sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O JARDIM SECRETO (Capítulo V)


CAPÍTULO V


FLOR DE LIS

No alpendre do chalé, ainda sentindo o cheiro das flores, as rosas híbridas se despediram. Para não chamarem a atenção, Marília sugeriu que Sarah seguisse na frente e esta foi, caminhando leve, como se não quisesse esmagar as pétalas que imaginava ter pelo caminho.

Marília, enquanto fitava a outra se afastando, sentia como se cada metro vencido lhe ferisse. Eram os espinhos inevitáveis daquela distância. Mas ela poderia ser momentânea, cogitava a moça, tentando livrar-se da angústia pontiaguda.

Ao chegar à sala, Sarah deparou-se com Rafael que, vendo-a, rapidamente ergueu-se do sofá onde se sentava displicentemente, indo ao seu encontro com um sorriso sarcástico e o olhar curioso. Puxando-a pela mão, arrastou-a para um dos cantos do terraço e questionou animado:

- E aí? Você conseguiu?

Hesitante, Sarah demorou-se na resposta. E quando a deu, não olhou Rafael nos olhos:

- Ainda não foi desta vez.

Desconfiado, já agressivo, Rafael segurou o queixo de Sarah com força, fazendo-a erguer a vista:

- Tem certeza de que está me dizendo a verdade?

E neste momento, a mulher de olhos negros titubeou na voz e nos passos, fraquejando para trás como se suas raízes estivessem corroídas. Engolindo a saliva, que lhe desceu amarga, respondeu tentando não oscilar o tronco e as palavras, em meio àquela ventania:

- Sim...eu tenho.

Mas o silêncio que antecedeu a resposta falou mais alto do que a moça. E, na ausência da voz, Rafael escutou outras tantas coisas: Sarah, certamente, tinha mudado de plano. Havia se apaixonado por Marília e agora, juntas, o enganavam, ganhando tempo enquanto o tio não morria! Enfim, ele era o traído! Só podia ser isto!

Na seqüência das conclusões, tomado da mais genuína ira e vazio de toda razão, o rapaz pegou Sarah pelo pescoço, sufocando-a com toda a força que possuía, enquanto espalhava as pétalas imaginárias que ali ainda jaziam.

Com a outra mão, ergueu a saia da moça e, absolutamente rude, devassou sua carne, buscando a prova que queria. E só então sentiu com os próprios dedos os vestígios da traição.

Sarah fechou os olhos e engasgou-se com o choro, enquanto pressentia que o jardim recém construído estava preste a ruir. E imediatamente soube: mais que o ventre, a alma fora invadida por aquele desconhecido que não parecia, tão cedo, querer sair.

Mas, no segundo vindouro, Rafael saiu, pelo menos de seu corpo. Entretanto, ainda não era a hora da trégua. A maldade maior estava por vir.

Erguendo os dedos trêmulos e brilhosos, o estranho os esfregou no rosto de Sarah, como se quisesse esgotar todo o ódio do mundo, e, rangendo os dentes, bradou:

- Você esqueceu que sou o único capaz de distinguir sua verdade e sua mentira, não foi? – e valendo-se do duplo sentido, continuou – Somente eu a conheço a fundo!

Interrompendo a seqüência dos absurdos, Marília os surpreendeu com a chegada. Com os olhos confusos e visivelmente aturdida, somente agora compunha aquela cena grotesca e o fazia abismada. O semblante assustado de ambos e, principalmente, o silêncio instantâneo a fez perceber que ali se calava um segredo. E logo intuiu, com angústia: Rafael já sabia de tudo!

Só não conseguia entender por que Sarah, a única capaz de elucidar o segredo das duas, o havia feito? Com que intento a moça revelou ao irmão o caminho do jardim secreto que, com cumplicidade, habitaram naquela tarde? Por que deixar Rafael esmagar as rosas híbridas?

Como se desvendasse seus pensamentos, o irmão lhe deu a explicação da forma mais dolorosa possível, porém, com a ênfase da verdade:

- Seduzi-la foi apenas parte de um plano que em breve me permitirá expulsá-la desta casa, Marília! O pai precisa saber a filha que tem para poder deserdá-la!

Neste instante, Sarah deixou-se escorregar para o chão e, ao tocá-lo, não sentiu a maciez das pétalas.

Enquanto Rafael partia para o quarto de Abílio, com o intento de dar por findo o plano, ainda que sem o auxílio da coadjuvante, Marília saía com pressa, abalroando os móveis da varanda, como se arremessasse terra escura a cada passo.

A chuva, que caía forte, deu àquela fuga o som dos trovões e a claridade desnorteante de relâmpagos indecisos. Atravessando os eucaliptos, tombando pela lama, com a vista inteiramente turva, finalmente Marília avistou o jardim, que lhe pareceu borrado, manchado, com as cores misturadas e mais escuras.

Ao entrar naquele reduto, outrora tão cálido e querido, tudo o que sentiu foi o frio capaz de congelar os lábios e os passos. E ela parou. Estranhou o antigo abrigo. Na tentativa de reconhecê-lo, buscou distinguir o perfume das flores, mas o único que captou foi o de Sarah.

Olhando para o alto, sentiu o verde da íris afogando-se nas lágrimas e na chuva. E com amargura constatou: seu amor também desabaria e escorreria feito aquelas águas. Inconformada, rodopiou com os braços abertos, como se quisesse ser salva, mas não foi. Caiu.

Na queda, espalhou a terra escura para todos os lados e, sobretudo, dentro de si. Ergueu-se e quis vingar-se. Com este intento, caminhou até o canteiro e passou a arrancar, em primeiro lugar, as rosas híbridas. Na seqüência, as vermelhas, brancas, amarelas e rosas chá foram, também, desalojadas. Não mais teriam casa, decidiu a dona do jardim com crueldade ímpar! E tudo isto fez sem se preocupar com os espinhos que lhe sangravam: aquela dor era pequena.

Depois foi a vez das verbenas. De joelhos, resoluta, Marília arrancou uma a uma. Sentiu que não as merecia. Definitivamente, não havia nascido para tê-las. E que morressem, como ela mesma morria. Apiedou-se apenas de uma: a que plantou com Lis. E só esta ficou.

E assim, apenas o canteiro das violetas permaneceu intacto, a ser multiplicado nos dias que estavam por vir.

Na mesma noite, a verbena que sobreviveu ao embate viajaria no colo da criança que, durante todo o vôo, a regou com lágrimas infantis.

Mesmo depois de tantos anos, Marília ainda se lembrava com nitidez daquele fatídico dia. À beira da sepultura do tio, enquanto depositava um pequeno jarro com violetas azuis próximo à lápide, lembrou-se de seus olhos, de sua voz, de seu amor irrestrito.

Vasculhando outras lembranças, dando corda ao relógio da memória, retornou exatamente ao momento em que resolvera voltar para a casa, depois de destruir quase a inteireza do jardim secreto.

Lá chegando, resgatando os últimos vestígios de força, passou pela sala tentando ignorar Sarah. Mas esta foi ao seu encontro e, lhe segurando pelo braço, fez com que parasse e lhe disse, aos soluços:

- Perdoe-me, Marília!

Mas Marília não estava preparada para o perdão. Estava era preparada para o embate com o irmão. E assim, rumou para o quarto do tio, onde encontrou ambos. Diante da porta, estancou. Abílio lhe disse para entrar e ela o fez.

Rafael acabara de relatar ao tio a traição e, em atuação, fingiu a sofreguidão de um inocente, tentando convencê-lo de que, realmente, sofria; já havia posto a máscara de vilã na irmã que, seduzindo a própria cunhada, tinha lhe arrastado para uma armadilha; já tinha erguido sobre a própria cabeça uma auréola e, com os olhos molhados, apesar de vazios, esperava a sentença do tio. E agora, para sua surpresa, assistia com prazer contido a chegada da ré: Marília.

Sem alterar a voz, com os olhos azuis que, apenas agora, lembraram a cor das violetas, Abílio sentenciou, não a sobrinha, mas o sobrinho:

- Conheço inteiramente Marília. Dela sei até o que a própria não sabe e sinto-me extremamente orgulhoso por isto. Já de você, Rafael, sei muito pouco. E não gostei do que acabei de descobrir... – depois de uma pausa e um suspiro, continuou – Saiba que já está no meu testamento e desde cedo. Agora, por favor, saia desta casa e de nossa vida. Algumas coisas não se herdam e você não teve a sorte de herdar o caráter de Marília.

A sentença estava dada e o remorso, mais do que a força, fez com que Rafael desaparecesse por todos aqueles anos. De Sarah, Marília também não teve notícias. O desencontro emocional, mais do que o físico, as afastou e a dona da casa sequer viu a visitante partindo.

Em verdade, naquele memorável dia, despediu-se apenas de Lis, presenteando-a com a única verbena que sobreviveu ao embate. Esta foi a forma que Marília encontrou de desejar a menina toda a felicidade que a própria não possuía. Lis a merecia.

E assim, durante todos aqueles anos, Marília reuniu forças e flores, forçou sorrisos e reestruturou o seu jardim. Buscou amores-perfeitos, brincou de bem-me-quer e mal-me-quer com as margaridas, provou das mais sofisticadas orquídeas, encantou-se com algumas sempre-vivas, só não conseguiu semear novamente verbenas.

Diante da violeta depositada no jazigo, olhando a data inscrita na lápide, percebeu surpresa e comovida: dez anos haviam se passado desde a morte de Abílio. E assim, abandonando as lembranças e voltando ao presente, depois da visita que fizera ao tio que, em verdade, habitava em outro plano, certamente mais florido do que aquele, Marília resolveu que era a hora de voltar para casa.

Tomando o caminho de Aldeia, logo chegou àquela mesma mansão em que agora morava sozinha. Para apressar seus passos, antes mesmo de abrir a porta, Marília escutou o telefone.

Atravessando a sala, logo atendeu ao chamado. Com inquietação, esperou que a voz feminina se identificasse. Na seqüência, veio a surpresa e um sorriso. No dia seguinte receberia uma visita inusitada. Por este motivo, naquela noite, a insônia também lhe visitou.

Com antecedência exagerada, no dia seguinte, Marília saiu de casa. Tomada de entusiasmo, dirigiu apressada até o Aeroporto Internacional dos Guararapes. Lá chegando, ao avistar o local destinado ao desembarque, algumas lembranças foram inevitáveis e ela, inesperadamente, sentiu o cheiro das rosas híbridas.

Em instantes, estava no saguão de piso polido, aguando inquieta, enquanto, em seu coração, involuntariamente, rosas vermelhas floresciam.

Já impaciente, evitando recordar-se de algumas imagens, sobretudo das violetas, finalmente Marília ergueu a vista. Foi quando, no meio da multidão que se aproximava, distinguiu a jovem de rosto moreno e de traços perfeitamente simétricos que, emocionada, lhe sorria.

Aproximando-se lentamente, Lis parou de frente para Marília, fisgando absolutamente os olhos verdes que a investigavam, brilhantes e na expectativa do abraço que não vinha.

Na seqüência dos segundos, que pareciam avolumar-se, antes de abraçar a inesquecível amiga, a menina que agora era uma moça de corpo e de alma, estendeu-lhe o presente que, até aquele momento, Marília sequer havia notado.

Era um pequeno vaso povoado de verbenas. E, ao oferecê-las, Lis demonstrou ter entendido perfeitamente o recado que, há tantos anos, Marília havia lhe dado em meio ao jardim secreto, naquela tarde de tanta alegria:

- As verbenas nunca ficam sozinhas.

E só então veio o abraço, justo feito o destino que, novamente, as unia. E assim as duas ficaram alguns instantes, de olhos bem fechados, embalando os corpos e as verbenas que, dentro de ambas, brotavam com euforia.

Quando os olhos verdes, finalmente, resolveram retomar a vista, perceberam que, logo adiante, mais um semblante conhecido despontava. Incrédula, Marília piscou os olhos, mas estes continuavam turvos e ela, indecisa.

Muito embora não tivesse certeza do que via, Marília bem sabia: a vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.

E, fosse real ou imaginada, fato era que, à frente, estava Sarah e esta lhe sorria. O tempo havia modificado um pouco aquele semblante, mas Marília o reconheceria em qualquer lugar do mundo! É que aquele rosto, mesmo estando distante, jamais saíra de seu jardim secreto.

De posse da verbena, Marília, finalmente, sentia-se feliz. E o mais inusitado de tudo: aquele encontro, mesmo que não durasse mais do que um segundo roubado da razão, devia-se tão somente à flor de Lis.
FIM

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