Depois de cinco anos nos Estados Unidos, finalmente Beatriz tomara a decisão de voltar. Seu pai havia morrido há dois meses e sua mãe não tinha condições de assumir os negócios no Brasil. Por outro lado, Pablo, sua mais nova descoberta, era bastante competente e, com facilidade, administraria as empresas nos Estados Unidos, enquanto Beatriz regressaria e assumiria o comando no Brasil, onde tudo era mais complicado.
Nascida numa família rica e tradicional, ela sempre desfrutou de tudo o que havia de mais caro e sofisticado. Por ser filha única, sempre contou com a atenção integral dos pais, que a criaram com todos os mimos e fazendo-lhe todos os gostos. Isso, porém, não a tornou irresponsável, ao contrário, com dezesseis anos de idade já demonstrava um enorme interesse pelos negócios da família, que englobavam desde a plantação de soja e laranja, a fabricas de calçados e outros produtos derivados do couro. Possuíam inúmeras fazendas espalhadas pelo Brasil e, há cinco anos, ampliaram os negócios para os Estados Unidos, sob o comando de Beatriz. Porém, com a morte do pai, sua volta era o mais sensato, afinal, atualmente, ninguém conhecia melhor o império dos Villar do que a “grande empresária do ano”, como foi classificada por uma das mais populares revistas brasileiras.
Sua chegada foi cercada de estardalhaço. A impressa não perdeu a oportunidade de fotografá-la desde sua decolagem, nos Estados Unidos, à sua aterrissagem no país de origem. Tanto as colunas sociais, quanto aquelas direcionadas aos negócios demonstravam enorme interesse pela chegada da jovem de 28 anos, que, de cima de seu 1,80 m de altura, parecia querer dominar o mundo.
Ela era, de fato, muito bonita, mas não apenas isto. Beatriz possuía um magnetismo impressionante. Os cabelos escuros e longos, os olhos igualmente escuros, inteligentes e perspicazes, a boca muito bem feita e o corpo perfeito não chamavam tanta atenção quanto sua altivez e porte. Guardava mistério e sensualidade nos gestos e na forma de olhar, sempre muito firme e segura. Não demonstrava qualquer insegurança, nem nas palavras, nem no andar, sempre muito imponente. Ela era inconfundível. Porém, seu bom-humor era raro. Era conhecida por sua arrogância, apesar da educação que possuía. Não tolerava perguntas pessoais, vindas da impressa ou de curiosos. Mantinha-se sempre distante e profissional, em qualquer ocasião. Talvez fosse este seu grande charme e trunfo, afinal, não era fácil ser mulher e manter o respeito no mundo dos negócios, ainda predominantemente masculino. Sempre teve consciência disto.
Até que se organizasse, ficaria morando na antiga mansão da família, no Rio de Janeiro, próximo ao apartamento onde sua mãe, atualmente, morava. Há algum tempo, antes mesmo da morte de Ernesto Villar, Dona Constância Villar havia desistido de morar na antiga casa. Os seqüestros e assaltos eram cada dia mais constantes nos noticiários e entre seus amigos e conhecidos. Beatriz, no entanto, insistira em permanecer na casa, pelo menos, por alguns meses. Não se acostumaria a morar novamente com a mãe, tampouco num apartamento, pois primava por sua privacidade e liberdade, o que não teria, certamente, se fossem morar sob o mesmo teto.
Mas, antes mesmo de mudar-se, Beatriz cuidou de reforçar muito bem a segurança, afinal já havia sido vítima de um seqüestro relâmpago, naquela cidade, que lhe traumatizara. Para tanto, contratou uma empresa especializada no assunto, a mais bem conceituada no Rio de Janeiro, para que cercassem a mansão de equipamentos e vigilantes 24 horas por dia. Isso, porém, ao seu ver, ainda não era o bastante.
Decidira, desde o triste episódio do seqüestro, que faria alguma espécie de luta, talvez defesa pessoal, para que, caso a circunstância se repetisse, ela se sentisse menos vulnerável e paralisada. Acreditava que, pelo menos o lado emocional se fortificaria, ainda que fosse mais conveniente não esboçar qualquer tipo de reação. Por outro lado, em meio a tanto trabalho e preocupações, até seria relaxante treinar alguma coisa diferente e excitante.
Com esse objetivo, procurou informar-se sobre professores particulares de defesa pessoal entre os amigos que já treinavam há algum tempo, inclusive, pelos mesmos motivos seus. Queria o melhor e pagaria para isto. Para sua surpresa, todos foram unânimes em indicar um mesmo nome e um nome feminino: Nicole Andrade.
Não que Beatriz não confiasse na capacidade feminina, pois isso seria contrariar todos seus esforços e respectivos efeitos positivos. Mas, por ironia, talvez ela própria tivesse sido um pouco contaminada pelo machismo que tanto a incomodava. A verdade é que, à primeira vista, duvidou que uma mulher fosse a melhor opção para ocupar o papel que ela desejava. Imediatamente reprimiu seu preconceito, respirou fundo e ligou para o número indicado como o da campeã em artes marciais:
- Alô...
- Alô, bom dia, eu gostaria de falar com Nicole Andrade. Disse Beatriz em resposta à voz feminina que atendeu ao telefonema.
- Já está falando com ela, em que posso ajudá-la? Perguntou Nicole secamente.
A voz feminina surpreendeu Beatriz pela firmeza, apesar do tom suave. Imaginou que elas, pelo menos, guardavam alguma semelhança.
- Meu nome é Beatriz Villar, não sei se me conhece. Gostaria de ter algumas aulas particulares de defesa pessoal e alguns amigos meus indicaram você como a pessoa certa. Respondeu de forma determinada, certa de que obteria êxito na contratação, como sempre.
- Infelizmente não posso ajudá-la – respondeu Nicole, sem deixar claro se já a conhecia ou não e continuou a explicação. Há três meses deixei de dar aulas particulares. É que abri uma academia que tem tomado todo o meu tempo, a menos que você esteja dispostas a vir ter aula aqui... – ia concluir Nicole, quando foi bruscamente interrompida por Beatriz, que a esta altura já estava inquieta pois odiava ser contrariada!
- Acho que você não entendeu, moça, ou não me conhece. Eu sou Beatriz Villar – disse ela dando ênfase no próprio nome – e estou disposta a pagar quanto for preciso, não faça cerimônia. Rematou com a arrogância de sempre.
- Sinto muito, mas quem não me entendeu foi a senhora. Eu sei muito bem quem você é. Aliás, seria impossível qualquer pessoa que possua uma televisão ou tenha às mãos uma revista daquelas de fofocas não saber, tamanho o estardalhaço que fazem ao redor de sua vida. Mas, realmente não estou disposta a mudar meus planos. Sinto muito.
Em outra ocasião Beatriz teria se valido de toda sua prepotência e usado mais algumas de suas inúmeras formas para humilhar alguém, mas aquela moça a havia intrigado. Sentiu-se quase desconsertada por seu tom de voz, sem qualquer medo ou receio. Queria conhecê-la pessoalmente e era inteligente o bastante para isso. Se ela fosse boa na luta como o era nas palavras, estaria em boas mãos, pensou e continuou:
- Desculpe se soei arrogante, Nicole, mas é que minha situação é delicada. Como você mesma já frisou, minha vida é muito vigiada. Todos sabem os meus passos, por mais que eu tente evitar e isso me causa sérios problemas. Você deve imaginar o quanto minha privacidade fica comprometida. É difícil estar em locais públicos. Sempre fico cercada de curiosos me observando, o que muito me incomoda. Por estes motivos é tão ruim sair de casa, ainda mais para freqüentar uma academia, cheia de gente! Até minha segurança fica comprometida. Não sei se você leu sobre o seqüestro que sofri... – Beatriz deu uma pausa e ia continuar quando Nicole interrompeu.
- Sinto muito, mas o máximo que posso fazer é lhe dar aulas após o horário normal da academia, ou seja, por volta das onze horas da noite, quando todos já foram embora. O que acha? – Nicole sinceramente não acreditava que isso bastaria para aquela mulher arrogante e prepotente, mas a sua sugestão serviria para tirar o corpo fora, já que a recusa viria em seguida, pensava ela. Para sua surpresa, Beatriz perguntou:
- Quanto custa a mensalidade de sua academia, Nicole?
Sem titubear e aumentando o preço, em mais uma tentativa de livrar-se de sua quase futura e insuportável aluna, Nicole respondeu, sem nenhum remorso:
- Duzentos e cinqüenta reais, disse bruscamente...e respirou fundo, apertando os olhos do outro lado da linha, numa leve expressão de cinismo pela mentira que contara descaradamente. Porém, surpreendeu-se com a proposta de Beatriz:
- E o que você acharia de quinhentos reais por dia de aula, em minha casa, depois de seu expediente, ou seja, como você mesma disse, por volta das onze horas da noite, quando todos os seus alunos forem descansar e você terminar a última aula na academia?
Nicole, dessa vez, arregalou os olhos puxados e, sem pensar muito se viu obrigada a responde secamente, tentando disfarçar o misto que sentia de satisfação com um leve toque de “não sei se isso vai dar certo!” :
- Tudo bem. Pelo jeito falaram muito, mas muito bem mesmo de mim, não é, Senhorita Beatriz Villar?
- Pode me chamar pelo primeiro nome, Nicole. E sim, realmente falaram muito bem de você... – concluiu Beatriz, dando um tom de mistério em suas palavras.
Na verdade, mesmo que seus amigos não tivessem falado tão bem de Nicole, ela a dobraria, só pelo prazer de conseguir sempre o que queria e do jeito que queria! Isso já tinha virado um verdadeiro hábito seu. Na seqüência, perguntou:
- Quando podemos começar e o que eu preciso fazer para arrumar devidamente o local?
- Podemos começar quando você dispuser de uma sala com, no mínimo, quarenta metros quadrados e forrada com tatames. O resto pode deixar por minha conta...respondeu Nicole, tentado dificultar as coisas para a “Srta. Eu Sou Deus!”.
- Então segunda-feira, às onze horas da noite, mando um motorista te buscar. Pode me passar o endereço?
- Prefiro anotar o seu. Vou no meu carro, se a senhora não se importar, é claro! Falou Nicole com sarcasmo, dessa vez nem um pouco camuflado. “Afinal quem essa mulher pensa que é?”, pensava, irritada.
- Como quiser, respondeu Beatriz, informando, em seguida, seu endereço e despedindo-se formalmente
Era uma noite de sexta-feira e quando Nicole desligou seu celular ainda tinha três aulas pela frente antes de poder, finalmente, ir pra casa. Para seu pesar, em nenhuma das três aulas, tampouco durante o resto da noite, a voz de Beatriz saiu de sua cabeça. Era uma voz autoritária, firme, bonita, isso ela não podia negar, mas que guardava algo que lhe intrigava, ela só não sabia exatamente o que. Estava preocupada. Não sabia realmente se superaria a antipatia que sentira por Beatriz, tampouco se saberia lidar com uma mulher tão arrogante quanto ela própria. Sim, então era esse o problema, agora ela tinha percebido, mas já era tarde para voltar atrás. Teria que conviver com alguém tão difícil de lidar quanto ela mesma, o que, até então, julgava impossível de encontrar.
O fim-de-semana passou sem maiores novidades para ambas. Nicole foi árbitro em um campeonato de Karatê, que lhe tomou o sábado inteiro e a metade do domingo. Beatriz, por sua vez, “divertiu-se” bastante em seu escritório, tentando colocar ordem em tudo o que via pela frente, mas essa tarefa exigiria, no mínimo, dez fins-de-semana e isso a irritava sobremodo. Odiava não poder resolver imediatamente seus problemas, fossem eles quais fossem. No sábado de manhã, antes de qualquer coisa, mandou que Alfredo, o “administrador” da mansão dos Villar, se virasse e aprontasse, para a segunda-feira, ao meio-dia, a sala de ginástica, transformando-a num local apropriado para as aulas.
- Ligue para arquitetos, donos de academias...não sei quem entende disso, mas dê um jeito de descobrir e construir – frisou ela – até segunda uma sala apropriada para minhas aulas. Pode gastar o quanto for preciso.
- Como a senhora quiser! Não se preocupe, Senhorita Beatriz...
- Não vou me preocupar mesmo, meu caro, você é quem deve! Disse Beatriz, dando as costas, para sair em direção ao seu porshe preto, deixando Alfredo com mais alguns cabelos brancos e rugas nos cantos dos pequenos olhos azuis, escondidos por detrás dos óculos redondos, de aros dourados e discretos. Sempre se via em apuros quando Beatriz Villar inventava novos hobbies, pensou ele, sem, entretanto, deixar de admirar a figura esbelta e extremamente charmosa da patroa, que caminhava em passos firmes para o carro, arrancando rumo ao portão.
Finalmente segunda chegou. As duas estavam ansiosas, cada uma por seus motivos. Alfredo tinha feito realmente um bom trabalho, pensou Beatriz ao chegar a antiga sala de ginástica. O lugar, por si só, já era muito bonito. Ficava ao lado da sede da Mansão, sob pilotis contíguos ao primeiro andar, erguidos sob colunas de mármore, muito bem trabalhadas, cercado por paredes de vidro, o que lhe dava um visual sofisticado e futurista. De lá de cima, se avistava todo o jardim da casa, com seus canteiros impecavelmente podados, as flores exóticas e coloridas que preenchiam os canteiros e margeavam os caminhos que conduziam às praças, à fonte e aos demais recantos da Mansão dos Villar. Na sala, além do espaço que agora estava preenchido pelos mais caros e “eficazes” tatames indicados pelos donos de algumas das academias badaladas do Rio de Janeiro, havia ainda uma piscina térmica, alguns aparelhos de ginástica, duas esteiras e alguns espelhos espalhados estrategicamente nos cantos das salas, em contraste com as paredes de vidro. O ambiente era climatizado e as luzes centralizadas e reguláveis. “Perfeito”, ponderou Beatriz com um sorriso de satisfação. Ela adorava impressionar, ainda mais àqueles que odiavam demonstrar, o que, em sua opinião, era o caso de Nicole. Aliás, ela parecia ter um gênio forte em todos os sentidos. Seria interessante tê-la por perto e ver até que ponto elas se pareciam...
Mesmo sem entender o porquê, Beatriz tentava adivinhar como Nicole seria fisicamente. Foi quando se deu conta de Alfredo lhe chamava da porta do salão.
- Senhorita, interfonaram da guarita para avisar que uma moça chamada Nicole Andrade acabou de chegar, se identificando como sua personal trainer. Posso liberar a entrada? Perguntou Alfredo polidamente, como sempre.
- Pode...respondeu Beatriz num tom grave, voltando sua atenção ao caminho de entrada da Mansão, através das paredes de vidro. Chovia bastante e as gotas escorriam pelo vidro espesso, dificultando um pouco sua visão. Pôde então ver um carro se aproximando e, em seguida, Nicole descendo e andando pacientemente pela chuva, sem se importar muito com os pingos fortes que lhe molhavam por inteiro. Ela subiu as escadas, indicadas por Alfredo, que já lhe esperava lá embaixo e entrou pela porta ensopada. Beatriz estava de costas, esperando-a para virar-se. As duas entreolharam-se e, silenciosamente, admiraram-se.
Beatriz pensou consigo mesma como Nicole era diferente do que ela esperava. Ela fazia o estilo mignon e Beatriz a olhava de cima de seu 1,80 de altura. Mesmo molhada e sem qualquer pintura ou artifício, seu rosto era perfeito, concluía Beatriz. Tinha a pele muito alva, as maçãs do rosto rosadas, “talvez pelo frio”, tentava adivinhar a observadora. Seu nariz era arrebitado, delicado, que lhe davam um ar de menina mimada, birrenta, dona de si. Os olhos franjados, puxados, de um castanho muito claro, combinavam perfeitamente com seu cabelo loiro, desalinhado, todo molhado. Apesar da pouca altura, tinha um porte atlético inconfundível, as costas largas, a cintura fina, os ombros trabalhados.
Enquanto Beatriz a observava, Nicole já demonstrava uma certa impaciência, colhendo nos lábios as gotas que escorriam pelo seu rosto, enquanto pensava no quanto Beatriz era alta e imponente. Muito mais do que nas fotos. Sua imagem combinava perfeitamente com a mulher que lhe falara ao telefone. Só não a imaginava tão desconcertante. Mas ela era! Pela própria beleza sofisticada que tinha e o jeito penetrante e agressivo de olhar.
- Boa noite, Beatriz, como vai? Disse Nicole estendendo-lhe a mão, já que a outra não o fez, ocupada que estava em lhe analisar da cabeça aos pés.
- Boa noite, Nicole. Imaginava você um tanto diferente, concluiu Beatriz num tom de riso, sem saber que seria mal interpretada por Nicole, que já arqueava a sobrancelha para responder-lhe.
- Pois é, sabe que a chuva estragou toda minha maquiagem, meu cabelo e me fez encolher. Sinto muito!
- Não foi isso que quis dizer, mas você parece contrariada demais para que eu explique. Desculpe se lhe incomodei com o comentário.
- Tudo bem, respondeu Nicole decidindo dar sua aula, conversar o mínimo possível e ir embora.
Antes de começar, deu uma olhada na sala, tentando não demonstrar sua admiração, exatamente como Beatriz imaginara.
- Onde posso trocar de roupa? Perguntou Nicole.
Beatriz limitou-se a apontar o banheiro num menear de cabeça. Em poucos minutos, Nicole retornou com um kimono branco e uma faixa preta na cintura. Os cabelos estavam presos num rabo de cavalo e Beatriz se perguntou como alguém poderia ficar tão bem em uma roupa como aquelas. Enquanto isso, ela, como aluna, se sentia vestida num saco, amarrado pela cintura.
As duas caminharam até o centro do tatame e Nicole deu uma breve instrução do que era a defesa pessoal e do que ela aprenderia no decorrer das aulas. Em seguida fizeram alguns alongamentos e Nicole anunciou que iniciariam por alguns golpes que envolviam torções de pulso, com o objetivo de livrarem-se de alguém que os segurasse.
Em seguida, se aproximou de Beatriz e, esticando os próprios pulsos com as mãos cerradas, pediu que ela os segurasse o mais forte que pudesse. Beatriz o fez e olhou-a nos olhos, indicando que já estava preparada. Num simples girar de braços, Nicole soltou-se com a maior facilidade. Beatriz ficou surpresa pela agilidade, mas constrangida ao ver as marcas vermelhas nos pulsos de Nicole, por causa de suas unhas.
- Desculpe, Nicole. Preciso cortas as unhas.
- Tudo bem, vou sobreviver ao seu ataque... – respondeu Nicole com um sorriso que surpreendeu mais ainda Beatriz, já que ela esperava outra reação – Agora é sua vez. Perceba que torci os pulsos no sentido contrário a sua mão. Os girei exatamente pelo lado em que seus dedos não se uniam com o polegar. Esse é o segredo. Agora seguro os seus.
Dizendo isso, Nicole apertou os pulsos delicados de Beatriz com firmeza e calor. Ao toque, ambas evitaram se olhar. Talvez pela falta de intimidade e aproximação. A respiração de ambas estava um pouco ofegante, em parte pela força usada, em parte pela situação de desconforto. Beatriz observou as mãos de Nicole. Elas eram menos delicadas do que seu rosto. As unhas eram curtas e as palmas um pouco ásperas. Imaginou que todas as lutadoras tivessem mãos assim. Em seguida, se perguntou porque se sentia tensa. Nicole fazia o mesmo.
- Espere, Beatriz. Acho que não começamos bem... – disse Nicole soltando-lhe os pulsos e respirando fundo. Nosso primeiro contato pelo telefone, nossas possíveis e visíveis diferenças e, sei lá... – ela fez uma pausa – as barreiras iniciais – ela se esforçava para não mencionar a antipatia mútua – nada disso pode interferir quando estivermos nesse tatame. Esqueça quem sou e sinta apenas minhas mãos, meu toque. Façamos de nossos corpos instrumentos para nosso aprendizado. E assim que tem de ser. Vamos começar de novo.
Quieta Beatriz a escutava e não conseguia parar de admirá-la. Nicole lhe parecia, em alguns momentos, uma criança, pelas feições, pelo olhar ingênuo. Em outros, uma mulher segura, madura, que lhe falava com seriedade, de modo envolvente, mesmo sem parecer ter consciência disto. Em seguida, estendeu-lhe novamente os pulsos e Nicole os segurou firme.
- Agora gire os pulsos e solte-os pelas fendas de minhas mãos, com velocidade.
Beatriz seguiu as instruções e conseguiu. Dessa vez Nicole foi presenteada com o sorriso mais sensual que já vira. Beatriz era mesmo linda, ela pensou e sorriu também. As duas já começavam a se entender. E, nesse ritmo, quase duas horas se passaram como se fossem dois minutos.
Nicole falava o estritamente necessário e Beatriz, menos ainda. Mas ambas pareciam se comunicar pelos toques, pelos olhares. Seus corpos falavam e, aos poucos, a proximidade já não era tão constrangedora. Beatriz começou a sentir o cansaço e, só por isso, deu-se conta do tempo e consultou o relógio. Ele já marcava quase uma hora da manhã. Ambas se surpreenderam.
- Minha nossa, já tomei demais seu tempo!
- Não se preocupe, não vou cobrar a hora extra. Respondeu Nicole, a princípio séria, para depois sorrir, levemente.
- Não é por isso que falei, respondeu Beatriz – naquele momento, o que menos lhe importava era o dinheiro que pagaria. Ela apenas se questionava o porquê de ter gostado tanto de estar ali. Há muito tempo não se sentia tão bem.
- Eu sei...afinal, dinheiro não é problema para você... – disse Nicole, esforçando-se para não soar rude ou irônica – A propósito, quando vai querer me ver novamente, se é que vai? – perguntou em tom de brincadeira, olhando para os pulsos vermelhos que Beatriz também ostentava.
Beatriz riu e só então observou as marcas das mãos de Nicole em seus braços.
- Nossa! Já posso me considerar uma lutadora! Marcas eu já tenho para mostrar – disse Beatriz para, em seguida, estancar o riso. Olhando de maneira séria nos olhos de Nicole, respondeu – Por mim, amanhã mesmo, se você estiver disponível.
- Pois então até amanhã – disse Nicole com firmeza e continuou, despedindo-se – Durma bem e, se lembrar, quando tomar banho, deixe um pouco de água gelada escorrer por seus braços, vai ajudar na vermelhidão. Em seguida, virou-se, fazendo menção de alcançar a porta. Mas Beatriz a interrompeu como se, inconscientemente, quisesse prolongar o contato:
- Não quer trocar de roupa antes de ir...tomar um banho...uma água?
- Obrigada, mas vou aproveitar a chuva...adoro banho de chuva! – explicou Nicole, diante da expressão de incompreensão de Beatriz. Os olhos das duas se encontraram com intensidade mais uma vez, antes de Nicole dar as costas e ir embora.
Beatriz a observou caminhando pela chuva através dos vidros. Agora já podia ver sua imagem definida, apesar da falta de visibilidade. É que lembrava de cada traço seu...
Como Nicole havia sugerido, Beatriz, ao tomar seu banho, deixou a água escorrer por sobre a vermelhidão de seus punhos, que já não estava tão acentuada. Enquanto massageava os braços, pensava na professora e isso a confundia. Era estranho para ela se sentir assim em relação a outra mulher. Nem ela sabia definir o que acontecia quando as duas se olhavam, quando estavam próximas. Apesar de estranho, sem dúvidas, era instigante.
Nicole, por sua vez, chegou em casa toda molhada, cansada, mas demorou a dormir. Ao contrário de Beatriz, ela sabia muito bem o que estava acontecendo e conseguia prever aonde aquilo tudo poderia chegar. Só não sabia se estava disposta a se deixar levar. Desconhecia o que se passava na cabeça de Beatriz. Aliás, na verdade, até as onze horas daquela noite ela não passava de uma figura arrogante, capa de muitas revistas e inacessível. Quase chegou a se arrepender por descobrir que ela não era apenas uma imagem, mas uma mulher de carne e osso, envolvente e passível de se envolver. Foi com esse pensamento que decidira, antes de adormecer, não se aproximar de Beatriz. Seria estritamente profissional.
A terça-feira chegou e, conforme combinado, às onze horas Nicole chegou à Mansão dos Villar. Beatriz notou que ela tentava se manter distante, apesar de não ser rude em momento algum. Imaginou que a culpa poderia ser sua, afinal ela sabia que essa história toda de ser rica e famosa fazia com que algumas pessoas se mantivessem afastadas, até para não incomodá-la ou serem inconvenientes, como a maioria. O problema é que ela não queria a distância de Nicole e não sabia como nem se deveria demonstrar isso! Tentou, a princípio, se manter na sua, supondo que poderia ser que a própria Nicole não desejasse ser incomodada. Afinal, ela ainda lhe parecia meio inatingível, como no começo.
Porém, quando as duas começaram a treinar rolamentos e outros golpes no chão, a proximidade foi inevitável, até fisicamente falando. Nicole pretendia ensiná-la algumas técnicas de imobilização. Para tanto, deitou-se no tatame e pediu que Beatriz deitasse por cima dela, num tom até então totalmente impessoal. Beatriz obedeceu e, muito sem graça, deitou-se sobre Nicole, devagar e desconcertada. Não queria machucá-la, afinal era muito maior e mais pesada. Ela sentiu-se estranha e encabulada quando suas pernas ficaram entre as de Nicole, seus seios contra os dela, seus rostos próximos, a ponto de se tocarem...ela tentava se apoiar, meio desequilibrada, com os cotovelos paralelos ao corpo de Nicole, mas, definitivamente, não era para ser assim.
Num ímpeto, Nicole lhe tirou o apoio e puxou seus pulsos para cima de sua cabeça, indicando que ela deveria segurar as mãos de Nicole, que estavam no chão, paralelas ao seu rosto. Nesse momento, a proximidade entre as duas diminuiu de modo que Nicole pode ver o receio nos olhos escuros de Beatriz. Ela também se sentiu desconcertada e, imediatamente, mudou de posição, encaixando suas pernas nas de Beatriz e rolando por cima dela, alterando as posições. Agora era Nicole quem estava por cima e segurava os punhos de Beatriz de maneira firme, deixando-a totalmente imóvel.
- É assim. Limitou-se a falar, com a respiração entrecortada.
- Desculpe...não sabia como deveria ficar, nem tocar em você. Não estou acostumada...Beatriz se explicava, sentindo-se envergonhada e exposta. Sua excitação deveria estar estampada em seus olhos, em sua boca entreaberta e Nicole deveria estar percebendo.
- Tudo bem, eu deveria ter feito com você antes – Nicole se sentia constrangida...não deveria ter se desconcentrado, mas a atração que sentia por Beatriz estava ficando forte, muito forte e ela estava nervosa com isso – acho que por hoje foi o suficiente. Disse isso e em seguida levantou-se e foi embora.
Beatriz tentou não ficar chateada, mas era impossível. O que diabos estava acontecendo com ela? O que diabos se passava na cabeça de Nicole? Será que ela também sentia o mesmo? Mas, afinal, o que ela própria sentia? Ela não conseguia definir! Poderia apenas ser algum sentimento relacionado ao desejo de controle, já que Nicole se mostrava tão dominadora quanto ela. Poderia ser um jogo de egos, uma competição entre duas pessoas igualmente prepotentes e difíceis de se dobrar. Mas, em seu íntimo, sentia-se frustrada como uma pessoa tentando seduzir alguém que parecia inacessível. Nossa! Ela mesma se surpreendeu com sua conclusão! “Eu não estou me reconhecendo, não sou lésbica para pensar numa coisa absurda destas!”.
O relógio da cabeceira marcava duas horas da manhã quando o telefone de Nicole tocou:
- Nicole? É Beatriz... – foi quando ela percebeu que era de madrugada! Beatriz ainda não tinha conseguido dormir, imaginando o que faria e havia decidido cancelar a aula de quarta-feira...estava tão desnorteada e insone que sequer percebeu a hora e a inconveniência de seu telefonema.
- Eu sei que é você...respondeu Nicole em voz baixa, sonolenta, mas de um jeito tão sedutor, mesmo sem qualquer intenção, que fez Beatriz desejar estar exatamente ali, ao lado dela....mais um motivo para desmarcar a aula!
- Desculpe ligar a esta hora, nem percebi o quanto já era tarde. Só queria dizer que... – fez uma pausa, ainda na dúvida, mas não demorou – vou ter que viajar com urgência amanhã e não sei quando poderemos ter nossa próxima aula. Assim que eu chegar, te ligo para remarcarmos. Volte a dormir... E desligou o telefone, deixando Nicole com a sensação ruim de que o elo poderia ter começado a se romper, como ela esperava que acontecesse.
Seus pensamentos foram interrompidos bruscamente pela voz de Marcela:
- Quem era? Que hora inconveniente para alguém telefonar!!
- Não lhe interessa! – Respondeu Nicole secamente e virou-se, fingindo voltar a dormir.
Mas nem tão cedo o sono a tomou. Nos minutos seguintes, lembranças de grande parte de sua vida começaram a passar pela sua cabeça. Voltou ao dia em que conhecera Marcela. Lembrou dos dramas pessoais que viveram até conseguirem aceitar que estavam apaixonadas. No começo, tudo era explosivo, excitante e até romântico, o que não havia encontrado até então com homem nenhum e acreditava que sequer existiria. Mas, depois do primeiro ano de relacionamento, Marcela mostrou-se insatisfeita. Era extremamente problemática, egocêntrica, possessiva e, o pior de tudo, narcisista ao extremo. Adorava ser admirara, chamar a atenção e não resistia ao desejo de sempre estar conquistando todos ao seu redor. No início, porém, se contentava com as olhadas que recebia nas boates e bares gays que começaram a freqüentar, graças à sua insistência. Depois, já não era o bastante...
A primeira traição, com certeza, fora a mais absurda. Havia sido num banheiro de uma das boates. A própria Marcela contara, em seguida, pedindo desculpas e chorando compulsivamente. Depois da primeira, as outras foram menos dramáticas para ambas. Marcela já não sentia tanto remorso e Nicole já não a amava tanto.
Decidiram terminar várias vezes, mas voltavam no dia seguinte. Da última vez, há exatos seis meses, Nicole jurou que seria definitivo. Como nenhuma das duas estava em condições financeiras de se mudar e arcar sozinha com aluguel decidiram que ainda morariam juntas. Mas Nicole não suportava escutar nem sua voz, quanto mais as cobranças que ainda existiam da parte de Marcela. O ego não a permitia enxergar que já não era o grande objeto de desejo de Nicole e, por sito, sempre que podia a atormentava. A noite foi longa e quando finalmente Nicole adormeceu, o fez embalada pelas imagens de Beatriz.
Beatriz passou o resto da semana sem ligar e realmente viajou, mas não por obrigações ou negócios, como havia dito a Nicole. Fora por necessidade de pensar sobre sua vida e seus novos sentimentos. Sempre viajava sozinha e os quartos dos hotéis, por maiores que fossem, jamais lhe trouxeram a sensação de solidão. Mas daquela vez estava sendo diferente. O tempo todo desejava companhia. Mas não qualquer uma. Desejava e imaginava Nicole em cada canto do quarto e, para aumentar sua paranóia, em sua cama. No último dia decidira: iria encarar o que estava sentindo, afinal não era criança, tampouco covarde. Teria Nicole do jeito que ela queria e não se culparia mais nenhum segundo por isso. Voltou ao Rio pela manhã. Ao chegar, a primeira coisa que fez foi ligar para a professora. O telefone demorou um pouco para ser atendido e, a cada chamada, seu coração apertava de ansiedade. Finalmente a espera cessou quando a dona do celular o alcançou e atendeu:
- Alô...Nicole?
- Oi...Beatriz! – respondeu Nicole, com a voz ofegante, pois estava no meio de uma aula. Tentando se recompor e igualmente ansiosa, perguntou preocupada – Você já ligou muitas vezes?
- Não, essa e a primeira...– respondeu Beatriz com um sorriso...sentia-se feliz pelo simples fato de escutá-la – liguei para dizer que cheguei hoje e queria te encontrar, concluiu num tom enigmático, mas de quem, inconfundivelmente, não aceitaria uma recusa como resposta.
- Tudo bem. Na mesma hora?
- Não, Nicole, na verdade gostaria de te encontrar para almoçarmos. Respondeu Beatriz rispidamente, numa tentativa de não deixar espaço para um “não”. Tentou fazer com que a proposta soasse num tom casual, mas, do outro lado da linha, sentia as faces queimando. Nunca havia se imaginado fazendo uma coisa dessas!
Nicole não entendeu direito o porquê daquilo e nem ousou imaginar o que se passava na cabeça de Beatriz, limitou-se a aceitar o convite e ver no que ia dar.
Ao meio-dia, quando Nicole já se direcionava para a portaria, conforme o combinado, parou em frente à sua academia o porshe preto de Beatriz, que, por trás dos vidros escuros, suava frio de nervosismo e ansiedade. Nicole havia tomado um banho e colocado a única roupa que tinha levado. Nada formal, pois não costumava usar roupas assim, muito menos no dia-a-dia.
- Desculpe os trajes, não esperava um “encontro” com você a esta hora do dia... – justificava-se Nicole, abrindo a porta e entrando no caro, enquanto examinava Beatriz que estava impecavelmente arrumada e bonita.
- Não se preocupe. Só estou assim porque vim direto do escritório. Além do mais, você está muito... – Beatriz fez uma pausa, percebendo as pernas torneadas de Nicole sob a calça jeans clara, levemente justa, que modelava com sutileza seus quadris, os ombros largos, esculpidos, definidos e à mostra graças à camiseta de malha preta que se amoldava a seus seios de maneira firme, extremamente casual e sensual... – muito bem! Limitou-se a este comentário, reprimindo os pensamentos, para perguntar em seguida se ela gostava de comida japonesa. Diante da resposta afirmativa, rumou para um restaurante do outro lado da cidade.
O ambiente era maravilhoso, aconchegante e típico como nenhum outro que Nicole havia ido. Um dos garçons cumprimentou as duas e saldou Beatriz como se já a conhecesse, conduzindo-as a uma salinha reservada. Nicole imaginou que Beatriz deveria freqüentar aquele restaurante, inclusive aquela salinha, levando sempre “convidados”. Uma pontada de ciúme enrugou-lhe a testa, sem que ela pudesse reprimir.
No interior da sala havia apenas uma mesa baixa e quadrada, sob a qual repousava um tapete de mesmo formato, apenas um pouco maior, e algumas almofadas para que se sentassem. E o fizeram. Uma de frente para a outra. O ambiente era tão intimista que Nicole sentia-se um pouco sufocada. As pernas das duas se tocaram por baixo da mesa e, imediatamente, ambas as afastaram, para, em seguida, rirem. Era visível o constrangimento. Cada uma, intimamente, sabia o porquê. Beatriz quebrou o silencio. Olhando nos olhos de Nicole, falou:
- Acho que você deve estar estranhando meu convite – respirou e continuou com cautela, não queria parecer um cafajeste dando uma cantada barata em uma moça, tampouco se sentia assim...ela desejava apenas aproximar-se de Nicole, saber o que se escondia por trás da mascara de ela insistia em colocar, mantendo-se sempre distante, arredia – Não tenho muitos amigos, Nicole. Saio muito pouco e me divirto menos ainda. Gosto da sua companhia...sei lá, pensei que, talvez, pudéssemos conversar, nos aproximar...você leva uma vida tão diferente da minha que queria saber mais sobre ela...nossa, é estranho tentar te convencer de que tenho algum motivo para estar aqui...com você! – Ela falou demais e de forma entrecortada, talvez devido aos primeiros goles de saque ou, simplesmente, porque não tinha mais nada a perder. Olhava para Nicole esperando sua reação.
- Eu entendo perfeitamente. Também gosto de estar com você...apenas jamais pensei que você se interessasse em conversar comigo, a não ser profissionalmente.
Nicole, a princípio, media as palavras. Não queria deixar as coisas muito claras, afinal nem sabia se estava realmente entendendo o que Beatriz dizia ou sentia. Entretanto, a esta altura do campeonato, também não tinha nada a perder, concluía ela.
Seu relacionamento com Marcela estava insuportável e tudo o que ela precisava estava ali, à sua frente: uma mulher linda, interessante, que, apesar da postura de inacessível, tentava dizer-lhe exatamente o inverso, que era vulnerável, que também tinha desejos, que também corava de vergonha, que também se sentia insegura e, o melhor, que tinha curiosidade sobre sua vida! E ela satisfaria sua curiosidade, afinal de contas, porque não? Continuou...
- Beatriz, a vida que tenho é simples, muito simples. Trabalho desde os 15 anos com meu pai. Ele tinha uma academia dessas de fundo de quintal e eu sempre adorei participar da vida dele, por isso cuidei de aprender tudo que ele me ensinava. Ele era fisiculturista e professor de artes marciais. Eu o ajudava na academia e, em troca, tinha toda sua atenção quando não estávamos lá, até porque não havia outro irmão ou irmã para competir comigo e minha mãe morreu quando eu tinha três anos... – nesse instante Beatriz pôde ver, pela primeira vez, fragilidade nos olhos de Nicole que, entretanto, continuou – Bem, me formei com sacrifício, porque na época ele já estava doente e eu não podia deixar a academia fechar as portas. Tive que conciliar trabalho e faculdade, o que não foi nada fácil. Ele morreu dois anos depois de me ver formada. Infelizmente, no ano seguinte a academia foi por água a baixo. Não consegui manter o equilíbrio sozinha, sem dinheiro e sem meu pai. Fui ser personal trainer nas academias da vida e, há pouco tempo, finalmente consegui montar a minha. Estou endividada até a morte e, por isso, tenho que continuar a dividir meu apartamento com uma pessoa com a qual me relacionei durante alguns anos. O resto você já sabe. Desculpe se falei demais.
Beatriz a observava em silêncio. Cada vez se sentia mais intrigada por Nicole e a admirava por tudo. Limitou-se, porém, a perguntar:
- Você ainda gosta dela?
- Dela? – por essa pergunta Nicole não esperava e corou.
- Da mulher com a qual você mora.
- Mas eu não disse que era uma mulher...respondeu Nicole sorrindo.
- E não é? Respondeu Beatriz rindo também.
- Sim.
- Sim, você gosta? Ou sim, ela é uma mulher?
- Sim, ela é uma mulher...e não, eu não gosto. Na verdade não agüento mais nossa convivência, mas...
- Mas...?
- Eu espero poder ir morar em outro lugar em breve...e espero também que você não fique desconfortável comigo, daqui por diante – Concluiu olhando-a de maneira séria.
- Nicole, eu não sou preconceituosa. Os únicos tipos de pessoas que desprezo são os repórteres e fotógrafos...até já tive vontade de ir a uma boate gay, sabia?
- Nossa, Beatriz Villa numa boate gay? Nem consigo imaginar a confusão que seria! – disse esboçando um sorriso.
- Será?
- Claro! Olhe só para você! – Disse Nicole, observando-a e deixando-a, ao mesmo tempo, sem graça, apesar de satisfeita! Nicole a apreciava.
- Quer me convidar e ver o que acontece?
- Não sei se daria certo...acho que prejudicaria sua vida.
- Ora, Nicole, eu não preciso ir assim! Posso usar alguns artifícios...e então? Vamos?
- Hoje vai ter uma festa numa das boates que freqüento. Todas as pessoas que conheço estarão lá...estava pensando em dar uma passada...mas, não sei.
- Ora, vamos...deixe que eu dou um jeito de não ser reconhecida. Que horas te pego?
Às onze e trinta, Nicole chegou à casa de Beatriz, como o combinado. Achou melhor ir até lá do que deixar Beatriz ir buscá-la em casa, afinal Marcela poderia fazer uma das cenas desagradáveis, com as quais Nicole nunca se acostumaria.
Na sala enorme da casa de Beatriz, Nicole esperava enquanto observava alguns quadros e esculturas que preenchiam os espaços. Ela vestia uma calça preta, um pouco folgada, abaixo da cintura, uma blusa de tecido branco, com uma gola em V e mangas três-quartos, estilo anos 60, um colar discreto, de contas pequenas e uma sandália alta, que a deixava mais esguia. Os olhos estavam pintados, o que fazia com que parecessem mais puxados e franjados, nos lábios apenas um brilho, que os deixavam bem naturais e com a aparecia de mais macios. Os cabelos loiros e curtos continuavam meio desalinhados, dando-lhe um ar jovem e sexy.
Do topo da escadaria, Beatriz a observava em silêncio, admirando-a. Quando fez menção de descer o primeiro degrau sua presença fora notada por Nicole que, virando-se, deparou-se com uma imagem impar: Beatriz estava vestida com uma roupa negra, ajustada com perfeição em seu corpo, com um sobretudo igualmente negro por cima. Os olhos estavam realçados por uma maquiagem escura, os cabelos totalmente soltos, desciam pelas vestes, confundido-se com as mesmas, nos lábios um batom igualmente escuro que contrastava com a pele branca, salientando os lábios cheios, as sobrancelhas arqueadas, desafiadoras e, para um arremate final na “fantasia”, ostentava como adereços algumas correntes prateadas, uma pulseira de couro preta e uma bota que subia até o meio da perna. Ela estava totalmente diferente e deslumbrante!
- Nossa! Você está...incrível! – Disse Nicole, de boca entreaberta.
- Eu disse que daria um jeito, não foi? Podemos ir?
- Claro...mas olhe, Beatriz, talvez em algum momento eu tenha que pegar sua mão ou coisa parecida, para fingir que estamos juntas evitando problemas para você. Vai ser um caos quando você chegar! – Tentava justificar Nicole, visivelmente preocupada com o assedio que, com certeza, Beatriz sofreria.
- Por mim, tudo bem...afinal, você é ou não é a responsável pela minha segurança? – Esboçou um sorriso, gostando da idéia e ainda mais da cara de envergonhada de Nicole.
Na frente da boate estava um pandemônio. A noite prometia. A rua estava totalmente lotada! Havia gente por todos os lados e Nicole respirou fundo, ainda dentro do carro, perguntado se Beatriz queria desistir. A resposta negativa veio em seguida, firme e uníssona. “Não”, ela não queria desistir...não desistia de nada! Nunca!
Quando finalmente as duas entraram na Boate foi exatamente como Nicole havia previsto. Todos se voltaram para o “casal”. Elas realmente chamavam atenção. Muita atenção, principalmente juntas! Instintivamente Beatriz procurou a mão de Nicole e a segurou, puxando-a mais para perto.
- Tudo bem? – Perguntou Nicole, imaginado que Beatriz estaria constrangida diante de tantos olhares.
- Tudo...respondeu Beatriz com um sorriso lindo, que fez com que Nicole desejasse ainda mais que elas realmente fossem namoradas.
- Vamos para aquele lado que esta menos tumultuado.
A boate estava lotada e noventa por cento do público era feminino. Algumas mulheres estavam produzidíssimas e eram femininas, sensuais, delicadas. Outras, com estilo bem diverso, eram mais discretas, naturais e se vestiam mais à vontade. Ainda havia aquelas mais masculinas, com jeito de menino ou porte másculo. Enfim, tinha para todos os gostos.
A princípio Beatriz achou um pouco estranho ver mulheres se beijando enquanto dançavam de maneira ousada, mas aos poucos começava a se sentir excitada com o que presenciava. Quando alcançaram o canto da boate, Nicole encontrou duas amigas, que as convidaram para sentar na mesma que ocupavam. A música era muito alta e Nicole esforçou-se para apresentar Beatriz:
- Oi, meninas, essa aqui é Bia.. – e nem mais uma palavra para classificar sua companhia. Cuidou de abreviar-lhe o nome para evitar que a reconhecessem.
- Oi! – responderam ao mesmo tempo as duas, com um sorriso estampado de aprovação.
- Bia, esta é Vanessa e esta, Raquel.
- Prazer em conhecê-las.
Ao ouvido de Nicole, Vanessa cuidou de comentar:
- Nossa! Onde você encontrou essa beldade? Simplesmente maravilhosa!
- É verdade...
- Amiga, infelizmente creio que sua noite vai ter alguns atropelos. Marcela está aqui e já tomou algumas doses a mais. Vai ser um inferno quando ela te ver...ainda mais com sua companhia.
Nicole deu a notícia imediatamente a Beatriz para prepará-la caso houvesse alguma cena da parte de Marcela, mas ela não pareceu preocupar-se e chamou Nicole para dançar. Na pista de dança, ao som de um tecno alto e vibrante, as duas começaram a dança. Separadas, elas se observavam mutuamente, alheias a todos os olhos que as fitavam. Beatriz parecia dançar para ela e Nicole não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Passaram alguns minutos sem trocarem uma palavra, apenas olhares. Aos poucos, iam ficando mais próximas. Beatriz observava, latente de desejo, o corpo de Nicole, já suado, movendo-se juntamente com seus músculos, sob as vestes. As duas estavam em prefeita sincronia. Mesmo separadas por alguns centímetros, uma sentia o calor do corpo da outra e se desejavam mutuamente. O momento foi quebrado por uma mão no ombro de Nicole, seguida de uma voz muito conhecida. Era Marcela:
- Ora, ora, vejam só quem está aqui...Se não é a minha querida Nicole! Que prazer imenso te encontrar. Desde ontem à noite que não nos vemos, não é mesmo?
- Marcela, poupe-nos de uma cena desagradável, sim? Esta aqui é Bia e esta – disse, fazendo menção a mulher de olhos verdes que as fulminava – é Marcela.
- Ola, Bia! É um prazer conhecê-la – respondeu Marcela num tom irônico, beijando-lhe o rosto, para em seguida, falar próximo ao ouvido de Beatriz – se quiser, pode-se juntar a nós, em nossa cama. Você não é de se jogar fora...Nicole tem bom gosto, isso eu não posso negar, finalizou olhando-se de cima a baixo, numa clara exibição da beleza que sabia possuir.
- Agradeço o elogio mas sinto rejeitar o convite...não a divido com ninguém – respondeu Beatriz sem sair do salto, sem perder a pose, com muita classe e sensualidade, fazendo Marcela odiá-la mais ainda por isso.
- É uma pena... – rosnou Marcela entre os dentes antes de sair trôpega, escorando-se nas pessoas ao seu redor.
- Desculpe-me, Beatriz...ela tem o dom de ser desagradável.
- Nossa...percebi. Mas vamos esquecer.
Nicole não conseguiu disfarçar a satisfação de ouvir Beatriz falar que não a dividiria com ninguém, apesar de saber que poderia ter sido apenas uma forma polida de agredir Marcela. Intimamente ela rira de satisfação.
De volta à mesa, Vanessa e Raquel comentaram que Marcela havia passado por lá enlouquecida e quase as agredido, perguntando quem era Bia, o que ela pensava que era, que ligação tinha com Nicole. Neste momento, ambas olharam para Nicole, num ar de repergunta. Percebendo o embaraço de Nicole para responder, Beatriz se antecipou. Chegando mais perto, enlaçou os dedos entre os cabelos curtos de Nicole, puxando sua cabeça e, de maneira sensual e provocante, deu-lhe um beijo visivelmente de amantes. Nicole ficou atordoada e sentiu suas faces ficarem vermelhas. O sangue subiu-lhe a cabeça. Depois de alguns segundos. Beatriz a libertou e a olhou de maneira marota, dizendo:
- O que vocês acham? – e riu, diante da cara das duas e, principalmente, da expressão de Nicole.
Mas a surpresa não foi apenas de Nicole. Do outro lado da pista de dança, Marcela a tudo assistira e já totalmente tomada pelo ódio e pelo álcool, dirigiu-se à mesa. Nicole levantou-se imediatamente, esperando o absurdo que viria em seguida e, como previra, Marcela puxou-a pelo braço, esbravejando e chorando compulsivamente.
- Pelo amor de Deus, Nicole, você não pode fazer isso comigo...simplesmente não pode!
Nicole, acostumada com a insensatez de Marcela, limitou-se se soltar das mãos que, de maneira selvagem, a seguravam, dizendo:
- Marcela, você está bêbada!
Saiu em seguida, de mãos dadas com Beatriz que assistia imóvel à deprimente e nada comovente cena. No carro Nicole se desculpou.
- Desculpe-me, Beatriz, deveríamos ter ido quando eu soube que ela estava lá!
- E perder a melhor parte da festa? – falou Beatriz, sorrindo e em tom enigmático, deixando Nicole a se questionar a que parte exatamente ela se referia. Com certeza, para Nicole, a melhor parte fora a do beijo. Há muito tempo ela não se sentia tão envolvida por alguém.
Beatriz, após muita insistência, convenceu Nicole de que seria melhor se ela dormisse em sua casa. Afinal, depois do acontecido, não seria bom encontrar Marcela, que, àquela altura, já devia estar em casa, esperando-a. Além do mais, as duas tinham bebido um pouco também e seria perigoso para Nicole atravessar a cidade de carro, sozinha, naquela hora da noite.
Chegaram por volta das duas horas e Beatriz sugeriu que fossem à sala de ginástica, tomar um último drinque na piscina. Com a arrogância de sempre, acordou Alfredo para servi-las e, ainda sonolento, o bom e velho mordomo preparou no deque da piscina interna uma mesa de frios, um balde de gelo e uma champanhe. Nicole estava confusa, mas deliciada com a idéia de tomar um banho naquela água térmica, com Beatriz, mesmo que não acontecesse nada.
- E então, vamos entrar na água? – Perguntou Beatriz, tirando as botas.
- Vamos...limitou-se a responder Nicole que, só então, percebeu que Beatriz estava disposta a despir-se por inteiro e esperava dela o mesmo.
Aos poucos, Beatriz tirava a roupa negra, revelando a brancura de seu corpo aos olhos de Nicole, que assistia petrificada. “Ela é perfeita!”, pensava a observadora. Parecia esculpida à mão num mármore raro e alvo como a neve. As pernas eram longas, torneadas, os seios firmes, pequenos, rosados, já intumescidos pelo frio, o ventre, coberto por uma penugem fina e sedosa. Ela parecia sem nenhuma vergonha ou pudor. Despia-se com naturalidade, de olhos quase fechados. Só não imaginava Nicole que, por dentro, Beatriz já queimava de desejo, só de sentir o olhar pousado sobre si, enquanto se livrava das roupas. Lentamente, entrou na água e olhou para Nicole, chamando-a:
- E você? Desistiu?
- Não.
Rapidamente, Nicole tirou as próprias roupas, tentando não pensar muito no que fazia, nem no que se passava na cabeça de Beatriz.
“Ela era mais bonita ainda despida”, pensava, agora, Beatriz, embevecida. Dentro d’água, as duas mantiveram uma certa distância. Beatriz encostou a cabeça numa das bordas e deixou o resto de seu corpo flutuar, exibindo parte dos seios e do ventre. De olhos fechados, falou:
- Desculpe pelo beijo que roubei de você. Vi que te deixei sem graça. – Evitava abrir os olhos. Se abrisse, talvez não tivesse coragem de continuar... – Não sei o que aconteceu, talvez a bebida, o ambiente, o ciúme de Marcela, a vontade de provocá-la ou de provocar você! – Somente nesse momento Beatriz abriu os olhos. Nicole continuava próxima, mas sem tocá-la.
- O que, finalmente você quer, Beatriz? Brincar comigo?
- Não, Nicole, não quero brincar com você...eu quero você! Você ainda não percebeu?
Nesse momento, Beatriz colocou-se de frente para Nicole que não arredou um centímetro. Queria ver até onde ela iria. Até onde ela conduziria a situação. Beatriz, percebendo que Nicole não tomaria a iniciativa, puxou sua mão suavemente e a emergiu na água, conduzindo-a por entre suas coxas que, sutilmente, se abriram esperando o toque. Nicole, olhando-a nos olhos, percorreu o caminho indicado lentamente, vendo o desejo crescer nos olhos negros de Beatriz, que já os fechava de desejo. Ao tocar os pêlos do sexo de Beatriz, Nicole deteve seus dedos. Com suavidade, massageou-lhe as coxas, que se abriram mais, desta vez sem muita sutileza. Ela estava sedenta. Nicole, percebendo a ansiedade e sem conseguir resistir a seu próprio desejo, penetrou com vigor o sexo de Beatriz, que recebeu seus dedos com uma umidade inconfundível. Ela latejava e Nicole aprofundou o toque, com mais vigor, fazendo-a gemer e se contorcer. Só então, sem conseguir mais se segurar, colou o corpo ao de Beatriz. Sentiu os próprios seios juntarem-se aos dela, o próprio ventre roçar o de Beatriz e sua própria umidade, inundando-lhe ainda mais.
- Eu esperei muito por isso... – Beatriz falava-lhe ao ouvido, sensualmente, enquanto beijava-lhe a orelha, lambia, mordia, entre gemidos que se tornavam mais cálidos e ofegantes a cada instante.
Com as pernas encaixadas, Nicole cuidava de afundar-lhe os dedos ritmadamente, de maneira firme. Sentindo o corpo de Beatriz estremecer, tomou-lhe um dos seios na boca e o sugou com sofreguidão e vigor. Quando sentiu que estavam à beira de mais um gozo, suspendeu Beatriz até a borda da piscina, indo juntar-se a ela, em seguida. Ela queria mais...queria sentir o gosto de Beatriz. Queria provar a umidade que brotava de seu ventre. E assim o fez. Percorrendo o corpo de Beatriz com beijos sedentos, tomou-lhe o sexo com a boca ávida e, após lamber-lhe internamente, penetrou-a com a língua. Beatriz jamais sentira tamanho prazer e gemia descompassadamente, quase perdendo o fôlego. Gozou na boca de Nicole sem qualquer pudor. Não havia espaço para isso.
Sem esperar mais do que cinco segundos, Beatriz virou-se e deitou-se sob Nicole, beijando-lhe a boca e sentindo seu próprio gosto nos lábios vermelhos, marcados pelo contato frenético com os pelos de seu ventre. Ela a queria por completo! E, sem muita experiência, encaixou-se no corpo de Nicole, entre suas pernas, esfregando seu sexo no dela. As umidades se misturavam, se confundiam. As duas estavam em sincronia e moviam-se de maneira quase bruta. Beatriz, sem se conter, não teve muito receio de sua inexperiência. Afastou as pernas de Nicole, que cedeu sem qualquer hesitação, e penetrou-a maravilhada, fazendo-a gozar forte, logo em seguida.
Cansadas, as duas continuavam deitadas, uma sob a outra. As pernas ainda entrelaçadas. As bocas unidas, ainda se exploravam. Dessa vez, sem pressa...apenas desejo. Durante toda a noite, se amaram diversas vezes. Mas trocaram o deque frio da piscina pela cama enorme e macia de Beatriz Villar.
No outro dia, Nicole observava Beatriz enquanto ela, exausta, ainda dormia. A despertou com um beijo. Diante dos olhos escuros de Beatriz, Nicole se perguntou se ainda teriam outra noite daquelas ou se tudo não passara de uma aventura. Como resposta, Beatriz lhe falou:
- Por mim, a partir de hoje você assume a gerência da segurança das empresas, de minha casa e de minha vida. O que acha? – Fez silêncio, esperando uma resposta.
- Com uma condição... – respondeu Nicole, igualmente séria.
- Qual?
- Você me pagará apenas com favores sexuais, em sua cama – rematou Nicole, mal se contento de felicidade.
- Feito!
Entre beijos cada vez mais intensos, Beatriz pensava no quanto a “dívida” que contraíra com Nicole era enorme, afinal ela havia lhe resgatado de uma vida vazia e lhe dando mais prazer e felicidade do que imaginava existir. Por isso, precisava pagar-lhe todos os dias. E, como o acordado, enlaçou-lhe novamente a cintura com suas longas pernas, puxando-a para si. Nicole, por sua vez, só teve tempo de pensar no quanto Beatriz Villar era realmente poderosa...e em todos os sentidos! Nada melhor, portanto, do que ser sua eterna credora.
Nascida numa família rica e tradicional, ela sempre desfrutou de tudo o que havia de mais caro e sofisticado. Por ser filha única, sempre contou com a atenção integral dos pais, que a criaram com todos os mimos e fazendo-lhe todos os gostos. Isso, porém, não a tornou irresponsável, ao contrário, com dezesseis anos de idade já demonstrava um enorme interesse pelos negócios da família, que englobavam desde a plantação de soja e laranja, a fabricas de calçados e outros produtos derivados do couro. Possuíam inúmeras fazendas espalhadas pelo Brasil e, há cinco anos, ampliaram os negócios para os Estados Unidos, sob o comando de Beatriz. Porém, com a morte do pai, sua volta era o mais sensato, afinal, atualmente, ninguém conhecia melhor o império dos Villar do que a “grande empresária do ano”, como foi classificada por uma das mais populares revistas brasileiras.
Sua chegada foi cercada de estardalhaço. A impressa não perdeu a oportunidade de fotografá-la desde sua decolagem, nos Estados Unidos, à sua aterrissagem no país de origem. Tanto as colunas sociais, quanto aquelas direcionadas aos negócios demonstravam enorme interesse pela chegada da jovem de 28 anos, que, de cima de seu 1,80 m de altura, parecia querer dominar o mundo.
Ela era, de fato, muito bonita, mas não apenas isto. Beatriz possuía um magnetismo impressionante. Os cabelos escuros e longos, os olhos igualmente escuros, inteligentes e perspicazes, a boca muito bem feita e o corpo perfeito não chamavam tanta atenção quanto sua altivez e porte. Guardava mistério e sensualidade nos gestos e na forma de olhar, sempre muito firme e segura. Não demonstrava qualquer insegurança, nem nas palavras, nem no andar, sempre muito imponente. Ela era inconfundível. Porém, seu bom-humor era raro. Era conhecida por sua arrogância, apesar da educação que possuía. Não tolerava perguntas pessoais, vindas da impressa ou de curiosos. Mantinha-se sempre distante e profissional, em qualquer ocasião. Talvez fosse este seu grande charme e trunfo, afinal, não era fácil ser mulher e manter o respeito no mundo dos negócios, ainda predominantemente masculino. Sempre teve consciência disto.
Até que se organizasse, ficaria morando na antiga mansão da família, no Rio de Janeiro, próximo ao apartamento onde sua mãe, atualmente, morava. Há algum tempo, antes mesmo da morte de Ernesto Villar, Dona Constância Villar havia desistido de morar na antiga casa. Os seqüestros e assaltos eram cada dia mais constantes nos noticiários e entre seus amigos e conhecidos. Beatriz, no entanto, insistira em permanecer na casa, pelo menos, por alguns meses. Não se acostumaria a morar novamente com a mãe, tampouco num apartamento, pois primava por sua privacidade e liberdade, o que não teria, certamente, se fossem morar sob o mesmo teto.
Mas, antes mesmo de mudar-se, Beatriz cuidou de reforçar muito bem a segurança, afinal já havia sido vítima de um seqüestro relâmpago, naquela cidade, que lhe traumatizara. Para tanto, contratou uma empresa especializada no assunto, a mais bem conceituada no Rio de Janeiro, para que cercassem a mansão de equipamentos e vigilantes 24 horas por dia. Isso, porém, ao seu ver, ainda não era o bastante.
Decidira, desde o triste episódio do seqüestro, que faria alguma espécie de luta, talvez defesa pessoal, para que, caso a circunstância se repetisse, ela se sentisse menos vulnerável e paralisada. Acreditava que, pelo menos o lado emocional se fortificaria, ainda que fosse mais conveniente não esboçar qualquer tipo de reação. Por outro lado, em meio a tanto trabalho e preocupações, até seria relaxante treinar alguma coisa diferente e excitante.
Com esse objetivo, procurou informar-se sobre professores particulares de defesa pessoal entre os amigos que já treinavam há algum tempo, inclusive, pelos mesmos motivos seus. Queria o melhor e pagaria para isto. Para sua surpresa, todos foram unânimes em indicar um mesmo nome e um nome feminino: Nicole Andrade.
Não que Beatriz não confiasse na capacidade feminina, pois isso seria contrariar todos seus esforços e respectivos efeitos positivos. Mas, por ironia, talvez ela própria tivesse sido um pouco contaminada pelo machismo que tanto a incomodava. A verdade é que, à primeira vista, duvidou que uma mulher fosse a melhor opção para ocupar o papel que ela desejava. Imediatamente reprimiu seu preconceito, respirou fundo e ligou para o número indicado como o da campeã em artes marciais:
- Alô...
- Alô, bom dia, eu gostaria de falar com Nicole Andrade. Disse Beatriz em resposta à voz feminina que atendeu ao telefonema.
- Já está falando com ela, em que posso ajudá-la? Perguntou Nicole secamente.
A voz feminina surpreendeu Beatriz pela firmeza, apesar do tom suave. Imaginou que elas, pelo menos, guardavam alguma semelhança.
- Meu nome é Beatriz Villar, não sei se me conhece. Gostaria de ter algumas aulas particulares de defesa pessoal e alguns amigos meus indicaram você como a pessoa certa. Respondeu de forma determinada, certa de que obteria êxito na contratação, como sempre.
- Infelizmente não posso ajudá-la – respondeu Nicole, sem deixar claro se já a conhecia ou não e continuou a explicação. Há três meses deixei de dar aulas particulares. É que abri uma academia que tem tomado todo o meu tempo, a menos que você esteja dispostas a vir ter aula aqui... – ia concluir Nicole, quando foi bruscamente interrompida por Beatriz, que a esta altura já estava inquieta pois odiava ser contrariada!
- Acho que você não entendeu, moça, ou não me conhece. Eu sou Beatriz Villar – disse ela dando ênfase no próprio nome – e estou disposta a pagar quanto for preciso, não faça cerimônia. Rematou com a arrogância de sempre.
- Sinto muito, mas quem não me entendeu foi a senhora. Eu sei muito bem quem você é. Aliás, seria impossível qualquer pessoa que possua uma televisão ou tenha às mãos uma revista daquelas de fofocas não saber, tamanho o estardalhaço que fazem ao redor de sua vida. Mas, realmente não estou disposta a mudar meus planos. Sinto muito.
Em outra ocasião Beatriz teria se valido de toda sua prepotência e usado mais algumas de suas inúmeras formas para humilhar alguém, mas aquela moça a havia intrigado. Sentiu-se quase desconsertada por seu tom de voz, sem qualquer medo ou receio. Queria conhecê-la pessoalmente e era inteligente o bastante para isso. Se ela fosse boa na luta como o era nas palavras, estaria em boas mãos, pensou e continuou:
- Desculpe se soei arrogante, Nicole, mas é que minha situação é delicada. Como você mesma já frisou, minha vida é muito vigiada. Todos sabem os meus passos, por mais que eu tente evitar e isso me causa sérios problemas. Você deve imaginar o quanto minha privacidade fica comprometida. É difícil estar em locais públicos. Sempre fico cercada de curiosos me observando, o que muito me incomoda. Por estes motivos é tão ruim sair de casa, ainda mais para freqüentar uma academia, cheia de gente! Até minha segurança fica comprometida. Não sei se você leu sobre o seqüestro que sofri... – Beatriz deu uma pausa e ia continuar quando Nicole interrompeu.
- Sinto muito, mas o máximo que posso fazer é lhe dar aulas após o horário normal da academia, ou seja, por volta das onze horas da noite, quando todos já foram embora. O que acha? – Nicole sinceramente não acreditava que isso bastaria para aquela mulher arrogante e prepotente, mas a sua sugestão serviria para tirar o corpo fora, já que a recusa viria em seguida, pensava ela. Para sua surpresa, Beatriz perguntou:
- Quanto custa a mensalidade de sua academia, Nicole?
Sem titubear e aumentando o preço, em mais uma tentativa de livrar-se de sua quase futura e insuportável aluna, Nicole respondeu, sem nenhum remorso:
- Duzentos e cinqüenta reais, disse bruscamente...e respirou fundo, apertando os olhos do outro lado da linha, numa leve expressão de cinismo pela mentira que contara descaradamente. Porém, surpreendeu-se com a proposta de Beatriz:
- E o que você acharia de quinhentos reais por dia de aula, em minha casa, depois de seu expediente, ou seja, como você mesma disse, por volta das onze horas da noite, quando todos os seus alunos forem descansar e você terminar a última aula na academia?
Nicole, dessa vez, arregalou os olhos puxados e, sem pensar muito se viu obrigada a responde secamente, tentando disfarçar o misto que sentia de satisfação com um leve toque de “não sei se isso vai dar certo!” :
- Tudo bem. Pelo jeito falaram muito, mas muito bem mesmo de mim, não é, Senhorita Beatriz Villar?
- Pode me chamar pelo primeiro nome, Nicole. E sim, realmente falaram muito bem de você... – concluiu Beatriz, dando um tom de mistério em suas palavras.
Na verdade, mesmo que seus amigos não tivessem falado tão bem de Nicole, ela a dobraria, só pelo prazer de conseguir sempre o que queria e do jeito que queria! Isso já tinha virado um verdadeiro hábito seu. Na seqüência, perguntou:
- Quando podemos começar e o que eu preciso fazer para arrumar devidamente o local?
- Podemos começar quando você dispuser de uma sala com, no mínimo, quarenta metros quadrados e forrada com tatames. O resto pode deixar por minha conta...respondeu Nicole, tentado dificultar as coisas para a “Srta. Eu Sou Deus!”.
- Então segunda-feira, às onze horas da noite, mando um motorista te buscar. Pode me passar o endereço?
- Prefiro anotar o seu. Vou no meu carro, se a senhora não se importar, é claro! Falou Nicole com sarcasmo, dessa vez nem um pouco camuflado. “Afinal quem essa mulher pensa que é?”, pensava, irritada.
- Como quiser, respondeu Beatriz, informando, em seguida, seu endereço e despedindo-se formalmente
Era uma noite de sexta-feira e quando Nicole desligou seu celular ainda tinha três aulas pela frente antes de poder, finalmente, ir pra casa. Para seu pesar, em nenhuma das três aulas, tampouco durante o resto da noite, a voz de Beatriz saiu de sua cabeça. Era uma voz autoritária, firme, bonita, isso ela não podia negar, mas que guardava algo que lhe intrigava, ela só não sabia exatamente o que. Estava preocupada. Não sabia realmente se superaria a antipatia que sentira por Beatriz, tampouco se saberia lidar com uma mulher tão arrogante quanto ela própria. Sim, então era esse o problema, agora ela tinha percebido, mas já era tarde para voltar atrás. Teria que conviver com alguém tão difícil de lidar quanto ela mesma, o que, até então, julgava impossível de encontrar.
O fim-de-semana passou sem maiores novidades para ambas. Nicole foi árbitro em um campeonato de Karatê, que lhe tomou o sábado inteiro e a metade do domingo. Beatriz, por sua vez, “divertiu-se” bastante em seu escritório, tentando colocar ordem em tudo o que via pela frente, mas essa tarefa exigiria, no mínimo, dez fins-de-semana e isso a irritava sobremodo. Odiava não poder resolver imediatamente seus problemas, fossem eles quais fossem. No sábado de manhã, antes de qualquer coisa, mandou que Alfredo, o “administrador” da mansão dos Villar, se virasse e aprontasse, para a segunda-feira, ao meio-dia, a sala de ginástica, transformando-a num local apropriado para as aulas.
- Ligue para arquitetos, donos de academias...não sei quem entende disso, mas dê um jeito de descobrir e construir – frisou ela – até segunda uma sala apropriada para minhas aulas. Pode gastar o quanto for preciso.
- Como a senhora quiser! Não se preocupe, Senhorita Beatriz...
- Não vou me preocupar mesmo, meu caro, você é quem deve! Disse Beatriz, dando as costas, para sair em direção ao seu porshe preto, deixando Alfredo com mais alguns cabelos brancos e rugas nos cantos dos pequenos olhos azuis, escondidos por detrás dos óculos redondos, de aros dourados e discretos. Sempre se via em apuros quando Beatriz Villar inventava novos hobbies, pensou ele, sem, entretanto, deixar de admirar a figura esbelta e extremamente charmosa da patroa, que caminhava em passos firmes para o carro, arrancando rumo ao portão.
Finalmente segunda chegou. As duas estavam ansiosas, cada uma por seus motivos. Alfredo tinha feito realmente um bom trabalho, pensou Beatriz ao chegar a antiga sala de ginástica. O lugar, por si só, já era muito bonito. Ficava ao lado da sede da Mansão, sob pilotis contíguos ao primeiro andar, erguidos sob colunas de mármore, muito bem trabalhadas, cercado por paredes de vidro, o que lhe dava um visual sofisticado e futurista. De lá de cima, se avistava todo o jardim da casa, com seus canteiros impecavelmente podados, as flores exóticas e coloridas que preenchiam os canteiros e margeavam os caminhos que conduziam às praças, à fonte e aos demais recantos da Mansão dos Villar. Na sala, além do espaço que agora estava preenchido pelos mais caros e “eficazes” tatames indicados pelos donos de algumas das academias badaladas do Rio de Janeiro, havia ainda uma piscina térmica, alguns aparelhos de ginástica, duas esteiras e alguns espelhos espalhados estrategicamente nos cantos das salas, em contraste com as paredes de vidro. O ambiente era climatizado e as luzes centralizadas e reguláveis. “Perfeito”, ponderou Beatriz com um sorriso de satisfação. Ela adorava impressionar, ainda mais àqueles que odiavam demonstrar, o que, em sua opinião, era o caso de Nicole. Aliás, ela parecia ter um gênio forte em todos os sentidos. Seria interessante tê-la por perto e ver até que ponto elas se pareciam...
Mesmo sem entender o porquê, Beatriz tentava adivinhar como Nicole seria fisicamente. Foi quando se deu conta de Alfredo lhe chamava da porta do salão.
- Senhorita, interfonaram da guarita para avisar que uma moça chamada Nicole Andrade acabou de chegar, se identificando como sua personal trainer. Posso liberar a entrada? Perguntou Alfredo polidamente, como sempre.
- Pode...respondeu Beatriz num tom grave, voltando sua atenção ao caminho de entrada da Mansão, através das paredes de vidro. Chovia bastante e as gotas escorriam pelo vidro espesso, dificultando um pouco sua visão. Pôde então ver um carro se aproximando e, em seguida, Nicole descendo e andando pacientemente pela chuva, sem se importar muito com os pingos fortes que lhe molhavam por inteiro. Ela subiu as escadas, indicadas por Alfredo, que já lhe esperava lá embaixo e entrou pela porta ensopada. Beatriz estava de costas, esperando-a para virar-se. As duas entreolharam-se e, silenciosamente, admiraram-se.
Beatriz pensou consigo mesma como Nicole era diferente do que ela esperava. Ela fazia o estilo mignon e Beatriz a olhava de cima de seu 1,80 de altura. Mesmo molhada e sem qualquer pintura ou artifício, seu rosto era perfeito, concluía Beatriz. Tinha a pele muito alva, as maçãs do rosto rosadas, “talvez pelo frio”, tentava adivinhar a observadora. Seu nariz era arrebitado, delicado, que lhe davam um ar de menina mimada, birrenta, dona de si. Os olhos franjados, puxados, de um castanho muito claro, combinavam perfeitamente com seu cabelo loiro, desalinhado, todo molhado. Apesar da pouca altura, tinha um porte atlético inconfundível, as costas largas, a cintura fina, os ombros trabalhados.
Enquanto Beatriz a observava, Nicole já demonstrava uma certa impaciência, colhendo nos lábios as gotas que escorriam pelo seu rosto, enquanto pensava no quanto Beatriz era alta e imponente. Muito mais do que nas fotos. Sua imagem combinava perfeitamente com a mulher que lhe falara ao telefone. Só não a imaginava tão desconcertante. Mas ela era! Pela própria beleza sofisticada que tinha e o jeito penetrante e agressivo de olhar.
- Boa noite, Beatriz, como vai? Disse Nicole estendendo-lhe a mão, já que a outra não o fez, ocupada que estava em lhe analisar da cabeça aos pés.
- Boa noite, Nicole. Imaginava você um tanto diferente, concluiu Beatriz num tom de riso, sem saber que seria mal interpretada por Nicole, que já arqueava a sobrancelha para responder-lhe.
- Pois é, sabe que a chuva estragou toda minha maquiagem, meu cabelo e me fez encolher. Sinto muito!
- Não foi isso que quis dizer, mas você parece contrariada demais para que eu explique. Desculpe se lhe incomodei com o comentário.
- Tudo bem, respondeu Nicole decidindo dar sua aula, conversar o mínimo possível e ir embora.
Antes de começar, deu uma olhada na sala, tentando não demonstrar sua admiração, exatamente como Beatriz imaginara.
- Onde posso trocar de roupa? Perguntou Nicole.
Beatriz limitou-se a apontar o banheiro num menear de cabeça. Em poucos minutos, Nicole retornou com um kimono branco e uma faixa preta na cintura. Os cabelos estavam presos num rabo de cavalo e Beatriz se perguntou como alguém poderia ficar tão bem em uma roupa como aquelas. Enquanto isso, ela, como aluna, se sentia vestida num saco, amarrado pela cintura.
As duas caminharam até o centro do tatame e Nicole deu uma breve instrução do que era a defesa pessoal e do que ela aprenderia no decorrer das aulas. Em seguida fizeram alguns alongamentos e Nicole anunciou que iniciariam por alguns golpes que envolviam torções de pulso, com o objetivo de livrarem-se de alguém que os segurasse.
Em seguida, se aproximou de Beatriz e, esticando os próprios pulsos com as mãos cerradas, pediu que ela os segurasse o mais forte que pudesse. Beatriz o fez e olhou-a nos olhos, indicando que já estava preparada. Num simples girar de braços, Nicole soltou-se com a maior facilidade. Beatriz ficou surpresa pela agilidade, mas constrangida ao ver as marcas vermelhas nos pulsos de Nicole, por causa de suas unhas.
- Desculpe, Nicole. Preciso cortas as unhas.
- Tudo bem, vou sobreviver ao seu ataque... – respondeu Nicole com um sorriso que surpreendeu mais ainda Beatriz, já que ela esperava outra reação – Agora é sua vez. Perceba que torci os pulsos no sentido contrário a sua mão. Os girei exatamente pelo lado em que seus dedos não se uniam com o polegar. Esse é o segredo. Agora seguro os seus.
Dizendo isso, Nicole apertou os pulsos delicados de Beatriz com firmeza e calor. Ao toque, ambas evitaram se olhar. Talvez pela falta de intimidade e aproximação. A respiração de ambas estava um pouco ofegante, em parte pela força usada, em parte pela situação de desconforto. Beatriz observou as mãos de Nicole. Elas eram menos delicadas do que seu rosto. As unhas eram curtas e as palmas um pouco ásperas. Imaginou que todas as lutadoras tivessem mãos assim. Em seguida, se perguntou porque se sentia tensa. Nicole fazia o mesmo.
- Espere, Beatriz. Acho que não começamos bem... – disse Nicole soltando-lhe os pulsos e respirando fundo. Nosso primeiro contato pelo telefone, nossas possíveis e visíveis diferenças e, sei lá... – ela fez uma pausa – as barreiras iniciais – ela se esforçava para não mencionar a antipatia mútua – nada disso pode interferir quando estivermos nesse tatame. Esqueça quem sou e sinta apenas minhas mãos, meu toque. Façamos de nossos corpos instrumentos para nosso aprendizado. E assim que tem de ser. Vamos começar de novo.
Quieta Beatriz a escutava e não conseguia parar de admirá-la. Nicole lhe parecia, em alguns momentos, uma criança, pelas feições, pelo olhar ingênuo. Em outros, uma mulher segura, madura, que lhe falava com seriedade, de modo envolvente, mesmo sem parecer ter consciência disto. Em seguida, estendeu-lhe novamente os pulsos e Nicole os segurou firme.
- Agora gire os pulsos e solte-os pelas fendas de minhas mãos, com velocidade.
Beatriz seguiu as instruções e conseguiu. Dessa vez Nicole foi presenteada com o sorriso mais sensual que já vira. Beatriz era mesmo linda, ela pensou e sorriu também. As duas já começavam a se entender. E, nesse ritmo, quase duas horas se passaram como se fossem dois minutos.
Nicole falava o estritamente necessário e Beatriz, menos ainda. Mas ambas pareciam se comunicar pelos toques, pelos olhares. Seus corpos falavam e, aos poucos, a proximidade já não era tão constrangedora. Beatriz começou a sentir o cansaço e, só por isso, deu-se conta do tempo e consultou o relógio. Ele já marcava quase uma hora da manhã. Ambas se surpreenderam.
- Minha nossa, já tomei demais seu tempo!
- Não se preocupe, não vou cobrar a hora extra. Respondeu Nicole, a princípio séria, para depois sorrir, levemente.
- Não é por isso que falei, respondeu Beatriz – naquele momento, o que menos lhe importava era o dinheiro que pagaria. Ela apenas se questionava o porquê de ter gostado tanto de estar ali. Há muito tempo não se sentia tão bem.
- Eu sei...afinal, dinheiro não é problema para você... – disse Nicole, esforçando-se para não soar rude ou irônica – A propósito, quando vai querer me ver novamente, se é que vai? – perguntou em tom de brincadeira, olhando para os pulsos vermelhos que Beatriz também ostentava.
Beatriz riu e só então observou as marcas das mãos de Nicole em seus braços.
- Nossa! Já posso me considerar uma lutadora! Marcas eu já tenho para mostrar – disse Beatriz para, em seguida, estancar o riso. Olhando de maneira séria nos olhos de Nicole, respondeu – Por mim, amanhã mesmo, se você estiver disponível.
- Pois então até amanhã – disse Nicole com firmeza e continuou, despedindo-se – Durma bem e, se lembrar, quando tomar banho, deixe um pouco de água gelada escorrer por seus braços, vai ajudar na vermelhidão. Em seguida, virou-se, fazendo menção de alcançar a porta. Mas Beatriz a interrompeu como se, inconscientemente, quisesse prolongar o contato:
- Não quer trocar de roupa antes de ir...tomar um banho...uma água?
- Obrigada, mas vou aproveitar a chuva...adoro banho de chuva! – explicou Nicole, diante da expressão de incompreensão de Beatriz. Os olhos das duas se encontraram com intensidade mais uma vez, antes de Nicole dar as costas e ir embora.
Beatriz a observou caminhando pela chuva através dos vidros. Agora já podia ver sua imagem definida, apesar da falta de visibilidade. É que lembrava de cada traço seu...
Como Nicole havia sugerido, Beatriz, ao tomar seu banho, deixou a água escorrer por sobre a vermelhidão de seus punhos, que já não estava tão acentuada. Enquanto massageava os braços, pensava na professora e isso a confundia. Era estranho para ela se sentir assim em relação a outra mulher. Nem ela sabia definir o que acontecia quando as duas se olhavam, quando estavam próximas. Apesar de estranho, sem dúvidas, era instigante.
Nicole, por sua vez, chegou em casa toda molhada, cansada, mas demorou a dormir. Ao contrário de Beatriz, ela sabia muito bem o que estava acontecendo e conseguia prever aonde aquilo tudo poderia chegar. Só não sabia se estava disposta a se deixar levar. Desconhecia o que se passava na cabeça de Beatriz. Aliás, na verdade, até as onze horas daquela noite ela não passava de uma figura arrogante, capa de muitas revistas e inacessível. Quase chegou a se arrepender por descobrir que ela não era apenas uma imagem, mas uma mulher de carne e osso, envolvente e passível de se envolver. Foi com esse pensamento que decidira, antes de adormecer, não se aproximar de Beatriz. Seria estritamente profissional.
A terça-feira chegou e, conforme combinado, às onze horas Nicole chegou à Mansão dos Villar. Beatriz notou que ela tentava se manter distante, apesar de não ser rude em momento algum. Imaginou que a culpa poderia ser sua, afinal ela sabia que essa história toda de ser rica e famosa fazia com que algumas pessoas se mantivessem afastadas, até para não incomodá-la ou serem inconvenientes, como a maioria. O problema é que ela não queria a distância de Nicole e não sabia como nem se deveria demonstrar isso! Tentou, a princípio, se manter na sua, supondo que poderia ser que a própria Nicole não desejasse ser incomodada. Afinal, ela ainda lhe parecia meio inatingível, como no começo.
Porém, quando as duas começaram a treinar rolamentos e outros golpes no chão, a proximidade foi inevitável, até fisicamente falando. Nicole pretendia ensiná-la algumas técnicas de imobilização. Para tanto, deitou-se no tatame e pediu que Beatriz deitasse por cima dela, num tom até então totalmente impessoal. Beatriz obedeceu e, muito sem graça, deitou-se sobre Nicole, devagar e desconcertada. Não queria machucá-la, afinal era muito maior e mais pesada. Ela sentiu-se estranha e encabulada quando suas pernas ficaram entre as de Nicole, seus seios contra os dela, seus rostos próximos, a ponto de se tocarem...ela tentava se apoiar, meio desequilibrada, com os cotovelos paralelos ao corpo de Nicole, mas, definitivamente, não era para ser assim.
Num ímpeto, Nicole lhe tirou o apoio e puxou seus pulsos para cima de sua cabeça, indicando que ela deveria segurar as mãos de Nicole, que estavam no chão, paralelas ao seu rosto. Nesse momento, a proximidade entre as duas diminuiu de modo que Nicole pode ver o receio nos olhos escuros de Beatriz. Ela também se sentiu desconcertada e, imediatamente, mudou de posição, encaixando suas pernas nas de Beatriz e rolando por cima dela, alterando as posições. Agora era Nicole quem estava por cima e segurava os punhos de Beatriz de maneira firme, deixando-a totalmente imóvel.
- É assim. Limitou-se a falar, com a respiração entrecortada.
- Desculpe...não sabia como deveria ficar, nem tocar em você. Não estou acostumada...Beatriz se explicava, sentindo-se envergonhada e exposta. Sua excitação deveria estar estampada em seus olhos, em sua boca entreaberta e Nicole deveria estar percebendo.
- Tudo bem, eu deveria ter feito com você antes – Nicole se sentia constrangida...não deveria ter se desconcentrado, mas a atração que sentia por Beatriz estava ficando forte, muito forte e ela estava nervosa com isso – acho que por hoje foi o suficiente. Disse isso e em seguida levantou-se e foi embora.
Beatriz tentou não ficar chateada, mas era impossível. O que diabos estava acontecendo com ela? O que diabos se passava na cabeça de Nicole? Será que ela também sentia o mesmo? Mas, afinal, o que ela própria sentia? Ela não conseguia definir! Poderia apenas ser algum sentimento relacionado ao desejo de controle, já que Nicole se mostrava tão dominadora quanto ela. Poderia ser um jogo de egos, uma competição entre duas pessoas igualmente prepotentes e difíceis de se dobrar. Mas, em seu íntimo, sentia-se frustrada como uma pessoa tentando seduzir alguém que parecia inacessível. Nossa! Ela mesma se surpreendeu com sua conclusão! “Eu não estou me reconhecendo, não sou lésbica para pensar numa coisa absurda destas!”.
O relógio da cabeceira marcava duas horas da manhã quando o telefone de Nicole tocou:
- Nicole? É Beatriz... – foi quando ela percebeu que era de madrugada! Beatriz ainda não tinha conseguido dormir, imaginando o que faria e havia decidido cancelar a aula de quarta-feira...estava tão desnorteada e insone que sequer percebeu a hora e a inconveniência de seu telefonema.
- Eu sei que é você...respondeu Nicole em voz baixa, sonolenta, mas de um jeito tão sedutor, mesmo sem qualquer intenção, que fez Beatriz desejar estar exatamente ali, ao lado dela....mais um motivo para desmarcar a aula!
- Desculpe ligar a esta hora, nem percebi o quanto já era tarde. Só queria dizer que... – fez uma pausa, ainda na dúvida, mas não demorou – vou ter que viajar com urgência amanhã e não sei quando poderemos ter nossa próxima aula. Assim que eu chegar, te ligo para remarcarmos. Volte a dormir... E desligou o telefone, deixando Nicole com a sensação ruim de que o elo poderia ter começado a se romper, como ela esperava que acontecesse.
Seus pensamentos foram interrompidos bruscamente pela voz de Marcela:
- Quem era? Que hora inconveniente para alguém telefonar!!
- Não lhe interessa! – Respondeu Nicole secamente e virou-se, fingindo voltar a dormir.
Mas nem tão cedo o sono a tomou. Nos minutos seguintes, lembranças de grande parte de sua vida começaram a passar pela sua cabeça. Voltou ao dia em que conhecera Marcela. Lembrou dos dramas pessoais que viveram até conseguirem aceitar que estavam apaixonadas. No começo, tudo era explosivo, excitante e até romântico, o que não havia encontrado até então com homem nenhum e acreditava que sequer existiria. Mas, depois do primeiro ano de relacionamento, Marcela mostrou-se insatisfeita. Era extremamente problemática, egocêntrica, possessiva e, o pior de tudo, narcisista ao extremo. Adorava ser admirara, chamar a atenção e não resistia ao desejo de sempre estar conquistando todos ao seu redor. No início, porém, se contentava com as olhadas que recebia nas boates e bares gays que começaram a freqüentar, graças à sua insistência. Depois, já não era o bastante...
A primeira traição, com certeza, fora a mais absurda. Havia sido num banheiro de uma das boates. A própria Marcela contara, em seguida, pedindo desculpas e chorando compulsivamente. Depois da primeira, as outras foram menos dramáticas para ambas. Marcela já não sentia tanto remorso e Nicole já não a amava tanto.
Decidiram terminar várias vezes, mas voltavam no dia seguinte. Da última vez, há exatos seis meses, Nicole jurou que seria definitivo. Como nenhuma das duas estava em condições financeiras de se mudar e arcar sozinha com aluguel decidiram que ainda morariam juntas. Mas Nicole não suportava escutar nem sua voz, quanto mais as cobranças que ainda existiam da parte de Marcela. O ego não a permitia enxergar que já não era o grande objeto de desejo de Nicole e, por sito, sempre que podia a atormentava. A noite foi longa e quando finalmente Nicole adormeceu, o fez embalada pelas imagens de Beatriz.
Beatriz passou o resto da semana sem ligar e realmente viajou, mas não por obrigações ou negócios, como havia dito a Nicole. Fora por necessidade de pensar sobre sua vida e seus novos sentimentos. Sempre viajava sozinha e os quartos dos hotéis, por maiores que fossem, jamais lhe trouxeram a sensação de solidão. Mas daquela vez estava sendo diferente. O tempo todo desejava companhia. Mas não qualquer uma. Desejava e imaginava Nicole em cada canto do quarto e, para aumentar sua paranóia, em sua cama. No último dia decidira: iria encarar o que estava sentindo, afinal não era criança, tampouco covarde. Teria Nicole do jeito que ela queria e não se culparia mais nenhum segundo por isso. Voltou ao Rio pela manhã. Ao chegar, a primeira coisa que fez foi ligar para a professora. O telefone demorou um pouco para ser atendido e, a cada chamada, seu coração apertava de ansiedade. Finalmente a espera cessou quando a dona do celular o alcançou e atendeu:
- Alô...Nicole?
- Oi...Beatriz! – respondeu Nicole, com a voz ofegante, pois estava no meio de uma aula. Tentando se recompor e igualmente ansiosa, perguntou preocupada – Você já ligou muitas vezes?
- Não, essa e a primeira...– respondeu Beatriz com um sorriso...sentia-se feliz pelo simples fato de escutá-la – liguei para dizer que cheguei hoje e queria te encontrar, concluiu num tom enigmático, mas de quem, inconfundivelmente, não aceitaria uma recusa como resposta.
- Tudo bem. Na mesma hora?
- Não, Nicole, na verdade gostaria de te encontrar para almoçarmos. Respondeu Beatriz rispidamente, numa tentativa de não deixar espaço para um “não”. Tentou fazer com que a proposta soasse num tom casual, mas, do outro lado da linha, sentia as faces queimando. Nunca havia se imaginado fazendo uma coisa dessas!
Nicole não entendeu direito o porquê daquilo e nem ousou imaginar o que se passava na cabeça de Beatriz, limitou-se a aceitar o convite e ver no que ia dar.
Ao meio-dia, quando Nicole já se direcionava para a portaria, conforme o combinado, parou em frente à sua academia o porshe preto de Beatriz, que, por trás dos vidros escuros, suava frio de nervosismo e ansiedade. Nicole havia tomado um banho e colocado a única roupa que tinha levado. Nada formal, pois não costumava usar roupas assim, muito menos no dia-a-dia.
- Desculpe os trajes, não esperava um “encontro” com você a esta hora do dia... – justificava-se Nicole, abrindo a porta e entrando no caro, enquanto examinava Beatriz que estava impecavelmente arrumada e bonita.
- Não se preocupe. Só estou assim porque vim direto do escritório. Além do mais, você está muito... – Beatriz fez uma pausa, percebendo as pernas torneadas de Nicole sob a calça jeans clara, levemente justa, que modelava com sutileza seus quadris, os ombros largos, esculpidos, definidos e à mostra graças à camiseta de malha preta que se amoldava a seus seios de maneira firme, extremamente casual e sensual... – muito bem! Limitou-se a este comentário, reprimindo os pensamentos, para perguntar em seguida se ela gostava de comida japonesa. Diante da resposta afirmativa, rumou para um restaurante do outro lado da cidade.
O ambiente era maravilhoso, aconchegante e típico como nenhum outro que Nicole havia ido. Um dos garçons cumprimentou as duas e saldou Beatriz como se já a conhecesse, conduzindo-as a uma salinha reservada. Nicole imaginou que Beatriz deveria freqüentar aquele restaurante, inclusive aquela salinha, levando sempre “convidados”. Uma pontada de ciúme enrugou-lhe a testa, sem que ela pudesse reprimir.
No interior da sala havia apenas uma mesa baixa e quadrada, sob a qual repousava um tapete de mesmo formato, apenas um pouco maior, e algumas almofadas para que se sentassem. E o fizeram. Uma de frente para a outra. O ambiente era tão intimista que Nicole sentia-se um pouco sufocada. As pernas das duas se tocaram por baixo da mesa e, imediatamente, ambas as afastaram, para, em seguida, rirem. Era visível o constrangimento. Cada uma, intimamente, sabia o porquê. Beatriz quebrou o silencio. Olhando nos olhos de Nicole, falou:
- Acho que você deve estar estranhando meu convite – respirou e continuou com cautela, não queria parecer um cafajeste dando uma cantada barata em uma moça, tampouco se sentia assim...ela desejava apenas aproximar-se de Nicole, saber o que se escondia por trás da mascara de ela insistia em colocar, mantendo-se sempre distante, arredia – Não tenho muitos amigos, Nicole. Saio muito pouco e me divirto menos ainda. Gosto da sua companhia...sei lá, pensei que, talvez, pudéssemos conversar, nos aproximar...você leva uma vida tão diferente da minha que queria saber mais sobre ela...nossa, é estranho tentar te convencer de que tenho algum motivo para estar aqui...com você! – Ela falou demais e de forma entrecortada, talvez devido aos primeiros goles de saque ou, simplesmente, porque não tinha mais nada a perder. Olhava para Nicole esperando sua reação.
- Eu entendo perfeitamente. Também gosto de estar com você...apenas jamais pensei que você se interessasse em conversar comigo, a não ser profissionalmente.
Nicole, a princípio, media as palavras. Não queria deixar as coisas muito claras, afinal nem sabia se estava realmente entendendo o que Beatriz dizia ou sentia. Entretanto, a esta altura do campeonato, também não tinha nada a perder, concluía ela.
Seu relacionamento com Marcela estava insuportável e tudo o que ela precisava estava ali, à sua frente: uma mulher linda, interessante, que, apesar da postura de inacessível, tentava dizer-lhe exatamente o inverso, que era vulnerável, que também tinha desejos, que também corava de vergonha, que também se sentia insegura e, o melhor, que tinha curiosidade sobre sua vida! E ela satisfaria sua curiosidade, afinal de contas, porque não? Continuou...
- Beatriz, a vida que tenho é simples, muito simples. Trabalho desde os 15 anos com meu pai. Ele tinha uma academia dessas de fundo de quintal e eu sempre adorei participar da vida dele, por isso cuidei de aprender tudo que ele me ensinava. Ele era fisiculturista e professor de artes marciais. Eu o ajudava na academia e, em troca, tinha toda sua atenção quando não estávamos lá, até porque não havia outro irmão ou irmã para competir comigo e minha mãe morreu quando eu tinha três anos... – nesse instante Beatriz pôde ver, pela primeira vez, fragilidade nos olhos de Nicole que, entretanto, continuou – Bem, me formei com sacrifício, porque na época ele já estava doente e eu não podia deixar a academia fechar as portas. Tive que conciliar trabalho e faculdade, o que não foi nada fácil. Ele morreu dois anos depois de me ver formada. Infelizmente, no ano seguinte a academia foi por água a baixo. Não consegui manter o equilíbrio sozinha, sem dinheiro e sem meu pai. Fui ser personal trainer nas academias da vida e, há pouco tempo, finalmente consegui montar a minha. Estou endividada até a morte e, por isso, tenho que continuar a dividir meu apartamento com uma pessoa com a qual me relacionei durante alguns anos. O resto você já sabe. Desculpe se falei demais.
Beatriz a observava em silêncio. Cada vez se sentia mais intrigada por Nicole e a admirava por tudo. Limitou-se, porém, a perguntar:
- Você ainda gosta dela?
- Dela? – por essa pergunta Nicole não esperava e corou.
- Da mulher com a qual você mora.
- Mas eu não disse que era uma mulher...respondeu Nicole sorrindo.
- E não é? Respondeu Beatriz rindo também.
- Sim.
- Sim, você gosta? Ou sim, ela é uma mulher?
- Sim, ela é uma mulher...e não, eu não gosto. Na verdade não agüento mais nossa convivência, mas...
- Mas...?
- Eu espero poder ir morar em outro lugar em breve...e espero também que você não fique desconfortável comigo, daqui por diante – Concluiu olhando-a de maneira séria.
- Nicole, eu não sou preconceituosa. Os únicos tipos de pessoas que desprezo são os repórteres e fotógrafos...até já tive vontade de ir a uma boate gay, sabia?
- Nossa, Beatriz Villa numa boate gay? Nem consigo imaginar a confusão que seria! – disse esboçando um sorriso.
- Será?
- Claro! Olhe só para você! – Disse Nicole, observando-a e deixando-a, ao mesmo tempo, sem graça, apesar de satisfeita! Nicole a apreciava.
- Quer me convidar e ver o que acontece?
- Não sei se daria certo...acho que prejudicaria sua vida.
- Ora, Nicole, eu não preciso ir assim! Posso usar alguns artifícios...e então? Vamos?
- Hoje vai ter uma festa numa das boates que freqüento. Todas as pessoas que conheço estarão lá...estava pensando em dar uma passada...mas, não sei.
- Ora, vamos...deixe que eu dou um jeito de não ser reconhecida. Que horas te pego?
Às onze e trinta, Nicole chegou à casa de Beatriz, como o combinado. Achou melhor ir até lá do que deixar Beatriz ir buscá-la em casa, afinal Marcela poderia fazer uma das cenas desagradáveis, com as quais Nicole nunca se acostumaria.
Na sala enorme da casa de Beatriz, Nicole esperava enquanto observava alguns quadros e esculturas que preenchiam os espaços. Ela vestia uma calça preta, um pouco folgada, abaixo da cintura, uma blusa de tecido branco, com uma gola em V e mangas três-quartos, estilo anos 60, um colar discreto, de contas pequenas e uma sandália alta, que a deixava mais esguia. Os olhos estavam pintados, o que fazia com que parecessem mais puxados e franjados, nos lábios apenas um brilho, que os deixavam bem naturais e com a aparecia de mais macios. Os cabelos loiros e curtos continuavam meio desalinhados, dando-lhe um ar jovem e sexy.
Do topo da escadaria, Beatriz a observava em silêncio, admirando-a. Quando fez menção de descer o primeiro degrau sua presença fora notada por Nicole que, virando-se, deparou-se com uma imagem impar: Beatriz estava vestida com uma roupa negra, ajustada com perfeição em seu corpo, com um sobretudo igualmente negro por cima. Os olhos estavam realçados por uma maquiagem escura, os cabelos totalmente soltos, desciam pelas vestes, confundido-se com as mesmas, nos lábios um batom igualmente escuro que contrastava com a pele branca, salientando os lábios cheios, as sobrancelhas arqueadas, desafiadoras e, para um arremate final na “fantasia”, ostentava como adereços algumas correntes prateadas, uma pulseira de couro preta e uma bota que subia até o meio da perna. Ela estava totalmente diferente e deslumbrante!
- Nossa! Você está...incrível! – Disse Nicole, de boca entreaberta.
- Eu disse que daria um jeito, não foi? Podemos ir?
- Claro...mas olhe, Beatriz, talvez em algum momento eu tenha que pegar sua mão ou coisa parecida, para fingir que estamos juntas evitando problemas para você. Vai ser um caos quando você chegar! – Tentava justificar Nicole, visivelmente preocupada com o assedio que, com certeza, Beatriz sofreria.
- Por mim, tudo bem...afinal, você é ou não é a responsável pela minha segurança? – Esboçou um sorriso, gostando da idéia e ainda mais da cara de envergonhada de Nicole.
Na frente da boate estava um pandemônio. A noite prometia. A rua estava totalmente lotada! Havia gente por todos os lados e Nicole respirou fundo, ainda dentro do carro, perguntado se Beatriz queria desistir. A resposta negativa veio em seguida, firme e uníssona. “Não”, ela não queria desistir...não desistia de nada! Nunca!
Quando finalmente as duas entraram na Boate foi exatamente como Nicole havia previsto. Todos se voltaram para o “casal”. Elas realmente chamavam atenção. Muita atenção, principalmente juntas! Instintivamente Beatriz procurou a mão de Nicole e a segurou, puxando-a mais para perto.
- Tudo bem? – Perguntou Nicole, imaginado que Beatriz estaria constrangida diante de tantos olhares.
- Tudo...respondeu Beatriz com um sorriso lindo, que fez com que Nicole desejasse ainda mais que elas realmente fossem namoradas.
- Vamos para aquele lado que esta menos tumultuado.
A boate estava lotada e noventa por cento do público era feminino. Algumas mulheres estavam produzidíssimas e eram femininas, sensuais, delicadas. Outras, com estilo bem diverso, eram mais discretas, naturais e se vestiam mais à vontade. Ainda havia aquelas mais masculinas, com jeito de menino ou porte másculo. Enfim, tinha para todos os gostos.
A princípio Beatriz achou um pouco estranho ver mulheres se beijando enquanto dançavam de maneira ousada, mas aos poucos começava a se sentir excitada com o que presenciava. Quando alcançaram o canto da boate, Nicole encontrou duas amigas, que as convidaram para sentar na mesma que ocupavam. A música era muito alta e Nicole esforçou-se para apresentar Beatriz:
- Oi, meninas, essa aqui é Bia.. – e nem mais uma palavra para classificar sua companhia. Cuidou de abreviar-lhe o nome para evitar que a reconhecessem.
- Oi! – responderam ao mesmo tempo as duas, com um sorriso estampado de aprovação.
- Bia, esta é Vanessa e esta, Raquel.
- Prazer em conhecê-las.
Ao ouvido de Nicole, Vanessa cuidou de comentar:
- Nossa! Onde você encontrou essa beldade? Simplesmente maravilhosa!
- É verdade...
- Amiga, infelizmente creio que sua noite vai ter alguns atropelos. Marcela está aqui e já tomou algumas doses a mais. Vai ser um inferno quando ela te ver...ainda mais com sua companhia.
Nicole deu a notícia imediatamente a Beatriz para prepará-la caso houvesse alguma cena da parte de Marcela, mas ela não pareceu preocupar-se e chamou Nicole para dançar. Na pista de dança, ao som de um tecno alto e vibrante, as duas começaram a dança. Separadas, elas se observavam mutuamente, alheias a todos os olhos que as fitavam. Beatriz parecia dançar para ela e Nicole não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Passaram alguns minutos sem trocarem uma palavra, apenas olhares. Aos poucos, iam ficando mais próximas. Beatriz observava, latente de desejo, o corpo de Nicole, já suado, movendo-se juntamente com seus músculos, sob as vestes. As duas estavam em prefeita sincronia. Mesmo separadas por alguns centímetros, uma sentia o calor do corpo da outra e se desejavam mutuamente. O momento foi quebrado por uma mão no ombro de Nicole, seguida de uma voz muito conhecida. Era Marcela:
- Ora, ora, vejam só quem está aqui...Se não é a minha querida Nicole! Que prazer imenso te encontrar. Desde ontem à noite que não nos vemos, não é mesmo?
- Marcela, poupe-nos de uma cena desagradável, sim? Esta aqui é Bia e esta – disse, fazendo menção a mulher de olhos verdes que as fulminava – é Marcela.
- Ola, Bia! É um prazer conhecê-la – respondeu Marcela num tom irônico, beijando-lhe o rosto, para em seguida, falar próximo ao ouvido de Beatriz – se quiser, pode-se juntar a nós, em nossa cama. Você não é de se jogar fora...Nicole tem bom gosto, isso eu não posso negar, finalizou olhando-se de cima a baixo, numa clara exibição da beleza que sabia possuir.
- Agradeço o elogio mas sinto rejeitar o convite...não a divido com ninguém – respondeu Beatriz sem sair do salto, sem perder a pose, com muita classe e sensualidade, fazendo Marcela odiá-la mais ainda por isso.
- É uma pena... – rosnou Marcela entre os dentes antes de sair trôpega, escorando-se nas pessoas ao seu redor.
- Desculpe-me, Beatriz...ela tem o dom de ser desagradável.
- Nossa...percebi. Mas vamos esquecer.
Nicole não conseguiu disfarçar a satisfação de ouvir Beatriz falar que não a dividiria com ninguém, apesar de saber que poderia ter sido apenas uma forma polida de agredir Marcela. Intimamente ela rira de satisfação.
De volta à mesa, Vanessa e Raquel comentaram que Marcela havia passado por lá enlouquecida e quase as agredido, perguntando quem era Bia, o que ela pensava que era, que ligação tinha com Nicole. Neste momento, ambas olharam para Nicole, num ar de repergunta. Percebendo o embaraço de Nicole para responder, Beatriz se antecipou. Chegando mais perto, enlaçou os dedos entre os cabelos curtos de Nicole, puxando sua cabeça e, de maneira sensual e provocante, deu-lhe um beijo visivelmente de amantes. Nicole ficou atordoada e sentiu suas faces ficarem vermelhas. O sangue subiu-lhe a cabeça. Depois de alguns segundos. Beatriz a libertou e a olhou de maneira marota, dizendo:
- O que vocês acham? – e riu, diante da cara das duas e, principalmente, da expressão de Nicole.
Mas a surpresa não foi apenas de Nicole. Do outro lado da pista de dança, Marcela a tudo assistira e já totalmente tomada pelo ódio e pelo álcool, dirigiu-se à mesa. Nicole levantou-se imediatamente, esperando o absurdo que viria em seguida e, como previra, Marcela puxou-a pelo braço, esbravejando e chorando compulsivamente.
- Pelo amor de Deus, Nicole, você não pode fazer isso comigo...simplesmente não pode!
Nicole, acostumada com a insensatez de Marcela, limitou-se se soltar das mãos que, de maneira selvagem, a seguravam, dizendo:
- Marcela, você está bêbada!
Saiu em seguida, de mãos dadas com Beatriz que assistia imóvel à deprimente e nada comovente cena. No carro Nicole se desculpou.
- Desculpe-me, Beatriz, deveríamos ter ido quando eu soube que ela estava lá!
- E perder a melhor parte da festa? – falou Beatriz, sorrindo e em tom enigmático, deixando Nicole a se questionar a que parte exatamente ela se referia. Com certeza, para Nicole, a melhor parte fora a do beijo. Há muito tempo ela não se sentia tão envolvida por alguém.
Beatriz, após muita insistência, convenceu Nicole de que seria melhor se ela dormisse em sua casa. Afinal, depois do acontecido, não seria bom encontrar Marcela, que, àquela altura, já devia estar em casa, esperando-a. Além do mais, as duas tinham bebido um pouco também e seria perigoso para Nicole atravessar a cidade de carro, sozinha, naquela hora da noite.
Chegaram por volta das duas horas e Beatriz sugeriu que fossem à sala de ginástica, tomar um último drinque na piscina. Com a arrogância de sempre, acordou Alfredo para servi-las e, ainda sonolento, o bom e velho mordomo preparou no deque da piscina interna uma mesa de frios, um balde de gelo e uma champanhe. Nicole estava confusa, mas deliciada com a idéia de tomar um banho naquela água térmica, com Beatriz, mesmo que não acontecesse nada.
- E então, vamos entrar na água? – Perguntou Beatriz, tirando as botas.
- Vamos...limitou-se a responder Nicole que, só então, percebeu que Beatriz estava disposta a despir-se por inteiro e esperava dela o mesmo.
Aos poucos, Beatriz tirava a roupa negra, revelando a brancura de seu corpo aos olhos de Nicole, que assistia petrificada. “Ela é perfeita!”, pensava a observadora. Parecia esculpida à mão num mármore raro e alvo como a neve. As pernas eram longas, torneadas, os seios firmes, pequenos, rosados, já intumescidos pelo frio, o ventre, coberto por uma penugem fina e sedosa. Ela parecia sem nenhuma vergonha ou pudor. Despia-se com naturalidade, de olhos quase fechados. Só não imaginava Nicole que, por dentro, Beatriz já queimava de desejo, só de sentir o olhar pousado sobre si, enquanto se livrava das roupas. Lentamente, entrou na água e olhou para Nicole, chamando-a:
- E você? Desistiu?
- Não.
Rapidamente, Nicole tirou as próprias roupas, tentando não pensar muito no que fazia, nem no que se passava na cabeça de Beatriz.
“Ela era mais bonita ainda despida”, pensava, agora, Beatriz, embevecida. Dentro d’água, as duas mantiveram uma certa distância. Beatriz encostou a cabeça numa das bordas e deixou o resto de seu corpo flutuar, exibindo parte dos seios e do ventre. De olhos fechados, falou:
- Desculpe pelo beijo que roubei de você. Vi que te deixei sem graça. – Evitava abrir os olhos. Se abrisse, talvez não tivesse coragem de continuar... – Não sei o que aconteceu, talvez a bebida, o ambiente, o ciúme de Marcela, a vontade de provocá-la ou de provocar você! – Somente nesse momento Beatriz abriu os olhos. Nicole continuava próxima, mas sem tocá-la.
- O que, finalmente você quer, Beatriz? Brincar comigo?
- Não, Nicole, não quero brincar com você...eu quero você! Você ainda não percebeu?
Nesse momento, Beatriz colocou-se de frente para Nicole que não arredou um centímetro. Queria ver até onde ela iria. Até onde ela conduziria a situação. Beatriz, percebendo que Nicole não tomaria a iniciativa, puxou sua mão suavemente e a emergiu na água, conduzindo-a por entre suas coxas que, sutilmente, se abriram esperando o toque. Nicole, olhando-a nos olhos, percorreu o caminho indicado lentamente, vendo o desejo crescer nos olhos negros de Beatriz, que já os fechava de desejo. Ao tocar os pêlos do sexo de Beatriz, Nicole deteve seus dedos. Com suavidade, massageou-lhe as coxas, que se abriram mais, desta vez sem muita sutileza. Ela estava sedenta. Nicole, percebendo a ansiedade e sem conseguir resistir a seu próprio desejo, penetrou com vigor o sexo de Beatriz, que recebeu seus dedos com uma umidade inconfundível. Ela latejava e Nicole aprofundou o toque, com mais vigor, fazendo-a gemer e se contorcer. Só então, sem conseguir mais se segurar, colou o corpo ao de Beatriz. Sentiu os próprios seios juntarem-se aos dela, o próprio ventre roçar o de Beatriz e sua própria umidade, inundando-lhe ainda mais.
- Eu esperei muito por isso... – Beatriz falava-lhe ao ouvido, sensualmente, enquanto beijava-lhe a orelha, lambia, mordia, entre gemidos que se tornavam mais cálidos e ofegantes a cada instante.
Com as pernas encaixadas, Nicole cuidava de afundar-lhe os dedos ritmadamente, de maneira firme. Sentindo o corpo de Beatriz estremecer, tomou-lhe um dos seios na boca e o sugou com sofreguidão e vigor. Quando sentiu que estavam à beira de mais um gozo, suspendeu Beatriz até a borda da piscina, indo juntar-se a ela, em seguida. Ela queria mais...queria sentir o gosto de Beatriz. Queria provar a umidade que brotava de seu ventre. E assim o fez. Percorrendo o corpo de Beatriz com beijos sedentos, tomou-lhe o sexo com a boca ávida e, após lamber-lhe internamente, penetrou-a com a língua. Beatriz jamais sentira tamanho prazer e gemia descompassadamente, quase perdendo o fôlego. Gozou na boca de Nicole sem qualquer pudor. Não havia espaço para isso.
Sem esperar mais do que cinco segundos, Beatriz virou-se e deitou-se sob Nicole, beijando-lhe a boca e sentindo seu próprio gosto nos lábios vermelhos, marcados pelo contato frenético com os pelos de seu ventre. Ela a queria por completo! E, sem muita experiência, encaixou-se no corpo de Nicole, entre suas pernas, esfregando seu sexo no dela. As umidades se misturavam, se confundiam. As duas estavam em sincronia e moviam-se de maneira quase bruta. Beatriz, sem se conter, não teve muito receio de sua inexperiência. Afastou as pernas de Nicole, que cedeu sem qualquer hesitação, e penetrou-a maravilhada, fazendo-a gozar forte, logo em seguida.
Cansadas, as duas continuavam deitadas, uma sob a outra. As pernas ainda entrelaçadas. As bocas unidas, ainda se exploravam. Dessa vez, sem pressa...apenas desejo. Durante toda a noite, se amaram diversas vezes. Mas trocaram o deque frio da piscina pela cama enorme e macia de Beatriz Villar.
No outro dia, Nicole observava Beatriz enquanto ela, exausta, ainda dormia. A despertou com um beijo. Diante dos olhos escuros de Beatriz, Nicole se perguntou se ainda teriam outra noite daquelas ou se tudo não passara de uma aventura. Como resposta, Beatriz lhe falou:
- Por mim, a partir de hoje você assume a gerência da segurança das empresas, de minha casa e de minha vida. O que acha? – Fez silêncio, esperando uma resposta.
- Com uma condição... – respondeu Nicole, igualmente séria.
- Qual?
- Você me pagará apenas com favores sexuais, em sua cama – rematou Nicole, mal se contento de felicidade.
- Feito!
Entre beijos cada vez mais intensos, Beatriz pensava no quanto a “dívida” que contraíra com Nicole era enorme, afinal ela havia lhe resgatado de uma vida vazia e lhe dando mais prazer e felicidade do que imaginava existir. Por isso, precisava pagar-lhe todos os dias. E, como o acordado, enlaçou-lhe novamente a cintura com suas longas pernas, puxando-a para si. Nicole, por sua vez, só teve tempo de pensar no quanto Beatriz Villar era realmente poderosa...e em todos os sentidos! Nada melhor, portanto, do que ser sua eterna credora.
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