sábado, 6 de dezembro de 2008

PARALELOS (Crônica)



Era bem assim: um vidro separava os dois mundos, tão distintos, tão distantes, tão injustamente justapostos, paralelos.

Do lado de dentro, o mundo rico, fabuloso, desconhecido àqueles olhos infantis, já marcados pela fome, ainda sujos pelos resquícios do sono. No painel, todos aqueles botõezinhos coloridos, misteriosos, maravilhosos! “Um deles deveria ter um dispositivo muito especial que fizesse o automóvel guiar-se sozinho ou, quem sabe, até mesmo dispensar as pistas e voar, voar”, fantasiava a mente do órfão da rua. Nas poltronas, aquela grotesca aparência de trono, de onde se governa o mundo, de onde é possível atravessar mapas, romper telas, muros, entortar postes, causar medo, admiração, sem, sequer, arranhar-se... “Deveria ser blindado”, continuava ele adivinhando. No volante, adornos especiais de algo que parecia borracha, mas que deveria ser material mais caro, mais sofisticado, mais “fixador”, por assim dizer, de mãos-motoristas, afinal não haveria espaço para deslizes, nem mesmo para suores frios, tensão. Tudo parecia perfeito, futilmente perfeito. E finalmente, no rosto feminino, masculino, infantil, velho ou simplesmente “humano” que se escondia atrás do vidro escuro, havia ainda, sob forma concreta e desumana, um categórico “não”, facilmente captado, fosse através de um menear negativo da cabeça, de um dedo muito bem disposto, num vaivém inconfundível, fosse através de uma palavra sussurrada contra o vidro, fosse tão somente dito sem nenhum sinal: a presença da total ausência de qualquer sinal! Um “não” silencioso, fatal, cortante de alguém que, sem se mover, fingia não ver, tampouco, sentir o menino que, de fora, pedia...

Mas ele pedia! Ainda assim, pedia! E, com sua ingenuidade, pedia inclusive coisas que nem mesmo ele sabia. Pedia, com seus olhos famintos e ainda sonhadores, muito mais do que trocados. Pedia mais do que dinheiro para comprar pão, mais do que esmola para o remédio da irmã doente, mais do que dez centavos para inteirar a passagem de volta, mais do que um real para cheirar cola, mais do que “qualquer moedinha serva” para ajudar a mãe igualmente faminta. Ele pedia, mas ninguém via. Pedia, e nem mesmo ele percebia, para mudar de lado. Para deixar aquele lado em que (sobre)vivia. O lado de fora. O lado da margem, o lado da fome matinal que se perpetuava durante todo o dia e se esticava durante toda noite, passando a chamar-se de fome noturna até a manhã seguinte, quando voltava a ser matinal, constante, igual...fome! Queria deixar o lado dos olhos sujos pelos resquícios do sono, sem sonhos, sem lençol, sem cama, dormido numa calçada mais suja ainda, na qual o corpo magro já se amoldava com perfeição, imitando-lhe a sujeira, absorvendo-lhe a rigidez. Queria, ao menos uma vez, trocar suas roupas sujas por algo descente, que lhe desse o direito de sentar naqueles bancos tão bem forrados e guiar aquele volante, nem que fosse rumo ao seu mundo miserável. Aproveitaria, pelo menos, o percurso.

Mas esse pedido, o dono do carro não ouvia. Aliás, o próprio menino não ouvia já que o fazia em silêncio, inconsciente! Será que Deus ouviu? Nunca foi possível saber...

Dos anos, restou-lhe apenas sua infância adulta e velhice precoce, que lhe consumiu as últimas esmolas. Dos sonhos, restou-lhe apenas o vazio de quem, na vida, permaneceu sempre do mesmo lado: o de fora.

2 comentários:

Mina Blixen disse...

Amiga,

Linda composição: dura como a realidade, incômoda como a injustiça. No mais, você já sabe como penso, "o que não faço" e os sentidos desse "não fazer".

Um abraço daqueles de sempre.

Marucia Todorov disse...

... Tal qual as cenas que eu vejo todos os dias. A mesma sensação do hábito terrível do "não ver", "não saber" , "não nomear".

Do lado de dentro, a alma cada vez mais pobre.