sábado, 12 de julho de 2008

O AVESSO DA TELA (Capítulo III)

CAPÍTULO III


CONTO E REENCONTRO


O primeiro pacto selado entre Camila e Ana Maria logo foi estipulado: uma vez por semana elas se encontrariam em algum café de Recife, escolhido, de preferência, dentre os mais peculiares e tranqüilos. E assim, a cada encontro pretendiam provar novos grãos e, ao mesmo tempo, sorverem novos sabores e detalhes delas próprias que, cúmplices em gostos e histórias, aos poucos, se descobriam.

Nos dias que precederam o próximo café, Camila não mais andava pelas ruas de Recife. Ela, nos dizeres de Clarice Lispector, praticamente flutuava por cada uma delas, vivenciado como bem definiria a escritora sua Felicidade Clandestina, aquela que antecede os fatos e é experimentada gradativamente, a cada passo que distava do tão esperado encontro.

E foi naquela mesma semana que seu conto foi transformado no primeiro capítulo de um livro: O Avesso da Tela. E, na seqüência dos dias, ela dedicou-se ao segundo. Camila queria mais, queria divagar pelas ruas, também, daquela história inventada, queria dar à Camila, sua personagem, os mesmos prazeres que, em carne, vivia. Para tanto, diante da tela iluminada, atravessando-a durante as madrugadas, ela mergulhava naquele lago digital trocando o sono pena vigília.

E, indo ao fundo, fez a Camila inventada ligar para a Dra. Ângela Kraus e as duas marcaram, também, um encontro em um café qualquer da vida, o qual, naquele instante, a escritora não se preocupou em descrever. Mais importante do que definir o ambiente freqüentado por suas personagens era relatar o espaço que, amplo e cálido, se formava dentro de ambas, verdadeiro abrigo onde elas, em corpo e espírito, se permitiam a um segundo encontro.

Assim, as duas, na tela da que escrevia, sorveram sem pressa um café expresso curto e forte, igual ao que Camila provara com Ana Maria. E na seqüência de uma tarde chuvosa inspirada na que vivera, a paciente e a médica conversaram sobre suas vidas, sobre seus medos, sobre seus planos e, para a surpresa da personagem principal, a Dra. Ângela Krauss confessou sua necessidade de mudar de vida, de despir-se de sua máscara, de desnudar-se diante do mundo e experimentar, verdadeiramente, ser o que sempre fora. Tudo isto em virtude da mulher ousada e apaixonante que, naquele momento, estava sentada à sua frente e que, por ironia da vida, era uma de suas pacientes.

Surpresa, a Camila inventada admirava os olhos verdes que, misturados à fumaça que advinha do café sorvido, pareciam querer, também, bebê-la e, desta vez, sem o mesmo receio de outrora. E aos poucos, a Dra. Ângela Krauss tornava-se ainda mais apaixonante do ângulo criado pelas mãos hábeis daquela que escrevia.

Mas, no dedo anular da médica, naquele instante, a escritora ainda vislumbrava uma aliança de ouro, a qual, entretanto, no texto não foi descrita. É que a escritora não queria quebrar o encanto daquele diálogo sem voz, povoado de luar, que apenas dois olhares apaixonados são capazes de travar mesmo à luz do dia.

Na madrugada que finalmente antecedia a data do encontro real, o segundo capítulo foi encerrado com um encontro de corpos descrito virtualmente por Camila. E na tela plana de seu laptop os relevos dos corpos da médica e da personagem, novamente, se misturaram, enquanto as duas se amaram, desta vez, sob uma enorme cama macia.

O sol despontou intenso e encontrou o rosto de Camila por volta das oito horas da manhã, acordando-a para vivenciar com igual intensidade aquele dia. Ao lavar o rosto e observar-se no espelho, ela ensaiou mais um diálogo com aquele eterno amigo dizendo-lhe com um largo sorriso:

- Hoje esta que você vê é a mais inteira das Camilas, a mais verdadeira, a que nem eu mesma conhecia!

E se ao espelho fosse dado o poder de responder, certamente ele lhe diria um “prazer em conhecê-la!”, pois ela estava linda.

Às três horas da tarde Camila atravessou os portões do Castelo Brennand. Reduzindo a velocidade do veículo, que passou a vibrar ao tocar a estrada reta de paralelepípedos, ela sentia seu coração, também, vibrando intensamente! E sua vontade era a de desobedecer às placas que sinalizavam a velocidade máxima permitida e correr alucinadamente para que pudesse, o mais rápido possível, mergulhar nos olhos de chuva de Ana Maria.

O Castelo Brennand era um lugar magnífico. Distante do centro da cidade, ele fora construído por Ricardo Brennand num reduto verde, entrecortado por alguns córregos, povoado de variadas árvores, com o relevo levemente enladeirado, sobre o qual o céu sempre parecia mais azul e as flores, mais vivas.

Ali, o renomado pernambucano ergueu, em formas e estilo, um pequeno castelo medieval e o fez com uma finalidade tão peculiar quanto a própria construção: abrigar sua coleção de armas, todas extremamente raras e antigas, adquiridas em suas numerosas viagens pelo mundo. E talvez este fosse o detalhe mais interessante do lugar: ele fora planejado pelo dono atendendo a um pedido da esposa, que não encontrava mais local em casa para abrigar aquela coleção quase infinita.

Na cadência do bom gosto, o esposo construiu, vizinho ao castelo, um museu onde tinha lugar sua outra coleção: a das pinturas de Frans Post, ao qual foi dada a incumbência de ilustrar o Brasil Colônia durante a estada dos Holandeses nestas terras. Assim, seus quadros serviram como verdadeiros diários, onde, com as tintas de seu talento e de sua aquarela, ele elucidou cada recanto recém descoberto da Nova América.

Assim, tanto o museu quanto o castelo, cercados das mais verdes gramas, adornados pelas sombras de imensos eucaliptos, embalados pelo som de um singelo riacho, pareciam povoados de encanto. Ali, o tempo se fazia suspenso e o passado, aproveitando o ensejo, regressava ao presente fazendo-o especial para qualquer visitante.

E, para completar a perfeição daquela pitoresca tela, o proprietário, com a sensibilidade de sempre, cuidou ainda de construir um café, este tão peculiar quanto o restante do lugar.

O refúgio dos amantes daquele líquido escuro e saboroso ficava no jardim que ladeava o museu, especificamente à esquerda. Ali, algumas mesinhas foram harmoniosamente organizadas em uma enorme varanda que, acompridada feito um corredor, deixava parte de seu encanto ao ar livre e a outra parte coberta. Na frente das mesas um pequeno balcão dava suporte às máquinas de café expresso e às vitrines dos pães de queijo e das tapiocas, ambos feitos na hora.

E era justamente ali que Ana Maria esperava, absorta em pensamentos, lembrando-se do olhar de Camila, que lhe pareceu tão escuro e denso quanto o café que pretendia tomar. E como se reproduzisse a cena que já habitava em sua mente, logo a dona dos olhos chegou, resgatando Ana Maria de seu devaneio e prendendo-a com o olhar intenso que, imediatamente, lhe lançou.

As duas sorriram ao se verem e o sorriso aumentava ao passo que a distância diminuía. E assim, finalmente, se encontraram num abraço que, apesar de mútuo, surpreendeu a ambas de tão saudoso e apertado. Parecia que se conheciam há tanto tempo! E, também mutuamente, comentaram: aquele era, de fato, um reencontro, no sentido mais amplo da palavra e do sentimento.

E assim, enlevadas, sentaram-se uma de frente para a outra, se conhecendo e, ao mesmo tempo, reconhecendo. As palavras mal cabiam entre os sorrisos e, apesar da amenidade dos assuntos, tudo parecia intenso. E no ritmo da música que, sequer, tocava, ambas atenderam a cada chamado que era feito em palavras, em gestos, em olhares, em pensamentos. E seguiram a letra, estrofe por estrofe, pouco se importando aonde iriam dar aquelas silenciosas promessas.

E com a sede de quem tem fome, sorveram vários cafés naquela tarde nem de longe nublada, onde só havia espaço para o sol que irradiava em ambas. Para completar o passeio, depois de perderem as contas dos expressos, resolveram caminhar um pouco pelo castelo, onde imaginaram se o encontro primeiro das duas viria de outra vida, talvez tão antiga quanto as peças que ali disputavam espaço.

E a conclusão pareceu extremamente clara para as duas: elas, certamente, possuíram outros corpos, dentro dos quais seus espíritos sempre foram afins. E, bem por isto, venciam o tempo e os espaços, viabilizando novamente um encontro para permanecerem unidos.

Naquele instante e, sobretudo, naquele novo caminho que iniciavam, enquanto se despediam do castelo e iam buscar seus carros, por muito pouco não caminharam de mãos dadas.

No estacionamento, que formava um círculo gigante adornado com um denso gramado onde palmeiras imperiais se erguiam e farfalhavam ao mínimo vento, o luar já pousava iluminando os paralelepípedos, deixando aquele cenário tão bonito quanto envolvente. Por acaso, os carros das duas eram os únicos que restavam e estavam parados lado a lado, feito elas naquele momento. A coincidência, assim que notada, despertou um sorriso partilhado. E, tomadas pela leveza da brisa que por ali passava, elas se olharam demoradamente, ensaiando a contragosto uma despedida.

Aproximando-se lentamente, Camila tomou as mãos de Ana Maria entre as suas e, sem dizer-lhe nada, beijou-lhe a face, testando com sua boca a textura daquela pele branca, que parecia mais iluminada devido à luz da lua. E o beijo, ousado e doce, foi dado bem próximo à boca da outra.

De início, Ana Maria assustou-se com a atitude de Camila, mas em um segundo o receio dissipou-se, dando espaço a um suspiro longo e denso.

Quando os lábios, suavemente, se afastaram de seu rosto, o corpo de Ana Maria tremia por inteiro e ela, novamente assustada, apertou as mãos de Camila com força, enquanto se afastava bruscamente. E assim, também sem dizer nada, entrou no carro e partiu o mais rápido que pôde, deixando para trás seu perfume, agora misturado ao das flores.

Um comentário:

Marucia Todorov disse...

Foi neste cenário que me deparei com o quadro mais intrigante deste meu mundo...