CAPÍTULO IV
ROSAS HÍBRIDAS
No caminho para a casa, apesar de a cesta de vime restar vazia, Marília carregava um enorme peso. Percebia que nem sempre era possível voltar de determinados lugares. De um estranho modo, sentia-se prisioneira da dimensão que acabara de visitar ao lado de Sarah e de Lis, ambas já conhecedoras do jardim secreto, embora a primeira sequer houvesse avistado as flores.
Para aumentar o pesar, enquanto subia o primeiro degrau que dava acesso à varanda, quase bate de frente com o irmão que, fazendo o caminho inverso, apressava-se em alcançar a noiva no gramado. Abraçando Sarah fortemente, Rafael deu-lhe um beijo longo e escancarado, absolutamente alheio aos demais, inclusive a Lis que, envergonhada, baixou os olhos.
Apenas uma cena na vida havia lhe causado aquele mal-estar súbito. Um nó na garganta impediu qualquer tentativa de respiração e Marília, impressionada com a reação do próprio corpo, sentiu-se novamente a adolescente frágil e assustada sendo arrastada pelos pais em meio às flores que, inocentes, morriam para lhe dar passagem naquele doloroso percurso.
Desolada, Marília também baixou os olhos, tentando recuperar o fôlego. Mas logo se assustou com o que viu: as vestes pareciam inteiramente cobertas pela mesma terra escura que adubava o jardim da casa paterna; nos pés chegou a sentir as ramagens e galhos das violetas, roseiras e verbenas emaranhando, enroscando, atravancando seu curso; na mão esquerda passou a sentir a aspereza e o peso das mãos do pai, apertando-a; na direita, mesclavam-se a maciez e crueldade das mãos da mãe; na alma, sentiu o derradeiro golpe, o último puxão: aquele que lhe fez atravessar o portão de muros baixos e lhe lançou no mundo, defronte a um enorme muro desconhecido de pedras escuras. O deserto voltou.
Marília não sabia se conseguiria, daquela vez, seguir em frente. Descobriu que sim ao dar as costas para a cena e avistar os olhos do tio que, da soleira de casa, a fitavam. Sem desviar o olhar verde do azul, traçou mentalmente uma reta e apressadamente caminhou. Mais uma vez o tio lhe abriu as portas e ela entrou.
De noite, Aldeia recebeu a visita da chuva e do frio. Ernesta, aproveitando o clima intimista, preparou um amistoso fondue de queijo, a ser servido com um bom vinho tinto.
Rafael estava por demais animado com as vendas e, sobretudo, com a aproximação gradativa que notava entre Marília e Sarah. Havia percebido o ciúme estampado nos olhos da irmã quando beijou a noiva e já conseguia vislumbrar cifras e cifras de uma herança que, em breve, estaria em seu bolso.
Efusivo com as perspectivas, principalmente por notar que o tio, a cada dia, aproximava-se da partida, propôs um brinde em voz alta, homenageando aquele que, em verdade, desejava que já estivesse morto:
- Ao meu querido tio Abílio!
Mas o homenageado, que havia decidido ir dormir um pouco mais tarde naquela noite, ocupando a taça de cristal com suco de uva, propôs um outro brinde:
- À minha querida filha, para quem hei de abrir todas as portas do mundo!
E apenas naquele instante Marília deixou uma lágrima rolar pelo rosto.
Pousando os talheres no prato, dizendo que não se sentia muito bem, Sarah pediu licença e retirou-se.
No dia seguinte, a casa atravessou a manhã mais silenciosa do que o normal. Rafael, apesar do avantajar das horas, permanecia dormindo, trancado. Abílio não quis sair do quarto e Lis pediu para ficar ao seu lado, contando-lhe pela milionésima vez as mesmas histórias. Quanto a Sarah, desta não se ouviu sequer a voz.
Marília, apesar de ter acordado antes de todos, resolveu que só iria trabalhar à tarde. Sentia-se exausta e, para renovar as forças, resolveu fazer o que há muito não fazia: meditar.
Ao lado da casa principal, descendo um pouco a encosta que ladeava o terreno, existia um pequeno chalé que, outrora, servia como casa de hóspedes. Como, em verdade, nenhum dos dois anfitriões gostava de receber visitas que passassem mais do que um dia, a pedido de Marília o chalé virou um local voltado para atividades alternativas.
A moça interessava-se por diversas práticas e técnicas orientais, dentre elas a meditação, o uso de florais, a aplicação de Reiki e acupuntura. Vez por outra proporcionava a alguns conhecidos de Aldeia sessões gratuitas, principalmente àqueles que sofriam de males que não se limitavam a atingir o corpo.
À soleira da porta, girou a chave. Porém, antes de entrar, fechou os olhos e entoou rapidamente um mantra, retomando o hábito. Como se apenas naquele instante se sentisse preparada, respirou fundo e atravessou o umbral.
O chalé estava escuro e úmido, pois ficara por muitos dias trancado. Bem por isto, ao abrir as janelas, percebeu a poeira pairando, como se dançasse à melodia da luz. Para harmonizar o ambiente e combater o cheiro do mofo, acendeu vários incensos de sândalo e os espalhou em lugares estratégicos. Mais relaxada, ligou a pequena fonte estilo zen budista, pôs para tocar seu cd preferido de Lorena Mckennitt e, finalmente, sentou-se no colchão em posição de yoga para iniciar o ritual.
No entanto, assim que cerrou as pálpebras, pressentiu uma presença. Era Sarah que, da porta, pedia licença para se aproximar.
Com a permissão dada, a visitante logo se chegou e explicou quem tinha lhe dado as coordenadas sobre o paradeiro: Abílio.
Como Sarah não dizia o porquê de estar ali, Marília, com a voz firme, lhe questionou. No tom usado, deixou claro que não queria mais se aproximar da outra a não ser por um bom motivo.
Como resposta, Sarah articulou:
- Estou com muita dor e seu tio disse que talvez apenas você possa me aliviar.
A expressão do rosto moreno não foi de ironia, isto Marília pôde constatar. Os lábios também não pareceram prender um sorriso ou sombrear qualquer vestígio de graça. Marília sabia o que não via, mas não o que via. Não soube decifrar que tipo de sentimento movia aquele semblante, muito menos aquela mulher que lhe falava de forma compassada e profunda.
Percebendo que Marília permanecia arredia, Sarah decidiu dissipar qualquer sentido dúbio:
- Sinto muitas dores nas costas desde ontem. Você pode me ajudar?
Marília ofereceu-lhe uma aplicação de Reiki e Sarah prontamente aceitou. E assim, ao som da música céltica que dava um ar mítico ao ambiente, a visitante pôs-se deitada no colchão, aguardando as mãos que, em instantes, recuperariam a energia de seu corpo.
Tentando controlar o próprio fluxo energético, que já estava absolutamente intenso desde o momento em que aquela criatura anunciara-se, Marília suavizou um pouco a luz, concentrou-se por alguns instantes de olhos fechados e iniciou a imposição de mãos, pondo-se de joelhos ao lado da outra.
Sem tocar os chakras de Sarah, passou a vagar por cada um deles, aproximando as mãos, com as palmas voltadas para baixo, apenas o suficiente para que a energia fosse trocada, purificada, recuperada.
Entretanto, era impossível se ater apenas nos pontos que deveria ter por foco. É que Marília, além dos chakras, não podia deixar de ver o rosto, os seios, as curvas de Sarah modeladas sob as vestes. Na seqüência, supunha a pele, o cheiro, os pêlos, o gosto daquele corpo tão entregue.
Percorridos alguns caminhos, justamente enquanto respirava fundo e tentava se conter, a que vagava percebeu a respiração de Sarah se alterando. O abdome e, sobretudo, o busto oscilavam visivelmente e de forma cada vez mais acelerada. Talvez denunciassem a reciprocidade do desejo, cogitou, com a garganta seca, a que observava.
Quando Marília, finalmente, impunha energia no chakra frontal, localizado entre as sobrancelhas, Sarah abriu os olhos e, com as próprias mãos, fez com que a mão da outra pousasse em sua boca. Marília recebeu o gesto com surpresa e umidade.
De forma deliberada, consciente do poder que exercia, Sarah entreabriu os lábios e começou a passear com a língua por cada um dos dedos longos que lhe eram servidos.
Sem esquivar-se, Marília olhou-a fundo e, abrindo caminho entre os lábios, fez com que um de seus dedos fosse inteiramente tomado por Sarah, que passou a sugá-lo com gosto.
Mas Marília não queria apenas a saliva. Por isto, ainda de joelhos, deslizou a outra mão pelo abdome de Sarah, que continuava deitada e parecia, também, excitada. Entretanto e daquela vez Marília não se conformaria com dúvidas. Queria certezas! Avançando vagarosamente sob a saia, adentrou e, sem pedir permissão, entreabriu os outros lábios da moça. Lá encontrou em abundância surpreendente outro tipo de umidade. A certeza procurada estava ali, em forma de visgo.
Sarah, então, passou a mover os quadris, como se pedisse para que o toque fosse aprofundado, intensificado. Aqueles lábios também pareciam querer engolir os dedos de Marília. Mas, apesar do desgoverno dos movimentos, Sarah continuava firme, de olhos abertos, olhando para a outra. Era como se tentasse manter o controle, pelo menos, sob o que via.
Percebendo a necessidade que Sarah tinha de comandar, controlando, inclusive, o momento do orgasmo, Marília estancou. Diante dos olhos incrédulos, retirou os dedos da boca de Sarah e de dentro dela, ambos molhados. Faria diferente.
Sabendo exatamente de onde vinha a força do governo de Sarah, Marília vedou-lhe os olhos, fazendo-a sentir o próprio cheiro.
A princípio, a que era experimentada quis se rebelar e retirar as mãos que a cegavam. Foi quando Marília sussurrou ao seu ouvido:
- Deixe que eu guie...deixe que eu entre e fique o tempo que quiser, como você me prometeu.
Cumprindo a promessa, Sarah entregou-se à escuridão e ao desejo. A princípio, teve medo e apertou com força os dedos que devassaram sua intimidade. Mas logo passou a alterar a pressão e a passagem, prendendo e soltando Marília dentro de si. Nessas viagens, perdeu o controle dos sons que fazia, das imagens que se formavam no fundo das pálpebras; perdeu o controle dos quadris, do orgasmo que chegava, do plano que a fez chegar ali.
Já Marília, esta não perdeu um detalhe sequer daquela entrega, tampouco da personagem. Foi quando uma centelha de rancor e culpa fulgurou no peito. Lembrou-se de que Sarah era sua cunhada. E com essa lembrança, veio a das pancadas ouvidas por entre as paredes. Depois, a cena do beijo no gramado.
Agora quem se sentia cega era Marília. O ciúme, então, a fez começar a açoitar Sarah com três dedos fortes, que a cada invasão arrancavam longos gemidos. Talvez até mais altos do que os ouvidos no dia de sua chegada. Sarah, definitivamente, gostava de dor, percebia Marília, que lhe concederia essa regalia.
Porém, a cada investida, a que machucava também se sentia dolorida, confrontada, aturdida. Ainda assim, iria até o fim, fiel aos seus propósitos e motivos. Seria uma dupla punição.
Com o corpo cada vez mais trêmulo e enfraquecido, Sarah continuava recebendo bravamente a força depositada dentro de si, até que, sem conseguir se conter, derramou-se nas mãos da que, agora, sozinha, governava. Arbitraria, Marília sorriu com sarcasmo e libertou a presa. O gozo e o castigo caminharam juntos e a mais nova vilã deu-se por satisfeita.
Sarah, vencida, retomou a visão e sentou-se, parecendo assustada. Fitando os olhos verdes, aproximou-se lentamente e ousou um beijo. Mas Marília lhe impediu, segurando-lhe a face:
- Pensei que eu já havia lhe dado o que você queria.
A ironia da frase feriu mais do que a invasão da carne e Sarah, com os olhos marejados, retrucou de forma dura:
- Eu nunca quis apenas a dor, Marília. Aliás, eu vim aqui em busca da cura.
E só então, movida pelo remorso e pelo amor, Marília a beijou. Nos lábios de ambas, a maciez das pétalas. Violetas, rosas e verbenas permeando o imaginário. Os cheiros das flores, intensificados pela chuva que caía lá fora, pareciam ter viajado desde o jardim secreto para alcançar o olfato das duas, que, naquele momento, cresciam no mesmo canteiro, híbridas, profundas em corpos e raízes. E elas, finalmente, colheram-se.
Antes de saírem daquele lugar onde, secretamente, lançaram tantas sementes, Sarah, vendo o receio fulgurar nos olhos de Marília, valendo-se da sinceridade que pôde, lhe disse:
- O elo que você vê entre mim e Rafael já não existe.
E só então, nos olhos verdes, em plena anuência de cores, cintilou a esperança. Naquelas palavras, Marília colheu a promessa de um novo jardim.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
O JARDIM SECRETO (Capítulo IV)
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