Outro dia estava inquieta com minha bagunça interna e, numa tentativa de dissipá-la, resolvi pôr ordem na bagunça externa. A casa estava tão virada quanto eu e, procurando o local que, a mim, mais se assemelhava, fui direto ao armário.
Ele, a princípio silente, me recepcionou com descaso. Mas, assim que, docemente, abri suas portas, fez-me uma confissão: disse-me em voz contida e embargada estar farto, cheio, pesado! E assim, mesmo sem saber, imitava em cada adjetivo e entonação minha alma e meu cansaço.
Sentando-me no chão e bem perto daquele meu novo amigo, disse-lhe o quanto o compreendia. Foi então que, com sua permissão, examinei suas estantes, abri lentamente gaveta por gaveta e, definitivamente, me reconheci ali: era tanto que eu precisava pôr para fora que eu mal cabia em mim. E essa sensação, nele, naquele exato instante, eu reconhecia. Nós dois estávamos tristes, nós dois nos sentíamos vazios, apesar de termos tanto!
E na seqüência de nosso encontro povoado de encanto dialogamos demoradamente: eu, valendo-me das palavras que articulava; ele, das roupas que guardava, que faziam às vezes de sua voz, pois eram sua única forma de contar-me suas histórias.
E assim, tirei de dentro dele peça por peça enquanto, boquiaberta, percebia: algumas lhe causavam tristeza e dor quando saíam; outras felicidade e alívio. Entretanto, o mais interessante é que, a cada cabide que eu libertava, o armário me agradecia, mesmo quando a retirada lhe causava uma certa melancolia. E logo descobri o porquê: algumas lembranças, mesmo de coisas boas, precisam partir para que possamos aliviar nosso espírito e prepará-lo para o novo. O passado, por natureza e cronologia, precisa mesmo ser dado por morto.
E assim, gradativamente, renascíamos a cada palavra trocada e a cada roupa que, no chão do quarto, se acumulava. Naquele mesmo dia elas seriam doadas. Estava resolvido. Afinal de contas, elas não deixaram de caber apenas no armário. Em verdade, já não cabiam, de há muito, em mim. E isso não se devia ao fato de eu ter engordado ou emagrecido. Devia-se a um simples acontecimento: o tempo. Ele, com suas artimanhas, mudava a moda, enfraquecia os tecidos, permitia que a poeira tornasse opaca a mais brilhante das veste e o pior: mudava nossos gostos, fazendo-nos sucumbir à vontade do novo em detrimento do velho.
Quando a última peça foi retirada do armário eu e ele, finalmente, respiramos. E nem mesmo a poeira que por ali pairava retirou o prazer daquele sopro de vida que insuflava nossos corpos: o meu de carne e osso, o dele de madeira e vidro, ambos permeados de sonhos. Agora nos sentíamos leves e livres para outro plano que, naquele momento, pareceu extremamente simples: arrumar o restante dos cômodos.
sábado, 5 de julho de 2008
O ARMÁRIO (Crônica)
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Um comentário:
Marina, menina, taí mais um texto massa!!! Muito bom e válido para todo mundo que é gente, mesmo quem não tenha um armário. Beijos.
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