quinta-feira, 9 de julho de 2009

A ENCOMENDA ( Capítulo IV )

CAPÍTULO IV
O RELATADO


Com o calor do sol insistindo em açoitar-lhe a face, Manuela acordou deitada sobre algumas das almofadas que forravam o chão do Recanto das Artes. Estava inteiramente suada. Ao abrir os olhos, instintivamente consultou o relógio. Passava das nove horas. Aturdida, percebeu que Veludo Azul ainda tocava, embora não se recordasse de ter acionado, no som, a reprise.

Antes de erguer-se, com o coração acelerado, passou a mão pela fronte e nem sinal do corte. Novamente os poros arrepiaram-se. Levantou-se de súbito, sentindo uma forte dor de cabeça e os lábios ressecados. Com passos rápidos, atravessou a sala e foi até o estúdio vasculhar as fotos recém reveladas. Nem sinal da última. A imagem da mulher, duplicada no reflexo do lago e à luz da lua, feito encanto, havia se dissipado.

Atordoada, procurou por toda parte e nada. Logo, o calor da manhã misturou-se ao frio do medo que, a cada segundo, parecia tomar proporções inesperadas. Sentia-se vitalmente confusa.

Olhando para uma das estantes, como se procurasse aleatoriamente resposta para tantas inquietações e dúvidas, dentre os livros, um título, particularmente, lhe chamou a atenção. Em letras de fôrma e graúdas leu: “Sonhos: no limiar entre a realidade disfarçada e a nua ilusão”.

Naquele título talvez estivesse a explicação para tudo. Foi quanto respirou fundo, sentindo-se, momentaneamente, aliviada. Poderia, de fato, ter simplesmente sonhado com a foto que, momentos antes, procurava. Seria possível, ainda, que todas aquelas imagens, inclusive a da mulher trajando veludo, não passassem de miragens, frutos da mais pura ilusão. Poderia ter se impressionado por demais com a história vivenciada por Júlia e, nesta senda, disfarçado de forma quase palpável uma “realidade”. E por que não? As hipóteses sugeridas pelo título se misturavam, enquanto a cabeça ainda latejava.

E logo se arrependeu de não ter tentado trazer consigo o veludo azul que lhe serviu de encosto e que, até onde lembrava, havia deixado à margem do lago. Assim tivesse agido, naquele instante possuiria em mãos provas concretas do ocorrido ou, ao reverso, da total ausência de verdade naquelas visagens.

As elucubrações de Manuela foram interrompidas por Laura que, chegando à porta, com expressão interrogativa, alçou vista através do vidro. Alcançando os olhos amarelados, a que procurava girou o trinco e, na seqüência dos passos, questionou o que havia ocorrido. Por que Manuela havia dormido no Recanto das Artes? Foram estas as questões lançadas.

Com toda a sinceridade de que era capaz, Manuela respondeu que simplesmente não sabia. Havia perdido o sono e, ao se dar conta, fora parar naquele lugar, onde a realidade parecia, sorrateiramente, misturar-se à fantasia. Aliás, tal atributo parecia ser inerente não apenas ao Recanto das Artes, mas à cidade.

Foi quando, para a surpresa de Manuela, Laura, com ar de mistério, disse sentir o mesmo. E logo o silêncio voltou a pairar entre ambas e cada uma seguiu para um lado. O dia estava apenas começando e as duas pressentiam: aquele mês prometia além do esperado.

No início da tarde, a pintora anunciou. Iria à tenda onde Júlia esculpia. Era sua vez de reproduzir o Lago das Ilusões em aquarela. Diante da intenção confessada, Manuela titubeou. Teve receio de que a namorada visitasse o local e também se deparasse com a imagem da mulher estranha. Não lhe faltou vontade de pedir para ficar. Entretanto, se segurou. Não poderia relatar o ocorrido a Laura. Deixou-a ir, com o coração apertado, mas deixou.

Porém, assim que a pintora atravessou à porta, a fotógrafa confortou-se: tudo não havia passado de algo imaginado. Era mais sensato pensar assim e soaria ridículo tentar convencer Laura ou qualquer pessoa do contrário. Deveria era estar ficando louca, foi o que, por fim, pontuou.

Ao correr da tarde, enquanto estava sozinha, Manuela resolveu estancar absolutamente todo e qualquer assunto que a reportasse à mãe ou às aparições do dia anterior. Definitivamente, precisava redirecionar o pensamento e a atenção.

Com este intuito, deixou de lado as fotografias e deu-se a um modesto luxo: durante o resto do dia não pensaria em trabalho, apenas deleite. Até porque, como bem observava, a coleção de fotos que tinha por objetivo retratar a cidade através dos olhos de Júlia já estava quase completa, fulgurando numa das paredes do Recanto das Artes como verdadeira promessa emoldurada: a visita a Espelhos D’água havia sido feita e o juramento, de certo modo, cumprido.

Com “A Descoberta do Mundo” em mãos, que, dentre os livros de Clarice Lispector, era seu favorito, rumou para baixo de uma figueira que beirava o rio, no final do quintal, onde se encerrava a murada. Lá, assentando sobre o espesso gramado uma toalha indiana, pôs-se descalça e deitada com a cabeça plana, de modo que a sobreposição do livro lhe causava, à vista, sombra.

E assim ficou por horas a fio, enquanto o sombrear, ao girar do sol, se deslocava. Foi justamente enquanto relia a crônica intitulada “Precisa-se”, que Manuela estranhou o avolumar da sombra sobre a face. Erguendo a vista, foi interpelada pela voz melodiosa e baixa da mulher que, ladeando o filho, se aproximava com um “boa tarde”.

Sentando-se rapidamente, sem disfarçar a surpresa, Manuela respondeu ao cumprimento, enquanto constatava a semelhança entre aquela que chegava e a mulher estranha que, à beira do lago, dia antes, avistara. E, boquiaberta, viu nos olhos dela o mesmo azul do veludo, embora a moça trajasse roupas claras.

Como se receosa estivesse, a recém-chegada logo disse ao que veio. Procurava pela comentada exposição de quadros da pintora chamada Laura Cervantes. Sem conseguir articular muito bem as palavras, Manuela prontamente apontou o Recanto das Artes e para lá a outra fez menção de seguir, sem rodeios.

Enquanto via os dois se afastarem, Manuela tomou fôlego e ergueu-se, indo encontrá-los antes de chegarem à porta. Silenciosamente, ponderou: ou aquela miragem se desvaneceria ou, ao reverso, perceberia que, feita de carne, a tal mulher, de fato, existia e ela não estava louca.

Com a respiração entrecortada, a fotógrafa alcançou o trinco e abriu a porta, tomando a frente do grupo e ensaiando um riso.

Olhando-a da cabeça aos pés, como se estranhasse a atitude, a estranha confrontou os olhos amarelos com os próprios e, diante das tonalidades díspares, ambas retesaram os corpos, supondo-se, também, tão distintas.

A visitante era de uma beleza exótica. A pele, em palidez e textura, lembrava, de fato, as imagens míticas e consagradas em livros seculares de mulheres tão belas, quanto profanas. Ela intimidava. E não era apenas pelas vestes sofisticadas que encobriam o corpo esguio e alto: era, sobretudo, pelo queixo erguido, como se, a todo instante, tivesse em vista um alvo tão previsível quanto fácil. Os cabelos lisos e escuros escorriam até os ombros em contraste com o tecido alvo e leve que adornava o colo, de curva suave e decote discreto. O azul da íris despontava de forma fulgurante por entre o rímel escuro e os cílios longos. O olhar desconcertante, firme, semicerrado.

Manuela, que sempre se sentia à vontade com a beleza sem esforço que possuía – usando roupas simples, despida de artifícios e maquiagem, atraindo os olhares de todos graças ao rosto bem moldado, que ensaiava ângulos perfeitos por entre os cabelos castanhos, que pesavam até o meio das costas, onde anelavam –, estranhamente, sentiu-se em desconforto. Os olhos amarelos, sempre tão elogiados, pareceram, num repente, perder força e encanto diante do azul aveludado.

As duas definitivamente contrastavam e não apenas em cores: em modos, em moldes, em armas. A estranha valia-se do silêncio, Manuela valeu-se das palavras:

- A pintora não está, mas, se a senhora quiser, posso mostrar-lhe sua arte – ofereceu-se, como se assim justificasse a pressa com a qual havia interpelado os dois antes da entrada.

E a estranha logo a dispensou, com o queixo erguido desde sempre e certamente não ao acaso:

- Talvez seja mais conveniente voltar outra hora.

Percebendo a relutância da visitante, Manuela disse-lhe que ficasse à vontade e, tentando disfarçar o efeito que a estranha lhe provocava, sentindo-se um tanto quanto aturdida, fez menção de dar as costas. Mas, antes, foi interpelada:

- Você é assistente de Laura?

Sem ponderar muito a resposta, Manuela foi direta e franca:

- Não. Sou namorada.

Por um segundo, Manuela pensou captar nos olhos de veludo algum espanto, mas, se houve, foi muito bem reprimido e abrigado. Sem mais palavras, a mulher voltou-se novamente à porta, deixando claro que havia reconsiderado. Ficaria para ver as obras.

Manuela, também economizando palavras, circulou por todos os quadros, limitando-se a dar os nomes de cada um, com esforço sobre-humano. Estar perto daquela mulher a deixava tonta e o significado daquela constatação ela nem queria perquirir. Não ali. Não naquele instante. Continuou a apresentar nas aquarelas as cores que, dentro de si mesma, se misturavam, sendo ilimitadas as molduras do espanto.

Nunca antes havia sentido aquele temor reverencial diante de um olhar, o mesmo que a visitante, naquele momento, lhe lançava. Havia uma interrogação na expressão da mulher que a fitava e que estava, justamente, diante do quadro onde flores vermelhas disputavam espaço. Captando a pergunta silenciosa, Manuela esclareceu. Eram flores de cerejeira, suas favoritas.

Pela primeira vez a visitante ensaiou um ar de riso e disse que de há muito achava aquelas flores de uma beleza ímpar, exatamente por serem tão simples, tão singelas. Desconhecia, entretanto, a procedência delas. Não imaginaria nunca que cerejeira fosse a árvore da qual brotavam.

Respirando fundo, Manuela olhou-a nos olhos, enquanto tentava conter o coração. Fingindo calma, aproximou-se um pouco e lhe elucidou em voz suave:

- Sakura... é este o nome da flor – e como pela primeira vez viu algo além de frieza no olhar de veludo, continuou – os japoneses a associam à vida do samurai, que, apesar de toda sabedoria, disciplina e coragem, é tão efêmera quanto a flor de cerejeira, que a qualquer instante pode se desprender da árvore.

No final da explicação, as duas, novamente em silêncio, se olharam. Desta feita, entretanto, de forma mais detida, misturando com menos receio o amarelo e o azul. E, naquele segundo de trégua compartilhada, experimentaram a leveza das pétalas desprendidas. Sorriram, talvez pela consciência mútua do quanto era, deveras, efêmera a vida.

Só então o jovem, de aproximadamente quinze anos, se fez notar por Manuela, que até então havia tido olhos apenas para a mãe. Diante da aproximação gradativa entre ambas, o rapazinho inquietou-se, visivelmente contrariado, o que atraiu a atenção da fotógrafa.

Deslocando o foco, logo os olhos amarelos emolduraram a imagem do jovem, preenchendo-a de detalhes e significados. O menino certamente sofria de algo semelhante a autismo. Foi o que constatou surpresa, lembrando-se imediatamente do tio.

Apiedando-se da história, a observadora pontuou: talvez as barreiras naturalmente impostas pela mulher que trazia a cor do veludo nos olhos houvessem sido erguidas não por capricho, mas pela dor.

Porém, antes que pudesse retomar o curso das imagens, focando novamente a daquela que ainda não tinha nome, Manuela foi impedida.

Dando as costas, a estranha agradeceu secamente e partiu, seguida do filho, sem fazer menção de olhar para trás.

Depois daquele encontro, Manuela, que já vinha submersa numa realidade um tanto quanto inusitada, como se os sentimentos e cenários se confrontassem a todo instante com a névoa dos sonhos, passou a desejar vivenciar tudo aquilo que a entorpecia em carne, distante da mistificação própria das miragens.

Almejou, antes e acima de tudo, outro encontro com a mulher sem nome, mas tão bela! A chamaria de Isabella! Foi a idéia que cintilou nos olhos amarelos que pareciam fulgurar mais e mais a cada lembrança. E, assim, mais uma vez acendia a promessa feita à mãe.

Mas os dias se passavam sem notícias. Cada vez que o Recanto das Artes era visitado e alguém atravessava a porta, Manuela imediatamente buscava a cor do veludo nos olhos de quem entrava. Mas nada. Ela não vinha e Manuela ficava. A esperança a prendia.

E assim, passou a fotografar a cidade não mais a procura das imagens queridas por Júlia. Buscava as próprias imagens. Em todos os cenários, em todos os rostos, em todos os planos, no reflexo de cada espelho d’água, à margem do Lago das Ilusões e dentro das ilusões criadas por si própria, era Isabella que buscava. E a cada foto, a ausência de vestígios. O enigma, escapando das molduras, ampliava-se. Em nada e em ninguém se revelava o paradeiro da desconhecida.

Laura estranhava o afastamento da namorada, mas não mais a questionava. A contrariedade, entretanto, podia ser vista nos quadros que, a cada dia, tornavam-se mais escuros, mais sombrios.

Até que, em mais um entardecer do outono, Manuela permitiu-se esquecer das demais estações do ano. No alpendre da varanda que se punha defronte ao Recanto das Artes, os olhos amarelados, retomando antigo hábito, observavam as folhas de mesma cor espalhando-se pelo quintal. Como se quisesse voltar no tempo, numa decisão tomada em silêncio, passou a varrer o chão, tentando conter a audácia das folhas que insistiam em dançar ao compasso do vento.

Foi quando, repentinamente, ao estancar da ventania, Manuela também estancou. Olhando para a entrada da casa, piscando repetidamente os olhos, enquadrou a imagem da mãe e do filho que, novamente, a visitavam. Em meio ao barulho do riacho e do mensageiro dos ventos, que segundos antes tilintava arredio, pensou ter ouvido Veludo Azul.

A visitante, a cada passo vencido em direção à expectadora, se tornava mais real, mais concreta, mais bonita. Boquiaberta, Manuela erguia a vista e captava cada nuança daquela presença tão inusitada. Depois de percorrer o corpo esguio que sobriamente se amoldava num vestido de cores claras, buscou o azul de veludo nos olhos da desconhecida. Mas, para sua surpresa, um par de óculos escuros e elegantes encobriam o olhar que buscava.

Com o queixo erguido, o nariz naturalmente empinado, afilado, a visitante chegou à soleira do terraço. O vento havia desalinhado os cabelos escuros e lisos, o que fez com que a moça, suavemente, deslizasse os dedos finos repondo os fios nos devidos lugares. Com poucos gestos, dissipou da face de angulação invejável qualquer ar de casualidade. Ela era séria e contida. E assim ofereceu a Manuela um “boa tarde”.

O filho, que caminhava no percalço da mãe, nos segundos seguintes também alcançou o terraço. Seu olhar, entretanto, mantinha-se baixo, como se buscasse no solo algo perdido ou analisasse algo recentemente encontrado.

Com poucas palavras, a visitante explicou ao que vinha. O rapaz, que era de pouco interesse pelas coisas, havia demonstrado raro gosto pelo Recanto das Artes. Inusitadamente, havia chegado a relembrar das telas, demonstrando desejo de retornar ao lugar. A mãe, cedendo ao pedido, novamente ali estava.

Sorrindo, Manuela disse-lhes que seriam sempre bem-vindos. E pela primeira vez o menino ergueu a vista e dignou-se a olhá-la, o que pareceu surpreender a mãe, que se manteve, nos minutos vindouros, absolutamente calada.

A fotógrafa disse que se sentissem à vontade e, contrariando o desejo de ficar perto, abriu as portas do Recanto das Artes, fazendo menção para que entrassem, enquanto ela permaneceria ali, na varanda, findando a tarefa de acalentar as folhas arredias que rodopiavam no sentido horário e anti-horário. Sentia-se atônita demais diante daquela mulher e bem sabia que a melhor opção era manter-se distante.

Entretanto, a visitante, antes de atravessar a porta de vidro que lhe era aberta, pediu:

- Mostre-me novamente as telas. Fale-me de cada uma delas. Não fosse por seus olhos, jamais teria conhecido as sakuras, tampouco a simbologia que trazem em cada pétala.

Manuela prontamente cedeu. E assim, enquanto as folhas insistiam em rodopiar pelo quintal, as duas circundavam por entre os quadros. A fotografa comentava as cores, os traços, as imagens, enquanto a estranha assentia com a cabeça diante de cada detalhe elucidado, reproduzindo os desenhos feito miragens nos olhos, que dos óculos já haviam sido libertos.

O jovem, por sua vez, parecia inteiramente absorto, não nas telas, mas na voz, nos gestos, no andar de Manuela, que, definitivamente, possuía carisma e candura, um misto entre a timidez e a desenvoltura, a simpatia e a introspecção.

A tarde, como se corresse nos ponteiros dos minutos, rapidamente se foi. Várias horas haviam se passado e Manuela viu-se na iminência de despedir-se da desconhecida mais uma vez. Dela, não tinha sequer o nome, quiçá a esperança de um novo encontro. Em meio aos poucos diálogos que travaram, Manuela havia comentado que a achava semelhante à Isabella Rosellini. Em resposta, obteve apenas um meio sorriso, um tanto quanto distante.

Ao circularem a última pintura, já inquieta, a fotógrafa arriscou:

- Disse-lhe tudo o que sabia sobre cada uma das telas e ainda não me deu sequer o seu nome. Vou ter que continuar chamando-a de Isabella?

Sorrindo-lhe, desta vez de forma ampla, a estranha pontuou:

- É um belo nome.

E antes que Manuela pudesse tentar dar continuidade ao diálogo, a estranha agradeceu polidamente pela atenção dispensada e outra vez se foi.

Mas, para a surpresa da que muito se lamentou diante da despedida, aquele tipo de visita viraria um hábito. E assim, no final da próxima e das outras tardes, Manuela passou a receber o jovem e aquela que, com graça, passou mesmo a chamar de Isabella.

E o destino, de modo surpreendente, parecia favorecê-la a cada detalhe, inclusive pelo fato de os horários de visita coincidirem com aqueles em que Laura fazia-se ausente, em suas longas caminhadas pela cidade.

Assim, no correr de dez dias, as duas mulheres já não eram tão estranhas. Aos poucos, Manuela falava sobre sua história. Como eco, Isabella, vez por outra, pontuava também sobre a própria vida. Nada muito pessoal, apenas comentários vagos permeando as narrativas.

Até que, finalmente, em uma das visitas, o assunto tornou-se menos superficial, mais intimista. As horas mais densas dentre as tantas que compunham as tardes, foram justamente as eleitas por Isabella para falar sobre o filho. Lucas, era este o nome do jovem que, naquele instante, punha-se distante das duas, observando as águas do riacho que cantava caudaloso.

De fato, como Manuela havia imaginado, o menino era autista. Foi o primeiro e único filho de um pai extremamente perfeccionista e de uma mãe recém formada, que abandonou a carreira não elucidada para dedicar-se ao menino.

O marido era um grande empresário no ramo de hotelaria. Dono de uma rede de hotéis bastante conhecida, passava a maior parte do tempo em viagens, o que exigiria da esposa dedicação integral ao filho.

Os ideais profissionais ostentados pela mãe, embora formassem um rol um tanto quanto vasto, não foram maiores e mais preciosos do que o amor que nutria pelo menino. E assim ela não hesitou: limitou sua vida e seus anseios a ser uma boa mãe. E, nas horas vagas – que frisou ser praticamente inexistentes – tentava ser também uma boa dona de casa, coordenando os afazeres dos inúmeros serviçais, que, afora o filho, eram suas únicas companhias. Mal via o marido.

Foram estas as derradeiras palavras articularas naquela tarde, encerradas com um sorriso incapaz de esconder a amargura evidente daquela que finalmente se desnudava. Era esta a realidade que há tantos anos vivia.

Manuela escutou a narrativa absolutamente quieta, calada. No final, respirou tão fundo quanto a que narrava. Em seguida, mais uma vez se despediram.

Entretanto, antes que Isabella se erguesse e desse as costas rapidamente, como de costume fazia, Manuela ergueu-se primeiro. Com dois passos largos, venceu a distância entre as duas cadeiras de balanço que as acomodavam na varanda. Pondo-se defronte à outra, com os olhos amarelos e profundos, fisgou os olhos azuis de veludo. E mais uma vez as duas respiraram fundo, enquanto Manuela estendia as mãos, resoluta.

Nos olhos azuis, pairou os tons da dúvida. Como se ponderasse o gesto, Isabella demorou alguns segundos antes de erguer também as mãos. Enquanto isto, o coração de Manuela – naquela espera fugaz, mas que parecia eterna –, como se estivesse suspenso por vibrantes fios de aço, pareceu estancar o compasso. E ela fechou os olhos, na espera do toque.

Mas antes que o enlace das mãos fosse possível, Lucas chegou ao terraço apressado, aturdido, agitado, articulando desgovernadamente uma série de palavras, todas, para Manuela, incompreensíveis.

Isabella prontamente pousou as mãos sobre o colo, fingindo calma, pedindo ao menino bons modos. Lucas logo se acalmou, enquanto Manuela, confusa, também baixava as mãos e dava as costas, buscando o ar que lhe faltava enquanto focava a paisagem, como se esta fosse capaz de atrair sua atenção e dissipar a frustração pela ausência do tão esperado contato.

Com a voz mais baixa do que a de costume, Isabella ensaiou a explicação. Lucas não permitia que ninguém a tocasse. Era esta a sentença, a pena que haveria de cumprir por toda a vida, mantendo-se sempre distante de todos para que o filho permanecesse próximo e calmo. Ela era dele, tanto quanto ele, dela. Estavam, para sempre, presos naquele pacto que exigia rigidez e abdicação.

Manuela não conseguiu olhar Isabella nos olhos. Manteve-se mirando a paisagem, tentando dissimular o impacto daquela anunciação.

Depois daquela tarde, nas demais a ausência se fez presente. Isabella não retornou ao Recanto das Artes, tampouco sua imagem foi captada por Manuela em qualquer lugar da cidade, por onde insistentemente a procurou.

O tempo de estada em Espelhos D`água escoava para o total desespero daquela que, há dias, havia guardado a máquina fotográfica. Manuela não queria mais fotos, queria fatos. Não queria mais imagens estanques, queria vida pungente. Queria Isabella de forma ardente. Queria acalentar aquela amargura que parecia fulgurar nos olhos de veludo azul. Queria resgatá-la daquela vida morna, como parecia ser também o desejo da outra.

Mas, em que pese o desejo pelo encontro, o desencontro parecia ser a tônica daquele amor. As realidades de ambas eram tão distintas quanto os próprios traços que marcavam os semblantes. Manuela era terrena; Isabella parecia etérea, distante. E, feito miragem, de fato, de dissipou.

Na véspera da partida, Laura e Manuela mal se falavam. O fim do relacionamento era um fato, embora ainda não houvesse sido pronunciado. Mas, em questão de dias, o seria. Era o que ambas previam. No dia seguinte deixariam Espelhos D’água e, naquela cidade, deixariam também as últimas esperanças de uma retomada.

Em Manuela não cabia nada além de Isabella e em Laura, não cabia nada além de mágoa.

Para fechar aquele ciclo, a pintora havia decidido realizar um evento para vender todas as telas. Daqueles meses, não queria ficar com nada. Venderia, ainda que por preços irrisórios, os quadros que haviam lhe custado tão caro. E mais: não queria nem mesmo o dinheiro. Doaria o que arrecadasse para o americano, dono do Recanto das Artes. Em contrapartida, pediu-lhe que investisse no lugar, dando aulas de pintura e música para as crianças da localidade que porventura se interessassem. Foi a forma que Laura anteviu de reverter todo o sofrimento daquele final de relacionamento em algo positivo. Era esta a sua vontade e o americano assentiu, com um misto de pesar e de boa-vontade.

E assim, na derradeira tarde vivenciada em Espelhos D’água, Manuela, em meio ao vernissage, experimentava o desalento do desenlace. Sabia que não voltaria a rever Isabella e era impossível deixar de constatar o quanto era irônica a realidade que a circundava: havia viajado para aquele lugar exatamente com o fito de resgatar as memórias de Júlia, inclusive as que levariam a mãe, caso viva estivesse, à sua amada. E, ao assim atuar, quis fomentar um reencontro. Entretanto, terminou por vivenciar justamente o inverso. E o mais inusitado: reencontro e desencontro tendo por protagonista alguém designada por “Isabella”.

Ademais, caso não tivesse sido tudo fruto de uma miragem inusitada, também espantava constatar que Manuela, assim como Júlia, havia visto pela primeira vez o grande amor de sua vida nas margens do mesmo lago, o qual talvez merecesse ter o título modificado para o Lago das Ilusões Perdidas, pontuou a fotógrafa com amargura e resignação.

E, como se não bastasse, coincidia ainda perceber que tanto a história vivenciada por Júlia, quanto a vivenciada por Manuela haviam sido estranhamente marcadas pelo autismo: a da primeira, em virtude do irmão que a fez mudar de cidade, aproximando-a assim de sua amada em época passada; a da segunda, em virtude de Lucas que, ao reverso do primeiro enredo, afastava Manuela de Isabella, num presente doloroso e inacreditável.

Seriam tantas coincidências objetos do acaso? Era o que, em silêncio e confusa, Manuela se perguntava.

Mas, no lugar da resposta, chegou a si um recado. Num bilhete escrito em letras que denunciavam pressa, entregue a Manuela por um meninote nunca antes visto, estava assinalado:

“Estou lhe aguardando do outro lado.”

Como assinatura, o papel estampava o nome “Isabella”.

Com o coração descompassado, Manuela estranhou a mensagem e a releu, entre vários piscares de olhos. Isabella referia-se a que lado? Só poderia ser o lado de fora!

Munida desta certeza, atravessou o umbral da porta de vidro que guardava o Recanto das Artes. Tomando a pequena estrada que atravessava o jardim, levando ao portão, ela respirava o tanto que podia, tentando acreditar na imagem que despontava logo adiante. Era ela, a sua Isabella, que estava de volta!

Ao atravessar o portão, Manuela estancou diante da outra, incrédula, com os olhos amarelos acesos de felicidade.

Isabella não disse uma palavra. Os olhos de veludo azul não eram os mesmos. Estavam avermelhados, circundados pela maquiagem borrada. Resoluta, a dona dos olhos estranhos abraçou-se a Manuela entre soluços e sem qualquer explicação.

Ao toque, a que era abraçada instintivamente lembrou-se de Lucas, que não deixava ninguém chegar perto da mãe, quiçá enlaçá-la. Mas, para sua surpresa, avistou por sobre os ombros de Isabella o jovem que, estático, encostava-se logo adiante numa árvore.

Acuado, o menino permanecia inerte, observando-as, esperando-as, compreendendo-as, como se, pelo menos para aquele momento, concedesse permissão.

Fechando os olhos, Manuela, aturdida, apertou o corpo esguio que se amoldava ao seu. Finalmente estavam próximas. Quis questionar o porquê daquele choro, daquele distanciamento, daquela volta! Mas supôs que teria tempo e o faria depois. Aquela definitivamente não era a hora.

Bem por isto, limitou-se a tentar, com firmeza, sustentar o corpo alvo e visivelmente fraco que estremecia de choro e que parecia a qualquer tempo ceder. Isabella estava abatida e pálida.

E, no abraço partilhado, muito se ganhou e muito se perdeu. Manuela captou as formas do corpo da outra: seios contra seios, ventre contra ventre, rosto contra rosto; experimentou a textura das vestes; o perfume da pele; a suavidade dos cabelos; o compasso do estremecimento que parecia mesclar prazer e desgosto. E, no roçar das faces, misturou-se quentura, frieza, lágrima, sorriso e saliva. Morte e vida enlaçadas.

Até que Isabella, apesar da presença do filho, perdeu os freios, os receios, o decoro. Como se roubasse aquele segundo da vida apenas para si, olhou dentro dos olhos de Manuela e, sem pedir permissão, passou a beijar-lhe o pescoço, deslizando no lóbulo da orelha a língua quente; eriçando, com a boca, os poros da que recebia os beijos e as mordidas; sugando no rosto de Manuela as próprias lágrimas, misturando-as à saliva.

Isabella estava em desespero, era tudo o que se sabia. E, com esta mesma ânsia, tomou a boca de Manuela com a sua, ambas já entreabertas de desejo. E os lábios, famintos, ávidos, se provaram, se sugaram, permitindo a dança entre as línguas, o pulsar dos anseios. O sal do choro e o doce da saliva em mistura que tonteou às duas, cada qual igualmente distante de suas fortalezas.

Até que todos os sentidos de Manuela tornaram-se entorpecidos e ela sentiu que desmaiaria, caso continuasse aquele beijo. Como se sentisse o mesmo, Isabella estancou e se afastou, visivelmente aturdida e corrompida pelo mesmo medo.

O único sentido que se fez alerta, naquele instante de embriaguez em que Manuela sentia-se imersa, foi a audição. E era veludo azul que parecia ecoar de dentro do Recanto das Artes, como se ironicamente servisse de tema para aquela despedida inédita.

E mais uma vez as coincidências povoaram aquele cenário que tinha por fundo, no descer da montanha, o Lago das Ilusões. E foi exatamente pela estrada que levava à margem que Manuela assistiu Isabella caminhar apressadamente, trôpega, em fuga, seguida pelo filho e talvez por assustadora culpa.

Quem poderia saber o que se passava dentro daquele corpo que, ladeira abaixo, seguia? Onde daria aquela trilha escolhida pela mulher que, de maneira misteriosa, na medida em que se aproximava do lago, desaparecia? Manuela, naquele instante, não soube responder.

E nem agora, naquele hotel barato e nada glamoroso, enquanto se punha defronte à amiga escritora, ambas sentadas sob o carpete acinzentado que encobria o chão frio do décimo sétimo, Manuela sabia responder.

E assim, finalmente estava encerrado o relato que serviria de presente para a outra. Que Fernanda, portanto, fazendo uso da ficção e do encanto tão patentes em seus contos, desse àquele enredo o desfecho merecido e tão esperado. Era esta “A Encomenda” feita por Manuela, expressão que poderia, inclusive, servir de título.

Sorrindo, visivelmente emocionada, Fernanda estendeu às mãos para a amiga, como se, naquele gesto, aceitasse o presente. E as duas, mais uma vez, se embalaram num abraço.

Quando se desvencilharam, respiraram fundo e se olharam de forma terna. Agora era a vez de Fernanda presentear Manuela com o inesperado:

- Vou sim viabilizar a continuidade dessa história, mas quero que ela trespasse as palavras. Hei de lhe dar de presente não o conto, mas o resgate: vamos atrás de Isabella!

Nenhum comentário: