sábado, 11 de outubro de 2008

RECORTES DE UMA DESCONHECIDA (Capítulo IV)


SPT


Quanto tempo já havia se passado desde a última vez em que vira Helena? Já não sabia, evitava lembrar-se. Mas, naquele instante, diante daquela sigla e do texto corrente, não resistiu. Procurou a data do jornal e calculou: mais de um ano.

SPT. Era esta a manchete veiculada na primeira página do caderno principal, em letras de fôrma, quase tão patentes quanto sua curiosidade. As linhas subseqüentes pareceram-lhe verdes, pois, ao lê-las, cintilou no coração escurecido a esperança.

Depois daquela noite, a primeira onde o par de tênis adormeceu acompanhado de outro par, Ingrid transformou-se. Desejou os scarpins no umbral de sua vida pelo fim dos dias.

Embora soubesse que Helena estava casada, tal realidade poderia mudar. Era nesta hipótese que apostava, silenciosa e incisiva.

A denúncia oferecida pelo ministério público já havia sido recebida e o processo caminhava com velocidade, era o que noticiavam os jornais.

Sempre sabia da vida de Helena por aquelas folhas encardidas, por aqueles recortes opacos, que, permeando fotos e fatos, se espalhavam sobre as mesas dos bares, nas bancas de revista, no chão dos quintais. Da boca desenhada que beijava pouco ouvia, mas isto não a incomodava.

Embora se sentisse um tanto quanto egoísta, a cada notícia sobre o processo, desejava, mais do que a mídia, que a condenação fosse proferida. Queria que Armando Bivar fosse, de fato, o monstro que pintavam, pois somente nesta hipótese, Helena se separaria, como a própria havia sinalizado ao relatar a história.

Notícias à parte, isto era fato: a dona dos scarpins, apesar de manter certos silêncios e cercar-se de cautelas, fazia o possível para estar em sua companhia.

Helena lhe ligava todos os dias, todas as noites. E não eram poucas as madrugadas que viravam insones, falando sobre amenidades, sobre projetos, sobre sexo ao telefone.

Beijavam-se, tocavam-se, sentiam-se, gozavam pelos fios, pelas vozes, quando não podiam se encontrar, “derretendo satélites”, como dizia a letra da música que tanto gostavam.

Dentre as restrições impostas, Helena era por demais contundente em uma: não se encontravam em lugares públicos. Mais do que justificável. Ainda era casada. E ao frisar o “ainda”, Ingrid sorria e aceitava.

A única vez em que quebraram o acordo, o fizeram a convite de Helena. Visita noturna ao zoológico. Foi esta a proposta da boca desenhada, que logo sorriu, achando graça da cara de espanto de Ingrid.

Interessava-se pelos hábitos noturnos dos animais, havia sido esta a justificativa. A idéia soou estranha, mas Ingrid logo a aceitou, afinal, também se interessava em descobrir os hábitos noturnos daquela que, vez por outra, ainda lhe era tão desconhecida.

Foram. A visita, exatamente por contar com público restrito e ser um tanto peculiar, não poderia ser feita todos os dias. Ocorria apenas uma vez por mês, com data previamente estipulada. E mais: com a supervisão de um veterinário, que conduziria a pequena excursão dos inscritos, servindo de guia.

Ingrid Todorov e Clarice. Foram estes os nomes dados por Helena, quando o guia perguntou com a caneta em punho, fazendo menção de inscrevê-las no passeio. Na seqüência, questionou o outro sobrenome.

Clarice de quê?, foi a pergunta diante da qual Ingrid sorriu e baixou a cabeça, sem encarar Helena, enquanto esperou a continuação, que logo veio:

- Todorov...também.

O rapaz anotou o sobrenome, sem preocupar-se com as diferenças físicas que afastavam a verossimilhança do parentesco inventado. Em verdade, naquela brincadeira de Helena, Ingrid captou outro recado: estava ali a promessa de um novo casamento.

A lua cheia e o céu absolutamente estrelado dissipavam do cenário a visão assustadora que Ingrid imaginou encontrar.

Ao atravessarem o imenso portal que dava acesso ao lugar, tiveram a visão panorâmica de uma longa estrada de paralelepípedos, apenas parcialmente iluminada: em partes, graças ao luar, em outras, pela luz amarelada de postes antigos, semelhantes ao dos velhos engenhos.

Pequenas mariposas cercavam as lâmpadas, assim como os mais assustados membros da excursão cercavam o guia. Não era o caso das duas, que se mantiveram um pouco afastadas dos demais, andando de mãos dadas.

O zoológico ficava localizado no bairro de Dois Irmãos, num reduto de reserva ambiental que contava com rica flora e peculiar fauna. Ornamentado por vários lagos, desde os artificiais aos naturais; cercado por frondosas e antigas árvores, cujas copas erguiam-se, parecendo, naquela noite, prateadas; povoado com o cheiro cítrico das folhas, misturado ao das flores, aquele cenário era tão belo, quanto misterioso.

Diante desta constatação, Ingrid logo viu a patente semelhança entre o local e Helena. Aquele passeio era, literalmente, a cara dela. Daquela criatura ambígua, que ora parecia tão clara, ora tão escura, que ora parecia tão livre, ora mais contida do que os animais que as observavam, com os olhos tristes, por trás das grades.

E a cada passo, estavam mais próximas, sem muitas palavras. Os pensamentos inquietos feito os animais visitados, guardados, também, em jaulas. Cada uma tinha as suas e nem sempre havia chave.

Diante do imenso viveiro reservado à Hárpia, Helena ousou uma confissão. Aquele era seu animal favorito, foi o que segredou ao ouvido de Ingrid. Sentindo a pele arrepiar-se, a que escutava, com suavidade, virou o rosto e beijou a face da que confessava, como se agradecesse o mínimo e esperasse. Quem sabe um dia ouviria mais.

E assim, resignada, sequer ousou perguntar o porquê da preferência, constatando que o animal era tão exótico quanto Helena.

No estacionamento, antes de alcançarem o carro, Helena parou repentinamente. Dando as costas para Ingrid, começou a se afastar em passos largos, como se fosse entrar novamente no zoológico. A explicação foi dada de costas, com pressa, por cima do ombro:

- Esqueci algo lá dentro!

Inquieta, Ingrid limitou-se a observá-la. Nunca conseguia desvencilhar o olhar daqueles quadris quando, à frente, caminhavam. Somente quando Helena entrou no portal, a expectadora deu as costas e caminhou até o carro. À porta, procurou a chave dentro da bolsa. Revirou-a, vasculhou-a. Alarmou-se. Nada. Tinha certeza de que estaria ali.

E assim ficou por alguns segundos: atônita, revisitando de modo cada vez mais contrariado a bolsa, de costas para o zoológico.

Como se estivesse submersa na mesma escuridão onde dormitavam seus pertences, Ingrid sequer percebeu a aproximação do corpo que, de forma brusca, colou às suas costas. Prendeu o fôlego ao sentir o metal gelado deslizando em seu pescoço, seguido da ameaça:

- Entre no carro. É um seqüestro.

Mas eu nem sei onde está a chave! Foi o primeiro pensamento que passou pela cabeça loira, antes de virar-se agressivamente e interromper Helena, tomando a chave que fingia ser uma navalha.

Irritada, bradou que não havia gostado da brincadeira. Helena fez cara de magoada, entregando a orquídea azul que trazia na outra mão e que, graças à brutalidade de Ingrid, estava amassada. Aquele havia sido o motivo do retorno ao zoológico. Queria presenteá-la e a surpresa havia terminado daquela forma tosca.

Ingrid desculpou-se, ainda contrariada. Não gostava de mentiras. Foi o que fez questão de falar com ênfase e raiva. E mais uma vez Helena suavizou o momento, em tom de enigma:

- Minhas mentiras sempre têm bons motivos. Mais cedo ou mais tarde eles aparecem.

Parecendo não ter compreendido a extensão do aviso, olhou-a de forma investigativa. Helena sorriu e desfez o mistério:

- O seqüestro tinha por destino o mesmo motel de nossa primeira vez, boba. Hoje faz um ano que nos conhecemos. Deixe-me continuar a cometer o crime que planejei e em instantes faço sua raiva desaparecer.

Mais uma vez Ingrid cedeu e deixou-se seqüestrar. Helena sempre a surpreendia e, nas semanas seguintes, não seria diferente.

No meio de uma conversa, dentre as tantas que contornavam as madrugadas, Helena pediu um favor, classificado como imenso:

- Deixe-me ir morar com você.

E foi naquela mesma noite. Sem muitas explicações, desfez a pequena mala onde, certamente, não estava nem um terço das roupas.

Intrigada, mas extremamente feliz, a anfitriã recebeu Helena em sua casa e em sua vida e, daquele dia em diante, novos planos passaram a ser feitos nos lençóis azuis de cetim.

Helena precisava ficar em Recife até ser ouvida como testemunha de defesa. A data da audiência já estava marcada. Somente depois de depor a favor de Armando, se sentiria capaz de abandoná-lo, pois teria, ao menos, feito sua parte. Só então partiria tranqüila para iniciar uma nova vida, ao lado de Ingrid, em outra cidade. Era tudo o que queria, dizia com convicção a boca desenhada.

Até a data designada, ninguém poderia saber que estava ali. Sempre que Helena frisava este detalhe, Ingrid sentia como se sua casa fosse um esconderijo e não um lar onde as duas habitavam. Mesmo assim, cumpria o acordo, enquanto contava os dias, riscando de vermelho o calendário.

Vende-se. Era o que se lia abaixo do letreiro que sinalizava o bar de Boa Viagem. Se tudo desse certo, no final do mês, estariam bem longe dali.

O suor das mãos de Ingrid começava a molhar as passagens que apertava. Sentada no saguão do aeroporto, em meio ao vai e vem de tantos desconhecidos, esperava. O vôo sairia em quinze minutos e Helena não chegava. A audiência havia começado às oito e já passava das quinze horas! Certamente, no correr daquele tempo, o depoimento havia sido encerrado e nada. Nenhuma notícia de Helena, nem um telefonema para avisar de um suposto atraso.

Angustiada, ligou mais uma vez. O celular, agora, sequer chamava. Temporariamente desligado, foi esta a frase que veio para aumentar o desalento.

Dias que viraram noites sucederam àquele. Helena desapareceu. Ingrid não se conformava, não acreditava. Tinha medo, tinha saudade, tinha desespero, tinha miragens, só não tinha notícias. Até que, mais uma vez, os recortes dos jornais vieram para desestruturá-la.

Armando Bivar havia sido, finalmente, condenado. A esposa, arrolada como principal testemunha de defesa, no exato dia da audiência, havia mudado de lado.

Em pormenores dignos de relatos verdadeiros, Helena Bivar havia acusado o próprio marido e, na seqüência, esclarecido o nome dos outros integrantes da quadrilha, muitos deles estrangeiros renomados.

E assim, a maior organização internacional de tráfico de órgãos de todos os tempos havia sido desbaratada. Na seqüência do depoimento de Helena, fora decretada a quebra dos sigilos telefônicos, telemáticos, fiscal e bancário dos nomes mencionados pela testemunha chave e, certamente, os demais também seriam condenados. Para tanto, havia provas mais do que suficientes.

Era esta a notícia que tomava a página inteira do dia vinte e seis de agosto de dois mil e oito, meses depois do desaparecimento de Helena, que ainda era um mistério.

O sumiço da testemunha crucial também vinha sendo constantemente veiculado nos jornais. As teses eram diversas. Assassinato era a mais destacada nos recortes que Ingrid já se recusava a ler. Especulações à parte, uma coisa era certa: ninguém que delatava aquele tipo de gente permanecia ileso. Era esta a certeza unânime reforçada não apenas nos periódicos, na televisão e nos demais meios que levavam as notícias, mas, sobretudo, na cabeça loira que se desesperava mais a cada dia.

Vanessa, cada vez mais próxima, assistia preocupada o abatimento da chefe. Numa noite de chuva, depois de aceitar carona, com poucas palavras, a jovem, finalmente, criou coragem e pediu para conhecer o apartamento de Ingrid. E o fez com a voz suave e o coração carregado de vontades, tão silenciosas quanto a que, sutilmente, se convidava. O par de tênis, naquela noite e nas seguintes, passou a ter companhia.

E assim, novamente, veio o correr dos dias e dos ponteiros. E a vida parecia seguir o curso, apesar de tudo que, mesmo despedaçado, permanecia inteiro.

Até que, aquele domingo, por ironia ou destino, começou diferente. Ao lado dos dois pares, à soleira da porta, dormitava um jornal, quando Ingrid, sequer, era assinante. E eis a manchete: SPT.

Serviço de Proteção à Testemunha, era este o significado que se aglomerava na sigla. Na seqüência da leitura, vinha o texto que, aos olhos de Ingrid, pareceu verde.

Aquele era um sistema internacional cuja denominação, por si só, se explicava: em crimes de complexidade e gravidade incontestes, envolvendo pessoas poderosas, com influência em diversos segmentos da sociedade e mesmo do mundo, as testemunhas que se dispusessem a oferecer informações seriam acobertadas.

Para tanto, perdiam a identidade, enquanto outra seria forjada. No processo de desaparecimento, ganhavam novo nome, novos documentos, novo paradeiro e até mesmo um novo rosto, se fosse preciso.

E assim, feito mágica, verdadeiramente sumiam do mapa, devendo, entretanto, tal procedimento ser para sempre mantido no mais absoluto sigilo. E era este o pacto de proteção que jamais poderia ser rompido por qualquer daqueles que viessem a fazer parte do SPT. Era esta a reportagem. E só então Ingrid consultou a data do jornal: mais de um ano sem Helena.

No ponto final, sentiu o coração explodir. Atordoada, derrubou o jornal e, ao agachar-se para apanhá-lo, foi arrebatada por mais uma surpresa, agora estampada na segunda página: Armando Bivar havia sido assassinado dentro do próprio presídio.

Talvez agora Helena pudesse retornar. Aliás, talvez já o houvesse feito! Quem sabe não teria sido a própria que, valendo-se da fresta, havia depositado o jornal na soleira da porta?

Eram estas as indagações que Ingrid faria naquela mesma noite, no bar que não havia vendido, enquanto permanecia impávida, com o olhar vazio e escuro, perdido entre as pessoas que à frente se aglomeravam e se moviam, parecendo dançar. A música já não era ouvida. Estava distante demais para ouvir. Escutava apenas o barulho do mar, que estourava em forma de ondas bravias e audaciosas, ensaiando arremessos cada vez mais fortes nas rochas que serviam de murada, erguendo o bar.

Foi preciso que ao sal das gotículas fugidias se misturasse a doçura dos pingos de chuva para que ela, finalmente, despertasse, captando com os lábios os resquícios daquela mistura. No instante seguinte, as batidas da música eletrônica voltaram a vibrar na cabeça e no piso de madeira que se erguia sobre as palafitas. Logo, os passos daqueles que estavam no meio do salão voltaram a parecer ritmados, possuidores de algum sentido.

Na porta de entrada, talvez trazida pela chuva, surgiu, finalmente, uma desconhecida. A mulher, de fato, parecia uma forasteira, diferente em andar e estilo, estranha num ninho de iguais. Desconcertada, ensopada, com a maquiagem parcialmente borrada marcando o semblante de olhos tão profundos quanto bonitos, a estranha pareceu traçar uma linha imaginária até a mesa mais distante do recinto, onde sentou. Ao cruzar as penas, enquanto acendia um cigarro, fez brilhar um par de scarpins.

Contrariando a inércia, foi a vez da dona do par de tênis traçar uma linha imaginária até a forasteira, por onde caminhou lentamente.

Pondo-se defronte à mesa, captando com os próprios olhos os da estranha, ousou lançar-lhe o código cuja senha apenas Helena conhecia. E assim, fingindo um ar displicente, sentindo um aperto intenso no peito, como se ali estivessem presos os mais caros sonhos, libertou o maior deles:

- Não é permitido fumar neste ambiente.



FIM






3 comentários:

Marucia Todorov disse...

Minha querida!
Li o conto duas vezes. Adorei, Marina. Muito!

(Muito lisonjeiro o "Todorov" ir fazer parte das duas, afinal ...)

A senhorita desenvolveu bem demais o estilo e a cadência, como sempre. Amo a fluidez do texto e a trama criada.

Adoro os cenários, os sapatos, as garotas... tudo!

Sucesso, minha linda!!! Sempre e sempre!!!!!

Beijos com amor, carinho e muuuitas saudades!!!

Carla disse...

Hum! Muito mais cores claras, a sombra escura não consegue afetá-las, ao contrário, aumentam-lhe seu brilho.

Porém as brumas nunca deixam de estar presentes, não é?

Fiquei o maior tempo tentando lembrar de onde conhecia o "Todorov". :)

Mina Blixen disse...

Marina querida,

Repito o que já te disse: esse é o meu preferido!