sábado, 12 de julho de 2008

O AVESSO DA TELA (Capítulo II)

CAPÍTULO II


ENQUANTO DESCANSA A TELA


A princípio, findo estava o conto com o qual Camila havia se disposto a participar do concurso. Ela, enquanto escritora, possuía o poder de estancar o curso do enredo, compelindo os leitores a se conformarem com uma mera pincelada quanto à suposta continuação da relação esculpida entre Camila – a personagem – e a Dra. Ângela Krauss – sua personagem!

Entretanto, do lado de fora da tela, este poder não se fazia possível e a história de sua vida proclamava prolongamento. O dia-após-dia inevitavelmente viria e, com ele, Camila seria impulsionada a dar um arremate àquele seu ensaio de envolvimento, àquela sua tentativa de dar vazão a sentimentos que extrapolam a carne e povoam a alma, àquele seu recente experimento fincado num solo que, até então, lhe era desconhecido: o coração. E ela, definitivamente, sentia-se disposta a pôr em prática, do lado avesso da tela, aquela missão.

E foi movida por esta intenção que ela, resoluta, guardou o laptop e ergueu-se da mesa, saindo em passos firmes do restaurante que, àquela hora da tarde, já se fazia vazio. Em dois dias seria, de fato, seu aniversário e, na mesma página de sua agenda, ela havia marcado uma consulta com a ginecologista. Se por sua sorte alguém semelhante à Dra. Ângela Krauss a esperaria, disto ela não sabia. Mas, a esperança não fazia mal a ninguém.

Seus trinta anos chegaram trazidos por uma manhã nublada que se não era de todo bonita, a trouxe, estranhamente, felicidade. Logo a Camila, que não gostava de aniversários! Talvez a expectativa fizesse aquele ser diferente. Mas expectativa de que, exatamente? A aniversariante não soube, naquele primeiro momento, responder. Entretanto, dentre as hipóteses que flamejaram confusas em sua mente, uma lhe fez sorrir: expectativa de se apaixonar verdadeiramente.

Enquanto Camila divagava, aconchegada por entre as cobertas, sobre esta possibilidade, a campainha soou, chamando-a para a sala. Era seu pai que, do outro lado da porta, ansioso e visivelmente feliz, a esperava com uma cesta de café da manhã e toda a sinceridade que pode conter um desejo de “feliz aniversário”. Ao se deparar com aquele sorriso tão familiar, quanto querido, ela o enlaçou em um forte abraço, convidando-o para partilharem daquele presente. Naquele instante, uma certeza instalou-se em seu espírito inquieto: nada estragaria aquele dia.

Depois do café da manhã recheado de tudo que Camila mais gostava, ela e o pai rumaram para o escritório.

Lá chegando, Camila foi recebida com três orquídeas sobre sua mesa, um estojo de canetas específicas para finalização de projetos e um pequeno cartão. Neste, as explicações eram dadas: cada flor representava uma década de sua vida e todas elas, apesar das intempéries, haviam sido devidamente finalizadas. A coragem de Camila e, sobretudo, a força que a impulsionava e a fazia terminar com singularidade e determinismo tudo aquilo que começava eram atributos que todos ali admiravam. E era exatamente relatando este fato que o cartão se encerrava. Nas derradeiras linhas, o amor de todos restava estampado em letras de fôrma. E a última assinatura, firmada pela mesma letra que conduzia o texto, como Camila já esperava, era a de Débora, sua sócia e, também, arquiteta.

As duas eram amigas desde a época do colégio e, apesar das inúmeras diferenças que sempre as habitavam, elas se entendiam perfeitamente bem. O que tinha Camila de centrada e firme, principalmente no âmbito profissional, tinha Débora de extrovertida e maleável. Desta forma, confabularam montar um escritório assim que se formassem, plano este que logo se tornou concreto graças à ajuda de Aurélio, pai de Camila e seu eterno incentivador.

Nos primeiros anos de escritório, entretanto, as coisas não foram, de todo, fáceis. É que, se a estrutura física havia sido erguida e de primeira qualidade, a emocional ainda não restava inteiramente firmada nas sócias. Cada uma, justamente naquele momento, passava por uma crise de inconteste gravidade.

O primeiro ano de trabalho coincidiu com a época em que Camila se descobriu atraída por mulheres e isto, a princípio, a deixou um tanto quanto atordoada. Ela não sabia como o pai enfrentaria aquele assunto e Débora, desde a época de faculdade, se mostrava preconceituosa ao extremo quanto ao tema homossexualidade. Tais eventos, somados, cuidaram de intensificar sua angústia. Ela tinha receio de causar sofrimento às duas pessoas que considerava as mais importantes em sua vida e mais: não sabia se continuaria sendo, por ambas, igualmente amada.

Justamente na mesma temporada, Débora havia terminado o noivado de quase dez anos e o fez motivada por uma infeliz descoberta: o noivo a traíra. E o pior: com outro homem. Beirando uma depressão, ela estava prestes a desistir do escritório e aceitar o convite de uma de suas irmãs para ir morar na Alemanha.

Camila bem sabia, desde o começo do namoro, que, no fundo, Débora nem amava verdadeiramente Armando. O relacionamento de ambos tinha por base a carência mútua, a necessidade de companhia constante por ambos fomentada. Paixão, romance, intensidade, isto nunca os povoou e nem mesmo no início, o que era um fato tanto real, quanto notório.

Mas, a maior inquietação da noiva – apenas naquele instante. Camila percebia – não se devia ao fato de ter sido traída, tampouco de ter sido trocada. O que verdadeiramente a incomodava era o evento de, apenas agora, descobrir a homossexualidade do namorado. Assim, classificando seu desejo como “anormal e abominável”, ela abraçou-se desesperada à amiga que, sentindo seu coração se apertar, tanto quanto o acelerar de seu pulso, resolveu: aquela era a hora esperada!

Com a garganta inteiramente seca, prestes a proferir um segredo que, de há muito, lhe ressecava a própria alma, ela olhou Débora firmemente e lhe disse, com os olhos turvos pelas águas:

- Você me acha anormal e abominável?

E foi depois daquela pergunta e, sobretudo, da conseqüente resposta, a qual, gradativamente, ecoou dentro de Débora, que as duas, se já eram amigas, se tornaram ainda mais.

Na seqüência dos dias, todas as crises foram superadas, inclusive as oriundas do escritório, e os contratos mais importantes de suas vidas foram firmados. Eis o principal: o que as consagrava como verdadeiras irmãs, apesar dos pesares.

Estas lembranças, em parte doces, em outras amargas, passaram por Camila com a velocidade de uma bala até que, nos minutos seguintes, sua sala foi invadida por todos que, munidos de uma torta sobre a qual queimavam trinta velas, cantavam animadamente parabéns. Todo ano Camila recebia algo do estilo e se tais demonstrações de carinho já não tinham o poder de surpreendê-la, possuíam, ainda, o de genuinamente alegrá-la.

Depois das comemorações, muito trabalho a esperava. Assim, o resto da manhã transcorreu rapidamente, enquanto ela emergia para dentro de seus projetos, todos mergulhados na tela de seu computador. Ele, nos últimos tempos, vinha sendo seu mais aconchegante refúgio, o local onde se abrigava sempre que a vida lhe parecia vazia ou, simplesmente, sem graça. Entretanto, naquela ocasião, o mergulho se deu, em verdade, por simples obrigação. É que naquele dia, em especial, a fuga não estava em cogitação.

Revestida de entusiasmo, ela retornou a um projeto um tanto quanto complexo que deveria ser, impreterivelmente, terminado e, em virtude disto, sequer deu-se ao luxo de parar na hora do almoço. E não foram poucos os convites que recebeu. O primeiro veio de Débora que, insistente desde sempre, disse-lhe ser um absurdo alguém, no dia do próprio aniversário, não se dar ao direito de um almoço decente entre os amigos. E a constatação veio seguida de uma ameaça:

- Só não ouse sumir mais tarde. Estou organizando uma festa surpresa para você lá em casa, por volta das oito horas.

Acatando a convocação, ela apenas meneou a cabeça no sentido positivo, sem, sequer, atravessar a tela, submersa que estava. E, naquele lago digital, passou o restante do dia, até que o alarme a chamou: dentro de uma hora seria a consulta, há quinze dias marcada.

A imagem da Dra. Ângela Krauss, por si mesma confeccionada e devidamente descrita em seu mais recente conto, a acompanhou durante todo o percurso, este feito da forma mais lenta graças ao trânsito que, àquela hora da tarde, transformava as ruas de Recife num conturbado mar de carros. E foi inevitável rememorar as entrelinhas de seu desejo, devidamente camuflado nas derradeiras linhas de seu texto: o de se permitir a um dia seguinte, depois de suas casuais e vazias noitadas.

Ao estacionar o carro, ela observou externamente a clínica e surpreendeu-se com um fato: o local, de certa forma, se assemelhava ao idealizado e relatado em seu conto. Restava agora, contando com a mesma sorte, adentrar ao consultório e conhecer a médica. O nome dela, entretanto, já se antecipava, estampado que estava em uma das placas: Dra. Ângela Dias. A coincidência dos prenomes, entretanto, não a surpreendeu já que fora por si mesma causada. É que, quando Camila marcou a consulta, antes mesmo de começar a escrever o conto, já sabia como a médica se chamava, inclusive porque era renomada no meio. Assim, o nome da personagem foi escolhido justamente em sua homenagem.

Ao atravessar o jardim e subir os discretos degraus que davam acesso à casa, ela riu ao lembrar-se que aquele cenário, antes mesmo de ser tocado por seus pés, o foi por seu imaginário. Eis o poder de sua tela e, sobretudo, das palavras que, nela, mergulhavam, tanto quanto a autora e os fatos criados. E Camila deliciava-se toda vez que inventava uma “realidade” e, na seqüência de sua vida, terminava por vivenciar algo semelhante ao que, às vezes, até despretensiosamente, articulara. Pois era exatamente o caso.

No consultório, as pacientes eram muitas. Várias mulheres e de todas as idades esperavam: umas inquietas, folheando apressadamente uma revista ou comentando em voz alta com sua vizinha de sofá um fato; outras tranqüilas ou quase anestesiadas, fosse pela espera, fosse pela esperança acalentada. É que aquela clínica também tinha por especialidade a fertilidade e muitas daquelas que ali estavam eram pretensas grávidas.

Entretanto, em meio a tantas pessoas, uma, imediatamente, chamou a atenção da mais nova paciente. Era uma mulher que, nem de longe, se enquadrava nas duas categorias ensaiadas. A moça, que deveria ter também uns trinta anos, nem se mostrava apressada, tampouco quieta. Parecia, isto sim, de uma infelicidade quase palpável. Os olhos de íris clara e de cor incomum, inicialmente, indecifrável pousavam perdidos e vazios em uma página. O texto, para Camila, era presumível, inclusive pela capa: aquela revista, como tantas que ali dormitavam, tinha por conteúdo a maternidade. O que se passaria em sua cabeça, tão bem adornada pelos cabelos lisos e acobreados? O que se passaria, sobretudo, em seu coração, inteiramente desconhecido, apesar de, facilmente, detectado como angustiado? O que se esconderia por trás daquela imagem impassível, tão bonita quanto intrigante? Camila, definitivamente, não sabia responder. Mas, em meio a tantas questões e dúvidas, uma coisa era certa: ela gostaria imensamente de decifrá-la.

Seu devaneio foi interrompido pelo olhar da observadora que, de forma quase feroz, ergueu a vista em sua direção e, arqueando a sobrancelha bem feita, como se lesse seus pensamentos, pediu, ainda que em silêncio, para ser deixada em paz. E Camila, instintivamente, desviou a vista e o desejo, obedecendo ao pedido mudo, ao comando explícito daquele olhar tão límpido, quanto perturbador.

Antes disso, entretanto, a observadora se permitiu a uma última questão: que cor tornava aquela íris tão incomum? Entretanto, como resposta, ela, contrariada, ponderou: seria preciso chegar realmente perto para descobrir, evento que, naquele momento, lhe pareceu tão impossível quanto instigador.

Depois de quase uma hora de espera, a atendente, ao chamá-la, revelou a Camila pelo menos o nome daquela paciente: Ana Maria Furtado.

Então era assim que ela se chamava! E Camila, sem esforço, gravou aquela anunciação, observando de soslaio Ana Maria se levantar e admirando o movimento de seus quadris, ajustados de forma extremamente sensual na calça jeans, enquanto ela caminhava para o consultório.

Durante todo o tempo em que Ana Maria estava sendo atendida, Camila, mesmo sem querer, sentiu-se preenchida de uma estranha expectativa. Ela esperava, não sabia exatamente o quê, mas esperava. Talvez – ponderou enquanto consultava o relógio com as mãos frias – esperasse ver aquela mulher saindo pela porta da sala de Dra. Ângela Dias e presenteando-a com um olhar direto e nitidamente azul, ainda que fosse a última vez que a visse.

Entretanto, para sua surpresa, em mais alguns minutos a porta se abriu e Ana Maria saiu da sala com a cabeça baixa, a expressão consternada e os olhos turvos ainda mais desconhecidos. Certamente não ouvira da médica coisas agradáveis, adivinhou Camila assim que a viu. E, para intensificar seu lamento, a moça atravessou a sala apressadamente, passando por perto de Camila sem sequer fazer menção de olhá-la, quanto mais diretamente, como desejara. E assim, ao alcançar o trinco da porta e abri-la com força, tudo o que Ana Maria deixou para a expectadora foi seu perfume. E este, Camila logo soube, jamais seria esquecido.

Ao ouvir seu próprio nome sendo chamado pela atendente, Camila ergueu-se e, sem ânimo algum, entrou no consultório de Dra. Ângela Dias que, sentada e de cabeça baixa, a aguardava, desinteressante e em nada semelhante à sua personagem.

No decorrer da consulta, ao contrário do que em seu conto acontecia, Camila manteve-se absolutamente distante. Seu pensamento havia ficado do lado de fora e sua curiosidade sobre a médica simplesmente dissipou-se, assim como o perfume daquela que, minutos atrás, atravessara a porta.

Mas a vida real, assim como a inventada por aqueles que se aventuram à ficção, também surpreende. E, por ironia ou acaso, depois da consulta, quando Camila atravessou o jardim da clínica chegando ao seu carro, a primeira coisa que viu foi um imenso arranhão.

E o carro era novo! E caro! Foi tudo o que se passou em sua cabeça que, àquela altura, já fazia menção de doer, explodindo de exclamações. Imediatamente ela lembrou-se da premonição com a qual começara o dia: a de que nada o estragaria! E, na seqüência da ironia, extremamente irritada, ela rodeou o automóvel, verificando o tamanho do estrago e praguejando contra o imbecil que havia feito aquela barbaridade e o pior: estragado sim o dia do seu aniversário! No decorrer de seu exame, perguntou-se como alguém havia conseguido arrastar o próprio carro no seu, numa manobra tão absurda e inusitada quanto aquela?

Sem resposta, baixou a cabeça respirando fundo, enquanto sentia a veia pulsando em sua fronte. Foi então que, focando o chão, viu um pequeno bilhete que, sorrateiramente, escorregara do capô do carro, onde havia sido posto pelo culpado.

Apanhando-o apressadamente, Camila iniciou a leitura com a mesma velocidade. Mas foi preciso ler e reler mil vezes para acreditar no que via, para conceber o recado que ali jazia e que, com a assinatura, fez seu coração descompassar-se de vez e agradecer o fato de seu carro ter sido ferozmente abalroado:

Desculpe-me. Infelizmente causei este estrago em seu carro. Pretendo assumir integralmente o prejuízo. Não pude esperar, mas deixo meu telefone para contato: 9229 5555.
Ana Maria Furtado

Por alguns minutos, Camila encostou-se no carro e limitou-se a contemplar aquela letra tão bonita quanto a dona. E assim ficou até que seu coração, aos poucos, começou a voltar ao normal. Ainda boquiaberta, agradeceu ao destino: ele, sem dúvidas, havia lhe garantido um reencontro e nem fora preciso inventar qualquer pretexto, descobrir os lugares que Ana Maria costumava freqüentar ou tentar arranjar uma forma de contatá-la. Seu telefone estava bem ali e os números grafados partiam de seu próprio punho! E foi este seu maior presente de aniversário.

E, para intensificar novamente as batidas de seu coração, Camila percebeu – ou seria apenas sua imaginação? – enquanto dobrava o bilhete que, aquela que o assinou, involuntariamente, deixou vestígios de seu perfume no papel que, minutos antes, teve nas mãos.

Com o coração novamente aos saltos, ela entrou no carro que nunca lhe pareceu tão inteiro. Em verdade, Camila bem sabia que aquela sensação de completude vinha dela. E, tomada de euforia, enquanto arrancava na primeira marcha impingindo velocidade extrema ao veículo, ela desligou o ar-condicionado e ousou abrir as janelas, deixando que o vento açoitasse seu rosto, assim como a alegria açoitava seu espírito.

Foi com esta mesma alegria que Camila, naquela noite, depois da festa de aniversário, chegou em casa. E, na seqüência das horas, sem sequer percebê-las, a escritora atravessou a madrugada e a tela iluminada de seu laptop, indo reencontrar as personagens de seu conto, dando a ele continuidade.

De manhã, depois de poucas horas de sono, a primeira coisa que Camila observou ao acordar foi o celular. Nele, viu que horas eram. Depois de espreguiçar-se lentamente, sentindo a musculatura de seu corpo alongar-se, ela procurou na agenda o nome que em momento algum havia saído de sua mente: Ana Maria Furtado. Ali estava ele, logo no início da agenda eletrônica, no visor daquela outra tela. E onde estaria ela?

Nos minutos seguintes, sem erguer-se da cama, Camila fechou os olhos e, enquanto sentia o aconchego do colchão e das cobertas, tentou adivinhar o que Ana Maria, naquele instante, deveria estar fazendo. Quem a acompanhava? Quem se fazia próximo o suficiente para tocá-la? Para ouvir sua voz e sentir suas mãos? Para sentir o cheiro de seu perfume ou de sua pele?

Entretanto, o alarme da cabeceira a resgatou de seu devaneio e ela, tomada de alguma lucidez, questionou-se: o que estava acontecendo? Que loucura era aquela? Ela nunca havia se flagrado pensando tanto em alguém, quanto mais em uma criatura com a qual sequer havia trocado uma frase! Definitivamente aquilo não tinha cabimento. Não combinava com sua postura racional e altiva, com seu desapego. E foi diante desta última palavra que Camila assustou-se: desapego! Talvez algo dentro dela houvesse, de fato, mudado. E ela agora constatava: não queria mais se desapegar daquela história que tinha início do outro lado de sua tela, especificamente no avesso dela. E mais: talvez aquele novo sentimento responsável por sua mudança tivesse um nome bem definido e bastante complicado de ser experimentado: paixão.

Aturdida com sua descoberta, ela, num rompante, pegou novamente o celular e o desligou. Precisava ficar mais um pouco ali, no seu quarto, no seu aquário, sem contato com o mundo externo, apenas em contato com seu mundo interno. Precisava, isto sim, digerir aquela nova realidade em sua vida, cuja causa também possuía um nome e bem bonito: Ana Maria. Assim, nas horas subseqüentes, ela não mais o procurou no visor. Não se sentia preparada para ouvir a voz daquela que, num simples erguer de olhos, totalmente a habitou.

Mas o dia prometia. A quantidade de projetos a serem concluídos e obras a serem visitadas era tamanha e Camila, de certa forma, até agradeceu àquele fato. O corre-corre faria com que ela suavizasse, nem que fosse pelo cansaço, sua inquietude antes de ligar para Ana Maria. E, pensando assim, ela, finalmente, ergueu-se da cama, tomou uma ducha de água fria, vestiu-se de forma que se sentisse inteiramente segura e bonita e, como de hábito, tomou um café extremamente forte antes de sair de casa.

Porém, ao chegar no carro e ver o arranhão na pintura, estancou o passo, sentindo um certo nervosismo povoando-lhe o estômago. Era pura e simples ansiedade. Chateada com seu corpo que, feito o de uma adolescente, vinha lhe ensinando o que era sentir, literalmente, na pele, o fato de estar apaixonada, Camila olhou-se no retrovisor, antes de dar a partida.

Fixando o olhar nos próprios olhos, muito bem maquiados, de cílios delineados e compridos, ela riu de si mesma e de sua bobagem. Na seqüência daquele sorriso partilhado com o espelho, ela ainda lhe confessou:

- Essa aí ainda é a Camila que você conhece, a que sabe envolver, a que sabe jogar, a que sabe descartar, a que sabe, sobretudo, desvencilhar-se daquilo que lhe causa qualquer tipo de dor!

E assim, tentando se convencer de que não havia porque ter medo, ela tomou a direção com as mãos, fingindo manter o mesmo controle sobre o curso de sua vida. Mas, para lhe provar o contrário, seu telefone tocou.

O número desconhecido a fez olhar o visor com curiosidade. Imaginando tratar-se de algum cliente ela atendeu, falando secamente um “alô”. E, na seqüência, ouviu:

- Camila?

Era uma voz bonita a que lhe falava e ela simplesmente respondeu:

- Sim.

Dali em diante foi preciso estacionar novamente, pois a voz logo anunciou sua dona:

- Meu nome é Ana Maria... Ana Maria Furtado.

Camila simplesmente não acreditava no que estava ouvindo, mas, na seqüência da explicação, a voz tornava-se tão melodiosa e concreta que ela simplesmente acreditou:

- Estávamos ontem no consultório de Dra. Ângela Dias. Eu deixei um bilhete no seu carro, mas, como você não me ligou, imaginei que alguém o havia tirado.

E assim, enquanto o coração de Camila parecia querer saltar pela boca, a outra explicou calmamente: ao causar o arranhão no carro, Ana Maria logo supôs que o mesmo era de alguma paciente e retornou à clínica, onde a atendente, depois de consultar o manobrista, disse que, salvo engano, o veículo pertencia à moça que acabara de entrar na sala da médica. Na dúvida de ambas, a culpada resolveu deixar um bilhete com seu número e esperar uma ligação. Porém, como esta não veio, socorreu-se do número fornecido na clínica e antecipou-se, ligando para Camila.

Com poucas e escolhidas frases, Camila propôs um encontro na oficina de um conhecido seu, o que foi prontamente aceito pela outra interlocutora, que anotou cuidadosamente o endereço indicado. No dia seguinte elas se encontrariam. Antes de desligar, entretanto, docemente Ana Maria articulou:

- Desculpe-me o transtorno e obrigada pela atenção.

Mas Camila respondeu apenas internamente: eu é que lhe agradeço por me resgatar de meu conto e me fazer habitar, em carne, osso e espírito, este outro lado da tela, onde, finalmente, respiro.

E assim, antes de o telefone ficar mudo, tudo o que Ana Maria escutou foi uma desconhecida respirando fundo.

Três horas da tarde e Camila já estava impaciente. Andando por entre os carros estacionados na oficina, ela os olhava, mas não os via. Via tão somente a imagem que guardara de Ana Maria. Lembrava-se de suas mãos, de seus olhos, de seu andar, de seu perfume e agora, também, de sua voz. Aos poucos ela ia somando informações e detalhes daquela mulher que a atraía tanto quanto a assustava. Aliás, ponderava Camila, estava era assustada consigo mesma!

Suas divagações foram interrompidas por Ítalo que, saindo do escritório, caminhou em sua direção, entregando-lhe o orçamento. Enquanto Camila consultava os preços indicados, sentiu uma mão pousar levemente em seu ombro. Ao virar-se, surpreendeu-se refletida na ires dos olhos claros que a fitavam com uma interrogação:

- Você é Camila, não é?

Um “sim” foi tudo o que ela conseguiu articular diante de Ana Maria que, pedindo desculpas pelo atraso, olhou curiosa para o orçamento, pedindo permissão para verificar o tamanho do estrago, como a própria classificou, enquanto ensaiava um sorriso. Camila estendeu o papel e, por um segundo, as mãos das duas se tocaram, fazendo Ana Maria, instintivamente, olhá-la no fundo dos olhos.

Nesse segundo roubado do tempo, Camila sentiu como se tudo ao seu redor houvesse parado e seu coração também estancasse, suspenso pelo olhar que lhe fora lançado. E assim, como se prolongasse as sensações, ela experimentou pela primeira vez a quentura da mão de Ana Maria e o leve roçar de sua pele, que lhe pareceu suave desde o primeiro momento.

Alheia ao turbilhão de sentimentos que povoavam o corpo de Camila e, sobretudo, seu espírito, Ana Maria limitou-se a recuar a mão, detendo-se no orçamento. Enquanto isso, Camila sentia-se estúpida, imatura e insegura. Nem de longe reconhecia aquela criatura que, agora, habitava em seu corpo, tão diferente da Camila que estava acostumada a conduzir as situações e, sobretudo, a articular cada frase, cada encontro, cada nuança de seus contos e de seus relacionamentos furtivos.

Pondo os óculos escuros, ela respirou fundo e resolveu assumir seu antigo papel. Olhando para Ana Maria, questionou-a de forma fria e seca:

- E então, como você pretende fazer?
- Como eu lhe disse, pretendo arcar com o prejuízo e lhe peço novamente desculpas. Por mim, podemos começar o serviço.

Depois de um leve aceno de cabeça, Camila deu as costas e foi consultar Ítalo, que lhe deu três horas, no máximo, como prazo para concluir os reparos.

Enquanto isto, do lado de fora do escritório, Ana Maria observava através do vidro a mulher que, de forma firme e resoluta, acertava como seria feito o serviço. A distância a permitia visualizar Camila por outro ângulo. E, pela primeira vez, ela a achou bonita. Mas alguma coisa nela lhe causava estranheza, algo destoava em seu corpo de formas extremamente femininas, em suas roupas impecavelmente escolhidas. Porém, naquele segundo que, para Ana Maria, também pareceu roubado do tempo, ela não soube responder exatamente o quê lhe intrigava naquela que observava.

Saindo do escritório em passos firmes e harmoniosos, Camila foi ao encontro de Ana Maria, explicando que ficaria ali esperando o conserto, mas que ela já poderia ir embora. Olhando-a nos olhos, Ana Maria meneou a cabeça como se concordasse e encaminhou-se para o escritório, enquanto Camila seguiu, com o olhar, seus passos.

Encostada no carro, Camila assistiu, também através do vidro, Ana Maria preenchendo um cheque, como se estivesse totalmente alheia ao fato de ser observada e inteiramente focada no que fazia. Porém, ao destacá-lo, antes de entregá-lo nas mãos de Ítalo, Ana Maria olhou na direção da outra, séria e contida, como se estivesse o tempo todo sabendo que era analisada. E a expectadora, sem graça, desviou o olhar, enquanto sentia o coração descompassado.

Mas Ana Maria não fez o mesmo e sem tirá-la de foco, caminhou olhando-a intensamente e desconcertando-a de vez. Cruzando os braços e firmando posição de alerta, Camila desencostou-se do carro, preparando as mãos para cumprimentar Ana Maria numa formal despedida. Mas as mãos frias foram guardadas, pois a outra, sem fazer menção de se despedir, convidou:

- Toma um café comigo?

E mais um “sim”, talvez o mais surpreso de todos, foi dito.

A tarde estava chuvosa e o céu completamente cinza. Realmente um dia perfeito para um bom café, ainda que fosse na esquina. Esta foi a sugestão de Ana Maria, que era cliente de um posto de gasolina onde sempre tomava um expresso quando abastecia. E o posto ficava logo ali, no final da rua, apontou a moça de olhos desconhecidos, cuja cor, naquele instante, lembrou a Camila exatamente um dia de chuva.

Assim, enfrentando o vento e aquele verdadeiro ensaio de tempestade, as duas atravessaram a rua correndo até o carro de Ana Maria, que estava estacionado logo do outro lado. E aquele pequeno percurso foi o suficiente para que ambas entrassem no veículo bastante molhadas.

Com o rosto vermelho pelo frio e a respiração entrecortada, Ana Maria olhou para Camila, ensaiando um sorriso, ao qual a outra retribuiu, um tanto quanto sem graça. A falta de intimidade crescia naquele espaço tão contido. E imitando aquele adjetivo, Camila tentava, também, se conter. Não queria que a outra notasse sua inquietação.

Sem trocarem nenhuma palavra, as duas aproveitaram o percurso para recobrar a respiração. O perfume de Ana Maria tornara-se mais intenso ainda dentro do carro e Camila, mesmo sem querer, sentia-se parcialmente entorpecida, enquanto observava cada movimento da outra na direção. As mãos alvas, de unhas bem feitas e longas, chamavam ao toque e Camila, por segundos, imaginou como seria senti-las entre as suas. Foi então que, açoitando sua visão, a observadora se deparou com uma aliança de ouro. E aquele objeto tão simples, ao reluzir, atormentou-a tanto que a fez prender a respiração.

Chegando no posto, as duas se encaminharam para a loja de conveniência. O ar condicionado somado ao frio do dia tornava o ambiente ainda mais propício para um café extremamente quente. Com duas fichas na mão, Ana Maria disse para Camila sentar-se em uma das mesinhas, enquanto ela iria buscar os cafés na máquina. E assim, logo voltou com dois expressos curtos e fortes, como estava acostumada a escolher.

A loja era pequena, mas bastante aconchegante. As prateleiras eram de madeira escura, em contraste com o piso alvo e muito bem polido. Os vidros que compunham as paredes emprestavam ao local um certo ar futurista, que se contrapunha ao clima intimista proporcionado pelas mesinhas que, harmoniosas, ficavam num canto mais reservado. E assim, o cheiro do café, associado àquele peculiar espaço, tornava o ambiente extremamente acolhedor, ainda mais para os amantes daquele líquido que, sorvido nos dias de frio, parecia ainda mais saboroso.

Àquela hora da tarde as mesinhas estavam vazias e, escolhendo uma que ficava no canto esquerdo, abrigada num verdadeiro refúgio viabilizado por uma esquadria de madeira que rebaixava o teto, Camila sentou-se e ficou no aguardo. Ela ainda não estava acreditando no que lhe acontecia: ela e Ana Maria, sozinhas, num final de tarde chuvoso, munidas de um bom café. Aquele era, sem dúvidas, um bom começo. Mas logo o peso da aliança que a outra trazia nos dedos a resgatou de seu devaneio. E ela continuava a reluzir, enquanto a moça segurava os expressos nas mãos, caminhando em sua direção.

Depois do primeiro gole, entre a densidade fumegante advinda do líquido, as duas se olharam e Camila tentou, fingindo uma calma que não sentia, iniciar um diálogo. E assim, desculpou-se pelo mau jeito com que tratara Ana Maria ao telefone, dizendo-se estar extremamente ocupada no dia de sua ligação. E a outra, olhando-a atentamente, como se a invadisse e dissipasse sua calma, ria com o olhar estreito, como se adivinhasse seu desconcerto.

As desculpas foram aceitas, até porque, como bem lembrou Ana Maria, Camila possuía todos os motivos do mundo para tratá-la de forma ríspida. Afinal, ela havia batido em seu carro, exclamava Ana Maria, visivelmente constrangida com o fato. Mas Camila logo a tranqüilizou, dizendo que nunca em sua vida havia encontrado uma pessoa tão solícita, ainda que “culpada”. Disse também que nunca havia sido tão agradável ser vítima de alguém, até porque esse alguém, além de pagar o estrago, trazia café quente e em dia de chuva. E finalizou a frase com um sorriso amistoso abrigado entre lábios fartos e perfeitamente delineados, como logo admirou a outra. E as duas, pela primeira vez, riram juntas, ambas mais relaxadas.

Aos poucos, enquanto a chuva tornava-se mais intensa, a tensão que pairava entre ambas era amenizada. E assim, o segundo, o terceiro e o quarto café foram servidos e sorvidos, enquanto as duas se descobriam, ora com silêncios, ora com palavras.

Camila, a cada gole, aquecia seu espírito, já menos agoniado pela presença de Ana Maria e acalentado pelo olhar intenso que a outra lhe direcionava do outro lado da mesa cada vez que a ouvia. Mais segura de si, a arquiteta ensaiava falar um pouco sobre sua vida, escolhendo cuidadosamente alguns fatos que julgava mais interessantes e encobrindo aqueles que não condiziam com o momento. E assim, desnudava o que havia de mais envolvente em si, artifício do qual estava acostumada a se valer quando queria impressionar e seduzir.

Enquanto isto, Ana Maria, discretamente, também a observava. Gostava do movimento de suas mãos, sempre firmes, apesar de gentis; gostava de seus olhos intensos e de cílios longos; gostava de sua boca, de sua voz e, sobretudo, de sua forma de falar. Definitivamente, Camila era uma mulher diferente das que estava acostumada a lidar, concluía Ana Maria curiosa, muito embora ainda não soubesse indicar de forma exata o que a tornava tão peculiar.

Depois foi a vez de Ana Maria falar sobre si, mas, ao contrário da outra, os fatos escolhidos e elucidados não ostentavam o atributo de “interessantes” e sim de “tristes”. Com a voz embargada e expressões marcadas pela frustração, ela contou que estava casada há cinco anos e, apesar da vontade de ambos, não conseguia engravidar. Estava ali, portanto, o motivo de sua consulta no dia do incidente com o carro. Consternada, relatou ainda um aborto ocorrido há seis meses e o vazio que a consumia desde então. E de vazios Camila bem entendia, pensou a ouvinte, enquanto escutava Ana Maria.

Aquelas palavras segredadas e, sobretudo, o olhar turvo que, naquele instante, nublava o semblante de Ana Maria fizeram Camila querer abraçá-la. Mas, diante da impossibilidade de fazê-lo, ela limitou-se a lhe estender as mãos ainda frias. Estas sim foram, da forma que puderam, abraçadas pelas mãos quentes de Ana Maria, que não hesitou em tomá-las de forma justa, enquanto a agradecia.

Quando deram por si, as três horas já haviam transcorrido de há muito! Surpresa, Ana Maria observou o relógio na parede indicado por Camila com o olhar. Porém, antes de erguerem-se, Ana Maria propôs outros encontros.

Deveriam existir muitos outros cafés a serem descobertos na cidade do Recife, respondeu Camila concordando prontamente com a idéia. E, naquele instante, por ironia ou acaso, num minuto de silêncio partilhado, as duas respiraram fundo. Foi quando uma música em especial chegou aos ouvidos de ambas advinda do som ambiente.

A primeira frase, cantada por Marina Lima, ecoou dentro de Camila contundente a transformar-se em fato. E assim ela dizia: vou seguir o chamado e onde é que vai dar, e onde é que vai dar? Não sei...

Ela, de fato, não sabia. Sabia apenas que ia sim seguir O Chamado. Era este o título da música que, tomando Camila de surpresa, por ser tamanha a coincidência, a fez, mesmo sem querer, sorrir. E Ana Maria, curiosa, logo a questionou:

- De onde vem esse sorriso?
- De um tempo muito bom de minha vida que foi embalado por esta mesma melodia...

E esta foi a resposta dada que, entretanto, não convenceu àquela que questionava, observadora como sempre. Mas, mesmo desconfiada, Ana Maria nem de longe suspeitou que o tempo bom ao qual Camila se referia era exatamente o presente.

Já sozinha, enquanto voltava para a casa, Camila, exultante de alegria, resolveu estacionar o carro na avenida que ladeava a praia de Boa Viagem. O mar, logo adiante, se mostrava por demais bravio, deixando suas ondas arrebentarem forte maculando a tranqüilidade das areias que o margeavam. Anestesiada, Camila, com as janelas inteiramente vedadas, percebia que tanto fora quanto dentro de si havia uma intensa tempestade. E ali, durante alguns minutos, tomada da mais genuína felicidade, passou a observar a chuva que deslizava pelo vidro. E pela primeira vez em sua vida ela assistia o correr daquelas águas sem a necessidade de imaginá-las inundando-a por dentro. É que, naquele momento, não havia qualquer vazio a ser preenchido.

2 comentários:

Marucia Todorov disse...

Aaaaah, Marina ...
" comentar" nunca será termo suficiente para estas leituras!!!

Anônimo disse...

A perfeição existe?!
Adorei as palavras, adorei o seu blog, adorei você...
Entrei por acaso, mas, desde já, não pretendo parar de entrar.
Beijos,
T&T