sábado, 12 de julho de 2008

O AVESSO DA TELA (Capítulo IV)

CAPÍTULO IV


O AVESSO DA VIDA


A semana subseqüente ao próximo encontro fez-se tão lenta que Camila mal podia consultar os relógios que a cercavam: o do pulso a incomodava, apertando-lhe demasiadamente; o da parede parecia brincar consigo, emperrando os ponteiros, açoitando os azulejos, retirando seu brilho; o da cabeceira não a deixava dormir, com seu tic-tac antes praticamente inaudível; e o do celular parecia atrasado feito os projetos e compromissos que, no escritório, se acumularam, aguardando-a.

Enquanto isto, ela aguardava a dona de seus sentidos: a única mulher capaz de fazê-la se sentir inteira, sem, sequer, tocá-la; a única capaz de lhe causar arrepios sem sussurros; calor em dia de frio; fome com a mesa farta; a que lhe causava vertigens e lhe proporcionava miragens, mesmo quando usava lentes para sua miopia. E só agora ela, realmente, via. Só agora ela enxergava o mundo que havia fora das telas e que, antes, era incapaz de atiçar seus sentidos, seu espírito, sua vontade. Sobretudo, a de amor.

Débora, boquiaberta, assistia Camila enlevada, absorta, leve, em estado permanente de graça apesar do acúmulo de trabalho, das ligações insistentes dos clientes e mesmo das de suas inúmeras “namoradas”. Ela nunca a vira tão feliz, tão bonita, tão Camila. Uma nova Camila, era verdade, mas genuína como nunca.

Num final de tarde, as duas, visitando um dos projetos, iniciaram uma conversa sobre as dificuldades do passado e, achando uma oportunidade, a amiga lhe questionou sobre o presente, perguntando-lhe como ela estava. E a resposta veio simples tanto quanto precisa: feliz!

Com um sorriso, Camila relatou rapidamente o incidente com o carro e, sobretudo, o encontro e reencontro com a moça dos olhos de chuva. Omitiu, entretanto, um pequeno e, ao mesmo tempo, imenso detalhe: a aliança.

Acompanhando a felicidade da outra, Débora sorriu e a abraçou com entusiasmo, brincando:

- Finalmente vejo que a conquistadora inveterada foi, desta vez, conquistada!

A aprovação da amiga aumentou o entusiasmo de Camila que, retornando ao escritório, ainda naquela tarde, pôs em dia o que estava atrasado. E o estímulo era visível e estava bem ali, à sua frente: um círculo vermelho rabiscado no calendário. O dia seguinte era dia de Ana Maria, como a arquiteta nomeava os encontros marcados.

E o próximo café seria na Livraria Cultura, onde o cheiro dos expressos se misturava ao dos livros, que, novinhos em folha, também eram extremamente saborosos à vista dos freqüentadores.

Camila estacionou o carro no pavimento superior e, apressadamente, rumou à livraria. E nem foi preciso atravessar a porta de vidro para avistar a mulher de cabelos acobreados e brilhantes que, vestida de preto, de costas para a entrada, encontrava-se no andar de cima sentada em uma das mesas do café, esperando-a.

Entretanto, antes de ir ao encontro de Ana Maria, Camila arrefeceu o passo, respirou fundo e dirigiu-se a uma sessão especial: a direcionada ao público gay. Lá, procurou entre os títulos emparelhados na estante, Duas Iguais, romance de Cíntia Moscovich, um dos livros mais belos que lera em sua vida. E logo se deparou com a capa lilás, que guardava em cada página, em cada canto, encanto e sensibilidade. A narrativa que se encorpava em tom de poesia contava a história de amor entre duas mulheres. E este sentimento era tão intenso que, ao final, o tema homossexualidade perdia relevância. Relevante era viver e com a urgência merecida, o amor, sem importar em que corpo ele habitava.

Assim, dar a Ana Maria aquele livro foi a forma mais amena e precisa que Camila encontrou de revelar-lhe mais do que sua homossexualidade: seu amor. Cada página, portanto, abrigava sua esperança, não apenas de compreensão e tolerância, mas, sobretudo, de reciprocidade.

Mas a que presenteava sabia: deveria ter muita paciência e cautela. Deveria, principalmente, se preparar para um recuo, um choque, um afastamento súbito provocado em Ana Maria pela leitura daquele livro. E pensando exatamente nisto, tentando trabalhar aquelas hipóteses, Camila perdera o sono na noite anterior.

Entretanto, ao ver o sol nascer, ela foi tomada por uma certeza: era preciso deixar a verdade assumir cores claras, assim como o dia. Melhor seria um afastamento naquele momento, ainda que motivado pelo preconceito, do que em momento futuro, quando Camila estivesse mais envolvida e com suas esperanças fortalecidas pelo tempo.

E assim, tomando por acertada sua conclusão, ela assistia com pressa Duas Iguais sendo embalado para presente.

Enquanto isto, Ana Maria, com as mãos frias e o estômago quente, aguardava inquieta para rever os olhos escuros que, nos últimos tempos, encontrava constantemente em seus sonhos. É que, acobertada pelo véu do inconsciente, enquanto dormia, ela assistia, a cada noite, Camila despindo-a de seus disfarces e mesmo de suas vestes, retirando a aliança de seu dedo, tocando levemente seus cabelos, beijando seu rosto da forma como havia feito. E, no silêncio de um quarto desconhecido, ao fechar os olhos e entregar-se completamente àquele beijo, a sonhadora chegava a ouvir o farfalhar das palmeiras imperiais e a sentir na pele a mansuetude do vento. E era neste momento que, sem se conter, Ana Maria tomava a boca que lhe beijava com a própria boca. Porém, antes de sentir o gosto dos lábios grossos e sedutores de Camila, o sonho se dissipava e, num sobressalto, ela acordava suada, trêmula, pulsando, com a umidade brotando de seu ventre e o controle fugindo de sua vida.

Ana Maria tinha medo daquele sentimento novo, tinha medo daqueles olhos negros, tinha medo de Camila, mas, sobretudo, de si mesma. Ana Maria tinha medo da felicidade que vinha sentindo, tinha medo dos sorrisos bobos que povoavam, atualmente, seu semblante, dando-lhe luminosidade ímpar, dissipando de seu rosto qualquer resquício de chuva. Ana Maria tinha medo dos rótulos, dos nomes, do preconceito que ela mesma tinha. Mas, principalmente, Ana Maria tinha medo de perder Camila, de deixar de estar distraída e ser pega de surpresa com um telefonema, com um poema em seu e-mail, com um cheiro que lembrava o dela, com a cena de um beijo vista num filme ou no meio da rua, quando, instintivamente, a observadora se punha num dos pólos, enquanto no outro idealizava a boca e o sabor de Camila.

E foi exatamente por isto que, sobre a mesa, repousava Para Não Esquecer, seu livro favorito de Clarice Lispector, devidamente embrulhado em papel de presente. E a terceira crônica cabia perfeitamente: Por Não Estarem Distraídos. Ali, a escritora descrevia com a beleza e preciosismo de sempre a relação entre duas pessoas que, antes de nomearem o que tinham, eram perfeitamente felizes. E, de mãos dadas, caminhavam sem perceber a poeira das ruas, o barulho dos carros, as gentes. E a leveza do andar era tão boa e mútua que pareciam verdadeiramente flutuar. A dureza do chão e a aspereza das calçadas por onde passeavam eram inteiramente incompatíveis com o estado de graça de seus espíritos. Até que um dia eles puseram um rótulo, ensaiaram um título, quiseram ser o que eram, quiseram ter o que tinham. E nesse querer, perderam-se. E o “sim” transformou-se em “não”. E tudo se tornou áspero, duro, frio. Tudo por não mais estarem distraídos.

Era este o recado que Ana Maria queria dar a Camila com o livro. Ela queria propor o silêncio dos sentimentos, exatamente para que eles pudessem ser, com leveza, vividos.

Cada uma com suas mensagens, as duas, finalmente, se encontraram no café. E, na seqüência, viabilizaram também o encontro dos livros. A surpresa nos olhos de ambas era explícita! As duas tiveram idéias tão semelhantes quanto as próprias: elas, definitivamente, eram parecidas. Talvez Duas Iguais, logo brincou Ana Maria, em analogia ao título do livro que recebera, cujo tema ainda lhe era desconhecido.

Camila retribuiu o sorriso e a brincadeira, dizendo que, aquela tarde, definitivamente, era Para Não Esquecer.

E assim vários cafés foram servidos, vários grãos saboreados, tudo enquanto as palavras eram ditas de forma mais velada do que explícita, tudo porque ainda estavam distraídas.

Na semana seguinte, cada uma leu o presente recebido e foi o suficiente para que os receios crescessem em ambas no mesmo compasso da paixão e da saudade.

É que o recado dado pelo livro escolhido por Camila, ironicamente, era o inverso do que continha o livro escolhido por Ana Maria.

O primeiro, Duas Iguais, fazia um apelo para que o amor fosse vivido em palavras e silêncios, em sua integralidade, mesmo que, para tanto, fosse preciso nomear os sentimentos, dar-lhes um título. O último parágrafo era evidente nesse sentido e dizia que o amor exigia voz para ser liberto, exigia expressão. Caso contrário, ao ser contido, estouraria todos os vidros e verteria todos os líquidos em vão, até se perder.

Já o segundo livro, Para Não Esquecer, especificamente a terceira crônica, que fora demarcada por Ana Maria, esta propunha o amor em vivência silenciosa, que proibia todos os rótulos e títulos, que impedia a voz e impunha a distração. E o fundamento era o seguinte: algumas verdades, caso relevadas, ganhavam formas e cores incompatíveis com a tolerância do mundo, inconcebíveis aos olhos e ouvidos dos próprios amantes, muito embora povoassem seus corações. E o silêncio não implicava covardia, ao menos nos dizeres de Clarice e de Ana Maria: garantiria a leveza.

Apesar desta derradeira mensagem, não era leve que Ana Maria se sentia, muito menos Camila.

O casamento de Ana Maria ia de mal a pior e ela, já sem qualquer sorriso, mal conseguia esperar o próximo encontro. E todas as noites, antes que o marido fosse para a cama, ela tombava o corpo que parecia extremamente pesado sob o colchão macio, afundando-o nas cobertas, onde, inquieta, revirava durante horas a fio até encontrar Camila nos sonhos que lhe entorpeciam os sentidos.

Camila já não flutuava pelas ruas de Recife. Em verdade, nos últimos dias, mal saía de casa, a não ser para o escritório. E aquela tristeza quase palpável vinha deixando Débora e o pai preocupados. A Felicidade Clandestina parecia ter se dissipado e na mesma medida em que os telefonemas de Ana Maria tornavam-se mais escassos.

Também insone, atravessava as madrugadas defronte à sua tela. Pelo menos nela a Camila inventada e a Dra. Ângela Krauss ousavam uma realidade que, apesar de virtual, lhe parecia concreta. Naquele lago digital, submersa, a escritora dava ao enredo as cores que bem entendia. E assim, valendo-se desse poder, ali as verdades eram ditas e vividas, entre as duas iguais que povoavam sua aquarela.

Na quinta-feira, véspera do encontro, Camila foi surpreendida com um telefonema por volta da meia-noite. Era Ana Maria que, de forma ríspida, lhe dizia que não seria possível vê-la no dia seguinte. Na seqüência das frases entrecortadas e confusas, a interlocutora ensaiou uma desculpa sem qualquer resquício de verdade e, enquanto a chuva começava a cair lá fora, as duas se despediram.

Camila supunha o motivo daquela atitude: Ana Maria deveria ter terminado o livro, compreendido o recado nele contido e, na seqüência, decidido se afastar. Elas, definitivamente, não eram iguais.

O equívoco, entretanto, era imenso. Ana Maria era tão parecida com Camila que, naquele instante, enquanto observava a chuva com o fito de dissipar seu vazio exatamente como a outra fazia, vertia, pelos olhos nublados, também suas chuvas. E estas, se não escorriam pelo vidro, desciam por sua face, aumentando-lhe o frio.

Sozinha, ela, de fato, havia lido o último capítulo do livro e, finalmente, compreendia o poder das palavras: amava e muito Camila, não havia como silenciar isto. Por outro lado, não se sentia ainda preparada para gritar aquele sentimento aos quatro ventos, como sentia vontade. E essa contradição era tão atordoante que ela, simplesmente, não conseguia mais ficar distraída um só instante daquela sua vida medíocre.

Ana Maria não mais suportava a voz, o cheiro, o gosto de Gabriel, seu marido. Não agüentava mais ser tocada por ele, tampouco se imaginava grávida. E ele, percebendo a mudança, questionou exatamente naquela noite o que tinha havido.

Foi então que a esposa disse que andava confusa com tudo, com seus antigos planos e, tomada de desengano, pediu um tempo para repensar a vida. Aturdido, ele saiu de casa desesperado e no meio da chuva que agora vertia dentro e fora de Ana Maria.

Também atordoada e tomada de remorso, ligou e desmarcou o encontro com Camila. O que havia dito no telefonema, nem mesmo ela sabia. Sabia tão somente de um fato: queria estancar aquele pranto que de há muito, ainda que silencioso, povoava seu espírito. E apenas agora, àquela altura da vida, descobria alguém apto a tanto: Camila.

Com as mãos trêmulas, Ana Maria pegou a chave do carro e saiu alucinada, no meio da chuva e, neste mesmo instante, no visor do celular de Camila, apareceu o nome daquela que dirigia.

“Ana Maria Furtado”, lia Camila sem saber o que fazer. Terminou atendendo, novamente, O Chamado. Em verdade ela sempre o atenderia.

Depois de algumas coordenadas, Ana Maria, completamente molhada, punha-se defronte à porta. E Camila a recebeu com pressa e uma toalha, puxando-a para dentro assustada. E assim, as duas sentaram lado a lado no sofá que, alheio à cena, era o único que parecia tranqüilo.

O que tinha havido? Qual o motivo de aqueles olhos de chuva, literalmente, verterem águas? Estas foram as perguntas docemente formuladas por Camila.

Sem fazer menção de respondê-las, Ana Maria aproximou-se de forma mansa, enquanto afagava os cabelos da outra com os dedos trêmulos e frios. Contendo o choro, mas não o desejo, ela puxou levemente o rosto de Camila, pondo-o a centímetros do seu. E, com a respiração ofegante, demorou-se com os olhos nublados na boca da outra, que, instintivamente, molhou-a com a própria língua. Diante desta visão absolutamente sedutora, Ana Maria cerrou os olhos.

E, no desenlace dos olhares, os lábios finalmente se enlaçaram entreabertos e macios, dissolvendo na saliva as palavras que faltavam.

E o beijo foi tão intenso e sôfrego, que os corpos das duas iguais tremiam, no impacto das vontades e na força da vertigem.

As mãos, também ávidas de tudo, em momento algum se distraíram e, reconhecendo a semelhança das formas e dos gestos, vaguearam eriçando os poros e provocando o transbordar dos líquidos.

Camila, mesmo sem saber, repetia em atos e imagens, os sonhos que acalentavam as noites de Ana Maria e, despindo-a de suas máscaras, livrando-a de suas vestes, libertando-a de sua aliança, pôs em suas mãos uma nova: a delas, que, abstrata, sequer exigia ouro para ser preciosa.

E assim, tomando para si o que era dela, Camila sorvia os lábios de Ana Maria que, naquele instante, se faziam doces. E a que era bebida gemia compassadamente, dando ritmo aos dedos que lhe penetravam de forma vigorosa. E Ana Maria pedia mais: ela queria mais do beijo, mais da boca, mais dos dedos, mais das mãos, mais dos líquidos, mais da outra que, agora, era sua, só sua.

Livrando-se, também, das próprias roupas, Camila, sem separar-se um instante de Ana Maria, deitou-a e logo se pôs por cima. Assim, no compasso do encontro, na dança dos corpos nus e febris, as duas descobriam aonde exatamente iria dar o chamado que de há muito seguiam. Foi quando o gozo, com a intensidade da chuva e para ambas, chegou.

E assim, encaixadas em corpo e em alma, deram ritmo, música e, finalmente, letra ao amor. Ele, definitivamente, exigia expressão e o presente escolhido por Camila vingou.

Com a chegada do dia e com a fome de alma parcialmente saciada, as duas, depois de um longo e tépido banho, povoado de beijos e carícias, puseram a mesa e deram início ao primeiro café da manhã juntas.

Atordoada pelos últimos dias, Camila havia deixado a geladeira e a despensa completamente vazias. Assim, no armário havia café, mas faltava açúcar. Tal ausência, entretanto, não foi motivo de lamento para nenhuma das duas. E o café partilhado naquela manhã foi, simplesmente, o melhor de todos.

Na volta para casa Ana Maria mal cabia em si de tanta alegria e nem por um segundo deixou o remorso afastar de seu rosto o sorriso largo que refletia a luz do dia. Entretanto, ao adentrar na garagem, seus olhos, novamente, nublaram-se. Era o carro de Gabriel e não o de Camila que ladearia o seu.

Ele já estava em casa esperando-a. Porém, para sua surpresa, com as malas prontas. E antes que Ana Maria pudesse ensaiar qualquer desculpa para o fato de chegar àquela hora, o próprio iniciou um monólogo.

E em suas falas, carregadas de culpa, o rapaz desculpava-se por sua ausência, pelo excesso de trabalho, pela pressão exercida em relação ao filho que ainda não possuíam e por todos os fatos que, naquele instante, eram narrados como os responsáveis pela confusão de Ana Maria e, sobretudo, pela necessidade de tempo que esta lhe articulara na noite anterior.

Apenas neste momento o remorso pareceu assumir formas concretas e pontiagudas, capazes de causarem dor física em Ana Maria. É que Gabriel, nem de longe, conhecia o real motivo de sua mudança: Camila.

Calada, retesando o corpo, com o estomago completamente revirado, ela assistiu o monólogo sendo encerrado. E no desfecho, o marido ergueu-se com os olhos vermelhos pelo choro e disse que rumava para o aeroporto. Passaria uma semana distante, a trabalho, momento que deveria ser utilizado por ambos para dissiparem suas dúvidas, repensarem o relacionamento e, finalmente, modelarem o que podia e o que precisavam para continuar juntos. Era este o seu desejo.

Intimamente, Ana Maria só pôde perceber que a vontade elucidada pelo marido era tão solitária quanto o monólogo que este encerrava. Mas aquele, definitivamente, não era o momento de refutar o plano do outro. Que ele viajasse, que a poeira baixasse. Ela esperaria seu regresso para dizer-lhe de seu projeto: separar-se e dar nome ao que tinha com Camila, vivenciando com a plenitude merecida o amor que sentiam. É que tal plano havia sido mais forte do que ela, pois, antes mesmo de concebê-lo em mente, fora construído com vigas profundas e muito concreto num terreno que encontrou fértil: seu coração.

Durante a semana vindoura, Ana Maria e Camila experimentaram o amor que ousa dizer o nome. E assim, as ruas de Recife, todos os cafés, todas as esquinas, as praças que pareciam perfeitas mesmo nos dias de chuva, os museus, os viadutos, as galerias, as beiras de mar, as margens de rios e todos os recantos que existiam dentro e fora delas duas foram estreitos e insuficientes para abrigar a intensidade do que sentiam.

Mas, como sempre, houve um contraponto. E, na sexta-feira, as duas ousaram, pela primeira vez, irem a uma boate gay juntas. Ana Maria queria conhecer o que Camila denominada submundo. No fundo, talvez a moça quisesse antever o que lhe esperava.

Depois de muitas ressalvas e tentativas de dissuadi-la, Camila concordou e, cedendo, a levou. Sem qualquer poesia, o ambiente escuro, a fumaça e a mistura das luzes logo inquietaram Ana Maria que, surpresa, via pela primeira vez casais gays se beijando, se tocando, dançando sensualmente e de forma tão lasciva quanto alucinada.

A princípio, apesar do desconforto, Ana Maria insistiu em ficar. Tinha necessidade de se testar, de ver até onde seria capaz de mergulhar de cabeça no mundo que Camila, de há muito, habitava. O suor frio, o brilho turvo dos olhos denunciavam a Camila a agonia da outra, mas, com teimosia, Ana Maria sorveu a primeira dose de vodka. E a pediu pura, como nenhuma das criaturas que ali dançavam lhe parecia. Em verdade, todos os gays, naquele momento, aos olhos da expectadora, se mostravam extremamente despudorados.

E logo o fogo tomou suas faces e Ana Maria, tentando sentir-se igual naquele meio, enlaçou Camila pela cintura e ensaiou um beijo tão explícito quanto os que assistia. Acompanhando-a em língua e em desejo, a outra correspondeu na mesma intensidade, só que, ao contrário de Ana Maria, sentindo-se extremamente confortável com o ambiente e com os olhares.

Mas, naquele momento, nem mesmo os braços de Camila lhe serviram como abrigo. E Ana Maria tonteou graças ao efeito do álcool e da verdade que a consumia: ela não se via daquela forma e nem o queria.

Desvencilhando-se bruscamente de Camila, ela olhou-a com estranheza. O efeito da vodka multiplicou-se aliado à seus medos e procurando um espelho, ela também se desconheceu. Aturdida, abatida, vendo-se assim refletida, ela pediu para ir embora e Camila prontamente obedeceu.

Mas, enquanto se encaminhavam para a porta uma loira voluptuosa em gestos e curvas interrompeu-as com o próprio corpo, pondo-se entre as duas, de frente para Camila. Olhando nos olhos negros, a desconhecida de Ana Maria mostrou-se perfeitamente conhecida da outra e, sem qualquer desfaçatez e em tom provocativo, propôs:

- Vamos fazer um trio novamente ou essa ruiva é exclusiva, Camila?

Sem resposta e sem ar, Camila deu as costas e saiu rapidamente, puxando Ana Maria pela mão de forma desgovernada e quase arredia. Era sua tentativa de protegê-la daquele mundo que para si própria, naquele instante, lhe parecia inteiramente promíscuo e vazio. Ela estava farta daquilo, mas disto Ana Maria não sabia.

E então, o jogo do desencontro. No carro, Ana Maria chorava compulsivamente, enquanto Camila tentava acalmá-la. Mas nada a convencia, nada se mostrava capaz de estancar aquele choro, nem mesmo um sonoro “eu te amo” profundamente pronunciado por Camila. Ana Maria, simplesmente, não acreditava. Via-se como mais uma nas mãos daquela que, agora, lhe parecia outra Camila. Elas não eram mais iguais. Não eram mais delas, não se pertenciam. E isto foi tudo o que Ana Maria disse durante o percurso.

E ao descer do carro, sem qualquer cuidado, Ana Maria bateu a porta. E, somente naquele instante, Camila sentiu o peso das mãos da outra.

A sala recebeu Ana Maria com as luzes apagadas e, tomada de sua própria escuridão, ela deitou-se de qualquer jeito no sofá. Sua cabeça rodava e ela não sabia mais o que queria. Para sua surpresa, Gabriel havia voltado para casa e, silencioso, caminhou em sua direção, sentando no chão.

Percebendo o estado da esposa e supondo-o fruto da saudade que ele não era mais capaz de provocar, o rapaz olhou-a profundamente, dizendo que a amava demais e que queria o conforto daquela sala novamente, daquela vida partilhada, daquela boca que, na seqüência das palavras, ele beijou.

Tomada da necessidade de fugir daquele emaranhado de sentimentos que a atormentavam e, sobretudo, dos olhos de Camila, Ana Maria cedeu ao beijo e ao abraço. Atordoada, assistiu Gabriel despir-se e foi por ele despida. Mas, se seu corpo estava ali, sua alma voltou-se ao passado e especificamente pousou nos braços de Camila. Só então seu ventre encheu-se de umidade, fazendo o membro ereto deslizar para dentro de si e, no aprofundar dos segundos, jorrar de forma intensa, enquanto ela fechava os olhos e queria sumir.

E os dias transcorreram sem que Ana Maria desse notícias. Camila, desolada, não acreditava naquele desencontro. Elas que haviam nascido para o reencontro, não podiam terminar daquele jeito, era este seu pensamento. De tão aturdida, Camila abandonou momentaneamente o escritório, esqueceu-se do livro e sequer enviou o primeiro capítulo que serviria como conto. Desistiu do concurso, mas não desistiria de Ana Maria.

E tomada desta certeza, em mais uma noite de chuva, depois de meses de espera, Camila foi à casa de Ana Maria. Bem sabia que sua atitude não era nem de longe sensata, mas, definitivamente, àquela altura não conseguia mais agir com sensatez.

Para sua sorte, no momento em que seu carro despontou na rua, Ana Maria também chegava e antes que ela entrasse na garagem, Camila correu pela rua, alheia à chuva, alcançando-a.

Ao bater no vidro do carro, Camila viu Ana Maria olhá-la, primeiramente, com susto e depois com desespero. A dor era tanta que os olhos de chuva sequer pareciam os mesmos. Algo neles havia se dissipado. Talvez a vivacidade, talvez a ingenuidade, talvez o amor, talvez o respeito. Camila não soube definir.

Apressada, Ana Maria abriu a porta e saiu, puxando Camila pela mão até chegarem ao carro da outra. O coração de ambas batia tão forte que demoraram a articular as primeiras palavras. Até que Camila, finalmente, conseguiu:

- Desculpe-me pelo incidente na boate! Eu já fui mesmo uma Camila indigna de você! Mas, em meio a todas as dúvidas que me assombraram nestes meses, só encontrei uma certeza: eu te amo e foi este amor que me fez renascer. Hoje sou outra, uma Camila que apenas você conhece e mais ninguém há de conhecer.

No carro, a música que tocava era O Chamado e Ana Maria, reconhecendo imediatamente a melodia, olhou para Camila como no dia em que a escutaram juntas pela primeira vez. Naquele instante, o olhar nublado deixou fulgurar alguma luz, enquanto a dona dos olhos azuis disse mansamente:

- Eu acredito em você.

E tomando os lábios de Camila com os seus, Ana Maria sorveu o gosto que apenas aquele beijo possuía: o da mistura de café com chuva. E ali as duas se reconheceram.

Mas, em poucos minutos, interrompendo aquele reencontro, Ana Maria afastou-se e, pondo fim ao ar de mistério que pairava em seu silêncio, deixou seus olhos perderem o último vestígio de luz ao dizer:

- Camila, eu estou esperando um bebê.

E deixando que tais palavras estocassem o coração de Camila, Ana Maria, antes de sair do carro, interrompendo O Chamado, pôs no som outra música, também escolhida a dedo. E na casa dos segundos a melodia iniciou intensa, com batidas abafadas intercaladas com acordes suaves de um violão. Era a simulação de um coração que, naquele instante, pareceu a Camila extremante aturdido. E este era o novo recado deixado por Ana Maria na voz de Marina Lima:

Olhar você e não saber Que você é a pessoa mais linda do mundo Eu queria alguém lá no fundo do coração
Ganhar você e não querer É porque eu quero que nada aconteça Deve ser porque eu não ando bem da cabeça Ou eu já cansei de acreditar
O meu medo é uma coisa assim Que corre por fora entra, vai e volta sem sairOh, não ! Não tente me fazer feliz Eu sei que o amor é bom demais Mas dói demais sentir,
Mas dói demais sentir...

Agora, enquanto a música tocava, tudo se explicava: o silêncio, o mistério, o afastamento de Ana Maria. E, naquele momento, Camila também não a reconheceu, tampouco se reconhecia. Ela bem deveria saber que a outra jamais retiraria a aliança do dedo, quiçá aceitaria criar aquele filho consigo.

E sua indignação crescia enquanto ela acelerava o carro e aumentava o volume do recado. Com a visão comprometida pela chuva e pela raiva, ela concluiu que Ana Maria, apesar de tudo, ainda continuara insistindo em engravidar e, em verdade, nunca havia deixado de transar com o marido. Como havia sido cega e estúpida!

Sentindo-se pelo avesso e avessando a própria realidade, tudo o que Camila desejou foi voltar ao seu conto, mergulhar em seu lago digital, onde, uma vez submersa, dava ao enredo o curso que queria, recobrando inteiramente a direção da vida que, apesar de inventada, também era sua.

E assim, invadida pela vontade de transpassar a tela, de transpassar os vidros, aumentou de forma alucinada a velocidade enquanto sentia o acelerar de seu próprio pulso.

Mas o único vidro que se estilhaçou foi o do carro que, numa derrapagem, arremessou-se numa das tantas pontes do Recife encontrando com força extrema as águas do Rio Capibaribe onde Camila, ironicamente, terminou por submergir. É que ela, ao inverso de seu desejo, perdeu completamente a direção.

Recobrando a consciência ou a inconsciência, sem noção do tempo decorrido, Camila, ao abrir os olhos, deparou-se com o olhar de chuva pousado em si. Mas, no piscar seguinte, os olhos que lhe pareceram ser os de Ana Maria, aos poucos, clareavam e adquiriam outros traços, outros laços, outras formas, também a prendê-la, a domá-la, a lhe causar vertigem. De repente, raios esverdeados os invadiam e o céu nublado tornou-se extremamente claro, translúcido, adornados com sobrancelhas loiras, assim como os cílios.

E a mulher vestida de branco que, naquele momento, deixava de observar seus olhos e passava a examinar seu corpo finalmente foi reconhecida por Camila. Era ela: Ângela, a sua Ângela. E nas mãos dela não havia qualquer aliança, tampouco em seus olhos verdes dormitava o medo.

Se aquela imagem retratava sonho ou realidade, se aquela mulher existia em seu conto ou em sua vista, Camila não soube responder, ao menos do avesso da tela onde dormia.

E a última frase ouvida foi uma que nunca havia saído de sua mente, tampouco deixado de ecoar em seu coração:

- Paramos por aqui...por hoje. Mas queria te ver amanhã...


FIM
Para aquela com quem me reencontrarei por todas as vidas.
Com amor,
Marina Porteclis.







3 comentários:

Anônimo disse...

Bom demais!!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

quero elogiar, mas sei que a palavra elogio, em si, nada significa diante da inominável carga de sentimentos que tentam atingir a supremacia do meu emocional ao término dessa obra. quando não sei ao que comparar para definir a beleza, sempre comparo ao mar: misterioso, simples, fugidio ao mesmo tempo que tragante; líquido, ao mesmo tempo que sólido; instavel, ainda que brando: o mar que rege a alma feminina. seu conto é o mar; e eu, quem sabe sereia, quem sabe naufraga, quem sabe a afogada. parabéns!!