Ela era só, ou quase só. Disso eu me lembro. Lembro-me também de seu quintal e de seus gatos, suas únicas companhias. Não me lembro de seu rosto, de seus gostos, da cor de seus olhos, mas me lembro de seu olhar. Era um olhar cansado, opaco feito as porcelanas que enfeitavam as milhares de mesas que guardava em casa. Nenhuma delas – nem as porcelanas, nem as mesas – combinavam com nada, nem entre si, mas davam àquela mulher alguma espécie de alegria, alguma espécie de riqueza, alguma espécie de saudade, mesmo sem saber do que ou porque.
As alegrias poderiam ser atribuídas às porcelanas que, apesar de já foscas, ainda ostentavam algumas cores variadas e uma delicadeza de se admirar. E como ela admirava a delicadeza! Ela sabia, mais do que ninguém, captar a delicadeza das coisas, das mínimas coisas, que, delicadamente ou não, cruzavam seu caminho. As captava num trabalho de caçador, como quem capta pingos de chuva quando sente a garganta fechar de sede, como quem capta a luz de um minúsculo vaga-lume, há mil léguas de distância, para se livrar da escuridão. Captava como mestre a delicadeza que lhe faltava, pois ela era bruta e, por mais que tentasse parecer gentil, fina, polida, servindo, quem sabe, um café às visitas escassas que apareciam de ano em ano ou talvez bordando toalhinhas de rosto para presentear no Natal algum conhecido – já que a ninguém chamava de amigo –, seu fingimento não prosperava. Suas mãos calejadas a denunciavam. Por isso, trazia tudo quanto podia de delicado para dentro de casa. Daí a quantidade infinda de porcelanas, para as quais ela olhava fixamente, diariamente, numa tentativa de, quem sabe, captar-lhes alguma delicadeza. E sentia alguma felicidade em pensar que poderia.
A sensação de riqueza que lhe acalentava, continuo arriscando, poderia ser atribuída, não às mesas, nem às porcelanas que ao seu redor de amontoavam, mas à quantidade de ambas e de tantas outras tralhas que preenchiam os mais escondidos espaços de sua casa! Não havia mais lugar para nada e ela gostava disso. Sentia-se menos só, fosse pela companhia dos móveis, dos enfeites sobre os móveis ou, simplesmente, porque a ausência de espaço lhe permitia a desculpa de que ali não caberia mais nada...nem ninguém! Muito embora ela ainda continuasse a levar coisas pra casa para preencher o vazio interno que lhe consumia...
A saudade, nem me arrisco a pensar de onde vinha, nem porque vinha, já que, em todas as fotos que ostentava penduradas na parede, parecia igualmente triste, mesmo quando sorria, igualmente só, mesmo quando cercada de coisas e até mesmo de pessoas, igualmente velha, mesmo em sua juventude. Saudade de que deveria ter afinal? Até hoje me pergunto e não resisto, arriscando mais uma vez: talvez do tempo em que havia a esperança de envelhecer e sentir saudade de alguma coisa boa que não veio...
E assim, a vida passou por ela; e assim, nessa solidão absurda que lhe restou, ela sentira doer mais forte a vida, quando lhe passava, do que a vida, quando lhe deixou.
Era silenciosa e discreta. Com o mesmo silêncio e discrição, partiu. Alguns souberam de sua morte, poucos sentiram sua falta, mas muitos foram ao enterro. Justifica-se: havia, já naquela época – e, parece-me, desde sempre –, a chamada “herança”, chamariz tantas vezes mais eficaz que sentimento.
Das duas companhias vivas que tivera – os gatos e o quintal –, as únicas capazes de sentir realmente algo – o que exclui desde logo os móveis e seus enfeites–, os gatos foram os que sentiram menos. Já rondavam por outros telhados, antes mesmo de sua partida e, com a mesma audácia de sempre, já comiam outros files em outras mesas, com uma única diferença: agora tinham que roubá-los. Mas isso não se mostrou grande obstáculo para a alma felina e arredia.
Já o quintal, esse sim, sentiu e chorou sua falta. Não podia mover-se e por isso – não sei bem se só por isso e não quero soar injusta ao afirmá-lo – não pôde abandoná-la em vida, preso que estava pelas raízes que aprofundavam sua existência. Foi, portanto, o único a acompanhá-la, denso, fechado – não sei se por fidelidade ou raiz – até seu último dia, sua última dor. No dia seguinte, as gotas de orvalho, embora mesquinhas, denunciavam a tristeza. E era tristeza, a sua tristeza, apesar de miúda. Eram tais gotas as lágrimas que o velho quintal podia chorar. E chorou.
Porém, já no fatídico “dia seguinte”, os galhos pendentes para o muro vizinho cuidaram de denunciar a antiga intenção ostentada também pelo quintal, que outra não era senão de escapar. E escapou. Afina, já não havia quem podá-lo, quem impedi-lo, quem censurá-lo por abandonar sua “dona”. Mas ele, ao menos, “esperou” ela partir e ela, de algum lugar, com a mesma “ingenuidade” de sempre, agradeceu por isso.
As alegrias poderiam ser atribuídas às porcelanas que, apesar de já foscas, ainda ostentavam algumas cores variadas e uma delicadeza de se admirar. E como ela admirava a delicadeza! Ela sabia, mais do que ninguém, captar a delicadeza das coisas, das mínimas coisas, que, delicadamente ou não, cruzavam seu caminho. As captava num trabalho de caçador, como quem capta pingos de chuva quando sente a garganta fechar de sede, como quem capta a luz de um minúsculo vaga-lume, há mil léguas de distância, para se livrar da escuridão. Captava como mestre a delicadeza que lhe faltava, pois ela era bruta e, por mais que tentasse parecer gentil, fina, polida, servindo, quem sabe, um café às visitas escassas que apareciam de ano em ano ou talvez bordando toalhinhas de rosto para presentear no Natal algum conhecido – já que a ninguém chamava de amigo –, seu fingimento não prosperava. Suas mãos calejadas a denunciavam. Por isso, trazia tudo quanto podia de delicado para dentro de casa. Daí a quantidade infinda de porcelanas, para as quais ela olhava fixamente, diariamente, numa tentativa de, quem sabe, captar-lhes alguma delicadeza. E sentia alguma felicidade em pensar que poderia.
A sensação de riqueza que lhe acalentava, continuo arriscando, poderia ser atribuída, não às mesas, nem às porcelanas que ao seu redor de amontoavam, mas à quantidade de ambas e de tantas outras tralhas que preenchiam os mais escondidos espaços de sua casa! Não havia mais lugar para nada e ela gostava disso. Sentia-se menos só, fosse pela companhia dos móveis, dos enfeites sobre os móveis ou, simplesmente, porque a ausência de espaço lhe permitia a desculpa de que ali não caberia mais nada...nem ninguém! Muito embora ela ainda continuasse a levar coisas pra casa para preencher o vazio interno que lhe consumia...
A saudade, nem me arrisco a pensar de onde vinha, nem porque vinha, já que, em todas as fotos que ostentava penduradas na parede, parecia igualmente triste, mesmo quando sorria, igualmente só, mesmo quando cercada de coisas e até mesmo de pessoas, igualmente velha, mesmo em sua juventude. Saudade de que deveria ter afinal? Até hoje me pergunto e não resisto, arriscando mais uma vez: talvez do tempo em que havia a esperança de envelhecer e sentir saudade de alguma coisa boa que não veio...
E assim, a vida passou por ela; e assim, nessa solidão absurda que lhe restou, ela sentira doer mais forte a vida, quando lhe passava, do que a vida, quando lhe deixou.
Era silenciosa e discreta. Com o mesmo silêncio e discrição, partiu. Alguns souberam de sua morte, poucos sentiram sua falta, mas muitos foram ao enterro. Justifica-se: havia, já naquela época – e, parece-me, desde sempre –, a chamada “herança”, chamariz tantas vezes mais eficaz que sentimento.
Das duas companhias vivas que tivera – os gatos e o quintal –, as únicas capazes de sentir realmente algo – o que exclui desde logo os móveis e seus enfeites–, os gatos foram os que sentiram menos. Já rondavam por outros telhados, antes mesmo de sua partida e, com a mesma audácia de sempre, já comiam outros files em outras mesas, com uma única diferença: agora tinham que roubá-los. Mas isso não se mostrou grande obstáculo para a alma felina e arredia.
Já o quintal, esse sim, sentiu e chorou sua falta. Não podia mover-se e por isso – não sei bem se só por isso e não quero soar injusta ao afirmá-lo – não pôde abandoná-la em vida, preso que estava pelas raízes que aprofundavam sua existência. Foi, portanto, o único a acompanhá-la, denso, fechado – não sei se por fidelidade ou raiz – até seu último dia, sua última dor. No dia seguinte, as gotas de orvalho, embora mesquinhas, denunciavam a tristeza. E era tristeza, a sua tristeza, apesar de miúda. Eram tais gotas as lágrimas que o velho quintal podia chorar. E chorou.
Porém, já no fatídico “dia seguinte”, os galhos pendentes para o muro vizinho cuidaram de denunciar a antiga intenção ostentada também pelo quintal, que outra não era senão de escapar. E escapou. Afina, já não havia quem podá-lo, quem impedi-lo, quem censurá-lo por abandonar sua “dona”. Mas ele, ao menos, “esperou” ela partir e ela, de algum lugar, com a mesma “ingenuidade” de sempre, agradeceu por isso.
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