sábado, 11 de outubro de 2008

RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo III)


LENÇÓIS AZUIS


Depois da ida ao presídio, Vanessa aprendeu, enquanto Ingrid desaprendeu absolutamente o perdão. O ódio saiu do coração de uma para ir habitar o da outra.

Não havia como perdoar a criatura estranha que havia lhe seduzido para roubar uma parte de seu corpo. A córnea que guardava a imagem dos scarpins ou mesmo um de seus rins poderia estar sendo negociado, naquele exato instante, no comércio clandestino de órgãos, quem sabe do outro lado do mundo. Aquele teria sido o preço do desatino, a tarifa cobrada para que a areia da beira do mar não fosse parar, naquela noite e novamente, na porta de sua casa. Poderia ter pagado com a vida.

O porquê de ter sido poupada era uma incógnita. O mistério, realmente, era a marca deixada por aquela desconhecida, que agora lhe parecia, também, criminosa. Entretanto, apesar de seu corpo permanecer intacto, Ingrid, depois da descoberta, passou a se sentir como se faltasse um pedaço, talvez o que fosse capaz de perdoar e esquecer aquela história mórbida.

Mais uma vez a marcação das horas, dos dias e dos meses no relógio que, digitalmente, oferecia ao bar orientação, iluminando a parede escura e dando conta dos horários, inclusive o de fechar as portas.

Três horas da manhã, foi esta a marcação daquele instante de susto. Virando-se para a porta, assistiu a entrada da última cliente. Era a intrusa.

Traçando, novamente, a linha imaginária, os scarpins caminharam lentamente, atravessando o saguão quase vazio. O destino, entretanto, não foi propriamente o bar, mas a dona.

Ingrid prendeu a respiração, mas não o suor frio. Estática, aguardou a aproximação gradativa dos olhos profundos que, desta vez, estavam impecavelmente maquiados e fixos, a observá-la. Sem aviso, como se viesse compor o cenário, a luminosidade dos relâmpagos invadiu o espaço, seguida da chuva que começava a cair forte, audível.

Com a velocidade dos raios que açoitavam o céu, arquitetou um plano que lhe pareceu infalível. Queria vingança, queria justiça. A intrusa merecia a prisão.

Quando a linha imaginária chegou ao fim, a estranha estava de frente para Ingrid. Sem rodeios, ergueu a sobrancelha e lhe saudou, enquanto puxava um cigarro, com mansidão convidativa:

- Ainda é proibido fumar aqui?

Saíram. Ingrid puxando-a pela mão, rumo ao próprio carro. A desconhecida indagou o porquê da pressa, ao que foi respondido:

- O que está por vir merece, de fato e imediatamente, um novo brinde.

A que tinha pressa conduziu o carro com velocidade extrema tendo por norte seu apartamento. Dez. Era este o número do andar, sinalizado pelo elevador. Ao atravessarem a porta, o par de tênis foi retirado e, na seqüência, o de scarpins o ladeou. A areia espalhou-se no tapete de entrada, enquanto as duas ensaiaram os primeiros passos, descalças, na sala.

A estranha, com a mesma audácia, tomou Ingrid pelos ombros e logo encostou-a na parede, enquanto ocupava as mãos morenas com a porta. Um giro, dois giros. Estavam trancadas. A intrusa soltou a chave, a presa engoliu em seco.

A boca desenhada aproximou-se, assim como o corpo da que falava:

- Senti saudade.

Quem quisesse que acreditasse naquela explicação absurda. Ingrid é que não acreditaria. O reencontro deveria ter motivo mais sórdido: provavelmente, depois da prisão do marido, a esposa assumira o comando da organização criminosa. Era o que supunha, com o estômago embrulhado, a pretensa vítima. Ingrid só não conseguia imaginar que órgão, daquela vez, era o desejado. O pênis de borracha é que não seria.

Mas a criatura, parecendo alheia às especulações que atordoavam a cabeça loira, continuava a ousar, mordendo o pescoço alvo com os lábios rubros, enquanto desabotoava a própria blusa.

Mais uma vez tomada de insanidade, Ingrid sentiu a repulsa ceder ao desejo. Aquela desconhecida, por mais absurdo que parecesse, a excitava. O cheiro, a textura, o poder daquele corpo era capaz de fazê-la correr novamente riscos. Por um momento, cogitou transar com o algoz antes de destruí-lo. E novamente se desconhecia, ao lado da desconhecida.

Que tipo de mulher faria outra gozar antes de entregá-la a polícia? Não poderia se encaixar naquele perfil quase tão sinistro quanto o de traficante de órgãos. Desvencilhou-se.

A desculpa saiu em tom baixo, rasgando-lhe a garganta:

- Vou buscar champanhe.

Ia, isto sim, procurar na bolsa que perfeitamente combinava com os scapins o tranqüilizante, os bisturis, enfim, as futuras provas de um quase premeditado crime.

A estranha, com o olhar desconfiado, ergueu a sobrancelha, enquanto Ingrid rumou à cozinha. A bolsa estava pousada sobre a mesa que ladeava a entrada da sala.

Parou defronte a geladeira, com o coração aos pulos. A mão tremia intensamente, enquanto abria o congelador, disfarçando, mais a procura de calma do que de champanhe. Não havia qualquer bebida ali e ela sabia. Fechou lentamente a porta, tentando não fazer muito barulho. Caminhou com o mesmo silêncio até obter, da fresta americana, a visão panorâmica da sala. A intrusa, agora convidada, estava deitada no sofá, parecendo distraída, em meio ao escuro.

Sorrateiramente, foi até a mesa e pegou a bolsa. Tentando manter a calma, revirou-a pelo avesso, depositando todos os objetos no chão da cozinha, a procura dos instrumentos que, certamente, serviriam para retalhar corpos.

A carteira, o cigarro, o celular, o isqueiro, o batom vermelho, que já marcava seu pescoço. E mais nada. Nada suspeito. Não havia, portanto, subsídio para ligar para a polícia. Ficou, por alguns instantes, inerte, descrente.

Voltou à sala, caminhando entre o espanto e o alívio. A convidada, agora criminosa apenas suposta, ergueu-se, inquisitiva:

- Estranha você.

Ingrid remendou:

- Estranha você... que sumiu de repente, me fazendo acordar numa banheira fria.

Aquela foi a forma abrupta que encontrou de tocar no assunto que, definitivamente, a cada instante, mais lhe confundia.

A intrusa logo explicou:

- Parti daquele jeito, em primeiro lugar, porque estava com pressa...em segundo, porque sabia exatamente onde reencontrá-la. Aliás, lhe encontrarei sempre no mesmo lugar? – disse sorrindo, dando a Ingrid ares de previsível.

Irritada, abismada, a que não se sabia vitima ou louca, respondeu incisiva:

- No meu bar ou no presídio onde está o seu marido, Helena Bivar.

Helena Bivar. Era este o nome estampado no jornal do dia vinte de janeiro de dois mil e cinco, o mesmo que embrulhava o prato de Vanessa no dia da mudança. Depois da ida ao presídio, Ingrid foi buscar aquele exemplar nos arquivos na internet. Agora lhe restava descobrir se a dona do nome era, de fato, a mulher que se punha à frente.

A desconhecida recuou assustada. E no gesto, entregou-se. Já não era desconhecida. Agora tinha nome. Ingrid concluiu que era, definitivamente, como se chamava.

Pegando-a pelos pulsos, de forma rude, foi a vez de Ingrid encostar Helena na parede, prendendo-a com o corpo.

A vítima agora era a convidada, que desesperou-se, debateu-se, visivelmente assustada, tentando soltar-se.

Sem piedade, Ingrid segurou-a com mais força, machucando-a, enquanto lhe acuava, enquanto lhe acusava, despejando, em meio a palavras entrecortadas, toda a teoria criminosa que, até então, vinha lhe tirando o sono.

Com os olhos perfeitamente delineados, arregalados, Helena parecia não acreditar no que ouvia. As pernas morenas e bem tornadas, pela primeira vez, pareceram fraquejar. Não havia linha imaginária naquele instante que a sustentasse e Ingrid apoiou-a com o próprio corpo, pressentindo que cairia se assim não fizesse.

A reação súbita da outra confundiu ainda mais. E, como se não bastasse, os olhos negros começaram a se derramar em águas, borrando novamente a maquiagem. Diante daquela imagem, Ingrid regressou à noite em que viu Helena pela primeira vez. Ela lhe pareceu misteriosa, interessante, atordoada, desprotegida, e nem de longe criminosa. Aquelas lembranças emaranharam-se no presente e não sabia mais no que acreditar.

Foi nesse instante de hesitação, quando as mãos que prendiam arrefeceram a pegada, que a acusada começou a falar, como se recobrasse a voz e parte da calma.

Para tudo havia uma explicação e as deu com maestria. O marido havia sido preso, isto era fato. Mas até que ponto havia justiça na prisão preventiva decretada?, isto se perguntava todos os dias.

Não sabia do que Armando era capaz, isto era outro fato, mas também não acreditava que fosse capaz de tanto! Os jornais, assim como o ministério público, podiam ter exagerado nas acusações e o juízo, equivocadamente, acatado as razões e determinado a prisão.

E assim, de fato em fato, chegou ao crucial: jamais participara de qualquer ilícito, nem mesmo como coadjuvante. Se a organização criminosa existia e Armando era atuante, no final do processo, uma vez proferida a sentença condenatória, não hesitaria em se separar daquele mostro. Mas, até então, não podia, antecipadamente, julgá-lo, não podia crucificá-lo. Tinha pena de deixá-lo e ser injusta. Por isto foi sim e ainda ia, sempre que podia, visitá-lo, inclusive acompanhando-o nas audiências.

Por óbvio, ainda que pensasse desta forma, a relação havia estremecido. Não suportava olhá-lo e imaginar que, de repente, convivera dez anos com um desconhecido.

Sentindo-se totalmente perdida, desestruturada, procurava o mínimo daquilo que sentia falta: sexo. Não queria trair o marido com outro homem. Por isso, desde a prisão, só transava com mulheres. E Armando sabia. Era um acordo celebrado entre ambos. Aliás, era uma das fantasias do marido, tantas vezes realizada em trio: ver Helena com uma mulher na mesma cama.

E assim tinha sido até entrar, naquela noite de chuva, no bar que beirava a praia de Boa Viagem e conhecer a dona.

Com Ingrid tudo havia sido diferente. Sentiu em seus braços um reduto, um conforto, uma sofreguidão, uma excitação que sequer sentia com o marido. Por este motivo, quis revê-la e desejou mais do que sexo: abrigo.

E ali estavam abrigadas, na sala da casa onde Ingrid a acolhia. E aquela era a razão do beijo que ainda não havia sido dado e que, naquele instante, Helena iniciava, com a boca desenhada e muito desejo contido, misturando saliva e lágrima.

Quando os lábios se encontraram, Ingrid teve uma certeza: era naquela versão que queria acreditar. Queria acreditar naquela Helena e, sobretudo, naquele beijo. E ele foi tão real, quanto preciso.

Naquele momento de trégua, outra mulher lhe era apresentada: a que lhe beijava e, novamente, se despia, parecendo ser de corpo e de alma. E Ingrid, despindo-se também, se entregou, desta vez sem artifícios sintéticos ou de qualquer outro tipo.

No sofá da sala, as duas quedaram-se, autênticas. Os corpos já suados, em contato com o couro e outra realidade.

Helena contornou com a língua o mamilo rosado, já intumescido, e, daquela vez, não hesitou em tomá-lo com a boca, atendendo ao pedido mudo da que lhe servia. E, naquele ato, Ingrid colheu outra certeza: Helena se permitiria, se entregaria de verdade, longe das fantasias. Aceitaria transar com outra mulher e não com um corpo que, temporariamente, fingiria ser o do marido, como havia feito da última vez.

Com esta convicção, Ingrid fechou os olhos e se deixou levar. Com prazer extremo, recebeu a boca desenhada, que, com propriedade, passou a desenhar o corpo inteiro, traçando, com a língua e os lábios, caminhos cada vez mais certeiros.

Quando Helena, alternando a posição, pousou o ventre sobre a boca de Ingrid, esta o recebeu com gosto e, naquele instante, a extremidade que invadiu o corpo moreno foi sua língua, hábil, urgente, em nada comparada ao plástico. Da mesma forma, Helena, também com a língua quente, adentrou ao corpo alvo da outra e as duas provaram-se, gozaram, beberam-se enquanto trocavam os hemisférios.

Adormeceram na sala. Entrelaçadas, satisfeitas, conhecidas.

Com o sol já intenso a açoitar-lhe a face, Ingrid despertou. Recobrando a consciência, tentou sentar-se, mas as pernas estavam dormentes. Respirando fundo, percebeu que estava nua, ainda sobre o sofá. Em todo o corpo, uma sensação estranha de formigamento. Com o coração batendo forte, olhou para a parede e o relógio, novamente, lhe assombrou com o mesmo recado: nove horas.

Foi quando, finalmente, conseguiu mexer os pés. Tinha dormido de mal-jeito. Ergueu-se de supetão, investigando se o corpo estava inteiro. Na sala, não havia sinal de sangue, nem da visitante, só silêncio.

Levantou-se, catando as próprias roupas pelo chão, ainda confusa. Foi quando, olhando para a soleira da porta, percebeu: os scarpins ainda estavam por ali, tão adormecidos quanto a dona. Helena, na madrugada, trocara o sofá pela cama e, naquele instante, parecia sonhar tranqüila entre lençóis azuis.





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