sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O JARDIM SECRETO (Capítulo II)


CAPÍTULO II


ROSAS



Parados diante do portão destinado ao desembarque, Sarah e Rafael, impacientes, esperavam. O Aeroporto Internacional dos Guararapes estava absolutamente lotado. A confusão era patente dentro e fora do saguão e o tumulto era causado por pessoas e carros, que, apressados, pareciam querer fugir dali. Férias do meio do ano, eis a explicação.

Enquanto o casal partilhava o mesmo cigarro, dialogando em voz sussurrada e intercalando os tragos, Lis observava as crianças que, feito ela, viajavam de férias. Esta fora a explicação dada pela mãe quando falou da ida a Recife. Sarah havia lhe alertado, entretanto, de que aquelas férias poderiam ser mais longas do que o normal. Mas a menina não pareceu preocupar-se. Não se sentia feliz em São Paulo e, em seus sete anos de idade, acreditava que a infelicidade poderia advir do local que habitava, desconsiderando o peso das pessoas que a acompanhavam. Talvez em Recife se sentisse feliz, cogitava a menina enquanto percebia as crianças ao seu redor sorrindo e correndo animadamente pelo aeroporto. Tudo lhe parecia novidade.

Nos derradeiros tragos, forçando os últimos vestígios de bom-humor, Sarah questionou a Rafael:

- Será que eles desistiram de abraçar a causa?

E ele logo retrucou em voz igualmente baixa, permeada de fumaça e de sorriso:

- Não, minha querida. Eles não têm como descobrir que sou uma causa perdida.

Encerrada a frase, o cigarro foi lançado ao chão e esmagado com a ponta do sapato lustroso e sofisticado. A força depositada no ato anunciava que Rafael já não estava tão seguro quanto tentava demonstrar. Atenta, Sarah observou a cena e tentou descontraí-lo, mudando de assunto:

- Já se conformou em aposentar os tênis?

Lembrando do Adidas surrado que o levou até a loja onde, dissipando as últimas notas de cinqüenta reais, havia comprado aquele sapato, Rafael ponderou em resposta:

- É fácil se adaptar ao mais caro.

E os dois deixaram de dividir o mesmo cigarro, para partilhar do mesmo sorriso e do mesmo sarcasmo. Eles, assim como Lis, experimentavam da felicidade equivocada que conheciam. E para ambos tudo era, também, novidade.

Antes de embarcarem, Sarah havia questionado ao falso noivo se a cunhada era mesmo entendida. E o rapaz, em gracejo, disse-lhe que qualquer mulher passaria a gostar da fruta, caso Sarah oferecesse a sua, ainda mais descaradamente, como era a proposta do plano. Mas a moça não pareceu gostar da resposta. Queria a certeza da homossexualidade e não mais uma piadinha de mau-gosto.

Entendendo perfeitamente o recado, graças ao simples erguer de sobrancelhas de Sarah, ato que ainda tinha o poder de intimidá-lo, Rafael retomou a seriedade e lhe disse:

- Você verá com seus próprios olhos.

E agora, enquanto a caminhonete de cabine dupla se aproximava e era apontada pelo rapaz como sendo a da irmã, Sarah compreendia cada palavra. Apesar dos vidros escuros, a silhueta da condutora já podia ser analisada. E, pelo menos daquela distância, a moça que dirigia poderia facilmente ser confundida com um rapaz.

Um belo rapaz, ponderou Sarah quando Marília, finalmente, desceu do carro e encaminhou-se para o lado do passageiro, onde o tio estava. Com cuidado extremado, a sobrinha o auxiliou na descida. Abílio se sentia fraco e já não se movia com a mesma leveza de outrora.

O vento que açoitava a tarde fazia com que os cabelos lisos e curtos inquietassem o semblante da moça, que, entretanto, em momento algum deixou de ocupar as mãos com o tio, até que este se postasse com retidão e a olhasse, dizendo-lhe em silêncio que já poderia soltá-lo. Só então, as mãos longas tocaram os fios e, num gesto rápido, os puseram no lugar.

O corpo esguio, com pouco busto e ombros largos; as vestes simples, formadas por um jeans surrado e uma camiseta básica; os tênis sujos de terra; os olhos puxados, de sobrancelhas grossas e íris clara; o maxilar quadrado e a boca rubra, apesar da ausência de qualquer maquiagem, faziam com que Marília lembrasse, de fato, um jovem de corpo magro e rosto de porcelana, semelhante aos modelos mais andróginos que ousavam fotografias nada convencionais.

A observadora riu e, desviando o olhar para Rafael, meneou a cabeça em sentido afirmativo, como se, finalmente, confirmasse a homossexualidade da moça. Tudo daria certo, foi o que ambos, silentes, concluíram.

Abílio abraçou o sobrinho com pouca intimidade e, logo em seguida, Sarah. Interrompendo as apresentações, Lis se aproximou e, enquanto puxava a mão da mãe, olhou na direção de Abílio, como se anunciasse também sua presença mirim. O senhor riu e, com suavidade, perguntou:

- E quem é essa mocinha tão bonita?

A criança de olhos intensos e escuros logo respondeu com doçura ímpar:

- Eu sou a Lis – e deixou Abílio boquiaberto com a simpatia do sorriso que lhe foi lançado.

Enquanto isso, Marília abria a mala do carro, observando de esgueira a cena, enquanto ainda se preparava para o encontro. Geralmente não gostava de contato físico, muito menos com estranhos. E aqueles três não passavam disto, inclusive o que trazia no corpo o mesmo sangue.

Diante da impossibilidade de adiar o contato, aproximou-se em passos firmes e rápidos, olhando o irmão nos olhos, enquanto ignorava a presença das outras duas. Parando diante do par de olhos também puxados, Marília respirou fundo e disse com polidez:

- Seja bem-vindo.

Antes que Rafael fizesse menção de abraçá-la, a moça estendeu a mão e o cumprimentou com vigor. Não havia espaço para mais nada naquele momento e ele sabia disto. Pressentindo o mesmo, Sarah limitou-se a cumprimentá-la da mesma forma, apresentando rapidamente a filha.

Acuada, Lis também estendeu a mãozinha. O aperto foi suave, mas a anfitriã não sorriu para a criança quando a cumprimentou.

Abílio sabia que seria assim e, sem esboçar qualquer surpresa, tocou de leve o ombro da sobrinha, como se dissesse que estava na hora de partirem antes que o desconforto do silêncio se tornasse ainda mais pesado.

Eles foram e durante o percurso, embora a certeza da homossexualidade existisse, já não parecia tão simples seduzir aquela criatura.

O início da estrada, naquele final de tarde, estava mais engarrafado do que o normal. O emaranhado dos carros anunciava, para o pesar de todos, que o percurso até Aldeia seria demorado. Com o intuito de quebrar o constrangimento inicial, Abílio puxava assunto e questionava como havia sido a viagem.

O casal respondeu e Sarah, já fazendo uso de seu disfarce, ensaiava a simpatia que não tinha, emendando o assunto com outras amenidades. Falou sobre o clima frio de São Paulo; a alegria de estar conhecendo o Nordeste; relatou alguns comentários graciosos da filha, elucidando ainda a inquietação da criança durante toda a semana que antecedeu a viagem, animada que estava para conhecer o tio Abílio e a tia Marília.

E apenas neste momento, ao ouvir seu nome ser lentamente pronunciado, a condutora direcionou o olhar para o retrovisor, captando os olhos escuros e ousados de Sarah, que já a observava.

Sem desviar a vista, Marília ergueu a sobrancelha. E a outra, sem esperar ver no semblante da cunhada a expressão que lhe era tão própria, ficou sem reação e baixou o olhar.

Este primeiro embate, no entanto, ninguém notou. A não ser as duas que, de forma desconcertante e estranha, apenas agora pareciam se apresentar. Se não em nomes, em olhar.

O jantar seria servido às vinte horas, anunciou Abílio enquanto direcionou o casal para uma das suítes da casa. Na seqüência, questionou a Sarah:

- A mocinha já dorme só?

Antes que a mãe pudesse responder, Lis justificou:

- Temos apenas um quarto lá em casa – e fez cara de decepcionada e desejosa.

Entendendo o recado, pela primeira vez Marília dirigiu-se à menina:

- Aqui tem quartos de sobra. Venha e escolha em qual você quer ficar.

A menina assustou-se com a regalia oferecida e mais ainda com o fato de ser a moça de olhos verdes a oferecer. Olhando-a intensamente e agradecida, Lis sorriu, mesmo sem esperar um sorriso de volta.

Marília, que permanecia séria, também a olhou, desta vez interrogativa, pois a menina, apesar de nitidamente animada com a idéia de ter um quarto só para si, ainda não tinha feito menção de sair do lugar. Continuava parada, olhando fixamente para os olhos daquela que ainda não ousava chamar de tia. Entendendo a interrogação silenciosa de Marília, Lis, com toda doçura e ingenuidade, justificou:

- Gosto dos seus olhos. Verde é minha cor favorita.

E Marília não teve como não rir. Pegando a menina pela mão, saíram pelo corredor à procura do quarto. E, para o encanto da criança, havia um cuja decoração mesclava tons esverdeados. Neste ela ficou.

Sarah sorriu ao observar as duas caminhando de mãos dadas. Aquela cena lhe pareceu absolutamente inusitada. Talvez a criança, mais do que ela, possuísse o poder de sedução.

Naquela primeira noite a chuva regou as roseiras plantadas durante a manhã por Marília. E ela, fazendo jus ao acréscimo das mudas em seu jardim secreto, permanecia insone e intranqüila.

A presença do irmão naquela casa e naquelas circunstâncias a intrigava. Isto era um fato. Mas, indubitavelmente, a postura de Sarah a intrigava e inquietava mais ainda.
Lembrou-se do jantar, servido há algumas horas. Naquela noite, a mesa retangular que nunca havia sido inteiramente preenchida, estava menos vazia. Como de costume, Marília havia se sentado na cabeceira defronte ao tio.

Rafael sentou-se ao lado de Abílio e logo puxou conversa. Já Sarah, sem titubear, ao invés de acomodar-se perto do noivo, encaminhou-se para o lado de Marília, no outro hemisfério. Antes de sentar, entretanto, olhando-a de forma casual e perguntou, tentando dar tom de gracejo à frase:

- Este lugar está ocupado?

Marília segurou-se para não dizer, também ironicamente, que sim. O lugar estava ocupado. Mas, além de inverdade, tal resposta soaria por demais rude. Limitou-se a menear a cabeça em sentido negativo. E logo sentiu o perfume de Sarah que, de forma lenta e pensada, sentou-se ao seu lado.

Sem qualquer rodeio, apenas algum constrangimento, Lis se aproximou de Marília e, falando baixinho, lhe pediu para sentar do outro lado, junto dela e defronte à mãe. Em resposta, a anfitriã apontou o antigo pratinho infantil que fora seu, pousado exatamente naquele canto. É que, minutos antes, quando Ernesta ia começar a pôr a mesa, a dona da casa pediu à governanta que preparasse aquele lugar para a criança.

Lis, rapidamente, sentou-se em seu cantinho, descobrindo com entusiasmo extremo que o mesmo já estava para si reservado. E o fez com um sorriso estampado no rosto de feições perfeitamente simétricas e delicadas, tão semelhante ao de Sarah, em expressões e traços.

A mãe observava a filha, pela primeira vez na vida, parecendo o que nunca fora: feliz. E, ainda que por via transversa, Sarah, estranhamente, também experimentava da felicidade. Sorriu de cabeça baixa, sem coragem de, naquele instante, despida da máscara, olhar na direção de Marília, a responsável.

Enquanto isto, Rafael, do outro lado da mesa, conversava com o tio, alheio e cada vez mais assíduo na farsa engendrada. E ele sorria animadamente, só que, ao contrário do sorriso experimentado por Sarah, todos os que partiam dele eram falsos.

Depois do jantar, Abílio, Rafael e a noiva foram para a varanda. Acomodados nas cadeiras de vime, começaram a conversar sobre o projeto a ser implementado em Aldeia e os futuros resultados. O frio e a umidade da noite faziam com que as palavras parecessem flutuar, lentas e esfumaçadas, quando pronunciadas de forma mais vigorosa.

Marília não os acompanhou. Preferiu acomodar-se em uma rede mais distante. Porém, de longe, assistia Lis entretida com uma boneca, sentada ao lado da mãe no chão da varanda.

Vez por outra, os gestos e a voz de Sarah desviavam sua atenção e a observadora deixava de apreciar a filha para apreciar a mãe. Ela era uma mulher atraente e altiva, ponderava Marília. E tais atributos pareciam destoar do tom doce e humilde que Sarah tentava impingir à voz e às mãos. Ela gesticulava como se estivesse sempre contida, forçando uma suavidade que, definitivamente, não parecia ter. Era como se a simpatia fosse incongruente com o corpo e o olhar daquela mulher, que tinha porte de vilã.

Sarah, apesar de sentir-se observada, não olhou uma vez sequer na direção de Marília. Porém, cada vez que sentia o olhar verde pousado sobre seu corpo, a voz perdia parte da firmeza e as mãos estremeciam.

Depois de entediar-se com a conversa, Lis ergueu-se e caminhou na direção de Marília, levando no colo a boneca. Alcançando-a na rede, a menina pediu:

- Ela pode dormir aí com você?

Pega de surpresa, Marília disse que sim, dando a permissão. Mas não apenas a boneca deitou-se na rede. A dona fez o mesmo, deixando a moça absolutamente sem reação. Percebendo o desconcerto de Marília, Sarah levantou-se e intercedeu, aproximando-se:

- Filha, deixe tia Marília sossegada. Ela não quer brincar agora, meu amor.

E mais uma vez mãe e filha foram surpreendidas.

- Elas não querem brincar, querem dormir, não é Lis? – e voltando-se para Sarah, continuou – Pode deixar.

Marília sentiu-se um tanto quanto constrangida com a aproximação e o pedido da criança, mas não teve coragem de afastá-la. A necessidade de carinho e de proteção era tão explícita, quanto comovente. E assim, prontamente, começou a tentar ajeitar a menina ao seu lado, com a ajuda da mãe.

Nesse momento, as mãos e braços de Sarah roçaram em Marília. Mas o contato foi inevitável e não proposital. A que estava deitada retesou o corpo e manteve-se praticamente estática, enquanto a outra cuidava, por fim, de colocar a boneca nos braços da filha. Tinha que haver espaço para as três e houve. Logo a quarta sairia de perto. Porém, antes de dar as costas, Sarah articulou em voz baixa:

- Obrigada.

Em menos de meia hora Lis adormeceu. Entretanto, antes que Sarah viesse retirá-la de seus braços e levá-la para o quarto, a própria Marília o fez. Não queria experimentar novamente qualquer espécie de contato com a noiva do irmão. Já conseguia visualizar os canteiros cheios de rosas vermelhas graças àquela furtiva aproximação.

Com as pernas dormentes devido ao tempo em que permaneceu imóvel para não acordar a criança, Marília caminhou com Lis nos braços até o quarto esverdeado, o eleito.

A sensação de formigamento, entretanto, não seria mais intensa e inquietante do que a de estupor que viria a sentir mais tarde, não propriamente nas pernas, mas no ventre, quando, finalmente, adormecesse. É que Marília, depois de reviver em imagens os últimos acontecimentos e somar os detalhes captados de Sarah, terminou sonhando com ela. E no sonho também dividiram uma rede.

Por volta das cinco horas, a cama de Marília já se encontrava vazia. À beira de um dos canteiros, ela se punha de joelho, preparando a pequena vala onde faria alguns enxertos.

Queria rosas híbridas, que representassem aquele misto de inquietação e de tantos outros sentimentos, para si, desconhecidos. E, naquele instante, enquanto planejava a reunião das espécies, nem quis relembrar do sonho que havia lhe tirado da cama tão cedo.

Bastaria fechar os olhos e seria capaz de sentir novamente o cheiro, o gosto, o desejo em forma de líquido que invadiu seu inconsciente. Assim, para evitar tal acontecimento, mantinha os olhos bem abertos, enquanto ocupava as mãos preparando a terra escura e o olfato com o perfume das rosas que por ali desabrochavam.

Depois da chuva, todos os cheiros que emanavam do jardim secreto se tornavam mais intensos e a dona daquele reduto era capaz de captar o que advinha de cada flor. Era este um de seus exercícios diários que, naquela manhã em especial, deveria pôr em prática.

Antes de retornar à varanda, onde todos já se encontravam sentados a espera do café da manhã, Marília caminhou até o pequeno riacho, que descia pelo quintal, de águas tão geladas quanto cristalinas. Sentindo-se estranhamente invadida, agachou-se e lavou as mãos, livrando-se das terras escuras e estancando o filete de sangue que brotava de um arranhão. Os espinhos sempre lhe machucavam. Alguns porque adentravam em sua carne, outros porque faziam o mesmo em sua vida.

O cheiro do café fresco já se misturava ao das rosas quando Marília ergueu a vista em direção a casa. O olhar verde foi imediatamente fisgado pelos olhos escuros que da varanda a espreitavam.

O dia foi corrido para todos. Marília acompanhou durante todo o tempo o início das obras do complexo arquitetônico que construiriam em Aldeia. Com poucas palavras, apresentou o lugar e parte dos funcionários ao irmão, que parecia extremamente interessado.

Rafael trabalharia com a divulgação do condomínio, o que faria com mais afinco em Recife do que propriamente em Aldeia. No shopping Center Recife, um dos maiores da América Latina, Abílio e Marília haviam preparado um grande e luxuoso stand. A intenção era atrair a população com poder aquisitivo compatível com a grandiosidade do empreendimento. E era lá que, na maior parte do tempo, Rafael, doravante, ficaria.

Entretanto, naquele primeiro dia, imprescindível apresentar ao publicitário o empreendimento em cores e formas vivas. E era exatamente o que a engenheira faria.

Sarah preferiu ficar em casa. Optou por conhecer o lugar quando as obras já estivessem relativamente encaminhadas. Aproveitaria o dia para dar atenção à filha, o que há muito não fazia.

O dia nublado inviabilizou o banho de piscina tão desejado por Lis e as duas ficaram, durante todo o dia, dentro de casa.

Abílio, que vinha passando os dias praticamente sozinho, já que não mais se sentia em condições físicas de acompanhar Marília nas infinitas obras pelos dois articuladas, tentou relaxar, apesar das visitas. Assim, mesmo com seu jeito sério e calado, decidiu permitir uma aproximação. Iria tentar aproveitar a companhia da menina e de Sarah.

No final da tarde, já formavam um pitoresco trio, que, no correr das horas, havia assistido a diversos desenhos animados, comido algumas terrinas de pipoca e jogado várias e acirradas partidas de Detetive, antigo jogo que Marília adorava quando adolescente.

Sarah, como quem não queria nada, vez por outra direcionava a conversa tentando captar as histórias, os gostos, as particularidades da cunhada. Precisava conhecê-la e desvendá-la para conquistá-la. Para tanto, enquanto não podia colher informações direto da fonte, colheria do tio, que era o único que parecia conhecer a fundo aquela criatura sisuda e calada.

Abílio, visivelmente, amava a sobrinha e sempre que falava dela o fazia com os olhos emocionados. A seu modo e aos poucos, falava o que achava conveniente, mas nada que revelasse detalhes muito concretos do passado da sobrinha.

Ernesta, enquanto servia o almoço, já percebia com alegria Abílio sorrindo com as graças de Lis e a desenvoltura de Sarah. Elas duas pareciam, aos poucos, estar resgatando a alegria daquela casa.

Por volta das dezenove horas, quando Marília chegou acompanhada de Rafael, assustou-se com as gargalhadas que ecoavam pela sala. Era Sarah e Lis que, sem qualquer recato, imitavam personagens de filmes e novelas para que Abílio, amante do cinema, adivinhasse de quem se tratava.

Parecendo contrariada, a moça entrou sem, sequer, dar boa noite. Lis imediatamente estancou o riso. Sarah, por sua vez, fingindo não perceber a irritação, ergueu-se e recebeu Rafael com um beijo e um abraço. Na seqüência, antes que Marília saísse da sala, perguntou-lhe em tom de graça:

- Como foi seu dia?

A cunhada, sem qualquer simpatia, lhe retrucou:

- Certamente menos divertido do que o seu – e passou direto para o quarto.

Aquela primeira semana se passou e nenhum resultado havia sido obtido. Sarah não tinha conseguido travar um diálogo sequer com Marília. Aliás, a cunhada não lhe dispensara nem mesmo um sorriso ou um olhar mais demorado, ao reverso, fazia questão de pôr-se distante e arredia. Não lhe tratava mal, mas nem de longe parecia querer aproximar-se. A única que recebia atenção era Lis.

A menina, com jeitinho carinhoso, sempre impetuosa e carismática, de forma surpreendente, conseguia arrancar Marília da introspecção. E a moça, mesmo quando chegava do trabalho extremamente cansada, dedicava alguns minutos à criança que já a esperava diariamente na porta de casa.

A menina respeitava seu espaço e, embora a vontade fosse perceptível, se segurava para não recebê-la com um efusivo abraço. E assim, as duas se entendiam e Marília, baixando a guarda, já a tratava com o carinho de que se sentia capaz.

Sarah observava aquela aliança se formando e, apesar de irritar-se por não conseguir o mesmo, sentia-se feliz por ver a filha sorrindo como nunca. A menina já ousava chamar a moça de tia Marília e não havia como não achar graça cada vez que a cunhada atendia, ainda que constrangida, àquele chamado.

Na noite de sexta-feira Rafael inquietou-se e, trancando a porta do quarto, questionou a Sarah o que estava havendo. Como poderia a irmã, sendo lésbica e durante cinco dias, não ter cedido um milímetro das barreiras para que a outra se aproximasse?

Também irritada, a falsa noiva cogitou de maneira franca e firme:

- Talvez tenhamos nos enganado e sua irmã não seja lésbica, Rafael!

Mas o rapaz, tornando-se agressivo, pegou-a pelos ombros e passou a lhe arrancar as roupas, enquanto bradava entre os dentes:

- Se ela ainda não é, torne-a! Até o final da próxima semana quero que Marília tenha te comido inteira, quero que ela tenha te virado pelo avesso como eu vou fazer agora!

E naquela noite o casal não saiu do quarto. Lis sabia que, quando se trancavam daquela forma não era para, sequer, bater na porta. Foi o que a menina, com ingenuidade, disse a Ernesta quando a governanta fez menção de ir chamá-los.

Tomando a frente da situação, Marília interrompeu o diálogo e, pegando Lis pela mão, chamou-a para a mesa. Abílio já as esperava.

Naquele jantar, seguindo as indicações da menina, Marília, pela primeira vez na vida, compôs outro prato que não o próprio. Um tanto quanto sem jeito, partiu em pedaços bem pequenininhos o bife acebolado, como Sarah costumava fazer. Era assim que Lis gostava.

Calado, o tio admirava a paciência dispensada e sentia-se feliz em perceber que a sobrinha, mesmo a seu modo, já deixava que o coração acolhesse a criança. Ambas precisavam daquela relação que, a cada dia, se estreitava.

Na madrugada, Marília que, como sempre, havia custado a dormir, foi despertada por ruídos vindos do quarto ao lado. Recostando-se na cama, contrariada, passou a decifrar as pancadas que, certamente, eram causadas pelo encosto da outra cama confrontando-se com a parede.

Enquanto as batidas tornavam-se mais intensas, pensou escutar gemidos e palavras sussurradas. Em instantes soube: era a voz de Sarah. Ela pedia para ser invadida com força. Queria sentir dor, queria ser punida...queria ser amada? Esta derradeira pergunta foi formulada pela mente daquela que escutava. E muitas outras vieram.

Que tipo de relação seria aquela? Que tipo de penetração aquela mulher deveria estar experimentando naquele instante? Imaginou-a submissa, de quatro, sendo penetrada vigorosamente pelo namorado, enquanto se apoiava na cabeceira da cama que rangia de forma cada vez mais acelerada. Imaginou-a nua, suada, com os seios volumosos, eriçados e em movimento, com os cabelos longos revoltos, adornando parte do rosto moreno que, de boca entreaberta e de olhos fechados, agüentava de forma voraz cada investida. Imaginou-a se movendo contra o corpo do outro, empurrando de forma desgovernada os quadris bem feitos contra o pênis que nela adentrava. Imaginou-a infeliz, solitária, desolada, apesar do prazer que, em instantes, lhe faria gozar e gritar.

E Marília ouviu o grito e supôs o gozo, enquanto, do outro lado da parede, se tocava, assustada consigo e com o desejo de estar dentro daquela que gozava.

Quando as pancadas pararam, Marília também parou, ofegante e impressionada com tudo. Também estava à beira do gozo, mas não se permitiria a tamanho absurdo! A umidade já escorria por entre as pernas e pelos dedos trêmulos que tirava de dentro de si, num impulso. Ergueu-se, ajeitou as roupas, recompôs o fôlego e saiu do quarto, com as pernas bambas. Precisava urgentemente de ar e de razão. Foi para a varanda e deitou-se numa rede, num canto escuro.

Nem mesmo o vento úmido foi capaz de esfriar a temperatura daquele corpo durante os primeiros minutos em que quedou ali, inerte, em estado de absoluto estupor. Com os olhos fechados, Marília não conseguia acreditar naquela vontade que ainda latejava, que ainda pulsava dentro de si, arrebatando-a daquele jeito inconseqüente. E antes que pudesse restaurar a calma, outro ruído a alcançou.

Desta feita, o silêncio era cortado pelo choro. Um choro manso e baixo, que vinha da sala. Erguendo-se, Marília aproximou-se da porta e parou.

A silhueta, que, no escuro, parecia misturar-se às sombras pousadas no sofá, era a de uma mulher parcialmente despida e em situação de penúria. Com uma das mãos e de forma trêmula, conduzia o cigarro lentamente até a boca. Com a outra, tentava dar alguma ordem aos cabelos longos e às lágrimas, que pareciam verter soltas, mesmo estando com os olhos fechados. Enquanto tentava conter o choro, ora enxugando-o, ora engolindo-o, ora lamentando-o, a moça engasgava-se, esticava-se sob o encosto, contorcia-se, como se sentisse dor.

Preocupada com o que via, a expectadora decidiu revelar a presença ensaiando passos suaves na direção da outra que, imediatamente, os percebeu. Parecendo assustar-se, Sarah sentou-se, rapidamente, de forma ereta, ajeitando o corpo e o resto da camisola, cuja alça caída deixava parte dos seios a mostra.

Sem uma palavra, Marília sentou ao seu lado, mantendo a distância necessária para que os corpos não se tocassem. Involuntariamente, Sarah cruzou os braços, enquanto olhou-a de forma confusa. Finalmente o silêncio foi quebrado:

- Você está precisando de alguma coisa?

Um copo de água com açúcar foi tudo o que Sarah conseguiu pedir, antes que Marília, mesmo sem permissão, tomasse o rosto dela com as mãos e o virasse para o lado onde havia um vestígio de luz. Como se a examinassem, os olhos verdes investigaram algum sinal de violência e de maus-tratos. Mas as feridas, se realmente existiam, não estavam ali.

Virando bruscamente a face e livrando-se das mãos que a seguravam, Sarah questionou bravia:

- O que você quer ver?

E Marília, com toda a sinceridade de que era capaz, prontamente respondeu:

- Você!

Com velocidade, Sarah levantou-se e saiu trôpega por entre os móveis, tateando algum caminho, a procura de alguma luz. Chegando ao quarto, trancou-se: nele e em si.

Sábado chegou e, com ele, o sol que há muito não despontava em Aldeia. Piscina! Foi a primeira palavra pronunciada por Lis ao chegar à sala e encontrar a mãe já acordada. Com os olhos vermelhos, um cigarro aceso e uma xícara fumegante, Sarah a recebeu num abraço apertado.

A cena foi vista por Marília, que acabava de chegar, também, à sala, silenciosa como sempre. A menina, ao notar a presença, desvencilhou-se dos braços maternos e correu para os da outra, aos gritos.

- Tia Marília! Hoje vai ser o dia da piscina!

Marília sorriu e a ergueu alto, buscando por entre os espaços dos braços visualizar Sarah, que estava ali na frente. As duas se olharam firmemente e Sarah respirou fundo. Logo deu as costas e saiu.

Lis, ao ser posta no chão, correu atrás da mãe, puxando Marília pela mão. Ao alcançar Sarah na varanda, a menina também a segurou e, entre as duas, olhando para o alto, satisfeita por tê-las, finalmente, próximas, pediu:

- Quero tomar banho com as duas!

Sarah e Marília entreolharam-se e sorriram, tentando dissipar a tensão. Na cadência daquela trégua momentânea, cedendo ao pedido da criança, em alguns minutos estavam as três na piscina, tentando um diálogo ameno, enquanto partilhavam algumas bóias e um colchão.

A menina escolheu a bóia que tinha formato de um jacaré absolutamente inofensivo; Marília apoiou os cotovelos no colchão inflável e colorido, deixando o restante do corpo submerso; Sarah aproximou-se da bóia em formato de tubarão e ia tentar domá-lo, quando a menina gritou, fingindo desespero:

- Não, mamãe! Ele morde! O tubarão é um monstro perigoso e a gente precisa correr e subir no barco.

Lis concluiu a frase apontando para o colchão onde Marília calmamente descansava. E foi o suficiente para que esta logo entendesse a brincadeira. Sua bóia e sua paz seriam os alvos.

Entrando, na brincadeira, imediatamente, Sarah afastou-se do temido monstro e nadou apressada na direção de Marília, assim como fez a filha. E, em instantes, as três disputavam espaço no barco improvisado.

A princípio, Marília hesitou em participar. Mas, vendo a alegria estampada no rosto das outras duas, concluiu em voz alta que quem estava na água era, literalmente, para se molhar. O ditado, apesar de distorcido, foi recebido com uma gargalhada, pois cabia perfeitamente na cena. Em minutos, a criatura com fama de sisuda resgatou parte da infantilidade e, deixando de ser rude, tornou-se quase doce e amena.

Da varanda, Abílio e Rafael assistiam as brincadeiras que se estenderam por toda a manhã. Cada um sentindo-se satisfeito por motivos diversos.

No início da tarde, Lis já exibia com orgulho os dedinhos enrugados pelo tempo que estavam submersos n’água. Porém, a mãe não achou a graça esperada. Saindo da piscina, cuidou de retirá-la também, adornando-a em uma toalha felpuda que a criança já havia elegido a favorita.

Marília foi a única que ficou. Sentia-se tão leve que considerou o colchão desnecessário para que o corpo flutuasse. Livrando-se dele, pousou sobre a água, como não fazia desde criança e, de olhos fechados, assim ficou.

Sarah foi chamá-la para o almoço, mas, ao vê-la entregue daquela forma, parou silenciosa à beira da piscina. O corpo esguio e de pele alva estava, naquele instante, eriçado pelo frio; a tez já não se mostrava pálida e sim avermelhada pelo sol sem proteção; os lábios, rubros por natureza, involuntariamente secavam e eram molhados pela língua; Marília, finalmente parecia permissível, acessível, vulnerável, passível de invasão.

Entrando lentamente na piscina, Sarah deslocou-se tentando ao máximo não se fazer notar. Parou somente quando já podia sentir, com as vibrações da água, o compasso da respiração daquela que parecia adormecida. Aproximando o rosto do de Marília, sentiu o hálito que escapulia da boca bem feita e entreaberta. Chegando-se ainda mais, investigou as pálpebras, que estavam absolutamente vedadas, sem movimento. A respiração de Marília já tocava sua face e vice-versa. Quase encostando a boca no ouvido da que dormia, Sarah preparava o convite sussurrado para o almoço, quando foi surpreendida pelos olhos verdes e por um bote arisco.

Marília ergueu-se e segurou as mãos de Sarah com força, que já faziam uma concha à beira de seu ouvido. Com os corações aos saltos, as duas olharam-se de forma inquiridora, enquanto mantinham os corpos próximos e instantaneamente aquecidos. Sarah aproximou-se ainda mais, tocando as pernas de Marília com as suas, valendo-se da leveza proporcionada pela água e pela ebulição dos sentidos. Marília, desta vez, não recuou, permitindo que os corpos se encostassem em inteireza: seios, abdomens, ventres, coxas, olhares...vontades? O que Sarah sentia Marília não sabia, sabia tão somente da própria umidade. Afastou-se.

Saiu da piscina de forma veloz, praticamente em fuga. De quem, propriamente, fugia, não sabia.

Naquele final de tarde rosas vermelhas, brancas, amarelas, rosas chá e híbridas foram plantadas à beira do vale. Qualquer truque, qualquer terapia, qualquer gatilho, qualquer antídoto, qualquer escape seria bem-vindo para aquele coração, que ora julgava-se cretino, ora covarde.

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