sábado, 11 de outubro de 2008

RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo I)

BOA NOITE


Não eram mais apenas os vestígios do mar, levados pelo vento, que invadiam as janelas semi-abertas e de vidro. Definitivamente era a chuva, que começava a cair grossa e inclinada, encharcando inteiramente o piso do bar onde Ingrid estava.

Impávida, permanecia com o olhar vazio e escuro, perdido entre as pessoas que à sua frente se aglomeravam e se moviam, parecendo dançar. A música já não era ouvida. Estava distante demais para ouvir. Escutava apenas o barulho do mar, que estourava em forma de ondas bravias e audaciosas, ensaiando arremessos cada vez mais fortes nas rochas que serviam de murada, erguendo o bar.

Foi preciso que ao sal das gotículas fugidias se misturasse a doçura dos pingos de chuva para que, finalmente, despertasse, captando com os lábios os resquícios daquela mistura. No instante seguinte, as batidas da música eletrônica voltaram a vibrar na cabeça e no piso de madeira que se erguia sobre as palafitas. Logo, os passos daqueles que estavam no meio do salão voltaram a parecer ritmados, possuidores de algum sentido.

Num gesto brusco, antes que a vodka fosse inteiramente inundada, salvou o copo com as mãos longas e frias, ensaiando um gole maior do que o desejado. Sem alternativa, ergueu-se e afastou-se da janela, para que uma das garçonetes a fechasse, dando seqüência aos mesmos gestos com os quais havia vedado as demais, verdadeiros portais que compunham aquele ambiente envidraçado e em forma de meia-lua.

Encostou-se numa bancada e sorveu um outro gole, talvez o último, este sem pressa, apenas amargura. Estava farta daquela vida, daquelas noites que terminavam sempre da mesma forma: os pés sujos de areia, batidos à porta de casa; os sapatos pousados ao lado de um outro par, até então inteiramente desconhecido. Passos até a cama, que passava a ser dividida com uma estranha nos minutos seguintes, até que, numa despedida sem qualquer comoção, o par de sapatos que ladeava os seus partia e nunca mais seria visto.

Aquela noite seria diferente? Certamente não. A vodka era a mesma, a música era a mesma, os rostos eram os mesmos. A chuva era a única novidade e, sequer, estava sendo bem-vinda. As janelas já estavam inteiramente fechadas, o calor passava a deixar o ambiente ainda mais inquietante e os vidros começavam a embaçar, numa reação adversa que tinha o frio do exterior e a respiração ofegante dos visitantes como contraponto.

Na porta de entrada, talvez trazida pela chuva, surgiu uma desconhecida. A mulher, de fato, parecia uma forasteira, diferente em andar e estilo, estranha num ninho de iguais. Desconcertada, ensopada, com a maquiagem parcialmente borrada marcando o semblante pálido, de olhos profundos e um tanto quanto atordoados, pareceu traçar uma linha imaginária até o bar, por onde passou a deslizar em passos precisos, harmoniosos e chamativos. O desconcerto do olhar em contraste com a desenvoltura do andar e do corpo voluptuoso que se movia, enquanto parecia respirar fundo.

Ingrid deu aquele que, de fato, seria o derradeiro gole. Continuou olhando a invasora de soslaio, por dentro do copo, entre o cristal e o gelo. Aquela criatura pareceu-lhe tão intensa e daquele corpo parecia emanar um calor tão explícito que a vodka desceu quente. Em seguida, as mãos longas pousaram o copo sobre a bancada, enquanto a dona do bar voltou a especular a nova cliente.

Com um gesto, chamou Vanessa e lhe pediu para se aproximar da desconhecida, perguntando se precisava de alguma coisa. A garçonete prontamente obedeceu. Mas, num gesto de cabeça, a mulher de preto disse um não incisivo, captado imediatamente pela dona do bar, que continuava a olhar naquela direção.

Erguendo a vista, a intrusa avistou a cabeça loira e alta de Ingrid, que a fitava. Inquisitiva, a mulher arqueou a sobrancelha como se deixasse claro que não queria ser importunada, fosse com gracejos, fosse com garçons. Parecia irritada até mesmo com a educação dispensada por Vanessa, que estava ali simplesmente para servi-la. Sem graça, a garçonete desculpou-se e se afastou, dando a cliente o que ela pedia.

- Deixe-me em paz, foi o que disse – explicava Vanessa à Ingrid.

A dona do bar deu ordem para que nenhum dos garçons se aproximasse da visitante, a menos que fosse chamado. E a mulher arredia logo se sentou à mesa mais distante. Olhando-se detidamente no pequeno espelho que tirou da bolsa, repôs o batom vermelho, com as mãos trêmulas, enquanto parecia ignorar o restante da maquiagem, que também precisava de retoques. Com um aceno de cabeça, chamou Vanessa e lhe pediu uma dose dupla do melhor uísque de que dispusesse a casa. No final da frase, sem erguer os olhos, falou secamente:

- Sem gelo.

E a garçonete questionou para logo se arrepender:

- Mais alguma coisa?
- Se eu quisesse, teria pedido.

“Por que ser tão grossa? O que ela pensa que vai ganhar com isto?”. Ingrid, realmente, não soube responder às perguntas feitas de forma irritada por Vanessa, embora desejasse saber os motivos daquela que, agora, acendia um cigarro, visivelmente aturdida e contrariando os avisos luminosos que a proibiam.

Só então a dona do bar resolveu interceder. Sem qualquer intenção de ser simpática, apenas polida, caminhou até a mesa da desconhecida que, agora, além de misteriosa, lhe parecia extremamente insolente. Alcançando-a, fez o olhar borrado e intenso erguer a vista.

O corpo esguio, sempre vestido com roupas que desciam sem marcar-lhe os contornos, postava-se digno de atenção. A tez branca, o nariz afilado, ao complemento dos trajes, davam-lhe distinção, fazendo-a notória e respeitável em qualquer cenário. Era alta e imponente. Da mesma forma saiu a voz, que não foi amável, apesar do abatimento estampado nos olhos escuros que a fitavam:

- Não é permitido fumar neste ambiente.

Erguendo-se e pegando com a mão extremamente quente a mão fria de Ingrid, a desconhecida, olhando-a no fundo dos olhos, lhe disse com a voz autoritária e envolvente:

- Então saia comigo.

Ao atravessarem a porta principal, a desconhecida fez com que parassem abruptamente, sem explicação. Foi quando, em meio à chuva, surgiu um carro preto, com os vidros igualmente escuros. O pneu dianteiro, ao frear de forma súbita, logo rasgou a folha do jornal que jazia molhada ao chão, marcando o dia vinte de janeiro de dois mil e seis.

A mulher misteriosa abriu uma das portas traseiras do carro, fazendo-a entrar e, agora, era Ingrid a intrusa, dentro do espaço restrito e escuro. Atônita, logo se viu sem rumo, sem juízo, sentada ao lado de uma criatura que sequer a encarava. Tomada de uma estranha euforia, sentindo o corpo trêmulo açoitado pelo nervosismo, a moça loira passou as mãos pelos cabelos lisos e desalinhados, tentando pôr alguma ordem naquele caos de sensações. Entretanto, antes que pudesse se recompor, espantou-se com a ordem dada pela dona do carro ao motorista:

- Siga para o motel mais próximo.

E o carro logo arrancou derrapando na areia do estacionamento, que ficava à beira-mar. Ingrid limitou-se a olhar para os próprios pés, resignada. Ali estava a mesma areia que a acompanhava até a porta de casa. Agora era tarde demais: aquela noite seria outro o destino.

Suíte principal. Foi este o pedido quase inaudível pronunciado por entre a fresta da janela. A boca da desconhecida parecia desenhada a mão, observava a convidada, menos assustada, quase entretida.

Ingrid seguiu, com os olhos e os passos, o movimento dos quadris bem feitos que subiam a escada, sensualmente ajustados numa saia. As pernas bem esculpidas denunciavam o corpo que estava por ser desnudado.

Um giro, dois giros. Estavam trancadas. Olharam-se, sem palavras, a meia-luz. Uma intrigada, a outra apressada. Ambas intrusas num quarto tão imenso quanto desconhecido. Uma cama redonda, visivelmente confortável; uma banheira de tamanho extremado, adornada de mármore de carrara num recanto mais elevado; espelhos espalhados por todos os lados, inclusive no teto; uma bela parede de vidro através da qual se anunciava um jardim interno de estilo oriental, impecavelmente adornado. Ouvia-se uma fonte e música erudita.

A estranha deu o primeiro passo. Ingrid também se sentia irreconhecível. Algo lhe dizia que o próprio espelho a desconheceria e, medindo a audácia, arriscou buscar sua imagem.

Tudo o que viu foi um corpo esguio e alvo sendo desnudado por mãos hábeis e morenas, com as unhas tão rubras quanto os lábios que, sem pedir permissão, tomavam seu pescoço, o colo enfeitado de sardas, os seios já intumescidos, deixando marcas de batom e de vontade. A estranha era ela, aquela Ingrid que se entregava a outra desconhecida.

Traçando o contorno do mamilo com a língua, a boca ávida parecia conter-se, evitando tomá-lo com força e sugá-lo, como Ingrid já desejava. E a dona dos lábios desenhados, de fato, parou, mesmo diante dos olhos incrédulos da que se entregava. Afastando-se por instantes, a estranha respirou fundo, enquanto parecia tentar recobrar a razão. E sem esboçar qualquer explicação, tirou a blusa de seda e, na seqüência, o próprio sutiã, fazendo com que Ingrid prendesse o fôlego diante dos seios fartos e belos recém libertos.

Dando as costas, a mulher despiu-se da saia e, de forma lânguida, caminhou até a cama, sem esboçar qualquer constrangimento com a calcinha de renda escura que entrava em suas ancas de forma absurdamente atrevida. Ingrid não perdeu um instante daquele passeio peculiar pelo quarto.

Na cabeceira, examinou três pênis de borracha. Sem pressa, tomou cada um deles com as mãos, como se medisse o tamanho, a textura, a capacidade, ainda estanque, de fazer gozar.

Ingrid inquietou-se. Nunca havia sido penetrada por um objeto feito aquele e, definitivamente, não era este o desejo que a consumia. Como se adivinhasse o receio, a estranha virou-se e olhou-a detidamente, esboçando um sorriso, que cintilou com ousadia:

- É você quem vai usá-lo...dentro de mim.

E, fazendo o caminho de volta, logo foi ao encontro de Ingrid, que ainda estava encostada à porta, com as mãos novamente frias.

Sem encará-la, a estranha puxou-a para a cama. Mas antes que Ingrid pudesse deitar-se sobre o corpo que, inteiramente despido, já se oferecia, a desconhecida, novamente, a interrompeu. Pondo-se de joelhos sobre o colchão, fez com que a moça fizesse o mesmo. Uma em frente à outra. Foi quando a que adorava manipular retirou a calcinha daquela que manipulava e passou a, propositadamente, roçar os seios já eriçados no abdome, nos pêlos, nas coxas da moça, enquanto a língua quente passeava pelos mesmos lugares e sem pudores.

Com os olhos fechados, sentindo o ventre dilatado, derramando-se por entre as coxas, Ingrid recebia aquilo que parecia ser um atípico carinho. Foi quando sentiu os braços que lhe enlaçavam a cintura serem substituídos por algo que tinha a textura do couro. Era um cinto. Nele estava preso o pênis escolhido pelas mãos experientes que ajustavam a fivela.

Tentando dissipar o constrangimento, Ingrid buscou se familiarizar com aquele novo instrumento. Com certo receio e visível desconforto, olhou para o membro avantajado e de borracha, mas não ousou tocá-lo. E nem foi preciso. A mulher que estava à frente, com ar de riso, olhou-a nos olhos e aproximando-se, confessou próximo à boca:

- Deixe que eu lhe mostro como usá-lo.

Escorregando os lábios pelo tronco alvo, a estranha fez um caminho permeado de saliva e deslizar de dentes, até que, para a surpresa da expectadora, a boca tomou o pênis despudoradamente e passou a engoli-lo, num vaivém explícito e ritmado. Ingrid gemeu alto e logo assustou-se com a reação súbita. Era como se, de fato, aquele falo fosse parte de seu corpo. E, puxando a estranha pela nuca, demonstrou que queria ir mais fundo, como se estivesse prestes a dissolver-se naquela boca.

A estranha obedeceu e deu a permissão que a outra queria: Ingrid sentiu que poderia ejacular ali, caso o membro possuísse dutos de verdade e a quentura da carne. A visão da mulher que se punha de quatro, sugando-a, fazia com que aquele sexo oral chegasse às raias da realidade.

Percebendo a excitação da moça, a estranha, mais uma vez, a surpreendeu, interrompendo o ato. Fingindo limpar a boca, ergueu-se e sussurrou ao seu ouvido:

- Foda-me!

Mais uma vez Ingrid viu-se diante de uma ordem que não podia ser desobedecida. E, com um estranho prazer, empurrou a que comandava com força, fazendo-a deitar-se. As pernas morenas e torneadas logo foram escancaradas pela dona, que cederia à invasão com gosto.

E Ingrid a invadiria, não com o material sintético que outrora beirava o ridículo, mas com o membro ereto que agora parecia pulsar à beira do gozo. E as duas o queriam, as duas criam no poder do absurdo, na força da fantasia.

Ingrid, agora, absolutamente familiarizada, pôs-se no meio das pernas grossas que se abriam e, controlando o próprio corpo com as mãos espalmadas sobre a cama, passou a observar a abertura molhada que lhe era servida e que, em poucos instantes, engoliria sua extremidade.

Lentamente, enquanto as unhas vermelhas eram fincadas nas costas, o membro avantajado passou a adentrar na mulher que, agora, era só euforia. E assim, o corpo esguio, valendo-se de um instinto que, sequer, sabia existente, experimentando o espaço, os limites daquele ventre, gradativamente afundou o pênis grosso até que as pélvis de ambas fossem unidas.

E, como se ganhassem vida, os quadris descontrolaram-se, movendo-se de forma alucinada e firme, enquanto as mulheres se abraçavam, se encaixavam, se serviam, se comiam, se conheciam, em movimentos audíveis, em imagens.

Ingrid não conseguia mais segurar. Foi quando a outra anunciou:

- Goze dentro de mim. Eu também vou...

E o quarto foi preenchido pelos gemidos e cheiro das mulheres que, enlaçadas, finalmente quedaram-se inertes. Ambas estranhas e tão conhecidas. Sem nomes ou sobrenomes, apenas intimidade e pele.

Trocando a cama pela banheira de águas tépidas, as duas ensaiaram algumas palavras. Foi a boca de lábios desenhados que propôs:

- Um brinde ao que está por vir...
- E o que é? – a de boca naturalmente rosada questionou.

E num gole de champanhe, Ingrid despediu-se da noite.

Assustada, despertou com o frio. As águas, outrora quentes, àquela hora estavam extremamente geladas. Confusa, vagou o olhar incrédulo pelo quarto. Mas tudo o que encontrou foi o relógio digital que, ladeando os pênis de borracha dispensados, da cabeceira da cama, lhe dizia: nove horas. Era este o único recado, estampado em letras vermelhas e luminosas.













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