2 de julho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo III )


CAPÍTULO III
A PROMESSA EMOLDURADA


Regressando das lembranças, Manuela, apenas ao ser tomada pela chuva, percebia a ironia da vida: finalmente chegava à cidade natal da mãe e em pleno mês de maio, mas, ao reverso do que Júlia relatara, não foi o sol quem a recebeu, tampouco a claridade irrestrita.

O dia estava nublado, assim como o interior daquela que, com pesar, consultava o céu, afogando a íris tão amarela quanto a da mãe nos pingos da chuva que, grossa, caia.

O povoado era realmente modesto, o que Manuela já esperava. Desceram do ônibus defronte a uma grande cancela, sinalizada metros antes com uma placa de madeira onde restava insculpido “Portal de Espelhos D’água”. Ali parecia ser o único acesso à cidade.

O Portal ficava no alto, ladeado por dois seculares Carvalhos, que podiam ser avistados desde o início da subida íngreme que se lançava ladeira acima. A estrada estreita que serpenteava por entre os montes, fazendo o ônibus erguer a poeira vermelha, própria do barro batido, desde os primeiros metros, causou um incômodo gélido nas mãos de Manuela. Ela realmente não sabia o que estava por vir. Na ânsia de reavivar em fotografias as imagens maternas, mal sabia o quanto reavivaria dentro de si.

Pois foi ao atravessar o chamado Portal de Espelhos D’água que a filha avistou, pela primeira vez, a imagem que a mãe deveria ter carregado dentro de si, por tantos anos, imaculada: os três montes extremamente verdes, onde a cidade parecia incrustada, pareciam disputar em cor com o azul claro do Rio São Francisco, que corria marejando a lateral dos montes, enquanto o mar, do outro lado e de azul mais escuro, se espalhava.

Os tons de verde e azul, misturados ao vermelho, amarelo, laranja e branco das pequenas casas, pareciam compor uma peculiar aquarela, rica em cores, em que pese à simplicidade das pessoas e das construções, tão singelas, quanto precárias.

A cidade havia sido estruturada de forma circular e alta, enquanto as estreitas estradas pareciam imitar rios que corriam para o mar, descendo os montes e indo se encontrar naquela que parecia ser a única praça. E era justamente beirando tal praça que despontava aquele que, incontestavelmente, deveria ser o Lago das Ilusões, logo pontuou a fotógrafa, ainda com a câmera nas mãos.

Entretanto, apesar de o relógio registrar as doze horas de um dia marcado no mês de maio, a ausência de sol, naquele dia nublado, inviabilizava o reflexo na água: a cidade, no lago, não se duplicava. Os pingos grossos de chuva maculavam a limpidez e quietude das águas.

Ainda assim, a simples claridade do dia viabilizava à expectadora a vista que, certamente, seria a responsável pelo nome da cidade: nas margens do São Francisco, graças à vazante, inúmeros bancos de areia fina foram erguidos e entre eles reluziam, apesar da chuva, as poças chamadas espelhos d’água. E a segunda foto foi tirada.

Com um sorriso estampado no rosto, Manuela virou-se para Laura e, depois do silêncio que havia perdurado por toda a viagem, as duas, finalmente, se falaram. Laura pontuou a beleza das cores do lugar, enquanto Manuela relatou os tons escuros da ansiedade: estar ali era a última homenagem que prestaria à mãe, tentando registrar pelos olhos de Júlia as melhores e mais saudosas imagens. Bem por isto, o peso da incumbência e, sobretudo, da emoção a fazia manter a mão firme com certa dificuldade. Estava trêmula e não queria reproduzir tal hesitação nas imagens.

Laura retribui o sorriso e, beijando a fronte da namorada, disse que se acalmasse. Teriam muitos dias pela frente e o tremor das mãos, assim como outros descompassos, haviam de ser sanados. Era esta a esperança que as movia, inclusive a que fez com que ambas, em pegadas firmes, dessem os primeiros passos afastando-se do portal, rumo à cidade.

Nos primeiros dias, ficaram na única pousada com a qual o povoado contava. Mas, da segunda semana em diante, decidiram: precisavam de um lugar mais aprazível para o descanso e mesmo para o trabalho. E diante da chance não havia porque recusar. O dono da pousada, um americano que havia se encantado com Espelhos D’água, foi quem anunciou: iria passar uns meses nos Estados Unidos e alugaria sua casa no povoado. Seria um prazer, por questões de afinidades, alugar para ambas.

Era um pequeno chalé adornado em madeira e vidro, que contava com um quintal preenchido com as mais variadas e exóticas plantas; uma pequena varanda, que circundava a casa, emprestando-lhe charme em forma de redes e espreguiçadeiras coloridas e displicentemente espalhadas; uma pequena sala de estar, rústica e mobiliada apenas no estritamente necessário; um segundo pavimento, onde havia um confortável e amplo quarto; e um terceiro ambiente, que ficava do lado de fora da casa.

E fora sobretudo em virtude deste terceiro ambiente que o americano ofereceu as duas a casa: no final do quintal, por entre arbustos e árvores, à beira de um pequeno riacho que roubava suas águas do São Francisco, funcionava uma espécie de ateliê para pintura, leitura, música e outros ramos da arte. Era ali o recanto mais precioso do mundo. Segundo o americano, o único lugar onde, apesar de revirar os mapas, havia encontrado a paz para sua alma inquieta e desorientada. E foi justamente após esta frase que Manuela pareceu decidir-se. Olhando para Laura, questionou tão resoluta quanto direta:

- Vamos olhar a casa?

E somente no dia seguinte, diante da porta de vidro que dava acesso ao local designado pelo dono como Recanto das Artes, Manuela teve a dimensão do acerto de sua escolha. Nenhum lugar seria mais perfeito para inspirá-las.

A transparência do vidro, mesmo antes da entrada, anunciava o aconchego do lugar. O piso de madeira escura, coberto por tapetes imensos e estampados, restava preenchido nos recantos com almofadas. Nas paredes, intercalavam-se janelões e estantes, estas repletas de livros dos mais variados. Num dos quatro cantos da sala, tomando as formas de uma oca, com a parede curva e o teto rebaixado, o americano havia instalado um potente som e algumas caixas que, ao ensejo da acústica proporcionada pelo formato do espaço, emprestava a qualquer melodia a perfeição de valsa. Antes da entrada da aludida oca, havia também um clássico piano de cauda. Além de todas as nuanças rapidamente captadas, Manuela vislumbrou ainda uma porta que dava acesso a um quarto escuro, provavelmente onde o proprietário revelava as fotos que, aqui e acolá, encontravam-se espalhadas. Por fim, numa parte do ambiente onde o teto havia sido feito de vidro, restavam dispostos alguns tripés e aquarelas iluminadas naturalmente pela claridade do vitral.

E todo o cenário foi captado pelas duas ao som do riacho, que, em plena harmonia com o ambiente, emprestava-lhe trilha sonora própria, composta ainda pelo tilintar de um mensageiro dos ventos, que dançava dependurado na porta. Aquele era o mais genuíno e literal Recanto das Artes, logo ambas pontuaram em uníssono, tomadas de entusiasmo. Na mesma tarde, assinaram o contrato. Passariam um mês em Espelhos D’água.

E logo na primeira noite, depois de quatro anos, enquanto observava as estrelas que despontavam na janela do quarto, Manuela resgatou a antiga sensação de estar em casa.

Dali em diante, voltou a fotografar como de há muito não ousava. As imagens, que tracejavam em cores as ruas, as casas, as gentes, as miragens, os espelhos d’água, pareciam conter também os sons, os cheiros, as texturas, os sabores das tardes pelas quais, vagarosamente, passeava, sempre de mão dadas consigo mesma, como se, internamente, também passeasse.

E assim, introspectiva e em retrospectiva, ela crescia enquanto andava e fotografava, retornando à infância, relembrando Júlia, suas lições, sua coragem, tentando imaginar, pelos olhos da mãe e pelo que, dela, conhecia, quais os lugares da cidade que teriam lhe servido de cenários, marcando os passos de sua jornada.

Aos logo dos dias, ousou ainda mais e, depois de muito ponderar, decidiu ir ao encontro de algumas pessoas que conheceram seus familiares. E assim, dedicou algumas tardes para escutar os amigos de infância de Júlia. Foi quando, pela primeira vez, ouviu histórias sobre os avôs e o tio, Bianor, todas povoadas de graça e peculiaridades.

Na seqüência das descobertas, visitou e registrou em fotografia as imagens da casa onde Júlia nasceu e morou até sair da cidade. E, neste passeio, foi acompanhada de Dalva, a melhor amiga de Júlia, sua grande companheira nas infindáveis aventuras, desde a infância à adolescência, em Espelhos D’água.

E qual não foi a surpresa da filha ao descobrir que a tenda onde a mãe esculpia desde criança havia sido mantida, marejando o Lago das Ilusões, exatamente como a artista tinha deixado. E lá, segundo a melhor amiga da escultora, os moradores da cidade haviam construído algo semelhante a um modesto e rústico espaço cultural em forma de singela homenagem. Emocionada, Manuela decidiu: visitaria e fotografaria o lugar na próxima tarde.

E o dia seguinte não tardou a chegar. Consultando o relógio, os ponteiros marcavam doze horas. A chuva, finalmente, havia ensaiado uma trégua naquela tarde. O sol, ousado e forte, pontuava o meio do céu, quanto Manuela começou a caminhada, descendo a ladeira principal que dava acesso ao Lago das Ilusões. No calendário, ainda lia-se “maio”.

Mas, mesmo antes de alcançar a meta, ao longe, a fotógrafa avistou a cidade duplicada no reflexo da imagem que, feito mágica, mergulhava nas águas. Sem titubear, dali mesmo, do alto de onde estava, eternizou, num click quase inaudível, a miragem através da máquina.

Com o corpo suado e a mente confusa, em alguns minutos, chegou à beira do lago. Mas era preciso continuar o percurso. A tenda mantida em homenagem à mãe, no compasso do vento, vacilava, erguendo-se colorida do outro lado da margem. E, com o coração apertado, a filha trilhou o caminho em forma de meia-lua.

Manuela não sabia definir o motivo, mas sentia-se um tanto quanto estanha. Apesar da claridade do meio-dia, a angústia que carregava a mantinha escura. Respirando fundo – menos por cansaço, mais por desgosto –, relembrou que fora exatamente à beira daquele lago que Júlia viu, pela primeira vez, seu grande e único amor, o mesmo que a fez desejar de forma tão ardente, antes da morte, retornar àquele reduto.

De cabeça baixa e o espírito pesado, a moça deu mais alguns passos e, antes de chegar à tenda, estancou. Uma sensação inquietante de estar sendo seguida fez seu estômago gelar e Manuela, lentamente, se virou.

Enquanto erguia a vista, sentindo os poros arrepiarem-se, avistou, do outro lado da margem, exatamente de onde havia partido, uma mulher de beleza estonteante, estática, pálida e que, apesar do calor da tarde, trajava um vestido longo e de veludo azul.

Apesar da distância, o azul dos olhos que a observavam, como se a cor do tecido imitassem, despontava de forma intensa e estranha. E Manuela, com o coração batendo em sobressalto, também permaneceu imóvel, como se estivesse no aguardo de uma anunciação.

Mas, ao contrário do esperado, ao redor e dentro de Manuela fez-se o silêncio. O sol, repentinamente encoberto por uma nuvem, arrefeceu a intensidade. O dia, de forma astuta, foi roubado em sua claridade. Escureceu.

Os olhos amarelos, nos segundos vindouros, não conseguiam desviar o foco e, atordoados, prenderam na íris a imagem da mulher que mais parecia uma alucinação ornada de sonho e não de carne.

No compasso da tarde que escurecia, os olhos amarelados também escureceram e Manuela perdeu as forças e o tino. Desmaiou.

Quando acordou, sentiu imediatamente o cheiro de flores, mas não de flores quaisquer. Eram de cerejeira, suas favoritas. A fronte latejava e, ao passar as mãos pela testa, colheu o vermelho. Era sangue que timidamente vertia. Estava deitada à margem do Lago das Ilusões com a cabeça suavemente apoiada sobre um encosto que ensaiava ares de almofada. E nem foi preciso tocar o tecido para sabê-lo o mais genuíno veludo azul.

No lago, não mais se duplicava a cidade. Duplicava-se a lua, que ia alta e alheia ao susto da que despertava. Com passos trôpegos e rápidos, Manuela, ainda sem acreditar no que vira, rumou para casa, deixando o tecido azul a flutuar sobre a água.

Não ousou contar o ocorrido a Laura. Dentre vários motivos, sabia que a namorada riria diante da hipótese de “assombração”. E, do ponto de vista de Manoela, aquela história não poderia jamais assumir ares de piada. A imagem captada, fosse ela fruto de miragem ou da visão, certamente teria sido interpretada por Júlia como a reprodução fidedigna de sua amada. Logo, não era passível de contestação, muito menos de graça. Bem por isto, a filha guardaria aquele acontecimento como um valioso segredo, algo inusitado que certamente não teria maior repercussão. Com este pensamento, chegou menos aflita em casa.

Naquela noite, sem sono, Manuela resolveu atravessar as horas no Recanto das Artes, revelando as fotos tiradas durante a tarde. Em contraponto ao silêncio que parecia querer alongar a madrugada, pôs para tocar a melodia que tanto lhe lembrava a mãe: Veludo Azul. Logo à música misturou-se o som de chuva.

Porém, antes que a melodia fosse encerrada e o relógio iniciasse outra volta, anunciando o dia primeiro de junho em doze badaladas, mais uma vez Manuela surpreendeu-se de forma absurda. Sob a luz vermelha do pequeno estúdio, confusa, colheu com as mãos trêmulas de dentro da água a última foto revelada. Daquela, definitivamente, não se recordava. Na imagem emoldurada, um tanto quanto embaçada e escura, se registrava a silhueta da mulher misteriosa à beira do Lago das Ilusões e duplicada à luz da lua.

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