Eu nasci em Brasília e morei lá até os dois anos de idade. Minha mãe, que lá chegou no início de tudo, odiava a cidade, reclamava da aridez que contaminava o tempo e as pessoas, dos caminhos que nunca iam dar em mar algum, apenas em imensas e frias esplanadas, das calçadas geométricas, recém construídas, projetadas feito as famílias, que ali se desenvolviam sem laços, sem passado. Ela vivia à sobra da promessa feita por meu pai: “Um dia você abrirá a porta de nossa casa e pisará na areia do mar.” Promessa cumprida. De Brasília fomos para Maceió, onde meu pai construiu a casa onde cresci. Ela ficava numa praia fora da cidade, chamada Garça Torta, perto de Riacho Doce, praia do livro de José Lins do Rego, de mesmo título.
E, de fato, durante os quatorze anos que se seguiram, eu e minha mãe descíamos de mãos dadas todos os dias o batente da porta da frente de nossa casa e caminhávamos juntas na areia do mar. A casa era enorme! Enquanto a porta da frente dava para o mar, a de trás dava para uma rua que sequer era asfaltada...naquela época – década de oitenta – a praia de Garça Torta era apenas um povoado simples, formado por cabanas de pescadores e casas de veraneio...E nós não nos enquadrávamos em nenhuma das duas categorias, muito embora, desde pequena, já me metesse a pescar sonhos...e para fazê-lo eu tinha até meu local favorito: era em cima da mangueira imensa do quintal que dava para rua. Ali em cima eu passava as tardes e sonhava de olhos bem abertos.
Pois bem, da minha mangueira eu acompanhei a construção de duas casas iguais, milimetricamente equiparadas, coladas, vizinhas, erguidas bem em frente à minha. Dali de cima mesmo eu via pessoas chegarem, passarem meses e partirem...eram casas de veraneio e não de pescadores, estes sim tinha vínculos. O mar os prendia. Já os turistas, os que alugavam as casas, estes eram tão inconstantes quanto a ventania que vinha conforme a maré. E eu lamentava cada vez que alguém partia...não por uma questão de apego – afinal, eu mal os conhecia – mas por uma questão de não saber ainda, naquela idade tenra, exercer a arte do desapego, a qual depois tive que aprender com maestria.
Enfim, depois de muitos anos, quando eu já havia me libertado de meu próprio “aquário”, estourado todos os vidros que me cercavam, inundado com todas as águas tudo o que me acompanhava e não me satisfazia, depois de morar em outras cidades, de escolher como preferidas tantas outras árvores, enfim...um belo dia, sentei e comecei a escrever o conto de nome “Aquários”. E, sem perceber – ao menos no princípio –, fui parar naquela praia, naquelas casas, naqueles dias, naquele cenário que nunca me deixou, mesmo quando eu parti...
Um dia desses, numa de minhas idas a Maceió, logo depois de concluir o conto, por curiosidade, resolvi passar por minha antiga casa...Na verdade, o que eu queria mesmo era descobri o que teria acontecido das duas casas “gêmeas” que cresceram defronte à minha. E, para minha surpresa e tristeza, ao contrário do desfecho imaginário que dei no conto, as duas casas haviam sido inteiramente modificadas, parcialmente demolidas e em nada mais se pareciam...
Aumentei a velocidade do carro – que passasse rápido aquela sensação de lamento! – e, depois de alguns quilômetros e tempo, veio-me a resignação: seria injusto elas continuarem as mesmas, se eu tanto mudei e quase não me lembro quem fui um dia...
Mas, apesar de tudo, e em que pese às mudanças das casas e às minhas, a mangueira ainda estava lá...de pé, frondosa e acolhedora de sonhos como sempre.
2 comentários:
A história de alguém é sempre tão interessante. Desta,acaso retratada num livro, gostaria de saber o final, quais sonhos foram pescados e se ainda estão presos ao anzol. Se fosse peça de teatro, sentiria imenso orgulho - se por ventura competência tivesse e me fosse concedido- em fazer o papel principal: o da mangueira, ela, que permitiu a ti ver do alto os teus sonhos e voar como uma "garça torta".(É ruim, não saber da impertinência do aqui escrito). Lou.
Lou,
Tudo sempre - e muito - pertinente...tanto que tenho acatado e registrado por aqui na integralidade. Não respondi simplesmente porque não costumo "comentar" os "comentários" no blog ...a própria redundância da ação me incomoda. Bem por isto, só o faço por e-mail e não disponho do seu.
Entretanto, abrirei uma exceção - a primeira e merecida - e o faço por um único motivo: a singularidade de seus comentários valem um comportamento também singular de minha parte.
Assim, arrisco: agradeço as palavras, as reflexões e, sobretudo, os "batons" vermelhos oferecidos, ainda que permaneçam sem uso.
Obrigada.
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