CAPÍTULO I
VIOLETAS
Imagens disformes e vacilantes formadas pelas sombras das árvores no chão, que pareciam dançar mesclando o sol e sua ausência no piso do terraço, graças ao vento da tarde que arremessava os eucaliptos para todos os lados. Era esta a cena que atraía a atenção de Marília.
Deitada em uma das redes que rodeava a casa, observava aqueles desenhos formados ao acaso. Instintivamente, introspectiva desde sempre, voltou-se para dentro de si, comparando e mesclando também as imagens de seu presente e passado.
As imagens da infância eram tão turvas e desconexas quanto as que se formavam nos recantos do piso, beirando a parede e os umbrais das portas da varanda que davam para dentro de casa. Quando criança vivia com os pais, mas guardava de ambos pouquíssimos detalhes.
Da mãe, recordava-se dos olhos esverdeados e puxados feito os seus, do cheiro adocicado do hálito e do tom cálido da voz, que, vez por outra, lhe entoava canções antes de dormir.
Do pai, lembrava-se da textura grossa das mãos, donde advinham afagos tão raros quanto pesados, da barba impecavelmente aparada, que exalava um perfume cítrico, semelhante ao dos eucaliptos que naquele instante se embalavam.
Dos dois juntos, mal se recordava. Talvez de um passeio de mãos dadas num final de tarde feito aquele, o qual nem mesmo Marília soube ser real ou inventado. A vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.
Os recortes da adolescência eram os mais claros. A nitidez, capaz de arder na íris e na alma da que lembrava, advinha, sobretudo, de um fato: aos dezesseis anos expulsaram-na de casa. E tal evento deveu-se também a uma cena, esta menos nítida e vista não propriamente por Marília, mas por seus pais, no espaço restrito da fechadura de uma porta: a de seu quarto.
Ironicamente, no dia em que a observada descobrira-se viva, pensando-se guardada e protegida em seu quarto, num primeiro beijo partilhado com uma jovem igualmente apaixonada, os pais desejaram-na morta. Diante da impossibilidade do concreto, retiraram-lhe o chão e o teto.
Atravessando o jardim que adornava a casa paterna, ela foi arrastada por entre a alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas suas favoritas. Par e passo, as pegadas dos pais, ladeando as suas, iam sendo fincadas no solo de tão pesadas e duras. Enquanto as folhas e flores eram arrancadas pelos passos trôpegos da menina aturdida, a terra subia e sujava as vestes que usava, únicas que levaria. Não sabia que se sentiria impregnada por aquela terra escura durante tantos anos, tampouco sabia que as pegadas deixadas por aquele dia continuariam marcando o solo de sua jornada, mesmo depois que as primeiras chuvas apagassem as que marcaram o caminho de sua antiga casa.
Enquanto atravessava o portão baixo, de ferro adornado, que separava seu antigo lar do mundo, Marília sentiu formar-se dentro de si um imenso deserto. E, naquele instante de choro e vazio, não soube se, um dia, algo de bom ainda brotaria por ali.
O choro já não era audível, nem externo, quando Marília foi deixada na porta daquela que se tornaria sua casa. Parada diante do portão imenso, na mansão do único tio, limitou-se a olhar para frente, ainda que, naquele momento, visse tão somente um muro alto e de pedras escuras.
Acompanhou, apenas com a audição, a partida dos pais que, acelerando o carro, deixaram-na para trás. Mas ela seguiria em frente. Com o pouco de força que encontrou, abraçou-se ao tio Abílio, que, naquela época, era para si um desconhecido, mas o único capaz de lhe oferecer abrigo. Ele lhe abriu os portões, ela entrou.
E agora estava ali à sua frente, o seu presente. O tio era um grande amigo e, alheio à retrospectiva que Marília, involuntariamente, fazia, vinha ao seu encontro, chamando-a para o chá da tarde. Com a cabeça branca e os olhos claros, com um sorriso amistoso e um beijo suave pousado na cabeça da sobrinha, despertou-a do devaneio proporcionado pelas imagens. Instantaneamente as sombras se dissiparam e Marília, erguendo-se da rede, aceitou o convite, mas, antes de dar o primeiro passo rumo à sala, o abraçou.
Abílio, com estranheza, apertou-a nos braços, afagando com graça os cabelos curtos e lisos de Marília, já desalinhados pelo vento. Curioso, perguntou o porquê daquela demonstração súbita de afeto, o que era uma raridade. E aquela que, para ele, ainda era uma menina, com a voz de adulta, prontamente lhe explicou:
- Saudade.
Se ela sentia saudade do contato proporcionado pelo abraço ou de algum fato perdido no passado, Abílio não soube precisar. Na verdade, nem mesmo Marília sabia do que sentia saudade. Talvez de um tempo bom que ainda não havia vivido, apesar dos trinta anos de idade.
O portão imenso que um dia lhe deu passagem, guiado pela mão de Abílio, depois da entrada de Marília, fechou-se tanto quanto a jovem que, durante os anos vindouros, imitando a fortaleza e imponência dos portais, não deu acesso a mais ninguém, a não ser ao tio. E talvez a falta que sentisse naquele instante fosse exatamente de um tempo em que, mais do que muralha, ainda se sentia capaz de ser ponte ou cais.
Antes de entrar na sala, a moça ousou olhar para o chão da varanda e já não existia nem luz, nem sombra. Era noite. A noite que sempre lhe restou.
Ela e o tio se entendiam, mesmo sendo ambos extremamente calados. Seus olhares eram, na maior parte das vezes, o bastante para travarem os mais diversos e sinceros diálogos. Eram cúmplices e parecidos, em silêncio e em semblante. Poucos sabiam que naquela casa não morava pai e filha, mas tio e sobrinha.
O casarão ficava em Aldeia, recanto conhecido pelo clima frio, pela tranqüilidade, pelo ar de campo, pelas frondosas árvores, pelo sabor de fazenda, apesar de distar poucos quilômetros de Recife, a grande cidade. Morar ali era feito morar no interior. Nada mais apropriado para dois intimistas bem peculiares.
Com vários quartos, salas, dentre outros tantos ambientes, todos adornados de forma aconchegante e condizente com a personalidade de ambos, a mansão contava ainda com uma imensa varanda, que, povoada de redes e plantas, verdadeiramente a circundavam.
O terreno, por sua vez, era composto por vários lotes, alguns planos, outros em relevo rebaixado, de modo que, no próprio quintal de casa, existia um genuíno vale formado graças a um córrego estreito que atravessava o derradeiro lote, avizinhando-se à mata.
E foi à beira daquele vale que Marília, livrando-se, dia a dia, de seu deserto, construiu seu jardim secreto, onde nem mesmo o tio ousava passear. Ele bem sabia das manias da sobrinha e, sobretudo, sua necessidade de solidão. E era ali que a moça, exorcizando fantasmas, construíra anos a fio uma alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas, ainda, suas favoritas.
E o jardim secreto, por si mesmo, falava. A plantação não era aleatória, mas permeada de significados. As violetas eram plantadas em dias de tristeza; as roseiras, em dia de inquietude; as verbenas, em dias de alegria, bem por isto o canteiro destinado às últimas era o mais curto, tomando o mínimo de chão.
Naquela tarde, mesmo debaixo de chuva, Marília havia plantado meia dúzia de violetas, cuja cor ainda lhe parecia confusa. As comprara como azuis, mas, na dúvida, preferiu não apostar na futura tonalidade daquelas flores, como não apostava nos tons dos dias vindouros.
O irmão, que há anos não via e com quem pouco convivera, regressaria a Recife. O real motivo de sua volta, ela e Abílio não suspeitavam. A desculpa dada ao tio tinha sido simplória e pareceu a Marília um tanto quanto desconfiável: o rapaz, de vinte e sete anos, depois de levar uma vida desregrada em São Paulo, sustentado pela escassa herança dos pais, já falecidos, viria tentar a vida com a noiva em Recife. Dizia sentir saudade dos verdadeiros laços. Queria rever o tio e Marília, os únicos que possuíam seu sangue e com quem poderia trilhar novos passos. Estava cansado da loucura que experimentava desde adolescente, perdido naquela cidade entre os maiores lunáticos, envolvido no meio artístico e de marketing, onde conheceu as figuras mais esquisitas e intragáveis. Foi o que, com ênfase, relatou ao pedir uma chance a ambos, além de hospedagem. Queria o aconchego de um lugar calmo e de uma nova vida, onde pudesse, realmente, tomar ares mais suaves.
Apesar de pouco convencido, desconfiado que era por natureza, Abílio estancou diante do instintivo não. Respirando fundo, olhou para Marília, que, ao lado, supunha o teor da conversa, tanto pelas palavras intercaladas que ouvia, quanto pelo silêncio de consternação que demarcava a testa franzida do tio. Também contrariada, mas sem muita opção, a moça assentiu com a cabeça, dando suporte à decisão. Em verdade, o fez mais por receio de cometer uma injustiça do que por seguir o que lhe dizia a razão. A ligação interurbana era cara, dizia o rapaz, enquanto relatava com exagero sua atual situação financeira, com o intuito de apressar a deliberação. E ela veio do jeito que ele e Sarah esperavam.
O plano era tão simples quanto sórdido: Abílio estava doente e possivelmente aquele seria o último ano de sua vida. A notícia chegou aos ouvidos de Rafael, causando-lhe um sorriso nada disfarçado. O tio era um grande empreendedor, possuidor de patrimônio incalculável. Não tinha esposa, nem filhos, apenas os dois sobrinhos. Marília era, por óbvio, a única considerada em termos de herança. Mas aquela situação poderia, certamente, ser revertida. E isto seria, a seu ver, inteiramente fácil.
Apesar de o assunto sempre ter sido escondido pela família, Rafael já tinha ouvido, por entre as paredes, os pais comentando sobre a orientação sexual da filha, motivo pelo qual expulsaram-na de casa. E, em seu imaginário, trazer a tona tal circunstância e de maneira politicamente incorreta seria o bastante para que o tio, possivelmente tão conservador quanto a irmã, deserdasse a sobrinha e, novamente, a deixasse sem nada.
Na seqüência, somente a ele caberia a fortuna a ser herdada, até por que pretendia ganhar a confiança e carinho do tio. Para tanto, não hesitaria em articular a forma exata de enlamear a imagem da irmã, que, a seu ver, nem deveria ser tão casta.
Para pôr o plano em prática precisaria de uma coadjuvante e logo lhe veio um nome à mente: Sarah. Ela, dentre todas as namoradas de Rafael, fora a única que chegou a participar de suas escolhas equivocadas com igual entusiasmo. A ousadia lhe era um atributo nato. Da forma de se vestir, à de se portar, ousava. Ademais, sua beleza, que beirava a estranheza do excêntrico, fatalmente envolvia a todos que desejasse. Era segura de si e, por vezes, essa segurança extrapolava o bom senso, tornando-a extremamente arrogante e intimidando quem quisesse enfrentá-la. Mas nada que ela não soubesse remediar, ainda mais quando era necessário seduzir e ludibriar o adversário.
O namoro durou pouco tempo. A irresponsabilidade de ambas as partes era tanta que, juntos, concluíram que se matariam. As noitadas, as drogas, as companhias, as brigas sempre exacerbadas, culminaram com tantos atropelos e desgastes que decidiram terminar. Entretanto, vez por outra ainda se encontravam. A atração nunca deixara de existir e, pelo menos fisicamente, eles a arrefeciam quando, esporadicamente, transavam.
Sim, somente Sarah, que era tão sórdida quanto o próprio articulador do plano, aceitaria o convite. Ainda mais com pagamento garantido e em curto prazo. Foi com este pensamento que, na última semana, Rafael a procurou.
Os dois se encontraram no estúdio de um artista plástico que se dizia amigo de Rafael, desde que este lhe servisse algumas carreiras de cocaína ou coisa mais “louvável”, era este o pacto. O pequeno e bagunçado espaço, cujas paredes eram tomadas de desenhos sombrios, geralmente era o usado pelo casal quando, no meio da tarde, arrumavam tempo para uma transa, onde nada era muito convencional.
Daquela feita, despiram-se sem dizer nada. Ele já excitado, ela convencida de que se sentiria mais leve depois de alguns orgasmos. Vinha se sentindo tão pesada, tão cansada daquela vida vazia de sentido, apesar de cheia de fatos.
Tomando-a de forma vigorosa e apressada, Rafael a empurrou num sofá acinzentado feito o céu daquela tarde fria em São Paulo, fazendo-a abrir as penas com um sorriso sarcástico enquanto anunciava a novidade. Sarah cedeu com a respiração já alterada e, enquanto o sentia invadindo sua carne, olhava-o nos olhos, como costumava fazer, sempre mantendo o controle e esperando. Ele, então, começou a relatar, com palavras entrecortadas e a respiração sôfrega, o tão estimado plano, enquanto, de forma ritmada, a penetrava.
O prazer estampado em seus olhos encontrou respaldo nos olhos de Sarah, que atentamente o assistia, o ouvia e, sobretudo, o recebia dentro de si, em paridade de vontade e crueldade.
E assim, enquanto se moviam de forma cada vez mais intensa e acelerada, a doença terminal do tio, o patrimônio deste, a herança a ser deixada, as investidas para seduzir Marília, a cunhada, e de mostrá-la como uma lésbica inescrupulosa capaz de roubar a noiva do próprio irmão, serviram de afrodisíacos. E os dois, ao selarem o trato também de forma ritmada, gozaram.
Depois do gozo, os corpos suados deitaram de forma displicente no tapete que se estendia, salpicado de tintas coloridas, sob o sofá. Silenciosos, respiraram fundo, ambos olhando o teto, enquanto acendiam cigarros. Mas, naquele instante, não havia o costumeiro tédio que os assolava depois do orgasmo. Eles ainda se sentiam preenchidos.
Finalmente o dia da viagem chegou e com ele, muita inquietação para quase todos. Enquanto Marília, em seu quarto e insone, assistia a chuva escorrendo pela janela, Rafael, Sarah e Lis inquietavam-se no avião. Cada um experimentado as turbulências que lhes eram inevitáveis.
Marília, com a chegada da noite, já identificava com precisão o sentimento que a tomava, ousando adivinhar a tonalidade e as flores a serem semeadas nos dias vindouros, o que ainda não havia feito no início da tarde. O sentimento era o de inquietação. Sentia-se inteiramente apreensiva com a chegada do irmão, da cunhada e da filha desta, que se daria em algumas horas. E se naquele instante possuísse disposição, se ergueria e plantaria uma roseira na madrugada.
A doença de Abílio vinha sendo a responsável pelas inúmeras noites que Marília virava insone. Graças ao câncer que, gradativamente, tomava o corpo do tio, o canteiro de violentas, também de forma gradativa, crescia e tomava a maior parte de seu jardim secreto. Mas, definitivamente, no dia seguinte, depois de muitas violetas plantadas, Marília voltaria a semear roseiras. E que o jardim, por ela, falasse. Afinal, a inquietação, naquela noite, mais do que a tristeza, lhe aturdia e lhe fazia prever os novos canteiros que estavam por vir, todos feitos de rosas vermelhas.
Já Rafael e Sarah, estes se inquietavam com a farsa que começariam a vivenciar no dia seguinte, trajando as vestes do casal perfeito que, em harmonia, dividia a vida com a menina de sete anos, filha de Sarah.
Rafael seria o jovem de boa índole que pedira ajuda ao tio, aceitando o emprego em sua construtora, especificamente no projeto que se iniciava em Aldeia, onde seria construído, sob os comandos da engenheira, Marília, um grande e luxuoso condomínio.
Sarah seria a noiva solícita e doce, praticamente esposa, que, acompanhando os sonhos e projetos do quase marido, também aceitara mudar de vida e de ares, mesmo que, para tanto, fosse preciso morar momentaneamente e de favor na casa do tão querido tio Abílio. E ela já chegaria dizendo que o sobrinho, do tio, muito falava.
Lis, na inocência de seus tão poucos anos, era a única que não interpretava. Apenas sorria, enquanto percebia a mãe e o ex-namorado vestindo roupas formais e falando sem gírias, forçando bons modos, com os quais não estavam acostumados.
Abílio era o único que, naquela noite, dormia. Já não temia a morte, quiçá as intempéries da vida. Não havia flores a escolher, tampouco farsas a ensaiar. Apesar de doente, sentia-se curado de grandes males.
VIOLETAS
Imagens disformes e vacilantes formadas pelas sombras das árvores no chão, que pareciam dançar mesclando o sol e sua ausência no piso do terraço, graças ao vento da tarde que arremessava os eucaliptos para todos os lados. Era esta a cena que atraía a atenção de Marília.
Deitada em uma das redes que rodeava a casa, observava aqueles desenhos formados ao acaso. Instintivamente, introspectiva desde sempre, voltou-se para dentro de si, comparando e mesclando também as imagens de seu presente e passado.
As imagens da infância eram tão turvas e desconexas quanto as que se formavam nos recantos do piso, beirando a parede e os umbrais das portas da varanda que davam para dentro de casa. Quando criança vivia com os pais, mas guardava de ambos pouquíssimos detalhes.
Da mãe, recordava-se dos olhos esverdeados e puxados feito os seus, do cheiro adocicado do hálito e do tom cálido da voz, que, vez por outra, lhe entoava canções antes de dormir.
Do pai, lembrava-se da textura grossa das mãos, donde advinham afagos tão raros quanto pesados, da barba impecavelmente aparada, que exalava um perfume cítrico, semelhante ao dos eucaliptos que naquele instante se embalavam.
Dos dois juntos, mal se recordava. Talvez de um passeio de mãos dadas num final de tarde feito aquele, o qual nem mesmo Marília soube ser real ou inventado. A vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.
Os recortes da adolescência eram os mais claros. A nitidez, capaz de arder na íris e na alma da que lembrava, advinha, sobretudo, de um fato: aos dezesseis anos expulsaram-na de casa. E tal evento deveu-se também a uma cena, esta menos nítida e vista não propriamente por Marília, mas por seus pais, no espaço restrito da fechadura de uma porta: a de seu quarto.
Ironicamente, no dia em que a observada descobrira-se viva, pensando-se guardada e protegida em seu quarto, num primeiro beijo partilhado com uma jovem igualmente apaixonada, os pais desejaram-na morta. Diante da impossibilidade do concreto, retiraram-lhe o chão e o teto.
Atravessando o jardim que adornava a casa paterna, ela foi arrastada por entre a alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas suas favoritas. Par e passo, as pegadas dos pais, ladeando as suas, iam sendo fincadas no solo de tão pesadas e duras. Enquanto as folhas e flores eram arrancadas pelos passos trôpegos da menina aturdida, a terra subia e sujava as vestes que usava, únicas que levaria. Não sabia que se sentiria impregnada por aquela terra escura durante tantos anos, tampouco sabia que as pegadas deixadas por aquele dia continuariam marcando o solo de sua jornada, mesmo depois que as primeiras chuvas apagassem as que marcaram o caminho de sua antiga casa.
Enquanto atravessava o portão baixo, de ferro adornado, que separava seu antigo lar do mundo, Marília sentiu formar-se dentro de si um imenso deserto. E, naquele instante de choro e vazio, não soube se, um dia, algo de bom ainda brotaria por ali.
O choro já não era audível, nem externo, quando Marília foi deixada na porta daquela que se tornaria sua casa. Parada diante do portão imenso, na mansão do único tio, limitou-se a olhar para frente, ainda que, naquele momento, visse tão somente um muro alto e de pedras escuras.
Acompanhou, apenas com a audição, a partida dos pais que, acelerando o carro, deixaram-na para trás. Mas ela seguiria em frente. Com o pouco de força que encontrou, abraçou-se ao tio Abílio, que, naquela época, era para si um desconhecido, mas o único capaz de lhe oferecer abrigo. Ele lhe abriu os portões, ela entrou.
E agora estava ali à sua frente, o seu presente. O tio era um grande amigo e, alheio à retrospectiva que Marília, involuntariamente, fazia, vinha ao seu encontro, chamando-a para o chá da tarde. Com a cabeça branca e os olhos claros, com um sorriso amistoso e um beijo suave pousado na cabeça da sobrinha, despertou-a do devaneio proporcionado pelas imagens. Instantaneamente as sombras se dissiparam e Marília, erguendo-se da rede, aceitou o convite, mas, antes de dar o primeiro passo rumo à sala, o abraçou.
Abílio, com estranheza, apertou-a nos braços, afagando com graça os cabelos curtos e lisos de Marília, já desalinhados pelo vento. Curioso, perguntou o porquê daquela demonstração súbita de afeto, o que era uma raridade. E aquela que, para ele, ainda era uma menina, com a voz de adulta, prontamente lhe explicou:
- Saudade.
Se ela sentia saudade do contato proporcionado pelo abraço ou de algum fato perdido no passado, Abílio não soube precisar. Na verdade, nem mesmo Marília sabia do que sentia saudade. Talvez de um tempo bom que ainda não havia vivido, apesar dos trinta anos de idade.
O portão imenso que um dia lhe deu passagem, guiado pela mão de Abílio, depois da entrada de Marília, fechou-se tanto quanto a jovem que, durante os anos vindouros, imitando a fortaleza e imponência dos portais, não deu acesso a mais ninguém, a não ser ao tio. E talvez a falta que sentisse naquele instante fosse exatamente de um tempo em que, mais do que muralha, ainda se sentia capaz de ser ponte ou cais.
Antes de entrar na sala, a moça ousou olhar para o chão da varanda e já não existia nem luz, nem sombra. Era noite. A noite que sempre lhe restou.
Ela e o tio se entendiam, mesmo sendo ambos extremamente calados. Seus olhares eram, na maior parte das vezes, o bastante para travarem os mais diversos e sinceros diálogos. Eram cúmplices e parecidos, em silêncio e em semblante. Poucos sabiam que naquela casa não morava pai e filha, mas tio e sobrinha.
O casarão ficava em Aldeia, recanto conhecido pelo clima frio, pela tranqüilidade, pelo ar de campo, pelas frondosas árvores, pelo sabor de fazenda, apesar de distar poucos quilômetros de Recife, a grande cidade. Morar ali era feito morar no interior. Nada mais apropriado para dois intimistas bem peculiares.
Com vários quartos, salas, dentre outros tantos ambientes, todos adornados de forma aconchegante e condizente com a personalidade de ambos, a mansão contava ainda com uma imensa varanda, que, povoada de redes e plantas, verdadeiramente a circundavam.
O terreno, por sua vez, era composto por vários lotes, alguns planos, outros em relevo rebaixado, de modo que, no próprio quintal de casa, existia um genuíno vale formado graças a um córrego estreito que atravessava o derradeiro lote, avizinhando-se à mata.
E foi à beira daquele vale que Marília, livrando-se, dia a dia, de seu deserto, construiu seu jardim secreto, onde nem mesmo o tio ousava passear. Ele bem sabia das manias da sobrinha e, sobretudo, sua necessidade de solidão. E era ali que a moça, exorcizando fantasmas, construíra anos a fio uma alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas, ainda, suas favoritas.
E o jardim secreto, por si mesmo, falava. A plantação não era aleatória, mas permeada de significados. As violetas eram plantadas em dias de tristeza; as roseiras, em dia de inquietude; as verbenas, em dias de alegria, bem por isto o canteiro destinado às últimas era o mais curto, tomando o mínimo de chão.
Naquela tarde, mesmo debaixo de chuva, Marília havia plantado meia dúzia de violetas, cuja cor ainda lhe parecia confusa. As comprara como azuis, mas, na dúvida, preferiu não apostar na futura tonalidade daquelas flores, como não apostava nos tons dos dias vindouros.
O irmão, que há anos não via e com quem pouco convivera, regressaria a Recife. O real motivo de sua volta, ela e Abílio não suspeitavam. A desculpa dada ao tio tinha sido simplória e pareceu a Marília um tanto quanto desconfiável: o rapaz, de vinte e sete anos, depois de levar uma vida desregrada em São Paulo, sustentado pela escassa herança dos pais, já falecidos, viria tentar a vida com a noiva em Recife. Dizia sentir saudade dos verdadeiros laços. Queria rever o tio e Marília, os únicos que possuíam seu sangue e com quem poderia trilhar novos passos. Estava cansado da loucura que experimentava desde adolescente, perdido naquela cidade entre os maiores lunáticos, envolvido no meio artístico e de marketing, onde conheceu as figuras mais esquisitas e intragáveis. Foi o que, com ênfase, relatou ao pedir uma chance a ambos, além de hospedagem. Queria o aconchego de um lugar calmo e de uma nova vida, onde pudesse, realmente, tomar ares mais suaves.
Apesar de pouco convencido, desconfiado que era por natureza, Abílio estancou diante do instintivo não. Respirando fundo, olhou para Marília, que, ao lado, supunha o teor da conversa, tanto pelas palavras intercaladas que ouvia, quanto pelo silêncio de consternação que demarcava a testa franzida do tio. Também contrariada, mas sem muita opção, a moça assentiu com a cabeça, dando suporte à decisão. Em verdade, o fez mais por receio de cometer uma injustiça do que por seguir o que lhe dizia a razão. A ligação interurbana era cara, dizia o rapaz, enquanto relatava com exagero sua atual situação financeira, com o intuito de apressar a deliberação. E ela veio do jeito que ele e Sarah esperavam.
O plano era tão simples quanto sórdido: Abílio estava doente e possivelmente aquele seria o último ano de sua vida. A notícia chegou aos ouvidos de Rafael, causando-lhe um sorriso nada disfarçado. O tio era um grande empreendedor, possuidor de patrimônio incalculável. Não tinha esposa, nem filhos, apenas os dois sobrinhos. Marília era, por óbvio, a única considerada em termos de herança. Mas aquela situação poderia, certamente, ser revertida. E isto seria, a seu ver, inteiramente fácil.
Apesar de o assunto sempre ter sido escondido pela família, Rafael já tinha ouvido, por entre as paredes, os pais comentando sobre a orientação sexual da filha, motivo pelo qual expulsaram-na de casa. E, em seu imaginário, trazer a tona tal circunstância e de maneira politicamente incorreta seria o bastante para que o tio, possivelmente tão conservador quanto a irmã, deserdasse a sobrinha e, novamente, a deixasse sem nada.
Na seqüência, somente a ele caberia a fortuna a ser herdada, até por que pretendia ganhar a confiança e carinho do tio. Para tanto, não hesitaria em articular a forma exata de enlamear a imagem da irmã, que, a seu ver, nem deveria ser tão casta.
Para pôr o plano em prática precisaria de uma coadjuvante e logo lhe veio um nome à mente: Sarah. Ela, dentre todas as namoradas de Rafael, fora a única que chegou a participar de suas escolhas equivocadas com igual entusiasmo. A ousadia lhe era um atributo nato. Da forma de se vestir, à de se portar, ousava. Ademais, sua beleza, que beirava a estranheza do excêntrico, fatalmente envolvia a todos que desejasse. Era segura de si e, por vezes, essa segurança extrapolava o bom senso, tornando-a extremamente arrogante e intimidando quem quisesse enfrentá-la. Mas nada que ela não soubesse remediar, ainda mais quando era necessário seduzir e ludibriar o adversário.
O namoro durou pouco tempo. A irresponsabilidade de ambas as partes era tanta que, juntos, concluíram que se matariam. As noitadas, as drogas, as companhias, as brigas sempre exacerbadas, culminaram com tantos atropelos e desgastes que decidiram terminar. Entretanto, vez por outra ainda se encontravam. A atração nunca deixara de existir e, pelo menos fisicamente, eles a arrefeciam quando, esporadicamente, transavam.
Sim, somente Sarah, que era tão sórdida quanto o próprio articulador do plano, aceitaria o convite. Ainda mais com pagamento garantido e em curto prazo. Foi com este pensamento que, na última semana, Rafael a procurou.
Os dois se encontraram no estúdio de um artista plástico que se dizia amigo de Rafael, desde que este lhe servisse algumas carreiras de cocaína ou coisa mais “louvável”, era este o pacto. O pequeno e bagunçado espaço, cujas paredes eram tomadas de desenhos sombrios, geralmente era o usado pelo casal quando, no meio da tarde, arrumavam tempo para uma transa, onde nada era muito convencional.
Daquela feita, despiram-se sem dizer nada. Ele já excitado, ela convencida de que se sentiria mais leve depois de alguns orgasmos. Vinha se sentindo tão pesada, tão cansada daquela vida vazia de sentido, apesar de cheia de fatos.
Tomando-a de forma vigorosa e apressada, Rafael a empurrou num sofá acinzentado feito o céu daquela tarde fria em São Paulo, fazendo-a abrir as penas com um sorriso sarcástico enquanto anunciava a novidade. Sarah cedeu com a respiração já alterada e, enquanto o sentia invadindo sua carne, olhava-o nos olhos, como costumava fazer, sempre mantendo o controle e esperando. Ele, então, começou a relatar, com palavras entrecortadas e a respiração sôfrega, o tão estimado plano, enquanto, de forma ritmada, a penetrava.
O prazer estampado em seus olhos encontrou respaldo nos olhos de Sarah, que atentamente o assistia, o ouvia e, sobretudo, o recebia dentro de si, em paridade de vontade e crueldade.
E assim, enquanto se moviam de forma cada vez mais intensa e acelerada, a doença terminal do tio, o patrimônio deste, a herança a ser deixada, as investidas para seduzir Marília, a cunhada, e de mostrá-la como uma lésbica inescrupulosa capaz de roubar a noiva do próprio irmão, serviram de afrodisíacos. E os dois, ao selarem o trato também de forma ritmada, gozaram.
Depois do gozo, os corpos suados deitaram de forma displicente no tapete que se estendia, salpicado de tintas coloridas, sob o sofá. Silenciosos, respiraram fundo, ambos olhando o teto, enquanto acendiam cigarros. Mas, naquele instante, não havia o costumeiro tédio que os assolava depois do orgasmo. Eles ainda se sentiam preenchidos.
Finalmente o dia da viagem chegou e com ele, muita inquietação para quase todos. Enquanto Marília, em seu quarto e insone, assistia a chuva escorrendo pela janela, Rafael, Sarah e Lis inquietavam-se no avião. Cada um experimentado as turbulências que lhes eram inevitáveis.
Marília, com a chegada da noite, já identificava com precisão o sentimento que a tomava, ousando adivinhar a tonalidade e as flores a serem semeadas nos dias vindouros, o que ainda não havia feito no início da tarde. O sentimento era o de inquietação. Sentia-se inteiramente apreensiva com a chegada do irmão, da cunhada e da filha desta, que se daria em algumas horas. E se naquele instante possuísse disposição, se ergueria e plantaria uma roseira na madrugada.
A doença de Abílio vinha sendo a responsável pelas inúmeras noites que Marília virava insone. Graças ao câncer que, gradativamente, tomava o corpo do tio, o canteiro de violentas, também de forma gradativa, crescia e tomava a maior parte de seu jardim secreto. Mas, definitivamente, no dia seguinte, depois de muitas violetas plantadas, Marília voltaria a semear roseiras. E que o jardim, por ela, falasse. Afinal, a inquietação, naquela noite, mais do que a tristeza, lhe aturdia e lhe fazia prever os novos canteiros que estavam por vir, todos feitos de rosas vermelhas.
Já Rafael e Sarah, estes se inquietavam com a farsa que começariam a vivenciar no dia seguinte, trajando as vestes do casal perfeito que, em harmonia, dividia a vida com a menina de sete anos, filha de Sarah.
Rafael seria o jovem de boa índole que pedira ajuda ao tio, aceitando o emprego em sua construtora, especificamente no projeto que se iniciava em Aldeia, onde seria construído, sob os comandos da engenheira, Marília, um grande e luxuoso condomínio.
Sarah seria a noiva solícita e doce, praticamente esposa, que, acompanhando os sonhos e projetos do quase marido, também aceitara mudar de vida e de ares, mesmo que, para tanto, fosse preciso morar momentaneamente e de favor na casa do tão querido tio Abílio. E ela já chegaria dizendo que o sobrinho, do tio, muito falava.
Lis, na inocência de seus tão poucos anos, era a única que não interpretava. Apenas sorria, enquanto percebia a mãe e o ex-namorado vestindo roupas formais e falando sem gírias, forçando bons modos, com os quais não estavam acostumados.
Abílio era o único que, naquela noite, dormia. Já não temia a morte, quiçá as intempéries da vida. Não havia flores a escolher, tampouco farsas a ensaiar. Apesar de doente, sentia-se curado de grandes males.
3 comentários:
Parabéns por mais este conto, vc realmente tem o dom de tocar fundo em nossa alma. Já me tornei sua fã incondicional.
Beijão e sucesso,
Olivia
ADORO TUDO QUE ESCREVE...PARABÉNS.
CRIS
Há alguns meses que tenho essa rotina, todos os dias passo por aqui...adoro seus contos, suas poesias, da maneira como escreve e de como vc é linda... estou encantada...
Beijos de um fã
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