Só podia ter sido o tão clamado sexto sentido. Sim, fora ele que avisara à Laura, naquela manhã nublada de segunda, enquanto ela ainda estava agasalhada entre os lençóis, que aquele dia não seria nada fácil. Ela fora despertada por esta convicção, acompanhada por uma forte dor de cabeça.
Depois de 5 anos de formada, ela ainda não se sentia complemente realizada. Direito era, sem dúvida, sua profissão, mas a advocacia ainda possuía certas peculiaridades com as quais ela jamais saberia lidar. Uma delas era ter que depender de um tipo particular de pessoas – era assim que Laura costumava descrevê-las – que se julgam superiores, que se fazem inacessíveis, que realmente são prepotentes, arrogantes, insensíveis, às quais a sociedade convencionou chamar de “juizes”. Esse era seu grande karma: engoli-los.
Com apenas um ano de formados, muitas idéias e livros a tiracolo, Laura, Maurício e Gregório, amigos inseparáveis de faculdade, foram encontrar suas primeiras desavenças num escritório montado pelos três. Nada como os negócios para os amigos começarem a ter seus “apartes”. Quando as primeiras diferenças e discussões surgiram, foi feito o de praxe: cada um tornou-se responsável por uma área do Direito, afinal, nenhum tinha índole para ser coordenado, tampouco, comandado.
E assim, Laura assumiu seu posto e sua preferência pelo Direito Penal, Maurício desenvolveu e passou a aplicar suas técnicas de retórica e paciência na esfera cível e Gregório, sua praticidade e objetividade na trabalhista. Ainda assim, aqui e acolá ainda surgiam atritos, ressalte-se, os quais nada tinham a ver com o lado profissional: Laura, um ano após a sociedade no escritório, depois de muita insistência de Maurício, oficializou um antigo “rolo” que eles tinha desde os “primórdios” da faculdade, o que não agradou a Gregório. Sua desculpa externada era apenas uma: não se deveria misturar uma relação profissional com uma pessoal, até porque, futuramente, um desgaste nesta poderia acarretar o declínio daquela e vice-versa. Porém, intimamente, só ele sabia o ciúme que sentia. Desde a primeira vez em que vira Laura, a elegera a “mulher perfeita”. Afinal, mesmo aos 19 anos de idade ela já deixava transparecer a mulher magnífica que se tornaria em alguns anos.
Agora, depois de quatro anos de sociedade, Gregório podia ver como suas previsões estavam certas. Laura era mesmo exuberante, não só fisicamente, mas intelectualmente. E ele se roia por dentro por não ter conseguido conquistá-la e mais ainda por vê-la com Maurício. Só mesmo um homem para saber das sacanagens de outro e Maurício era sacana, disso Gregório sabia.
Apesar de ser apaixonadíssimo por Laura, Maurício não perdera seu posto de “galinha”. Sempre metido a conquistador, galanteador nato, não perdia uma oportunidade de “cantada”. Algumas inteligentes, outras realmente baratas. Mas seu pior defeito, aos olhos de Gregório, nem era esse, afinal ele sabia que isso não afetava a Laura, que ela era, em muito, superior ao jeito “desenrolado” do namorado. Para Gregório o que, sem dúvidas, tornava Maurício indigno da “mulher perfeita” era o fato de ele ser um tanto quanto inescrupuloso no trabalho, de usar artifícios escusos para conseguir o que queria, de passar por cima da ética, de deixar de lado os conhecimentos jurídicos e apoiar-se nos políticos para ter julgada em seu favor as demandas. Isso realmente era inaceitável aos olhos de Gregório e camuflado aos de Laura.
Por vezes Gregório pensou em conversar com Laura sobre o comportamento de Maurício, mas temia a reação dela. Tinha receio de que ela pensasse mal, de que julgasse seu alerta como fofoca, como despeito, como uma tentativa inconcebível de meter-se onde não era chamado e por isso permanecia calado. Mas aquela nova idéia de Maurício era, sem dúvidas, o fim da picada!
“Como alguém podia ser tão sórdido?” Foi tudo o que Gregório pôde perguntar ao “sócio” quando ele chegou com aquela idéia desprezível e um riso sarcástico entre os lábios: a de pedir a Laura que fosse despachar um de seus recursos com a juíza competente, pedindo que a mesma reconsiderasse sua decisão de primeiro grau, afinal, o boato que corria era o de que a tão temida e respeitada juíza, Dra. Izabel de Mendonça Novais, era “sapata” e “ninguém que possuísse instinto masculino, ainda que fosse guardado por um corpo feminino, resistiria a um pedido de Laura”. Foram essas as palavras do canalha.
- Ahh, Gregório, não me venha dizer que não é uma excelente idéia. Que homem ou sapata que se preze diria um “não” à minha mulher? Você diria, meu amigo?
O tom de Maurício, a ironia do riso, a forma como a última pergunta fora feita incomodaram sobremodo Gregório:
- O que você quer insinuar com essa pergunta idiota?
- Nada, Gregório, nada! Por que? Eu deveria insinuar alguma coisa? O que eu penso eu digo na cara, colega! Sei muito bem que você comeria com prazer minha namorada, e daí? O que importa é que, de fato, quem come sou eu!
Dizendo isso, Maurício deu as costas, ainda com o riso sacana erguendo o cantinho da boca. Nessa hora, Laura chegou e Gregório não se conteve:
- Já que o que você pensa você diz na cara, “colega”, porque não partilha com Laura sua idéia?
O riso amarelo de Maurício morreu. Ele assumiu seu ar sério e sonso. Com todo cinismo que alguém pode ostentar, ele encarou a namorada, olhou fundo nos olhos claros que o fitavam esperando uma explicação e disse:
- A idéia, meu amor, é de que você hoje me faça um grande favor – fez uma pausa em seu texto ensaiado, respirou compassadamente fingindo preocupação e cansaço e continuou. Eu estou com três audiências para fazer hoje, pela manhã, uma delas inclusive é aquela do acordo que nos renderá os R$ 50.000,00, lembra?
- Sei, Maurício e...? – Laura já demonstrava impaciência – Diga logo qual é o favor que você quer e o que vai me dar em troca.
- ...E eu queria que você fosse despachar um recurso com uma Juíza. Na verdade quero que você consiga um juízo de retratação. Só isso. Em troca, te levo hoje pra jantar onde você quiser e passo a semana que vem sendo seu motorista.
Gregório sentiu-se enjoado. Ele não agüentava mais presenciar aquele tipo de cena.
Laura também tinha muito por fazer nos dias que viriam. Estava com a cabeça a mil por hora com dois processos complicadíssimos que tinham aparecido justamente naquela semana. Por isso, dispensou o jantar, mas aceitou a proposta de ter um motorista, afinal o transito só a enlouquecia ainda mais.
A área cível não era seu forte. Na verdade, ela tinha até uma certa aversão àquele tipo de ação. E foi exatamente a repulsa que sentia, somada à sua falta de tempo, que a fez chegar ao Fórum sem sequer ler a petição de Maurício. Enquanto esperava para falar com a Juíza, planejou ver todo o processo com atenção, mas, para sua surpresa e inquietação, não esperou mais do que 10 minutos. Entre uma audiência e outra, a diretora da secretaria a chamou e disse:
- A Dra. Izabel vai atendê-la agora.
Laura ficou meio aturdida. Não estava acostumada em ser recebida com rapidez. “Quem sabe pelo menos esta juíza fuja aos padrões?”, pensou e entrou, lamentando-se por não ter se inteirado da ação com antecedência.
Na sala, Izabel esperava com a cabeça baixa, concentrada no processo da próxima audiência. Pareceu não notar a presença de Laura que a interrompeu:
- Com licença, Excelência, posso entrar? – perguntou com firmeza.
- Pode, sente-se.
Izabel não pôde deixar de admirar a figura que se sentou à sua frente. Laura era realmente muito atraente. Tinha um porte altivo, o corpo esguio, impecavelmente vestido com um tailleur muito bem talhado, de tonalidade azulada, combinando com os olhos claros da advogada. Sua tez era dourada, bronzeada, o rosto levemente coberto por uma penugem loira e muito fina, os cabelos igualmente loiros e lisos, descendo pesado até o meio das costas. Por instantes, Izabel desejou não ser juíza e ter conhecido aquela mulher em outro local e em circunstâncias diversas. Mas o devaneio não durou mais do que segundos:
- Pois não? Em que posso ajudá-la?
- Eu gostaria de falar com a senhora em relação a este processo – aduziu Laura, passando às mãos da juíza o volume de papeis que trazia.
Não foi preciso esperar a juíza folhear mais do que três páginas para que Laura pudesse ver a expressão do rosto de Izabel se alterar bruscamente.
- Por acaso a Doutora veio aqui pleitear um possível juízo de retratação em relação à minha sentença?
A voz da juíza era de intimidar. Apesar de Izabel ser uma mulher muito polida e educada, de jamais alterar seu tom de voz em nenhuma circunstância, facilmente se compreendia que, mesmo falando baixo, ela não admitia certas atitudes. Laura engoliu em seco, sem entender direito o motivo da reação. Mas, sem perder a altivez, de igual para igual, respondeu com ênfase, olhando nos olhos negros que a fuzilavam:
- Sim. É isso o que eu quero.
- Doutora... – Izabel fez uma pausa enquanto procurava um nome feminino dentre os constantes na procuração – Laura...é esse seu nome?
- É esse mesmo.
- Pois bem. Doutora Laura, meu nome é Izabel. A senhora me conhece?
- De nome, sim!
- Pois é, pessoalmente vejo que não...se me conhecesse saberia que eu não costumo voltar atrás em minhas decisões. Sabe o por quê? Porque reflito muito antes de tomá-las, compreende? Portanto, a doutora e, principalmente, seu sócio, que, ao contrário da senhora, me conhece pessoalmente – frisou a magistrada com ironia –, também deveriam pensar bastante antes de me interromperem. Ainda mais para formular um juízo de retratação feito este, de caráter meramente protelatório e desprovido de qualquer senso jurídico.
- Excelência... – Laura respirou fundo, tentando se segurar, afinal sabia que a juíza poderia ter razão. Ela sequer tinha lido o que estava pedindo e o porquê do pedido. Limitou-se a confiar em Maurício e, pelo jeito, se dera mal. Mas não engoliria essa grosseria assim e continuou. Os olhos faiscando de raiva, o rosto vermelho –...a senhora me desculpe se entende assim, mas desprovida de senso jurídico é a sua colocação. A senhora deveria saber, mais do que eu, inclusive, que tenho direito a um pronunciamento formal sobre o meu pedido, ainda que seja negando a retratação e mantendo a sentença “a quo”. Vim em busca deste pronunciamento e o quero por escrito. Se isso a senhora considera protelar ou agir de má-fé, o procedimento é aplicar a devida penalidade, formalmente, também por escrito, e não me agredir verbalmente, como está fazendo. Pensei que a senhora fugiria do padrão de juiz que conheço, afinal, não fez de seu gabinete um lugar inacessível, como a maioria faz, mas vejo que me enganei: a arrogância e a prepotência são as mesmas, com uma sutil diferença: a senhora mantém o tom de voz ameno, para fingir respeito. Com licença.
Dizendo isso, Laura levantou-se e saiu com a mesma classe com a qual entrou, embora tremesse de ódio por dentro. Na sala, ficou apenas seu perfume e uma juíza de boca entreaberta de admiração. Em outra ocasião, Izabel mandaria prendê-la por desacato, mas, intimamente, sentia-se culpada.
Izabel, desde o começo, percebeu que Laura não havia lido a petição e aproveitou-se desse erro para desarmá-la. Na verdade, a juíza estava farta de Maurício e de seus artifícios. Ela sabia que só ele seria capaz de redigir uma peça com tanto cinismo e ironia e a juíza não se conteve e terminou descontando em Laura. Izabel sentiu-se tentada a levantar e ir atrás da moça, mas desistiu. Em minutos, começou a outra audiência e a magistrada demorou mais do que o de costume para encerrá-la. Faltou-lhe concentração.
Do outro lado da cidade, Laura entrou no escritório abruptamente, quase levando as portas consigo, até a sala de Maurício:
- Que palhaçada foi essa, Maurício?
- O que houve, meu amor? Calma!
- O que houve? Eu é que pergunto! Como você me manda despachar uma porcaria daquela?
- Pensei que os seus belos olhos azuis cegaria a juíza, meu amor, e ela não leria!
- Que palhaçada é essa agora? – Laura não estava entendendo mais nada, nem queria... – Sabe de uma coisa, Maurício, eu é que sou uma imbecil de confiar em você! Deu as costas e saiu.
No corredor, a advogada foi interrompida por Gregório, que lhe entregou um copo com água e açúcar, arrastando-a para sua sala. Dessa vez ele não pôde resistir e contou a idéia de Maurício de usá-la como isca para seduzir a juíza “sapata”. Na cabeça de Laura só houve espaço para duas observações. A primeira delas foi a constatação de que Maurício era realmente sórdido; a segunda, a de que a juíza poderia até ser arrogante, prepotente, mas.... “sapatão”? Isto em momento algum havia lhe passado pela cabeça!
Laura lembrou da imagem de Izabel de Mendonça Novais. Seu nome lhe era por demais familiar, afinal desde a época da faculdade o ouvia com freqüência pelos corredores. É que a magistrada havia sido professora de direito civil durante algum tempo. Mas Laura não chegou a ser sua aluna. Recordava-se dos comentários sobre sua capacidade, sobre sua inteligência e, também, sobre sua beleza.
“E ela era uma mulher realmente muito bonita”, apenas agora constatava Laura. Buscando em sua memória uma maior precisão, logo reconstituiu em detalhes os olhos intensos, expressivos, os cabelos lisos e escuros, elegantemente cortados à altura do ombro, a voz profunda e pausada, o porte atlético, e nada encontrou de masculino ou “anormal”. Ao contrário, a juíza era delicada, embora firme. Em verdade, apesar de todo o mal-estar instalado entre ambas, Izabel não demonstrou nenhum tipo gesto pesado, masculinizado. Aliás, soube ser rude, arrogante, prepotente, de maneira até “polida”, por assim dizer, concluía Laura. E mesmo com muita raiva, a advogada não tinha como criticá-la neste ponto. Ela tinha realmente discrição. Enfim, era de impressionar se aquele boato fosse verdade.
Na quinta-feira, depois de uma semana de desgastes, Laura queria sumir. Havia mandado Maurício para o “quinto dos infernos”, como Gregório sempre havia desejado. Em compensação, mandou o escritório também, o que não agradou nem um pouco ao seu eterno apaixonado. Ela estava farta de tudo! Há muito não se sentia feliz no trabalho, nem no relacionamento. Ia curtir a deprê em casa, sozinha, sentada no chão, no meio de um amontoado de processos, na véspera de um feriado. Recomeçaria só.
Depois de muitas horas entre poeira, papeis e espirros, quase tudo estava em ordem. Ela ergueu-se e ia tomar uma ducha quente, quando o telefone a chamou.
- Alô, eu queria falar com a loira mais sexy que conheço, depois de Brigite Bardot!
Até o mau-humor de Laura cedeu ao tom de voz inconfundível de Raul, seu mais novo amigo e, com um meio sorriso nos lábios, ela respondeu:
- A loira sexy não está por aqui hoje, meu amigo. Eu estou simplesmente arrasada, além de empoeirada! E você, como está?
- Epa, nada de perguntas sobre minha linda e delicada pessoa antes de justificar o porquê desse “bode”, meu amor. O que houve?
- Ah Raul, isso é uma longa história e não estou muito disposta a explicar agora.
- Tudo bem, estou ligado porque tenho uma proposta irrecusável para a senhorita! Uma amiga de Vinícius nos convidou para passarmos o final de semana, começando de amanhã, claro, na fazenda dela. É um haras maravilhoso, chiquérrimo, deslumbrante, igual à dona! Eu só lembrei de você e de sua paixão por cavalos! Acho que em três dias você desamarra seu “bode”, montada em um mangalarga magnífico, o que acha?
- Não sei, Raul, não estou de bom-humor estes dias...
- Mas a intenção é essa, Laurinha, resgatá-lo!
- Além do mais eu não conheço ninguém, vou me sentir um peixe fora d’água...ou melhor, um “cinza” no meio de um arco-íris fluorescente...– Laura riu de sua própria analogia.
- Ora, ora, olha só quem está sendo careta e preconceituosa! Muito feio isso, viu? Ninguém vai te atacar, meu amor. Até porque só estaremos eu, Vinícius e os cavalos. A dona da casa, na verdade, nos emprestou o haras. Provavelmente ela aparecerá e passará algumas horas conosco, mas Vinícius diz que ela vive trabalhando e não vai lhe dar o bote, a menos que você permita, é claro... – Raul riu, imaginando a cara de Laura do outro lado da linha e continuou – Agora, meu amor, uma coisa eu devo dizer, ela é um escândalo de mulher! E sabe tratar outra como ninguém! Daria uma aula àquele almofadinha do seu namorado.
- Nem me fale daquele desgraçado. Você bem que tinha razão. Acho que conhece melhor os homens do que eu, tenho que admitir. Nos terminamos.
- Meu bem, longe de mim ser hipócrita! Por isso, nem vou dizer que lamento, ao contrário, fico é feliz por você. Ele não te merecia! E então, vamos comemorar?
Laura fez uma pausa e se imaginou sozinha em seu apartamento, no meio daquela bagunça, durante os dias que viriam, enquanto todos estariam se divertindo. Por segundos, resolveu deixar o “cinza” de lado e mudar de cor:
- Eu vou. Mas isso não me inclui no arco-íris, vou logo avisando.
- Pode deixar, meu bem, eu não conto pra ninguém se você mudar de idéia e sair do armário, ou melhor, de seu arquivo de processos. Um beijo.
Dizendo isso, Raul desligou o telefone antes que Laura o repreendesse. Ele realmente não esperava ver Laura mudando de lado, nem se empenhava para isso, apenas brincava para descontrai-la e, outras vezes, irritá-la. Ela era politicamente correta demais para ser gay, pensava ele, sem, entretanto, deixar de imaginar que seria bem divertido tê-la como “colega”. “Talvez ela fosse mais feliz”, era a conclusão que chegava todas as vezes que a via tão confusa sobre sua vida e seus sentimentos, como há poucos minutos.
Sexta-feira: uma cabine dupla estacionada na porta do prédio de Laura, recheada com dois pudlles de coleiras rosas, tosados com perfeição, varias malas, cheias sabe-se Deus de que e dois simpáticos e educados rapazes, nada discretos, mas com um enorme sorriso aberto para receber Laura, inclusive abrindo-lhe a porta do carro e pegando suas bagagens para ajeitá-las com cautela e precisão atrás da pick up. “O que mais ela posso querer para meu final de semana?”, pensou antes de abraçar com carinho os amigos que a saudaram com toda a alegria que se possa expressar.
- Você está magnífica!!! – Disseram ambos em uníssono.
Laura riu e não pôde deixar de comparar sua calça jeans, sua blusa básica, suas sandálias de pouco salto e a levíssima maquiagem que lhe adornava os traços com a produção dos dois:
- E vocês estão duas peruas chiquérrimas!! Vamos a um haras ou a uma festa?
- Meu amor, no mundo gay tudo é festa! Você precisa saber disto! – respondeu Vinícius, vendo o riso de aprovação e orgulho de Raul, que concordou em gênero, número e grau.
A viagem não durou mais do que uma hora e meia. No percurso, Laura sentiu-se leve como há muito não se sentia. Riu bastante dos dois que, entre uma história e outra, faziam coreografias inéditas ao som de Gloria Gaynor. Nem por um instante ela lembrou do escritório, de Maurício, dos juizes ou dos processos. Ela estava sendo o que há muito não era: feliz. Foi o que constatou ao som de “I will survive”.
Há poucos quilômetros da fazenda, a mesma já podia ser vislumbrada, pois ficava no alto de um morro verde, com um caminho marejado de árvores que a indicavam, fazendo uma sinalização mais do que natural. A casa grande era contornada por uma extensa varanda, erguida sobre colunas de madeira trabalhadas com perfeição. Por todos os lados havia janelas de vidro fosco, igualmente trabalhados, tudo em perfeita harmonia e classe. As flores davam um toque especial ao lugar. O jardim contava ainda com um córrego de águas límpidas que serpenteava por trás da casa. Parecia um quadro pintado por alguém preciso, de muito bom gosto e, sobretudo, romântico.
Com esse pensamento, Laura começou a tirar as malas do carro, sendo sutilmente atrapalhada por Elton e Evita, os pudlles de Raul, que insistiam em pular sobre uma das malas do dono, num alvoroço infernal. Depois Laura descobriu que ali dentro estavam suas rações, suas guias, suas bacias de água e de comida, seus secadores de pêlos e suas “roupinhas”. Para tudo havia um explicação, até para um crise de frescura de dois cachorros, pensou Laura, achando graça de sua própria conclusão.
Quando todos se dirigiam para a casa-grande, suados e carregados de bagagens, sem entretanto deixarem de admirar a beleza do lugar, surgiu uma nova imagem igualmente digna de admiração: a de um cavalo negro belíssimo, de pêlo reluzente e musculatura invejável, galopando sob os comandos de uma amazona mais bela ainda, vestida impecavelmente com uma roupa apropriada para montaria, usando botas lustrosas até o meio da perna e os cabelos negros, soltos ao vento.
Os três, Laura, Raul e Vinícius pararam para admirar a cena, tamanha a sincronia estabelecida entre a mulher e o cavalo. Não era possível saber quem ostentava mais altivez, mais força, mais vitalidade, qual dos dois era mais selvagem. Ao se aproximarem, entretanto, soube-se de imediato quem tinha o controle da situação: a amazona que, em um simples menear das rédeas, fez o animal arrefecer o passo. Ele a obedecia com a precisão de um Vassalo, daí seu nome.
Laura, ainda boquiaberta, não podia acreditar no que via. De súbito, ergueu os óculos escuros que a protegiam da claridade. As pupilas foram imediatamente contraídas. Os olhos claros, comprimidos, ainda incrédulos, tentavam comprovar por uma fresta se era verdade o que viam. A amazona audaciosa e admirável era ela, a juíza. No instante da constatação, Laura mudou de rumo. Virou-se e caminhou em direção ao carro e, sem titubear, jogou sua mala dentro dele novamente, fazendo menção de entrar. Mas foi interrompida por Raul, que não havia entendido nada.
- Minha querida, o que houve? Não sabia que você tinha medo de cavalos!
- Meu querido – respondeu Laura, com o rosto vermelho – não é medo é ódio e não é do cavalo, mas da mulher que está sobre ele! Eu quero ir embora agora! Empreste-me seu carro, depois venho buscar vocês!
- Calma, Laura, o que está havendo?
Mas ambos foram interrompidos por Izabel que já havia decido do cavalo e também parecia surpresa. Ela iria tentar controlar a situação.
- Raul, por favor, nos dê um segundo – a voz era a mesma e Laura lembrava-se com perfeição. O tom era ameno, profundo, pausado.
Laura olhou-a nos olhos, ainda faiscando de raiva e indignação. Em seguinda, respirou fundo, pois ainda se sentia sufocada pela coincidência. Mas Izabel não se alterou e continuou:
- Estou tão surpresa quanto você, doutora, mas não vejo motivo para nenhum outro sentimento além do de surpresa.
Laura continuava respirando fundo, para controlar-se, para achar palavras, sem querer dialogar com Izabel, mas não resistiu a uma alfinetada:
- Imagino, Excelência...mas, na verdade, não estou preocupada com o que a Senhora sente e sim com o que eu sinto. E sabe o que é? Aversão à sua pessoa! Não suportaria sua presença por nem um segundo, imagine por um final de semana inteiro! Perdoe-me a intolerância – o tom de voz de Laura era carregado de sarcasmo e rancor, sem qualquer disfarce e isso inquietou Izabel.
A juíza, com muita calma, olhou vagarosamente o relógio e continuou:
- Já se passaram alguns segundos e você não se desintegrou, Dra. Laura, acho que sobreviveria perfeitamente há mais alguns dias, além do mais, vou estar ocupada e não poderei lhe dar a atenção que gostaria. Não conte com minha presença, apenas com minha casa e minha hospedagem. Fique à vontade.
Dizendo isso, Izabel deu as costas e entrou na casa, com a mesma calma de sempre, apesar de sentir-se queimar por dentro. O sentimento que Laura lhe havia despertado, nem ela saberia definir naquele momento, só sabia que gostaria que ela ficasse para poder conceituar e dobrar aquela mulher.
Dentro do carro, Laura permanecia imóvel. Izabel a havia feito sentir-se uma criança mimada e birrenta. Logo ela, tão segura de si e dona da verdade. Ela não sabia mais se deveria continuar com a “birra” e ir embora ou ceder as mãos de Raul, estendidas em sua direção, para que a mesma descesse do carro e o acompanhasse.
Se ela fosse embora, sabia que deixaria para Izabel a imagem de uma mulher infantil, incapaz de superar situações constrangedoras como aquela e ela não queria que a juíza pensasse isso, embora não soubesse porque se preocupava com a imagem que ela teria de sua pessoa.
Por outro lado, se ficasse, poderia demonstrar a Izabel sua indiferença e a faria pensar que não partira exatamente porque a juíza não estaria presente e era isso o que ela queria. Aproveitaria a hospedagem, a casa, o final de semana e ainda, de quebra, demonstraria àquela mulher prepotente que havia ficado porque ela estaria ausente e só por isso! Com sua decisão tomada, só havia uma coisa a fazer. Deu a mão ao amigo e sussurrou em seu ouvido:
- Desculpe, Raul, depois te explico tudo.
Mas Raul estava tão abismado com a reação da amiga que mal escutou o que Laura havia dito. Limitou-se a conduzi-la para dentro de casa, imaginando, durante o percurso, que os “heteros” também eram capazes de montar um cenário perfeito para uma “fechação” fabulosa! Com esse pensamento, indicou o quarto que ela ficaria e Laura só conseguia se perguntar se havia sido a Juíza quem o escolhera. Fato era que o quarto possuía um encanto, era belíssimo, confortável, maravilhoso e ela jogou-se na cama enorme, sentindo o peso de sua consciência afundar no colchão, junto com seu corpo e sua tensão. Ela fora rude demais...sentia-se envergonhada pelo vexame, mas continuava achando Izabel merecedora de sua antipatia. Concluiu que, no máximo, talvez houvesse exagerado na dose.
Da janela do quarto, Laura pode ver Izabel partindo em seu carro e, finalmente, sentiu-se confortável para sair de lá. Ela faria tudo para não encará-la outra vez.
O dia transcorreu normalmente. Os três ficaram boa parte da tarde na piscina, tomando sol, ouvindo música e bebericando. Mais relaxada, Laura contou aos dois o que havia acontecido entre ela e Maurício, entre ela e o escritório e, principalmente, entre ela e a Juíza. Raul e Vinícius não podiam acreditar:
- Mas que horror, Laura! Que coincidência trágica! Eu hein, isso está me parecendo filme de Almodóvar! – Raul estava achando tudo um enorme absurdo.
- Laura, querida – agora era Vinícius quem ponderava – posso imaginar o ódio que você tem dos juizes e como você se sentiu em relação a Maurício e em relação ao “puxão” de orelhas que Izabel lhe deu no Fórum, mas, uma coisa é certa: ela não é arrogante, nem prepotente sem um bom motivo. Conheço Izabel há muitos anos e sua reputação é invejável, como juíza e como pessoa. Sei que ela costuma ser severa demais, mas também é seu costume admitir seus excessos e pedir desculpas. Baixe um pouco a guarda e verás. Vamos desfazer esse mal- entendido, por favor! Já estou sentindo algumas rugas brotando discretamente na minha face por causa desse stress. Assim não há Lancôme que resista!
Laura não deu resposta, mas mostrou-se interessada em saber mais sobre Izabel. Vinícius, por sua vez, não hesitou em contar-lhe. Em poucos minutos, Laura já sabia que ela, realmente, não se enquadrava no perfil da maioria dos juizes. Vinha de uma família humilde e estava ali por muito esforço. Sua fama, na faculdade, realmente, era a de ser uma pessoa extremamente justa e humana. Soube também que ela havia sofrido muito pelo preconceito que se multiplica no meio jurídico e até achou fantásticas as histórias contadas por Vinícius em relação ao fato de ela assumir-se homossexual e enfrentar a situação de frente, perante os tribunais, inclusive. Ela nunca caíra, nem baixara a cabeça exatamente porque sua reputação fora sempre ilibada e sua capacidade, incontestável. Ninguém poderia alcançá-la para prejudicá-la. Ela era acessível, mas inatingível. Era uma mulher a se admirar, fora esse o recado de Vinícius.
À noite, depois de um bom banho, Laura sentia a pele queimando. O sol havia castigado sua tez, agora mais vermelha do que nunca. Por isso, ela vestiu-se com uma roupa leve: calças pantalonas claras, uma camiseta que deixava à mostra seus ombros bem feitos e suas costas torneadas, os cabelos soltos, mais dourados pelo sol, os olhos claros destacados no rosto bronzeado.
Na varanda, os amigos lhe esperavam para um requintado fondue, regado a vinho tinto. Ambos estavam vermelhos e cansados, mas não perderam a pose, denunciada pelas vestes caras e fashions. Os pudlles, por sua vez, também estavam cansados mas, sem tanta classe quanto os donos, esperavam embaixo da mesa os possíveis restos.
Com os ânimos menos exaltados, Laura finalmente cedeu ao encanto do lugar. Deixou o corpo tombar numa confortável cadeira de balaço e ficou rindo das besteiras de Raul e Vinícius, falando sobre amenidades, bebendo o vinho maravilhoso que lhe era oferecido, sendo bebida pelo luar que pousava sobre seu corpo lânguido e quase totalmente relaxado. Apenas uma dúvida era motivo de inquietação: saber se Izabel já havia ou não voltado para a fazenda. Ela não sabia exatamente se queria ou não que ela estivesse ali. Por minutos, tinha a convicção de que não, de que preferia saber que ela dormiria em outro lugar e não retornaria até eles irem embora, mas, nos minutos seguintes, sem saber, nem se questionar o porquê, desejava que ela estivesse ali, nem que fosse para desprezá-la, para tentar afrontá-la mais uma vez, magoá-la ou, quem sabe...conhecê-la.
A resposta para sua dúvida veio, literalmente, a cavalo. Era Izabel que chegava, montada no animal reluzente. “Como eu sou estúpida”, pensava Laura. Estava tão absorta que sequer havia notado que o carro da juíza estava estacionado logo ali em frente!
A amazona desceu do cavalo, caminhou em direção à varanda e não demonstrou qualquer intenção em acompanhá-los no fondue. Por mera educação, respondeu ao convite de Raul polidamente:
- Obrigado, Raul, mas estou muito cansada. Ainda tenho muito trabalho a fazer. Boa noite e divirtam-se.
Izabel nem olhou na direção de Laura. Mas não era preciso olhá-la para sentir sua presença, seu olhar penetrante e azul, em sua direção.
Intimamente, Laura esperou que Izabel a fitasse. Ela pretendia dar-lhe espaço para as desculpas, mas a juíza parecia não querer mais se desculpar. No instante seguinte, a advogada percebeu que, na verdade, ela não só queria, mas estava esperando Izabel chegar. Não havia mais a dúvida, mas a inquietação continuava. Afinal, Izabel chegara e nada fora como ela havia planejado. Nada de tréguas.
Raul e Vinícius fingiam não perceber a inquietação de Laura que, contrariada, exagerava no vinho. Raul conhecia o orgulho da amiga e, conseqüentemente, sabia que, enquanto eles estivessem presentes ela não tentaria se aproximar da juíza. Vinícius, por sua vez, também era profundo conhecedor do orgulho de Izabel e não hesitou em chamar Raul para deitarem-se, sabendo que, também, enquanto estivessem ali, as duas jamais se entenderiam. E foram. Mas antes, é claro, passaram no quarto da juíza para dar um sonoro “boa noite”, traduzido como “pode ir que a barra está limpa!”
Izabel transladou a mensagem e foi. Também estava inquieta e insone. Desde o primeiro momento desejou ir atrás de Laura e desculpar-se pela grosseria, mas alguma coisa a impedira, o que só havia piorado a situação. Agora, finalmente, talvez houvesse espaço. Caminhou devagar até a varanda e, antes mesmo de chegar, pode ver a silhueta de Laura, debruçada na murada, iluminada pela lua, através do vidro que a separava da sala.
A juíza parou e pensou mais um pouco se deveria mesmo se aproximar e correr o risco de levar mais uma “patada” felina ou se deveria permanecer inerte e se contentar em apenas apreciar a imagem de uma mulher perfeita e, naquele instante, pacata, mansa e calma. Como nunca fora de ceder a medos, atravessou a porta e interrompeu os pensamentos de Laura com um comentário:
- Você só cometeu um erro...
Não foi preciso virar-se para saber que era Izabel quem estava às suas costas. Laura sentiu o corpo retesar-se instintivamente, um frio percorreu-lhe a barriga e sua calma esvaiu-se por completo. Ela não sabia o que sentia em relação àquela mulher, mas ódio não era mais. Esperou Izabel concluir a frase:
- ...não haver lido a petição antes de ir falar comigo. Se tivesse o feito, por certo não teria tentado despachá-la...não parece do seu feitio. Aquelas palavras irônicas e argumentos sórdidos não combinam com você.
Laura sentiu que era o momento da trégua, mas sua língua era indomável e ela não se conteve:
- E a senhora cometeu dois erros: o primeiro foi perceber, desde o primeiro instante, que eu não havia sequer lido aquele maldito recurso e, mesmo assim, agir como se eu não apenas o houvesse lido, mas escrito e o segundo... – Laura fez uma pausa, quase causando o arrependimento de Izabel por ter prosseguido e virou-se, fitando-a de cima a baixo – o segundo foi só vir me pedir desculpas agora.
A prepotência de Laura era imensa e Izabel imaginou que deveria ter ficado longe daquela mulher desde o primeiro momento. Não deveria, sequer, ter olhado-a, tampouco deveria desejá-la, como já o fazia. Mas ela responderia a altura. Respirou fundo e perguntou:
- E quem lhe disse que eu vim lhe pedir desculpas?
- Quem me disse, Izabel? Foram essas duas taças de vinho que você traz em suas mãos. Suponho que uma delas seja pra mim e imagino que a senhora não oferece vinho a inimigos...nem abrigo – pela primeira vez Laura sorriu para Izabel, o que a desarmou por completo.
Laura era realmente linda e Izabel só pode pensar, naquele momento, no quanto a queria em sua cama. Sem resistir à inteligência do comentário de Laura, Izabel cedeu e riu-se também, estendendo-lhe a taça e perguntando:
- Aceita?
- O vinho sim...o pedido de desculpas não. Seu prazo já prescreveu! – e Laura riu novamente, mas dessa vez com certa crueldade, diante dos olhos escuros de Izabel.
- Como juíza, eu posso prorrogar meu prazo – finalizou Izabel, impaciente e já chateada, afinal quando pensava que, finalmente, Laura cederia, ela vinha novamente com ironia! Mas, diante do comentário prepotente de Izabel, Laura retrocedeu mais ainda e engrossou de vez:
- Se você estivesse falando como juíza, Izabel, eu sequer estaria aqui lhe escutando...estou aqui lhe respondendo, lhe dando ouvidos apenas porque estou tentando lhe ver como uma simples mortal, se é que me entende...
Laura já sentia o vinho queimando-lhe as faces, perturbando-lhe os pensamentos. Não entendia de onde vinha aquela sensação estranha cada vez que sentia a presença daquela mulher, que tanto a inquietava, que tanto a provocava, que a fazia dizer coisas que não queria, que a fazia ser grotesca, rude. Talvez fosse seu modo de proteger-se, mas de que? Olhou as mãos de Izabel, de unhas curtas, de dedos fortes, fitou os olhos escuros que a olhavam e pareciam enxergá-la por dentro, despir seu corpo e sua mente e, sem entender, imaginou como seria ser tocada por ela, ser tomada por ela. E, num momento de insensatez, desejou que Izabel o fizesse. Desejou que a mulher de espírito indomável à sua frente a enfrentasse. A calasse e, porque não, com um beijo. Então era de seu próprio desejo que ela se protegia, concluiu Laura. Imediatamente deu as costas para Izabel e fez menção de entrar em casa, mas foi impedida.
De súbito, Izabel segurou Laura pelo braço e a trouxe para perto de seu corpo. A centímetros de distância, suas bocas ficaram igualmente próximas. Izabel olhou-a nos olhos. A respiração de ambas entrecortadas. A juíza pôde perceber que Laura inquietou-se por completo, chegando a ficar trêmula com a aproximação. Na seqüência, a questionou:
- O que é que você quer, finalmente? Trégua ou guerra? Para fazer você tremer desse jeito, ou lhe desperto ódio ou desejo!
Nesse instante, Laura puxou bruscamente o braço que Izabel segurava, olhando imediatamente e indignada às marcas que as mãos da juíza deixaram estampadas em sua pele. Sem ponderar mais nada, virou-se para Izabel e deu-lhe um tapa no rosto, dizendo:
- Isto é por você ser tão prepotente!
No mesmo instante, Izabel a puxou novamente com força e, sem pensar duas vezes, deu-lhe um beijo na boca, no início, com certa violência, para em seguida, tomar os lábios de Laura de maneira lenta e quente, deixando-a mais tremula ainda. Em seguida, soltou-a e disse:
- E isso...é por você ser tão envolvente!
Laura fez menção de esbofeteá-la novamente, mas não o fez. Entrou em casa com pressa e trancou-se no quarto.
Izabel ficou na varanda durante quase uma hora, sentindo e lembrando do gosto de Laura. Desejando-a mais ainda. Seu corpo também tremia.
No quarto, Laura tirou as roupas e jogou-se embaixo do chuveiro, tentando acalmar-se, esquecer-se, livrar-se da umidade que havia emergido por entre suas pernas desde o momento em que Izabel a puxara daquele jeito. Com os olhos cerrados, esfregava sua pele, evitava olhar-se no espelho e perceber o desejo que intumescia seus seios, que inundava mais uma vez seu ventre, só de lembrar daquele beijo. Mas, na cama, ainda molhada pela água, deitou-se nua e tocou-se pensado nas mãos da juíza que a havia enlouquecido de desejo.
No dia seguinte, Laura culpou o vinho, sua carência, o sol que havia queimado parte de sua sensatez, o álcool que havia incandescido parte de sua consciência, a convivência com os amigos gays e uma infinidade de outras coisas ridículas que serviriam como desculpas para sua atitude e sentimentos da noite anterior. Nenhuma das desculpas, entretanto, serviu para explicar a frustração que sentiu quando, no café da manhã, soube que Izabel havia viajado, pois faria parte de uma justiça itinerante na cidade mais próxima do haras e talvez não voltasse.
- Mas ela, minha querida, deixou uma coisa pra você – disse Raul, percebendo a decepção nos olhos azuis da amiga – finalmente parece que fizeram as pazes, não foi?
Laura não se deu ao trabalho de responder. Tinha medo que o amigo enxergasse o que ela estava sentindo e o pior, o que havia sentido na noite anterior. Limitou-se a perguntar:
- O que ela deixou? – Perguntou, sem sequer olhar nos olhos de Raul, permanecendo de cabeça baixa, fingindo concentrar-se nos caroços que tirava da fatia de melancia à sua frente.
- Está lá no quarto dela...ela disse que você fosse até lá...sozinha.
Laura largou a melancia encaroçada do jeito que estava e deixou o café esfriando sobre a mesa, dessa vez sem se preocupar com o que pensariam os amigos, diante de sua curiosidade e pressa. Foi até o quarto de Izabel. Sobre a cama, enorme e deliciosamente forrada, havia mais de trezentas rosas e um bilhete. Ela afastou algumas flores com cuidado, sentou-se à beira da cama e “bebeu” cada palavra como se estivesse tomando um antídoto para sua frustração e agonia:
“Laura...peço-te duas coisas: que me desculpe pelo beijo que roubei e que durma em minha cama esta noite. Como você deve saber, não estarei aqui e, se estivesse, não ousaria lhe fazer o segundo pedido. Se o faço é apenas porque quero sentir, ao menos, o seu cheiro, quando voltar. Ele ficará nos lençóis, assim como ficou em mim. Izabel”.
Laura sentiu o rosto corar e as mãos suarem frio. Olhou ao redor, tentando conceber os fatos, o lugar onde estava, o que lhe cercava e o que lhe tomava por dentro. Tudo parecia tão absurdo, quanto maravilhoso! Releu o bilhete mais de dez vezes! Sentiu a cabeça rodar mais de cem vezes! Deitou-se sobre a cama, sobre as rosas e os espinhos, mas não sentiu o incômodo dos galhos, apenas o perfume das flores e a maciez daquela cama onde Izabel deitava. Lembrou-se de cada detalhe de seu rosto, de suas mãos e do beijo. Não havia mais como fugir nem fingir das sensações que lhe tomavam e que eram tão reais quanto aquele bilhete em suas mãos.
Quando finalmente saiu do quarto, Raul e Vinícius a esperavam curiosíssimos. Entretanto, não lhe perguntaram nada. O dia demorou muito a passar para os três.
À noite, depois de pensar e repensar várias vezes sobre o pedido de Izabel, Laura entrou no quarto da juíza. Fê-lo não apenas para deixar seu cheiro entre os lençóis, mas, sobretudo, para sentir o de Izabel. Parada à beira da cama, Laura olhou mais uma vez as rosas, antes de tirá-las dali. Queria deitar em contato direto com os lençóis. Em seguida, despiu-se devagar, apagou a luz e se deixou cair sobre a cama de Izabel, aconchegando-se entre os travesseiros, enroscando-se em sua maciez, abraçando-os com as pernas, contornando-os com seu corpo. Finalmente, antes de adormecer, Laura pôde distinguir com perfeição o cheiro de Izabel, que ao seu olfato já não se confundia com o perfume das rosas. Só então, adormeceu.
Era quase madrugada quando a porta do quarto foi aberta lentamente. Laura não sabia se o barulho do trinco vinha de seu sonho ou da porta, realmente. Certo é que ela permaneceu imóvel, deitada de bruços como estava, de olhos cerrados, no aguardo, entre o silêncio e a vertigem. Em seguida, ouviu alguns passos e os lençóis que cobriam suas costas e suas ancas serem levemente afastados. Seu corpo fora desnudado dos cetins e coberto por um outro corpo quente. Um corpo feminino, como ela pode sentir pelo contato dos seios firmes em suas costas e do ventre, que se encaixou nas suas ancas com perfeição, demonstrando a nítida intenção de cavalgá-la. Ela não deve duvida, pelo cheiro e pela pele, que era Izabel e, sem titubear, começou a mover os quadris, em contato com o ventre já molhando que se colava e se esfregava, já com sofreguidão, em suas coxas, em suas ancas, em suas entradas. Izabel já molhava o corpo de Laura com sua umidade e a fazia inundar-se de excitação. Ainda de costas, Laura entreabriu as pernas, num convite para que Izabel a penetrasse com os dedos e ela o fez. Nesse instante, Laura virou-se e passou as pernas pela juíza, que já estava enlouquecida de desejo. Encaixadas, Laura olhou-a nos olhos e disse que preferia o cheiro de ambas, juntas, naquela cama. E beijou-a da maneira mais sensual que já havia beijado alguém. Elas se queriam além do esperado. Seus corpos falavam, se grudavam, pulsavam juntos. Os dedos de Izabel penetravam Laura com força, arrancando gemidos igualmente fortes, roucos, loucos e ela queria mais. Gozou nas mãos da juíza, mas ainda não estavam saciadas. Izabel deitou Laura e abriu-lhe as pernas, afundando a língua em sua umidade, lambendo-a, bebendo-a, secando-a, enchendo-a, mais uma vez, de gozo. Mas Laura queria retribuir o prazer que arrebatava seu corpo e, mesmo sem qualquer experiência, tomou os seios de Izabel com a boca e os sugou avidamente. O instinto a conduzia e Izabel gemia de excitação, o que só deixou Laura mais satisfeita. Ela se sentia maravilhada em dar prazer para uma mulher, para aquela mulher. Em seguida, encorajada pelas mãos da própria juíza, os dedos de Laura foram conduzidos até o ventre de Izabel e mergulhados na umidade que brotava a cada instante. Laura os enfiou lentamente, olhando Izabel nos olhos até que ela os cerrasse de prazer, com um gemido abafado nos lábios. Em seguida, aumentou o ritmo e deitou-se sobre a juíza, galopado-a, literalmente, até que as duas gozaram mais uma vez.
E a noite foi longa e a vida parecia curta para tudo o que elas queriam viver dali pra frente. Depois daquele fim-de-semana, Laura finalmente saiu do armário e nunca mais retornou às traças, nunca mais se sentiu guardada ou presa. Agora ela era livre, ela era feliz, ela era ela, realmente. Cuidou de integrar-se ao arco-íris e descobriu como era divino deixar de ser “cinza” e sentir-se “colorida”, simplesmente e sempre.
Vale ressaltar, entretanto, que sua antipatia por juizes persistiu. Mas, em relação às juízas, especificamente em relação a uma determinada magistrada, a história tornou-se bem diferente...
Depois de 5 anos de formada, ela ainda não se sentia complemente realizada. Direito era, sem dúvida, sua profissão, mas a advocacia ainda possuía certas peculiaridades com as quais ela jamais saberia lidar. Uma delas era ter que depender de um tipo particular de pessoas – era assim que Laura costumava descrevê-las – que se julgam superiores, que se fazem inacessíveis, que realmente são prepotentes, arrogantes, insensíveis, às quais a sociedade convencionou chamar de “juizes”. Esse era seu grande karma: engoli-los.
Com apenas um ano de formados, muitas idéias e livros a tiracolo, Laura, Maurício e Gregório, amigos inseparáveis de faculdade, foram encontrar suas primeiras desavenças num escritório montado pelos três. Nada como os negócios para os amigos começarem a ter seus “apartes”. Quando as primeiras diferenças e discussões surgiram, foi feito o de praxe: cada um tornou-se responsável por uma área do Direito, afinal, nenhum tinha índole para ser coordenado, tampouco, comandado.
E assim, Laura assumiu seu posto e sua preferência pelo Direito Penal, Maurício desenvolveu e passou a aplicar suas técnicas de retórica e paciência na esfera cível e Gregório, sua praticidade e objetividade na trabalhista. Ainda assim, aqui e acolá ainda surgiam atritos, ressalte-se, os quais nada tinham a ver com o lado profissional: Laura, um ano após a sociedade no escritório, depois de muita insistência de Maurício, oficializou um antigo “rolo” que eles tinha desde os “primórdios” da faculdade, o que não agradou a Gregório. Sua desculpa externada era apenas uma: não se deveria misturar uma relação profissional com uma pessoal, até porque, futuramente, um desgaste nesta poderia acarretar o declínio daquela e vice-versa. Porém, intimamente, só ele sabia o ciúme que sentia. Desde a primeira vez em que vira Laura, a elegera a “mulher perfeita”. Afinal, mesmo aos 19 anos de idade ela já deixava transparecer a mulher magnífica que se tornaria em alguns anos.
Agora, depois de quatro anos de sociedade, Gregório podia ver como suas previsões estavam certas. Laura era mesmo exuberante, não só fisicamente, mas intelectualmente. E ele se roia por dentro por não ter conseguido conquistá-la e mais ainda por vê-la com Maurício. Só mesmo um homem para saber das sacanagens de outro e Maurício era sacana, disso Gregório sabia.
Apesar de ser apaixonadíssimo por Laura, Maurício não perdera seu posto de “galinha”. Sempre metido a conquistador, galanteador nato, não perdia uma oportunidade de “cantada”. Algumas inteligentes, outras realmente baratas. Mas seu pior defeito, aos olhos de Gregório, nem era esse, afinal ele sabia que isso não afetava a Laura, que ela era, em muito, superior ao jeito “desenrolado” do namorado. Para Gregório o que, sem dúvidas, tornava Maurício indigno da “mulher perfeita” era o fato de ele ser um tanto quanto inescrupuloso no trabalho, de usar artifícios escusos para conseguir o que queria, de passar por cima da ética, de deixar de lado os conhecimentos jurídicos e apoiar-se nos políticos para ter julgada em seu favor as demandas. Isso realmente era inaceitável aos olhos de Gregório e camuflado aos de Laura.
Por vezes Gregório pensou em conversar com Laura sobre o comportamento de Maurício, mas temia a reação dela. Tinha receio de que ela pensasse mal, de que julgasse seu alerta como fofoca, como despeito, como uma tentativa inconcebível de meter-se onde não era chamado e por isso permanecia calado. Mas aquela nova idéia de Maurício era, sem dúvidas, o fim da picada!
“Como alguém podia ser tão sórdido?” Foi tudo o que Gregório pôde perguntar ao “sócio” quando ele chegou com aquela idéia desprezível e um riso sarcástico entre os lábios: a de pedir a Laura que fosse despachar um de seus recursos com a juíza competente, pedindo que a mesma reconsiderasse sua decisão de primeiro grau, afinal, o boato que corria era o de que a tão temida e respeitada juíza, Dra. Izabel de Mendonça Novais, era “sapata” e “ninguém que possuísse instinto masculino, ainda que fosse guardado por um corpo feminino, resistiria a um pedido de Laura”. Foram essas as palavras do canalha.
- Ahh, Gregório, não me venha dizer que não é uma excelente idéia. Que homem ou sapata que se preze diria um “não” à minha mulher? Você diria, meu amigo?
O tom de Maurício, a ironia do riso, a forma como a última pergunta fora feita incomodaram sobremodo Gregório:
- O que você quer insinuar com essa pergunta idiota?
- Nada, Gregório, nada! Por que? Eu deveria insinuar alguma coisa? O que eu penso eu digo na cara, colega! Sei muito bem que você comeria com prazer minha namorada, e daí? O que importa é que, de fato, quem come sou eu!
Dizendo isso, Maurício deu as costas, ainda com o riso sacana erguendo o cantinho da boca. Nessa hora, Laura chegou e Gregório não se conteve:
- Já que o que você pensa você diz na cara, “colega”, porque não partilha com Laura sua idéia?
O riso amarelo de Maurício morreu. Ele assumiu seu ar sério e sonso. Com todo cinismo que alguém pode ostentar, ele encarou a namorada, olhou fundo nos olhos claros que o fitavam esperando uma explicação e disse:
- A idéia, meu amor, é de que você hoje me faça um grande favor – fez uma pausa em seu texto ensaiado, respirou compassadamente fingindo preocupação e cansaço e continuou. Eu estou com três audiências para fazer hoje, pela manhã, uma delas inclusive é aquela do acordo que nos renderá os R$ 50.000,00, lembra?
- Sei, Maurício e...? – Laura já demonstrava impaciência – Diga logo qual é o favor que você quer e o que vai me dar em troca.
- ...E eu queria que você fosse despachar um recurso com uma Juíza. Na verdade quero que você consiga um juízo de retratação. Só isso. Em troca, te levo hoje pra jantar onde você quiser e passo a semana que vem sendo seu motorista.
Gregório sentiu-se enjoado. Ele não agüentava mais presenciar aquele tipo de cena.
Laura também tinha muito por fazer nos dias que viriam. Estava com a cabeça a mil por hora com dois processos complicadíssimos que tinham aparecido justamente naquela semana. Por isso, dispensou o jantar, mas aceitou a proposta de ter um motorista, afinal o transito só a enlouquecia ainda mais.
A área cível não era seu forte. Na verdade, ela tinha até uma certa aversão àquele tipo de ação. E foi exatamente a repulsa que sentia, somada à sua falta de tempo, que a fez chegar ao Fórum sem sequer ler a petição de Maurício. Enquanto esperava para falar com a Juíza, planejou ver todo o processo com atenção, mas, para sua surpresa e inquietação, não esperou mais do que 10 minutos. Entre uma audiência e outra, a diretora da secretaria a chamou e disse:
- A Dra. Izabel vai atendê-la agora.
Laura ficou meio aturdida. Não estava acostumada em ser recebida com rapidez. “Quem sabe pelo menos esta juíza fuja aos padrões?”, pensou e entrou, lamentando-se por não ter se inteirado da ação com antecedência.
Na sala, Izabel esperava com a cabeça baixa, concentrada no processo da próxima audiência. Pareceu não notar a presença de Laura que a interrompeu:
- Com licença, Excelência, posso entrar? – perguntou com firmeza.
- Pode, sente-se.
Izabel não pôde deixar de admirar a figura que se sentou à sua frente. Laura era realmente muito atraente. Tinha um porte altivo, o corpo esguio, impecavelmente vestido com um tailleur muito bem talhado, de tonalidade azulada, combinando com os olhos claros da advogada. Sua tez era dourada, bronzeada, o rosto levemente coberto por uma penugem loira e muito fina, os cabelos igualmente loiros e lisos, descendo pesado até o meio das costas. Por instantes, Izabel desejou não ser juíza e ter conhecido aquela mulher em outro local e em circunstâncias diversas. Mas o devaneio não durou mais do que segundos:
- Pois não? Em que posso ajudá-la?
- Eu gostaria de falar com a senhora em relação a este processo – aduziu Laura, passando às mãos da juíza o volume de papeis que trazia.
Não foi preciso esperar a juíza folhear mais do que três páginas para que Laura pudesse ver a expressão do rosto de Izabel se alterar bruscamente.
- Por acaso a Doutora veio aqui pleitear um possível juízo de retratação em relação à minha sentença?
A voz da juíza era de intimidar. Apesar de Izabel ser uma mulher muito polida e educada, de jamais alterar seu tom de voz em nenhuma circunstância, facilmente se compreendia que, mesmo falando baixo, ela não admitia certas atitudes. Laura engoliu em seco, sem entender direito o motivo da reação. Mas, sem perder a altivez, de igual para igual, respondeu com ênfase, olhando nos olhos negros que a fuzilavam:
- Sim. É isso o que eu quero.
- Doutora... – Izabel fez uma pausa enquanto procurava um nome feminino dentre os constantes na procuração – Laura...é esse seu nome?
- É esse mesmo.
- Pois bem. Doutora Laura, meu nome é Izabel. A senhora me conhece?
- De nome, sim!
- Pois é, pessoalmente vejo que não...se me conhecesse saberia que eu não costumo voltar atrás em minhas decisões. Sabe o por quê? Porque reflito muito antes de tomá-las, compreende? Portanto, a doutora e, principalmente, seu sócio, que, ao contrário da senhora, me conhece pessoalmente – frisou a magistrada com ironia –, também deveriam pensar bastante antes de me interromperem. Ainda mais para formular um juízo de retratação feito este, de caráter meramente protelatório e desprovido de qualquer senso jurídico.
- Excelência... – Laura respirou fundo, tentando se segurar, afinal sabia que a juíza poderia ter razão. Ela sequer tinha lido o que estava pedindo e o porquê do pedido. Limitou-se a confiar em Maurício e, pelo jeito, se dera mal. Mas não engoliria essa grosseria assim e continuou. Os olhos faiscando de raiva, o rosto vermelho –...a senhora me desculpe se entende assim, mas desprovida de senso jurídico é a sua colocação. A senhora deveria saber, mais do que eu, inclusive, que tenho direito a um pronunciamento formal sobre o meu pedido, ainda que seja negando a retratação e mantendo a sentença “a quo”. Vim em busca deste pronunciamento e o quero por escrito. Se isso a senhora considera protelar ou agir de má-fé, o procedimento é aplicar a devida penalidade, formalmente, também por escrito, e não me agredir verbalmente, como está fazendo. Pensei que a senhora fugiria do padrão de juiz que conheço, afinal, não fez de seu gabinete um lugar inacessível, como a maioria faz, mas vejo que me enganei: a arrogância e a prepotência são as mesmas, com uma sutil diferença: a senhora mantém o tom de voz ameno, para fingir respeito. Com licença.
Dizendo isso, Laura levantou-se e saiu com a mesma classe com a qual entrou, embora tremesse de ódio por dentro. Na sala, ficou apenas seu perfume e uma juíza de boca entreaberta de admiração. Em outra ocasião, Izabel mandaria prendê-la por desacato, mas, intimamente, sentia-se culpada.
Izabel, desde o começo, percebeu que Laura não havia lido a petição e aproveitou-se desse erro para desarmá-la. Na verdade, a juíza estava farta de Maurício e de seus artifícios. Ela sabia que só ele seria capaz de redigir uma peça com tanto cinismo e ironia e a juíza não se conteve e terminou descontando em Laura. Izabel sentiu-se tentada a levantar e ir atrás da moça, mas desistiu. Em minutos, começou a outra audiência e a magistrada demorou mais do que o de costume para encerrá-la. Faltou-lhe concentração.
Do outro lado da cidade, Laura entrou no escritório abruptamente, quase levando as portas consigo, até a sala de Maurício:
- Que palhaçada foi essa, Maurício?
- O que houve, meu amor? Calma!
- O que houve? Eu é que pergunto! Como você me manda despachar uma porcaria daquela?
- Pensei que os seus belos olhos azuis cegaria a juíza, meu amor, e ela não leria!
- Que palhaçada é essa agora? – Laura não estava entendendo mais nada, nem queria... – Sabe de uma coisa, Maurício, eu é que sou uma imbecil de confiar em você! Deu as costas e saiu.
No corredor, a advogada foi interrompida por Gregório, que lhe entregou um copo com água e açúcar, arrastando-a para sua sala. Dessa vez ele não pôde resistir e contou a idéia de Maurício de usá-la como isca para seduzir a juíza “sapata”. Na cabeça de Laura só houve espaço para duas observações. A primeira delas foi a constatação de que Maurício era realmente sórdido; a segunda, a de que a juíza poderia até ser arrogante, prepotente, mas.... “sapatão”? Isto em momento algum havia lhe passado pela cabeça!
Laura lembrou da imagem de Izabel de Mendonça Novais. Seu nome lhe era por demais familiar, afinal desde a época da faculdade o ouvia com freqüência pelos corredores. É que a magistrada havia sido professora de direito civil durante algum tempo. Mas Laura não chegou a ser sua aluna. Recordava-se dos comentários sobre sua capacidade, sobre sua inteligência e, também, sobre sua beleza.
“E ela era uma mulher realmente muito bonita”, apenas agora constatava Laura. Buscando em sua memória uma maior precisão, logo reconstituiu em detalhes os olhos intensos, expressivos, os cabelos lisos e escuros, elegantemente cortados à altura do ombro, a voz profunda e pausada, o porte atlético, e nada encontrou de masculino ou “anormal”. Ao contrário, a juíza era delicada, embora firme. Em verdade, apesar de todo o mal-estar instalado entre ambas, Izabel não demonstrou nenhum tipo gesto pesado, masculinizado. Aliás, soube ser rude, arrogante, prepotente, de maneira até “polida”, por assim dizer, concluía Laura. E mesmo com muita raiva, a advogada não tinha como criticá-la neste ponto. Ela tinha realmente discrição. Enfim, era de impressionar se aquele boato fosse verdade.
Na quinta-feira, depois de uma semana de desgastes, Laura queria sumir. Havia mandado Maurício para o “quinto dos infernos”, como Gregório sempre havia desejado. Em compensação, mandou o escritório também, o que não agradou nem um pouco ao seu eterno apaixonado. Ela estava farta de tudo! Há muito não se sentia feliz no trabalho, nem no relacionamento. Ia curtir a deprê em casa, sozinha, sentada no chão, no meio de um amontoado de processos, na véspera de um feriado. Recomeçaria só.
Depois de muitas horas entre poeira, papeis e espirros, quase tudo estava em ordem. Ela ergueu-se e ia tomar uma ducha quente, quando o telefone a chamou.
- Alô, eu queria falar com a loira mais sexy que conheço, depois de Brigite Bardot!
Até o mau-humor de Laura cedeu ao tom de voz inconfundível de Raul, seu mais novo amigo e, com um meio sorriso nos lábios, ela respondeu:
- A loira sexy não está por aqui hoje, meu amigo. Eu estou simplesmente arrasada, além de empoeirada! E você, como está?
- Epa, nada de perguntas sobre minha linda e delicada pessoa antes de justificar o porquê desse “bode”, meu amor. O que houve?
- Ah Raul, isso é uma longa história e não estou muito disposta a explicar agora.
- Tudo bem, estou ligado porque tenho uma proposta irrecusável para a senhorita! Uma amiga de Vinícius nos convidou para passarmos o final de semana, começando de amanhã, claro, na fazenda dela. É um haras maravilhoso, chiquérrimo, deslumbrante, igual à dona! Eu só lembrei de você e de sua paixão por cavalos! Acho que em três dias você desamarra seu “bode”, montada em um mangalarga magnífico, o que acha?
- Não sei, Raul, não estou de bom-humor estes dias...
- Mas a intenção é essa, Laurinha, resgatá-lo!
- Além do mais eu não conheço ninguém, vou me sentir um peixe fora d’água...ou melhor, um “cinza” no meio de um arco-íris fluorescente...– Laura riu de sua própria analogia.
- Ora, ora, olha só quem está sendo careta e preconceituosa! Muito feio isso, viu? Ninguém vai te atacar, meu amor. Até porque só estaremos eu, Vinícius e os cavalos. A dona da casa, na verdade, nos emprestou o haras. Provavelmente ela aparecerá e passará algumas horas conosco, mas Vinícius diz que ela vive trabalhando e não vai lhe dar o bote, a menos que você permita, é claro... – Raul riu, imaginando a cara de Laura do outro lado da linha e continuou – Agora, meu amor, uma coisa eu devo dizer, ela é um escândalo de mulher! E sabe tratar outra como ninguém! Daria uma aula àquele almofadinha do seu namorado.
- Nem me fale daquele desgraçado. Você bem que tinha razão. Acho que conhece melhor os homens do que eu, tenho que admitir. Nos terminamos.
- Meu bem, longe de mim ser hipócrita! Por isso, nem vou dizer que lamento, ao contrário, fico é feliz por você. Ele não te merecia! E então, vamos comemorar?
Laura fez uma pausa e se imaginou sozinha em seu apartamento, no meio daquela bagunça, durante os dias que viriam, enquanto todos estariam se divertindo. Por segundos, resolveu deixar o “cinza” de lado e mudar de cor:
- Eu vou. Mas isso não me inclui no arco-íris, vou logo avisando.
- Pode deixar, meu bem, eu não conto pra ninguém se você mudar de idéia e sair do armário, ou melhor, de seu arquivo de processos. Um beijo.
Dizendo isso, Raul desligou o telefone antes que Laura o repreendesse. Ele realmente não esperava ver Laura mudando de lado, nem se empenhava para isso, apenas brincava para descontrai-la e, outras vezes, irritá-la. Ela era politicamente correta demais para ser gay, pensava ele, sem, entretanto, deixar de imaginar que seria bem divertido tê-la como “colega”. “Talvez ela fosse mais feliz”, era a conclusão que chegava todas as vezes que a via tão confusa sobre sua vida e seus sentimentos, como há poucos minutos.
Sexta-feira: uma cabine dupla estacionada na porta do prédio de Laura, recheada com dois pudlles de coleiras rosas, tosados com perfeição, varias malas, cheias sabe-se Deus de que e dois simpáticos e educados rapazes, nada discretos, mas com um enorme sorriso aberto para receber Laura, inclusive abrindo-lhe a porta do carro e pegando suas bagagens para ajeitá-las com cautela e precisão atrás da pick up. “O que mais ela posso querer para meu final de semana?”, pensou antes de abraçar com carinho os amigos que a saudaram com toda a alegria que se possa expressar.
- Você está magnífica!!! – Disseram ambos em uníssono.
Laura riu e não pôde deixar de comparar sua calça jeans, sua blusa básica, suas sandálias de pouco salto e a levíssima maquiagem que lhe adornava os traços com a produção dos dois:
- E vocês estão duas peruas chiquérrimas!! Vamos a um haras ou a uma festa?
- Meu amor, no mundo gay tudo é festa! Você precisa saber disto! – respondeu Vinícius, vendo o riso de aprovação e orgulho de Raul, que concordou em gênero, número e grau.
A viagem não durou mais do que uma hora e meia. No percurso, Laura sentiu-se leve como há muito não se sentia. Riu bastante dos dois que, entre uma história e outra, faziam coreografias inéditas ao som de Gloria Gaynor. Nem por um instante ela lembrou do escritório, de Maurício, dos juizes ou dos processos. Ela estava sendo o que há muito não era: feliz. Foi o que constatou ao som de “I will survive”.
Há poucos quilômetros da fazenda, a mesma já podia ser vislumbrada, pois ficava no alto de um morro verde, com um caminho marejado de árvores que a indicavam, fazendo uma sinalização mais do que natural. A casa grande era contornada por uma extensa varanda, erguida sobre colunas de madeira trabalhadas com perfeição. Por todos os lados havia janelas de vidro fosco, igualmente trabalhados, tudo em perfeita harmonia e classe. As flores davam um toque especial ao lugar. O jardim contava ainda com um córrego de águas límpidas que serpenteava por trás da casa. Parecia um quadro pintado por alguém preciso, de muito bom gosto e, sobretudo, romântico.
Com esse pensamento, Laura começou a tirar as malas do carro, sendo sutilmente atrapalhada por Elton e Evita, os pudlles de Raul, que insistiam em pular sobre uma das malas do dono, num alvoroço infernal. Depois Laura descobriu que ali dentro estavam suas rações, suas guias, suas bacias de água e de comida, seus secadores de pêlos e suas “roupinhas”. Para tudo havia um explicação, até para um crise de frescura de dois cachorros, pensou Laura, achando graça de sua própria conclusão.
Quando todos se dirigiam para a casa-grande, suados e carregados de bagagens, sem entretanto deixarem de admirar a beleza do lugar, surgiu uma nova imagem igualmente digna de admiração: a de um cavalo negro belíssimo, de pêlo reluzente e musculatura invejável, galopando sob os comandos de uma amazona mais bela ainda, vestida impecavelmente com uma roupa apropriada para montaria, usando botas lustrosas até o meio da perna e os cabelos negros, soltos ao vento.
Os três, Laura, Raul e Vinícius pararam para admirar a cena, tamanha a sincronia estabelecida entre a mulher e o cavalo. Não era possível saber quem ostentava mais altivez, mais força, mais vitalidade, qual dos dois era mais selvagem. Ao se aproximarem, entretanto, soube-se de imediato quem tinha o controle da situação: a amazona que, em um simples menear das rédeas, fez o animal arrefecer o passo. Ele a obedecia com a precisão de um Vassalo, daí seu nome.
Laura, ainda boquiaberta, não podia acreditar no que via. De súbito, ergueu os óculos escuros que a protegiam da claridade. As pupilas foram imediatamente contraídas. Os olhos claros, comprimidos, ainda incrédulos, tentavam comprovar por uma fresta se era verdade o que viam. A amazona audaciosa e admirável era ela, a juíza. No instante da constatação, Laura mudou de rumo. Virou-se e caminhou em direção ao carro e, sem titubear, jogou sua mala dentro dele novamente, fazendo menção de entrar. Mas foi interrompida por Raul, que não havia entendido nada.
- Minha querida, o que houve? Não sabia que você tinha medo de cavalos!
- Meu querido – respondeu Laura, com o rosto vermelho – não é medo é ódio e não é do cavalo, mas da mulher que está sobre ele! Eu quero ir embora agora! Empreste-me seu carro, depois venho buscar vocês!
- Calma, Laura, o que está havendo?
Mas ambos foram interrompidos por Izabel que já havia decido do cavalo e também parecia surpresa. Ela iria tentar controlar a situação.
- Raul, por favor, nos dê um segundo – a voz era a mesma e Laura lembrava-se com perfeição. O tom era ameno, profundo, pausado.
Laura olhou-a nos olhos, ainda faiscando de raiva e indignação. Em seguinda, respirou fundo, pois ainda se sentia sufocada pela coincidência. Mas Izabel não se alterou e continuou:
- Estou tão surpresa quanto você, doutora, mas não vejo motivo para nenhum outro sentimento além do de surpresa.
Laura continuava respirando fundo, para controlar-se, para achar palavras, sem querer dialogar com Izabel, mas não resistiu a uma alfinetada:
- Imagino, Excelência...mas, na verdade, não estou preocupada com o que a Senhora sente e sim com o que eu sinto. E sabe o que é? Aversão à sua pessoa! Não suportaria sua presença por nem um segundo, imagine por um final de semana inteiro! Perdoe-me a intolerância – o tom de voz de Laura era carregado de sarcasmo e rancor, sem qualquer disfarce e isso inquietou Izabel.
A juíza, com muita calma, olhou vagarosamente o relógio e continuou:
- Já se passaram alguns segundos e você não se desintegrou, Dra. Laura, acho que sobreviveria perfeitamente há mais alguns dias, além do mais, vou estar ocupada e não poderei lhe dar a atenção que gostaria. Não conte com minha presença, apenas com minha casa e minha hospedagem. Fique à vontade.
Dizendo isso, Izabel deu as costas e entrou na casa, com a mesma calma de sempre, apesar de sentir-se queimar por dentro. O sentimento que Laura lhe havia despertado, nem ela saberia definir naquele momento, só sabia que gostaria que ela ficasse para poder conceituar e dobrar aquela mulher.
Dentro do carro, Laura permanecia imóvel. Izabel a havia feito sentir-se uma criança mimada e birrenta. Logo ela, tão segura de si e dona da verdade. Ela não sabia mais se deveria continuar com a “birra” e ir embora ou ceder as mãos de Raul, estendidas em sua direção, para que a mesma descesse do carro e o acompanhasse.
Se ela fosse embora, sabia que deixaria para Izabel a imagem de uma mulher infantil, incapaz de superar situações constrangedoras como aquela e ela não queria que a juíza pensasse isso, embora não soubesse porque se preocupava com a imagem que ela teria de sua pessoa.
Por outro lado, se ficasse, poderia demonstrar a Izabel sua indiferença e a faria pensar que não partira exatamente porque a juíza não estaria presente e era isso o que ela queria. Aproveitaria a hospedagem, a casa, o final de semana e ainda, de quebra, demonstraria àquela mulher prepotente que havia ficado porque ela estaria ausente e só por isso! Com sua decisão tomada, só havia uma coisa a fazer. Deu a mão ao amigo e sussurrou em seu ouvido:
- Desculpe, Raul, depois te explico tudo.
Mas Raul estava tão abismado com a reação da amiga que mal escutou o que Laura havia dito. Limitou-se a conduzi-la para dentro de casa, imaginando, durante o percurso, que os “heteros” também eram capazes de montar um cenário perfeito para uma “fechação” fabulosa! Com esse pensamento, indicou o quarto que ela ficaria e Laura só conseguia se perguntar se havia sido a Juíza quem o escolhera. Fato era que o quarto possuía um encanto, era belíssimo, confortável, maravilhoso e ela jogou-se na cama enorme, sentindo o peso de sua consciência afundar no colchão, junto com seu corpo e sua tensão. Ela fora rude demais...sentia-se envergonhada pelo vexame, mas continuava achando Izabel merecedora de sua antipatia. Concluiu que, no máximo, talvez houvesse exagerado na dose.
Da janela do quarto, Laura pode ver Izabel partindo em seu carro e, finalmente, sentiu-se confortável para sair de lá. Ela faria tudo para não encará-la outra vez.
O dia transcorreu normalmente. Os três ficaram boa parte da tarde na piscina, tomando sol, ouvindo música e bebericando. Mais relaxada, Laura contou aos dois o que havia acontecido entre ela e Maurício, entre ela e o escritório e, principalmente, entre ela e a Juíza. Raul e Vinícius não podiam acreditar:
- Mas que horror, Laura! Que coincidência trágica! Eu hein, isso está me parecendo filme de Almodóvar! – Raul estava achando tudo um enorme absurdo.
- Laura, querida – agora era Vinícius quem ponderava – posso imaginar o ódio que você tem dos juizes e como você se sentiu em relação a Maurício e em relação ao “puxão” de orelhas que Izabel lhe deu no Fórum, mas, uma coisa é certa: ela não é arrogante, nem prepotente sem um bom motivo. Conheço Izabel há muitos anos e sua reputação é invejável, como juíza e como pessoa. Sei que ela costuma ser severa demais, mas também é seu costume admitir seus excessos e pedir desculpas. Baixe um pouco a guarda e verás. Vamos desfazer esse mal- entendido, por favor! Já estou sentindo algumas rugas brotando discretamente na minha face por causa desse stress. Assim não há Lancôme que resista!
Laura não deu resposta, mas mostrou-se interessada em saber mais sobre Izabel. Vinícius, por sua vez, não hesitou em contar-lhe. Em poucos minutos, Laura já sabia que ela, realmente, não se enquadrava no perfil da maioria dos juizes. Vinha de uma família humilde e estava ali por muito esforço. Sua fama, na faculdade, realmente, era a de ser uma pessoa extremamente justa e humana. Soube também que ela havia sofrido muito pelo preconceito que se multiplica no meio jurídico e até achou fantásticas as histórias contadas por Vinícius em relação ao fato de ela assumir-se homossexual e enfrentar a situação de frente, perante os tribunais, inclusive. Ela nunca caíra, nem baixara a cabeça exatamente porque sua reputação fora sempre ilibada e sua capacidade, incontestável. Ninguém poderia alcançá-la para prejudicá-la. Ela era acessível, mas inatingível. Era uma mulher a se admirar, fora esse o recado de Vinícius.
À noite, depois de um bom banho, Laura sentia a pele queimando. O sol havia castigado sua tez, agora mais vermelha do que nunca. Por isso, ela vestiu-se com uma roupa leve: calças pantalonas claras, uma camiseta que deixava à mostra seus ombros bem feitos e suas costas torneadas, os cabelos soltos, mais dourados pelo sol, os olhos claros destacados no rosto bronzeado.
Na varanda, os amigos lhe esperavam para um requintado fondue, regado a vinho tinto. Ambos estavam vermelhos e cansados, mas não perderam a pose, denunciada pelas vestes caras e fashions. Os pudlles, por sua vez, também estavam cansados mas, sem tanta classe quanto os donos, esperavam embaixo da mesa os possíveis restos.
Com os ânimos menos exaltados, Laura finalmente cedeu ao encanto do lugar. Deixou o corpo tombar numa confortável cadeira de balaço e ficou rindo das besteiras de Raul e Vinícius, falando sobre amenidades, bebendo o vinho maravilhoso que lhe era oferecido, sendo bebida pelo luar que pousava sobre seu corpo lânguido e quase totalmente relaxado. Apenas uma dúvida era motivo de inquietação: saber se Izabel já havia ou não voltado para a fazenda. Ela não sabia exatamente se queria ou não que ela estivesse ali. Por minutos, tinha a convicção de que não, de que preferia saber que ela dormiria em outro lugar e não retornaria até eles irem embora, mas, nos minutos seguintes, sem saber, nem se questionar o porquê, desejava que ela estivesse ali, nem que fosse para desprezá-la, para tentar afrontá-la mais uma vez, magoá-la ou, quem sabe...conhecê-la.
A resposta para sua dúvida veio, literalmente, a cavalo. Era Izabel que chegava, montada no animal reluzente. “Como eu sou estúpida”, pensava Laura. Estava tão absorta que sequer havia notado que o carro da juíza estava estacionado logo ali em frente!
A amazona desceu do cavalo, caminhou em direção à varanda e não demonstrou qualquer intenção em acompanhá-los no fondue. Por mera educação, respondeu ao convite de Raul polidamente:
- Obrigado, Raul, mas estou muito cansada. Ainda tenho muito trabalho a fazer. Boa noite e divirtam-se.
Izabel nem olhou na direção de Laura. Mas não era preciso olhá-la para sentir sua presença, seu olhar penetrante e azul, em sua direção.
Intimamente, Laura esperou que Izabel a fitasse. Ela pretendia dar-lhe espaço para as desculpas, mas a juíza parecia não querer mais se desculpar. No instante seguinte, a advogada percebeu que, na verdade, ela não só queria, mas estava esperando Izabel chegar. Não havia mais a dúvida, mas a inquietação continuava. Afinal, Izabel chegara e nada fora como ela havia planejado. Nada de tréguas.
Raul e Vinícius fingiam não perceber a inquietação de Laura que, contrariada, exagerava no vinho. Raul conhecia o orgulho da amiga e, conseqüentemente, sabia que, enquanto eles estivessem presentes ela não tentaria se aproximar da juíza. Vinícius, por sua vez, também era profundo conhecedor do orgulho de Izabel e não hesitou em chamar Raul para deitarem-se, sabendo que, também, enquanto estivessem ali, as duas jamais se entenderiam. E foram. Mas antes, é claro, passaram no quarto da juíza para dar um sonoro “boa noite”, traduzido como “pode ir que a barra está limpa!”
Izabel transladou a mensagem e foi. Também estava inquieta e insone. Desde o primeiro momento desejou ir atrás de Laura e desculpar-se pela grosseria, mas alguma coisa a impedira, o que só havia piorado a situação. Agora, finalmente, talvez houvesse espaço. Caminhou devagar até a varanda e, antes mesmo de chegar, pode ver a silhueta de Laura, debruçada na murada, iluminada pela lua, através do vidro que a separava da sala.
A juíza parou e pensou mais um pouco se deveria mesmo se aproximar e correr o risco de levar mais uma “patada” felina ou se deveria permanecer inerte e se contentar em apenas apreciar a imagem de uma mulher perfeita e, naquele instante, pacata, mansa e calma. Como nunca fora de ceder a medos, atravessou a porta e interrompeu os pensamentos de Laura com um comentário:
- Você só cometeu um erro...
Não foi preciso virar-se para saber que era Izabel quem estava às suas costas. Laura sentiu o corpo retesar-se instintivamente, um frio percorreu-lhe a barriga e sua calma esvaiu-se por completo. Ela não sabia o que sentia em relação àquela mulher, mas ódio não era mais. Esperou Izabel concluir a frase:
- ...não haver lido a petição antes de ir falar comigo. Se tivesse o feito, por certo não teria tentado despachá-la...não parece do seu feitio. Aquelas palavras irônicas e argumentos sórdidos não combinam com você.
Laura sentiu que era o momento da trégua, mas sua língua era indomável e ela não se conteve:
- E a senhora cometeu dois erros: o primeiro foi perceber, desde o primeiro instante, que eu não havia sequer lido aquele maldito recurso e, mesmo assim, agir como se eu não apenas o houvesse lido, mas escrito e o segundo... – Laura fez uma pausa, quase causando o arrependimento de Izabel por ter prosseguido e virou-se, fitando-a de cima a baixo – o segundo foi só vir me pedir desculpas agora.
A prepotência de Laura era imensa e Izabel imaginou que deveria ter ficado longe daquela mulher desde o primeiro momento. Não deveria, sequer, ter olhado-a, tampouco deveria desejá-la, como já o fazia. Mas ela responderia a altura. Respirou fundo e perguntou:
- E quem lhe disse que eu vim lhe pedir desculpas?
- Quem me disse, Izabel? Foram essas duas taças de vinho que você traz em suas mãos. Suponho que uma delas seja pra mim e imagino que a senhora não oferece vinho a inimigos...nem abrigo – pela primeira vez Laura sorriu para Izabel, o que a desarmou por completo.
Laura era realmente linda e Izabel só pode pensar, naquele momento, no quanto a queria em sua cama. Sem resistir à inteligência do comentário de Laura, Izabel cedeu e riu-se também, estendendo-lhe a taça e perguntando:
- Aceita?
- O vinho sim...o pedido de desculpas não. Seu prazo já prescreveu! – e Laura riu novamente, mas dessa vez com certa crueldade, diante dos olhos escuros de Izabel.
- Como juíza, eu posso prorrogar meu prazo – finalizou Izabel, impaciente e já chateada, afinal quando pensava que, finalmente, Laura cederia, ela vinha novamente com ironia! Mas, diante do comentário prepotente de Izabel, Laura retrocedeu mais ainda e engrossou de vez:
- Se você estivesse falando como juíza, Izabel, eu sequer estaria aqui lhe escutando...estou aqui lhe respondendo, lhe dando ouvidos apenas porque estou tentando lhe ver como uma simples mortal, se é que me entende...
Laura já sentia o vinho queimando-lhe as faces, perturbando-lhe os pensamentos. Não entendia de onde vinha aquela sensação estranha cada vez que sentia a presença daquela mulher, que tanto a inquietava, que tanto a provocava, que a fazia dizer coisas que não queria, que a fazia ser grotesca, rude. Talvez fosse seu modo de proteger-se, mas de que? Olhou as mãos de Izabel, de unhas curtas, de dedos fortes, fitou os olhos escuros que a olhavam e pareciam enxergá-la por dentro, despir seu corpo e sua mente e, sem entender, imaginou como seria ser tocada por ela, ser tomada por ela. E, num momento de insensatez, desejou que Izabel o fizesse. Desejou que a mulher de espírito indomável à sua frente a enfrentasse. A calasse e, porque não, com um beijo. Então era de seu próprio desejo que ela se protegia, concluiu Laura. Imediatamente deu as costas para Izabel e fez menção de entrar em casa, mas foi impedida.
De súbito, Izabel segurou Laura pelo braço e a trouxe para perto de seu corpo. A centímetros de distância, suas bocas ficaram igualmente próximas. Izabel olhou-a nos olhos. A respiração de ambas entrecortadas. A juíza pôde perceber que Laura inquietou-se por completo, chegando a ficar trêmula com a aproximação. Na seqüência, a questionou:
- O que é que você quer, finalmente? Trégua ou guerra? Para fazer você tremer desse jeito, ou lhe desperto ódio ou desejo!
Nesse instante, Laura puxou bruscamente o braço que Izabel segurava, olhando imediatamente e indignada às marcas que as mãos da juíza deixaram estampadas em sua pele. Sem ponderar mais nada, virou-se para Izabel e deu-lhe um tapa no rosto, dizendo:
- Isto é por você ser tão prepotente!
No mesmo instante, Izabel a puxou novamente com força e, sem pensar duas vezes, deu-lhe um beijo na boca, no início, com certa violência, para em seguida, tomar os lábios de Laura de maneira lenta e quente, deixando-a mais tremula ainda. Em seguida, soltou-a e disse:
- E isso...é por você ser tão envolvente!
Laura fez menção de esbofeteá-la novamente, mas não o fez. Entrou em casa com pressa e trancou-se no quarto.
Izabel ficou na varanda durante quase uma hora, sentindo e lembrando do gosto de Laura. Desejando-a mais ainda. Seu corpo também tremia.
No quarto, Laura tirou as roupas e jogou-se embaixo do chuveiro, tentando acalmar-se, esquecer-se, livrar-se da umidade que havia emergido por entre suas pernas desde o momento em que Izabel a puxara daquele jeito. Com os olhos cerrados, esfregava sua pele, evitava olhar-se no espelho e perceber o desejo que intumescia seus seios, que inundava mais uma vez seu ventre, só de lembrar daquele beijo. Mas, na cama, ainda molhada pela água, deitou-se nua e tocou-se pensado nas mãos da juíza que a havia enlouquecido de desejo.
No dia seguinte, Laura culpou o vinho, sua carência, o sol que havia queimado parte de sua sensatez, o álcool que havia incandescido parte de sua consciência, a convivência com os amigos gays e uma infinidade de outras coisas ridículas que serviriam como desculpas para sua atitude e sentimentos da noite anterior. Nenhuma das desculpas, entretanto, serviu para explicar a frustração que sentiu quando, no café da manhã, soube que Izabel havia viajado, pois faria parte de uma justiça itinerante na cidade mais próxima do haras e talvez não voltasse.
- Mas ela, minha querida, deixou uma coisa pra você – disse Raul, percebendo a decepção nos olhos azuis da amiga – finalmente parece que fizeram as pazes, não foi?
Laura não se deu ao trabalho de responder. Tinha medo que o amigo enxergasse o que ela estava sentindo e o pior, o que havia sentido na noite anterior. Limitou-se a perguntar:
- O que ela deixou? – Perguntou, sem sequer olhar nos olhos de Raul, permanecendo de cabeça baixa, fingindo concentrar-se nos caroços que tirava da fatia de melancia à sua frente.
- Está lá no quarto dela...ela disse que você fosse até lá...sozinha.
Laura largou a melancia encaroçada do jeito que estava e deixou o café esfriando sobre a mesa, dessa vez sem se preocupar com o que pensariam os amigos, diante de sua curiosidade e pressa. Foi até o quarto de Izabel. Sobre a cama, enorme e deliciosamente forrada, havia mais de trezentas rosas e um bilhete. Ela afastou algumas flores com cuidado, sentou-se à beira da cama e “bebeu” cada palavra como se estivesse tomando um antídoto para sua frustração e agonia:
“Laura...peço-te duas coisas: que me desculpe pelo beijo que roubei e que durma em minha cama esta noite. Como você deve saber, não estarei aqui e, se estivesse, não ousaria lhe fazer o segundo pedido. Se o faço é apenas porque quero sentir, ao menos, o seu cheiro, quando voltar. Ele ficará nos lençóis, assim como ficou em mim. Izabel”.
Laura sentiu o rosto corar e as mãos suarem frio. Olhou ao redor, tentando conceber os fatos, o lugar onde estava, o que lhe cercava e o que lhe tomava por dentro. Tudo parecia tão absurdo, quanto maravilhoso! Releu o bilhete mais de dez vezes! Sentiu a cabeça rodar mais de cem vezes! Deitou-se sobre a cama, sobre as rosas e os espinhos, mas não sentiu o incômodo dos galhos, apenas o perfume das flores e a maciez daquela cama onde Izabel deitava. Lembrou-se de cada detalhe de seu rosto, de suas mãos e do beijo. Não havia mais como fugir nem fingir das sensações que lhe tomavam e que eram tão reais quanto aquele bilhete em suas mãos.
Quando finalmente saiu do quarto, Raul e Vinícius a esperavam curiosíssimos. Entretanto, não lhe perguntaram nada. O dia demorou muito a passar para os três.
À noite, depois de pensar e repensar várias vezes sobre o pedido de Izabel, Laura entrou no quarto da juíza. Fê-lo não apenas para deixar seu cheiro entre os lençóis, mas, sobretudo, para sentir o de Izabel. Parada à beira da cama, Laura olhou mais uma vez as rosas, antes de tirá-las dali. Queria deitar em contato direto com os lençóis. Em seguida, despiu-se devagar, apagou a luz e se deixou cair sobre a cama de Izabel, aconchegando-se entre os travesseiros, enroscando-se em sua maciez, abraçando-os com as pernas, contornando-os com seu corpo. Finalmente, antes de adormecer, Laura pôde distinguir com perfeição o cheiro de Izabel, que ao seu olfato já não se confundia com o perfume das rosas. Só então, adormeceu.
Era quase madrugada quando a porta do quarto foi aberta lentamente. Laura não sabia se o barulho do trinco vinha de seu sonho ou da porta, realmente. Certo é que ela permaneceu imóvel, deitada de bruços como estava, de olhos cerrados, no aguardo, entre o silêncio e a vertigem. Em seguida, ouviu alguns passos e os lençóis que cobriam suas costas e suas ancas serem levemente afastados. Seu corpo fora desnudado dos cetins e coberto por um outro corpo quente. Um corpo feminino, como ela pode sentir pelo contato dos seios firmes em suas costas e do ventre, que se encaixou nas suas ancas com perfeição, demonstrando a nítida intenção de cavalgá-la. Ela não deve duvida, pelo cheiro e pela pele, que era Izabel e, sem titubear, começou a mover os quadris, em contato com o ventre já molhando que se colava e se esfregava, já com sofreguidão, em suas coxas, em suas ancas, em suas entradas. Izabel já molhava o corpo de Laura com sua umidade e a fazia inundar-se de excitação. Ainda de costas, Laura entreabriu as pernas, num convite para que Izabel a penetrasse com os dedos e ela o fez. Nesse instante, Laura virou-se e passou as pernas pela juíza, que já estava enlouquecida de desejo. Encaixadas, Laura olhou-a nos olhos e disse que preferia o cheiro de ambas, juntas, naquela cama. E beijou-a da maneira mais sensual que já havia beijado alguém. Elas se queriam além do esperado. Seus corpos falavam, se grudavam, pulsavam juntos. Os dedos de Izabel penetravam Laura com força, arrancando gemidos igualmente fortes, roucos, loucos e ela queria mais. Gozou nas mãos da juíza, mas ainda não estavam saciadas. Izabel deitou Laura e abriu-lhe as pernas, afundando a língua em sua umidade, lambendo-a, bebendo-a, secando-a, enchendo-a, mais uma vez, de gozo. Mas Laura queria retribuir o prazer que arrebatava seu corpo e, mesmo sem qualquer experiência, tomou os seios de Izabel com a boca e os sugou avidamente. O instinto a conduzia e Izabel gemia de excitação, o que só deixou Laura mais satisfeita. Ela se sentia maravilhada em dar prazer para uma mulher, para aquela mulher. Em seguida, encorajada pelas mãos da própria juíza, os dedos de Laura foram conduzidos até o ventre de Izabel e mergulhados na umidade que brotava a cada instante. Laura os enfiou lentamente, olhando Izabel nos olhos até que ela os cerrasse de prazer, com um gemido abafado nos lábios. Em seguida, aumentou o ritmo e deitou-se sobre a juíza, galopado-a, literalmente, até que as duas gozaram mais uma vez.
E a noite foi longa e a vida parecia curta para tudo o que elas queriam viver dali pra frente. Depois daquele fim-de-semana, Laura finalmente saiu do armário e nunca mais retornou às traças, nunca mais se sentiu guardada ou presa. Agora ela era livre, ela era feliz, ela era ela, realmente. Cuidou de integrar-se ao arco-íris e descobriu como era divino deixar de ser “cinza” e sentir-se “colorida”, simplesmente e sempre.
Vale ressaltar, entretanto, que sua antipatia por juizes persistiu. Mas, em relação às juízas, especificamente em relação a uma determinada magistrada, a história tornou-se bem diferente...
3 comentários:
Conto delicioso de tão envolvente.
Maravilhosooo
Maravilhosoooo
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