Talvez não precisasse falar para ser ouvida. Talvez não precisasse ser ouvida para seguir. Queria mais do que tudo dar o segundo passo, o que a conduziria ao sorriso. Mas continuava a retroceder em imagens, em medos, em correntes e afins. Não queria a vida que levava.
Não sorria, apenas desejava. Não a tinha, apenas enquanto dormia. E quando dormia, descansava seu espírito nos lábios que não eram feitos de carne. Ela sabia que sonhava. Mas, ainda assim, sugava do beijo aquilo que podia, aquilo que precisava para se sentir livre...sobretudo de si.
A dor que sentia depois do desenlace era a única coisa real que trazia do sonho e que não a abandonava mesmo quando acordada. Era a dor de uma saudade que nunca arrefecia. O que teriam vivido, um dia, em outra vida? O que teriam construído, um dia, em outra vida? O que teriam destruído, um dia, em outra vida? Onde se reencontrariam e depois de quantas vidas? Nada disso sabia. E a dor aumentava, tanto quanto a esperança: uma outra existência haveria de chegar.
Entretanto, quando o sol despontava, era na mesma rotina que continuava, destacada de forma implacável no calendário. Depois do sonho, a mulher de olhos azuis partia e o vazio retornava. Mas havia um alento: a sensação de sua presença, como se solidificada em tintas vivas, não esmaecia. Ao reverso, a cada noite – ela sabia – ganharia novas cores, compondo uma aquarela genuína e quente emoldurada pela fantasia. E assim, a mulher que amava acompanhava a sonhadora no correr das horas, no correr dos anos, no correr da vida medíocre que a tragava, que a fazia perder as forças e dormir pesado na esperança de um outro sonho, de um outro encontro, de um outro quadro.
A tristeza era a tônica de cada despertar. Os pés permaneciam fincados em outro plano, mesmo quando caminhava. Pisavam onde a outra habitava e a outra habitava dentro de si. Por isso não abria as portas, não saia de casa, não permitia a entrada de mais ninguém. A prisão, que era um corpo jovem, resistia e se camuflava com vestes longas, escuras, que serviam de muralhas à sua introversão, à sua solidão. Não queria escadas, nem portas. Queria ela, a mulher sem nome, que mudava de faces, de peles, de idade, conforme o sonho, mantendo como única identidade os olhos azuis.
Mas, para sua tristeza, enquanto a prisão envelhecia, impregnando de rugas suas paredes, seu semblante, os sonhos iam se tornando mais e mais espaçados, mais e mais confusos em palavras, em imagens, em sentido. No último, não houve sequer o beijo. A carne, que não era carne, já não possuía calor, já não possuía desejo. E assim, com um adeus anunciado, a mulher sem nome o findou. Seria o último?
Diante da hipótese, a sonhadora decidiu não mais dormir. Preferia virar as noites insone a ir buscá-la e retroceder do sono sem o encontro, sem o beijo, sem a reciprocidade do amor que guardara durante todos aqueles anos. Aquilo sim seria insuportável. O resto suportaria resignada, enquanto as olheiras derramavam-se no rosto pálido, outrora carmim. A aquarela, agora, só possuía uma cor: o cinza. E era desta tinta que se alimentava, enquanto tornava-se esquálida. Para que ter carne se não havia desejo a povoá-la?
Vez por outra, o sono se intensificava e ela lutava, resistia. Sentia-se tão perdida, tão fraca! Deitava-se, de olhos arregalados. Como não sabia o nome da criatura que amava, sequer podia chamá-la. E mais uma vez vibrava no peito a esperança: talvez não precisasse falar para ser ouvida. Talvez não precisasse ser ouvida para seguir. Queria mais do que tudo dar o segundo passo, o que a conduziria ao sorriso.
Até que um dia, depois de anos de insônia e desencontro, sucumbiu. Adormeceu sem medo e sem retorno, apenas alegria pueril. Num mergulho, lançou-se nos olhos azuis que, feito lagos, a esperavam. E, quentes, cálidos, a fizeram afundar para, verdadeiramente, emergir. Aquele era o segundo passo. Foi quando o cinza dissipou-se, escorrendo com as águas, e, com a alma azulada, sorriu.
4 comentários:
Mesmo o amor "inventado" ganha vida independente no seu criador e a não correspondência dói. O encontro marcado e não acontecido, mesmo num sonho, trazem desilução e desalento. Uma voraz traição não comparecer a esse encontro, que para ser agendado foi inscrito em dois destinos, ainda sem se querer. Se para depois perceber ser apenas um "simples" sonho, melhor, então, não viver tamanho Querer? A turbulência ou a calmaria do dia seguinte. É uma questão de escolha: fico com a primeira para não negar nada em mim, nem mesmo a dor. Com a satisfação de sempre, Lou
Não serei original, mas: "sonho que sonha só é só um sonho que sonha só, mas sonho que sonha junto, é realidade" ( o velho, saudoso e bom Raul vem nos socorrer). Bonito texto/poesia. Alice.
O mundo imaginário ou mesmo as projeções que criamos as vezes acaba sendo o primeiro passo para um estágio mais satisfatório.
De olhos fechados ou mesmo abertos visitamos cada cantinho daquele mais íntimo desejo.
Um abraço!
Verônica Moura.
Mesmo o amor "inventado" ganha vida independente no seu criador e a não correspondência dói. O encontro marcado e não acontecido, mesmo num sonho, trazem desilusão e desalento. Uma voraz traição não comparecer a esse encontro, que para ser agendado foi inscrito em dois destinos, ainda sem se querer. Se para depois perceber ser apenas um "simples" sonho, melhor, então, não viver tamanho Querer? A turbulência ou a calmaria do dia seguinte? É uma questão de escolha. Fico com a primeira para não negar nada em mim, nem mesmo a dor. Com a satisfação de sempre, Lou
25 de Outubro de 2008 14:22
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