E assim segue a vida
Ora cheia,
Ora vazia de tanto
Às vezes do espanto de quem não espera
Às vezes do marasmo da espera vã
E assim seguimos nós,
Cercados de promessas
Dos lados que nos comprimem
Dos lados que nos completam
E assim seguimos sós,
Abarrotados de queixumes,
De verdades inquietas
Que para serem libertas
Exigem libertação
Aonde chegar com tanto?
Como voltar com tão pouco?
Ora o que pesa quer ser leve
Ora o que é leve quer ser chumbo
E assim segue a vida
Na dualidade de quem respira de sufoco
E dorme para renascer.
segunda-feira, 14 de julho de 2008
sábado, 12 de julho de 2008
O AVESSO DA TELA (Capítulo I)
O AVESSO DA TELA
CAPÍTULO I
O PRIMEIRO LUGAR
Meia-noite, avisou-lhe num tilintar quase inaudível, o relógio da cabeceira. Camila estava inquieta, com todos os sentidos apuradíssimos. Deitada na cama, rolava de um lado para o outro, sem sono. Começou, então, a observar a chuva descendo pelo vidro da janela. Aquela cena lhe lembrava a morte de sua mãe, logo após seus quinze anos. Foi com aquela idade que aprendera a observar a chuva e fugir da realidade. Fingia que as gotas escorriam por dentro de seu corpo, lavando sua alma, esfriando-a por dentro, carregando a saudade e inundando o vazio que a mãe deixou.
Ela havia morrido de leucemia. Camila e o pai, atordoados e incrédulos, assistiram a seus últimos dias de pé, ladeando-a na cama, fincados feito muralha, fingindo fortaleza. Por dentro, só os dois sabiam o quanto lhes faltavam pernas e pés naquele momento e o quanto, futuramente, lhes faltariam chão e percurso. Mas, nos anos vindouros, o caminho, outrora perdido, foi retomado e, atualmente, caminhavam de mãos dadas.
O amor entre ambos se fortaleceu e, em nome deste mesmo amor, Camila havia aberto mão de muitos de seus desejos e planos, aceitando, inclusive, trabalhar, literalmente, ao lado do pai, que era um grande empresário do ramo da construção civil. Ela se formou em arquitetura e não pôde dizer não ao engenheiro quando ele lhe presenteou com um escritório que, por óbvio, se avizinhava ao seu, ocupando o andar inteiro do prédio empresarial luxuoso que o próprio construiu.
Sempre que Camila observava o preparo da argamassa de uma das construções por si arquitetada e acompanhada, perguntava-se como algo tão líquido e sem solidez podia, em tão pouco tempo, transformar-se tanto e, adulterando sua natureza, sustentar um prédio inteiro? Ela ainda não possuía uma resposta, mas o fato é que se sentia da mesma forma e o pai, no contexto e em analogia, representava para si a estrutura de concreto que ela precisava manter erguida, sendo ela a argamassa, agora já firme e rígida. Exatamente por isto, furtava-se a um relacionamento aprofundado com qualquer pessoa. Em sua vida, assim como entre os tijolos da construção que soerguera, não havia espaço para mais nada além do cimento, dizia ela para si mesma sempre que descartava mais uma de suas amantes furtivas. Era sua forma de evitar o remorso e, ao mesmo tempo, o desmoronar de sua estrutura, a qual, entretanto, embora não percebesse, continuava frágil por outros ardis da vida. Os vãos existiam em seu arcabouço, mas ela não os via.
Quando a chuva arrefeceu, Camila finalmente havia adormecido. Seus sentidos se entorpeceram e ela sequer ouviu o anunciar das duas horas. Seu vazio, entretanto, mantinha-se desperto e presente, como sempre, em que pese a ausência dos sentidos.
O dia seguinte foi tão longo quanto a noite. E Camila o começou dando cores e formas a uma decisão, a mesma que, até ser tomada, lhe fez perder o sono. Depois de muito adiar, finalmente Camila resolveu retomar, ainda que minimamente, uma das poucas coisas que fazia com prazer: escrever. Ela daria um jeito de conciliar sua produção literária com o trabalho, mesmo que, para isso, fosse preciso perder os horários de almoço – exatamente como fazia naquele instante, em meio a um restaurante – corrigindo, um a um, seus contos. E ela se deu um prazo: em uma semana os selecionados deveriam estar registrados.
Absorta que estava, entre o silêncio interno e o burburinho externo, ela foi interrompida pelo celular. Era Débora, com uma notícia que classificou como imperdível: haveria um concurso nacional de contos eróticos femininos e Camila, ressaltou a outra empolgada, tinha a obrigação de participar! Advertiu, por fim, que, desta vez, não a deixaria fugir.
Sim, fugir, era a palavra certa, concluiu Camila, enquanto meditava sobre a imposição da amiga. E foi exatamente o que ela teve vontade de fazer mais uma vez: fugir, fingir que possuía outras prioridades. Mas bem sabia ela que estas “prioridades” não eram de fato suas e sim de seu pai. Tal constatação tinha sido uma das mais duras dentre as trazidas pela insônia. Aquela história de deixar de lado o que realmente a impulsionava estava chegando ao limite. Ela andava extremamente infeliz, isto era um fato. Outro fato: ela não fugiria, nem fingiria mais. Era absolutamente incongruente estar ali, sentada, corrigindo seus textos para registrá-los, numa tentativa de dar algum prazer à sua vida, e dizer um “não” diante de uma grande chance. Ela participaria sim! E começaria naquele exato instante a escrever o tal conto.
Determinada que era, deixou de lado aquela correção, abriu uma nova tela e estipulou outro prazo, este mais curto: só ergueria a cabeça quando quedasse à sua frente o texto que enviaria. Dentro do envelope caberia – e ela remeteria! – muito mais do que a quantidade de páginas e caracteres estipulados. Disto ela sabia e esta foi a certeza que a fez digitar a primeira linha...
"Tarde de chuva. Mais uma vez, a chuva. Desta feita foi o relógio da parede que lembrou a Camila de seu atraso. Já passava das dezessete horas e ela ainda estava ali, naquela sala de espera! Impaciente, ela ergueu-se. Em passos rápidos, atravessou o saguão da clínica e foi tomar um pouco de ar do lado de fora. Acomodou-se na varanda, respirou alguns segundos e ligou para Débora.
Com o resto de calma que possuía, explicou que não iria estar no restaurante às dezenove horas, como haviam combinado, pois até então sequer tinha sido atendida. Como o esperado, Débora resmungou, relembrando-a de que não havia sido uma boa idéia marcar a ginecologista exatamente no dia de seu aniversário. Inconcebível começar a festa sem a aniversariante, justificou a interlocutora contrariada.
De volta ao sofá, mais irritada ainda, Camila começou a folhear pela décima vez a mesma revista, enquanto continha a vontade de rasgar página por página. Naquele instante, abreviando a contenção de seu impulso, a atendente a chamou. Era, finalmente, a sua vez. E só podia, afinal todos já haviam ido embora, constatou Camila antes de abrir a porta.
A médica a esperava e quando Camila a viu, instantaneamente, parte de sua raiva se dissipou. A Dra. Ângela Krauss era uma mulher muitíssimo atraente, foi essa a primeira constatação. Sentada, de cabeça baixa enquanto rabiscava alguma coisa numa agenda, ela lhe pareceu tão fria quanto bonita e este foi o segundo detalhe captado pela expectadora. Quando o olhar verde se ergueu e as mãos firmes ocuparam-se com a retirada dos óculos de grau que o encobria, uma voz envolvente cumprimentou Camila de forma polida:
- Boa noite. Desculpe o atraso.
O pedido de desculpas logo foi aceito, seguido de muitas outras constatações: os olhos daquela mulher eram intensos, apesar da clareza da íris. Sua tez era avermelhada e sua postura, forte, quase austera. Ela era alta, muito mais do que a maioria das mulheres e suas mãos eram grandes, de unhas curtas. Os cabelos também não eram longos e deixavam à mostra um pescoço alvo, que chamava ao toque, fosse pela textura imaginada, fosse pela beleza real e exposta. Uma combinação que beirava o exótico e o másculo, a mesma que fez Camila, já desejosa, cogitar a hipótese de ela ser, também, lésbica. Mas o anel dourado, adornando-lhe o dedo anular da mão esquerda, logo a fez sopesar, ao menos, a última de suas impressões.
Naquele exato instante, diante daquela criatura que, num erguer de olhos tão verdes e singulares, havia preenchido tanto de seus espaços, reduzindo parte de seu vazio, Camila decidiu: iria colher daquela sala, daquela consulta e, sobretudo, daquela mulher, sua inspiração. A mesma que andava lhe faltando ultimamente. A médica lhe daria o conto. E o plano era por demais simples: Camila assumiria, em ousadia e ficção, um olhar diverso, uma personagem. E a doutora lhe serviria de par, ainda que sem conhecimento prévio da trama e das falas, naquela história que ela inventaria, ao passo que viveria, nos minutos vindouros.
A doutora, alheia ao turbilhão de pensamentos e sensações que já fervilhava a mente e o corpo da escritora, logo pegou uma ficha e começou a preenchê-la, anotando o nome e alguns dados da nova paciente. Em seguida, questionou o porquê de ela estar ali e Camila respondeu, sem qualquer embaraço, já interpretando:
- Hoje faço trinta anos e achei que estava na hora de um check-up! – disse sorrindo. Mas a médica manteve-se séria e não retribuiu, permanecendo concentrada na ficha, alheia à trama da qual já fazia parte, longe de ser apenas coadjuvante.
Sem erguer a vista, repondo os óculos de grau, a doutora passou às perguntas correlatas à sua vida íntima, às quais Camila também respondeu, sem qualquer desconforto:
- Você é virgem?
- Não, ainda existe alguém virgem aos trinta anos?
- Mais do que você imagina. – e finalmente a médica a encarou, demonstrando que não estava achando graça e que gostaria de continuar com seriedade. Camila logo entendeu o recado e acomodou-se de forma mais ereta na cadeira.
A médica continuou:
- É casada?
- Não... quer dizer, não formalmente falando – e Camila, naquele momento, já dava à sua personagem uma parceira, com a qual dividia a vida.
- Entendo. Mas tem um relacionamento sexual estável?
- Sim. Tenho – respondeu concisa, deixando a ficção avolumar-se a cada instante.
- Usa algum método anticoncepcional?
- Não precisamos – e Camila logo se preparou para a cara de interrogação que certamente viria, seguida da pergunta da médica.
- Algum de vocês é estéril ou fez alguma cirurgia?
- Não. Simplesmente não nos foi dado o poder de reproduzirmos em conjunto... – e Camila riu, decidindo que realmente brincaria com aquela criatura tão sisuda. Seria um prazer desconcertá-la.
A doutora fez cara de quem não estava entendendo e pediu:
- Pode ser mais clara?
- Sim. Sou lésbica e transo com mulheres. Aliás, mais específica e ultimamente, com a minha mulher – e dessa vez Camila respondeu séria, contendo a vontade enorme de rir da cara de espanto da doutora.
- Entendi... – e a médica suspirou, constrangida. Camila logo percebeu e começou a pôr em prática a parte da trama onde o objetivo era deixá-la ainda mais sem graça.
- Não sei por que vocês, ginecologistas, sempre emperram nessa pergunta e fingem não ficar assustadas, quando, de fato, ficam! Não precisa ficar constrangida. Não por mim.
- Não fico constrangida, nem assustada com o fato de você ser lésbica. Apenas me surpreende o de você admitir desta forma, tão abertamente. A maioria não age assim!
- Nossa! Pelo menos minha declaração arrancou da senhora mais do que três palavras! – e Camila riu, dessa vez vendo o sorriso ser retribuído. Logo a paciente apreciou os dentes brancos e perfeitamente dispostos no sorriso franco que lhe fora lançado, acompanhado de um olhar menos gélido, quase cálido. Gostou também dos lábios que lhe sorriram. Eram lábios bonitos, rubros, que dispensavam o uso de batom e pareciam sempre acometidos pelo frio intensificando-lhes a tonalidade.
- Desculpe... – falou a médica, demonstrando, também, o rubor em sua face, fazendo com que Camila adorasse aquela reação súbita, aquele ar infantil que invadia, sem permissão, as expressões daquela mulher, antes tão dura e arredia. E Ângela continuou, tentando driblar o desconforto – não queria parecer rude, sou de poucas palavras. Nada pessoal.
- Imagino – respondeu Camila, consciente de que já exercia algum poder sobre sua personagem, principalmente pelo olhar diferenciado que ela, naquele instante, lhe lançava.
O restante da entrevista transcorreu de forma menos formal. A médica parecia apreciar, ainda que discretamente, cada detalhe que captava de Camila e esta, por sua vez, apreciava o jeito quase másculo da mulher que, aos poucos, assumia o papel – em olhar e palavras – que ela desejava.
No meio da conversa, Ângela admitiu que havia se surpreendido não apenas com a sinceridade de Camila, ao confessar-se gay, mas, sobretudo, com o fato de ela não ter qualquer jeito masculino, ao contrário, ser tão feminina, delicada. Foi assim que a médica a classificou, com os olhos verdes fulgurando a cada palavra.
Camila, pelo tom usado e pelo olhar que se intensificava a cada fala, tomou o comentário mais como um elogio do que como uma constatação. E, em sua mente, já absolutamente corrompida pela personagem interpretada, uma observação surgiu, que ela, naquele instante, silenciou. Entretanto, antes de partirem para os exames, Camila não resistiu e ousou:
- Depois de tantas perguntas que me foram feitas, será que tenho o direito a, pelo menos, uma?
- Claro – e a médica se pôs em pose de espera e curiosidade.
- A senhora me disse, agora a pouco, que nem suspeitou que eu fosse lésbica, não foi?
- Sim. Você foge aos padrões.
- E você, Ângela?
- Não entendi... eu o quê? – e a médica pareceu perturbar-se.
- Você é lésbica?
- Claro que não! Porque a pergunta?
E Camila, dessa vez rindo abertamente do rubor que novamente tomava conta do rosto da médica, explicou sem pudor:
- Porque, desculpe a sinceridade, mas você se encaixa perfeitamente no estereótipo criado, sabia?
- Continuo sem entender – mentiu a médica, que já compreendia perfeitamente o que Camila queria dizer. Desejou, porém, escutar a explicação que sairia daquela boca, mesmo que fosse tão devastadora quanto os lábios fartos que sensualmente se moviam.
- Ângela... você é máscula! Tem um rosto muito bonito, de traços perfeitos, mas é um rosto angular, não muito feminino. Além disso, olhe as suas mãos! Sei que a sua profissão exige, mas as unhas curtas não são apenas unhas curtas! São unhas sem esmalte, sem anéis delicados, de dedos fortes, de palmas avantajadas, também não muito femininas. Além disso, seus lábios estão sem batom, você está sem brinco e eu diria mais. Aposto que ficará extremamente constrangida, agora que sabe que sou lésbica, ao me tocar, ao apalpar meus seios e vê-los intumescidos... e vai ficar imaginando se eu estou te desejando, se estou gostando de ser tocada por você. E vou mais longe! Aposto também que ficaria toda sem jeito se eu dissesse que você me atrai sim, que me excita a idéia de ver suas mãos aí, onde elas estão, e imaginá-las em mim. E se isso que eu estou dizendo não fosse a mais pura verdade e você fosse uma hetero caretíssima como as outras, com certeza já teria me colocado para fora de sua sala e se recusaria a me atender novamente, o que não fez e nem fará!
Ângela já estava suando e Camila apenas sorriu, quando concluiu sua maldade. Ela já não sabia o quão era má ou se má era apenas sua personagem! A médica, depois daquelas frases, só teve uma alternativa:
- Você está esquecendo que sou profissional e, como tal, lhe atenderei, independentemente de sua opção sexual e de sua opinião sobre a minha pessoa.
Dizendo isso, Ângela ergueu-se e caminhou até a maca, que ficava do outro lado de uma parede de gesso. Camila a seguiu e ela estendeu-lhe uma bata, indicando o banheiro para que a vestisse. A paciente obedeceu, imaginando que passara – ela ou a personagem? – dos limites. Mas agora era tarde demais. O conto já tinha um início e precisava urgentemente de um fim.
Ângela vestiu as luvas e tentou recompor-se enquanto esperava Camila. Lembrou de cada palavra escutada e rezou para que conseguisse agir naturalmente depois do vendaval de verdades proferidas por aquela criatura tão desconcertante e envolvente.
Ela sentia-se sim atraída por mulheres desde sua adolescência, mas nunca havia admitido nem para si mesma, tampouco concretizado os desejos que povoavam seus sonhos insistentemente, mesmo depois de casada. E agora, de repente, naquela altura da vida, em meio a uma crise matrimonial, lhe aparecia uma mulher daquelas, totalmente compatível com suas fantasias e demonstrando que cederia, caso ela a quisesse. Ela simplesmente não sabia o que fazer. Poderia, finalmente, permitir-se e, pelo menos, beijá-la. Fora exatamente isso que Ângela desejou assim que Camila entrou em sua sala, com aquela boca farta e descabida, tão bem disposta no rosto moreno de traços marcantes e pele lisa.
Poderia ir além, despindo-a e despindo-se, principalmente, de sua hipocrisia, cogitou tentada. Mas a personagem interpretada por Ângela, ao contrário da de Camila, não se limitava a um conto. Ela a encenara durante toda a vida! Sua máscara já parecia haver se incrustado na carne e suas vestes, assumido o lugar de sua pele. Ela simplesmente não sabia como se sustentaria depois de tirá-las, como seu casamento se manteria, como ela se manteria sem seu casamento e, sobretudo, como faria para não sucumbir ao desejo de abandonar o palco onde sua vida, tão pateticamente, se encenava. Para não sucumbir às suas tentações, ela havia retirado de seus olhos o poder de ver os outros como de fato eram e, bem por isto, naquele instante, sentiu-se incapaz de lançar para dentro de si um olhar diverso. Preferiu, mais uma vez, fingir e fugir de Camila e de si mesma. E lá ia ela conjugando em pensamento os mesmos verbos de sua parceira de trama. Ambas se fazendo represas.
Camila voltou e já não parecia tão disposta a provocá-la, concluiu Ângela pelo silêncio da outra. A paciente sentou-se na maca sem olhar a médica nos olhos e disse em voz baixa:
- Desculpe-me. Sinto ter me excedido. – E neste instante ouviu-se mais a voz de Camila do que a de sua criação.
- Tudo bem – respondeu Ângela, triste por perceber que a moça havia desistido e, o pior, se arrependido!
Sob os comandos da médica, Camila abriu a bata e expôs os seios firmes aos olhos translúcidos de Ângela, que tentava conter o tremor das mãos. Com cautela e simulando uma frieza que não sentia, a médica tomou os seios de Camila e os apalpou lentamente, fingindo examinar algo além da textura daquela pele macia, da consistência perfeita daqueles montes volumosos que eram, definitivamente, o alvo exclusivo de sua atenção. Tentava também, a duras penas, ignorar que, realmente, os mamilos estavam arrepiados. Tentava, acima de tudo, não supor que a reação adviesse de seu toque. Mas como Camila permanecia inerte, a médica logo se julgou pretensiosa.
A paciente, dando continuidade ao conto, não encarou Ângela uma só vez. Percebeu o embaraço da médica, a vermelhidão de seu rosto, sua respiração quase ofegante, mas se conteve. Tinha certeza de que a doutora estava sim, excitada. Na verdade a juraria molhada, com aquela aproximação, com suas provocações, com sua pele, com seu cheiro. Mas permaneceria quieta, aguardando. Queria observar a reação de Ângela ao percebê-la também molhada, graças ao seu toque, e isso seria inevitável.
Quando Ângela, finalmente, mandou que Camila se deitasse, a paciente obedeceu. A médica tocou-lhe as pernas num pedido mudo para que as abrisse um pouco mais e Camila o fez. Porém, quando a doutora fez menção de lubrificar com o gel os dedos, já encobertos pelas luvas, para tocá-la, Camila não resistiu e intercedeu:
- Vamos, Ângela, não seja tola! Já não preciso disso e você sabe muito bem!
A médica desconcertou-se e ficou sem reação. Foi então que a paciente, já impaciente, se ergue, sentou-se na maca e puxou-a pelas mãos. Entorpecida de desejo, Ângela cedeu e aproximou-se. Camila ajeitou-se de forma que a doutora ficasse parada de pé entre suas pernas. De súbito, livrou-se totalmente da bata, enquanto, com suavidade, trazia a cabeça loira pela nuca, até encostar a boca em seu ouvido, onde sussurrou:
- Eu sei que você vai saber me tocar como ninguém. Não perca tempo. Meta os dedos em mim... eu estou molhada desde o momento em imaginei exatamente o que agora te peço.
Em seguida, a boca de Camila escorregou pelo pescoço alvo da médica, que cerrou os olhos num gemido, tentando evitar que a paciente lhe tomasse a boca, mas já era tarde. Os lábios voluptuosos já lhe sugavam a saliva, quentes, ardentes, parecendo querer comer-lhe por inteiro. E Camila realmente sabia como devia agir para arrastá-la para o desfecho daquele conto. Percebendo que a médica excitava-se com as palavras, afastou a boca da sua, falando-lhe novamente ao ouvido, enquanto conduzia as mãos da doutora por entre suas pernas:
- Ângela, por favor... eu preciso... – e a língua de Camila já tocava descaradamente o lóbulo da orelha da médica – eu quero você dentro de mim... quero ser a primeira mulher a gozar com você.
E Ângela cedeu. Livrou-se das luvas e, sobretudo, da máscara. Excitada, deliciada com a voz rouca e as palavras, meteu-lhe dois dedos de forma vigorosa e ritmada. E Camila aprovou, abrindo-se mais para senti-la lá dentro, mais forte.
- É assim que se faz, Ângela! E eu sempre soube o quanto você o faria com perfeição! – e Camila gemia alto, enquanto intercalava as palavras já nada ensaiadas, tampouco fictícias. E o conto lhe escapava, feito o gozo, por seus vãos.
Ângela estava enlouquecendo só de tocá-la e de ouvi-la falar daquele jeito, mas não era assim que a escritora queria findar aquelas últimas páginas que lhes restavam. Logo puxou a mão da médica, retirando os dedos trêmulos de dentro de si, ordenando que ela parasse. E ela parou, surpresa, com os olhos esfogueados de desejo, as mãos ensopadas pela umidade. Diante do susto da parceira, Camila sorriu e explicou o que queria, despindo rapidamente a médica e conduzindo-a para o chão.
Sobre o tapete, Camila deixou Ângela deitar-se e postou-se ajoelhada sobre seu ventre, de pernas abertas, indicando que os dedos da médica deveriam continuar ali, apoiados em sua pélvis, para que ela os engolisse novamente. E assim fizeram: Ângela postou os dedos longos como se fossem um membro rijo e Camila encaixou-se sobre eles, num movimento de sobe e desce que enlouqueceu a doutora. Em seguida, a personagem de Camila, ou o que restava dela, buscou entre as pernas de Ângela o espaço que pôde e foi a sua vez de penetrá-la.
Ajeitou-se sobre as mãos de Ângela e continuou a subir e descer, enquanto afundava também os dedos na médica, que se sentia entorpecer, com as pernas anestesiadas, os olhos fechados, os líquidos escorrendo, o ventre recebendo a agilidade daqueles dedos maravilhosos.
E o ritmo foi aumentando, tornando-se intenso, firme, seguro, forte. As mãos de ambas estocando com força, as gargantas ficando secas, na medida em que os ventres inundavam-se mais e mais. E quando o som do entrar e sair dos dedos tornou-se audível e, na seqüência, o silêncio se fez, após muitos gemidos, nada mais havia de ficção. A realidade escorria das duas. Foi então que, de olhos abertos, em todos os sentidos, elas se viram como realmente eram e os olhares que ambas se lançaram foram inteiramente diversos, além de límpidos.
Confusa, Camila quedou o corpo suado sobre o de Ângela e beijou-lhe a boca. A médica, por sua vez, abraçou-a, desejando que ela ficasse ali para sempre, sem saber que, nos planos daquela que tão perfeitamente cabia em seus braços, este seria o último parágrafo da história, onde aquele abraço, definitivamente, não cabia. Afinal, o conto, na concepção originária da autora, não deveria ostentar romance, apenas sexo. E assim ela o findaria.
Camila desvencilhou-se do abraço com outro beijo, este frio. Silenciosa, caminhou até o banheiro, onde trocou de roupa, enquanto Ângela permanecia inerte, ainda no chão, despida de tudo, assustada consigo e, mormente, com aquela mulher capaz de lhe dar em tão pouco tempo tudo o lhe faltou durante toda a vida.
Quando Camila voltou, Ângela havia se vestido do que ainda lhe cabia. Seu manto era de expectativas. Reconhecendo a esperança nos olhos verdes, ela aproximou-se e, rematando o conto, disse-lhe:
- Paramos por aqui – e esta frase foi o ponto final."
Mas o destino seria menos cruel com Camila, do que ela foi ou fingiu ser e, antes que ela continuasse manipulando as falas, os gestos e sentimentos – em sua vida e em seus escritos, que eram, em verdade, meros resumos inacabados de suas expectativas –, a bateria do laptop acabou, a tela escureceu e ela, assustada – mais com a descoberta de sua própria escuridão do que com a da tela –, foi então perceber que não havia como escrever um conto daquela forma, despida de envolvimento e, ainda assim, ganhar qualquer concurso. E mais: não havia como dar continuidade à sua vida evitando um enlace, tampouco poderia iniciar uma carreira de escritora sentindo-se pela metade, falando sobre sexo simplesmente porque desconhecia o amor. Só então, finalmente despertou, ao passo que constatou: queria mais do que qualquer coisa na vida voltar a se sentir inteira! Queria deixar de observar a chuva com o intuito infantil de preencher um vazio que simplesmente não se recheia com águas, com mágoas, com medos, com paredes, com tijolos, com muralhas. E esta certeza foi o prêmio que ela, naquele momento, ganhou, mesmo antes de participar do certame. O primeiro lugar tornou-se seu e ficava logo ali, exatamente onde ela estava, sentada naquela cadeira tosca, inanimada, com um laptop pousado sobre o seu colo sem qualquer vestígio de vida. O importante é que ela já se sentia cheia.
Munida desta nova sensação, laçou um olhar diverso sobre aquela tela, o mesmo que lançaria, doravante, sobre sua vida e, retirando mentalmente o ponto final, decidiu que permitiria uma continuação:
"- Paramos por aqui... por hoje. Mas queria te ver amanhã..."
CAPÍTULO I
O PRIMEIRO LUGAR
Meia-noite, avisou-lhe num tilintar quase inaudível, o relógio da cabeceira. Camila estava inquieta, com todos os sentidos apuradíssimos. Deitada na cama, rolava de um lado para o outro, sem sono. Começou, então, a observar a chuva descendo pelo vidro da janela. Aquela cena lhe lembrava a morte de sua mãe, logo após seus quinze anos. Foi com aquela idade que aprendera a observar a chuva e fugir da realidade. Fingia que as gotas escorriam por dentro de seu corpo, lavando sua alma, esfriando-a por dentro, carregando a saudade e inundando o vazio que a mãe deixou.
Ela havia morrido de leucemia. Camila e o pai, atordoados e incrédulos, assistiram a seus últimos dias de pé, ladeando-a na cama, fincados feito muralha, fingindo fortaleza. Por dentro, só os dois sabiam o quanto lhes faltavam pernas e pés naquele momento e o quanto, futuramente, lhes faltariam chão e percurso. Mas, nos anos vindouros, o caminho, outrora perdido, foi retomado e, atualmente, caminhavam de mãos dadas.
O amor entre ambos se fortaleceu e, em nome deste mesmo amor, Camila havia aberto mão de muitos de seus desejos e planos, aceitando, inclusive, trabalhar, literalmente, ao lado do pai, que era um grande empresário do ramo da construção civil. Ela se formou em arquitetura e não pôde dizer não ao engenheiro quando ele lhe presenteou com um escritório que, por óbvio, se avizinhava ao seu, ocupando o andar inteiro do prédio empresarial luxuoso que o próprio construiu.
Sempre que Camila observava o preparo da argamassa de uma das construções por si arquitetada e acompanhada, perguntava-se como algo tão líquido e sem solidez podia, em tão pouco tempo, transformar-se tanto e, adulterando sua natureza, sustentar um prédio inteiro? Ela ainda não possuía uma resposta, mas o fato é que se sentia da mesma forma e o pai, no contexto e em analogia, representava para si a estrutura de concreto que ela precisava manter erguida, sendo ela a argamassa, agora já firme e rígida. Exatamente por isto, furtava-se a um relacionamento aprofundado com qualquer pessoa. Em sua vida, assim como entre os tijolos da construção que soerguera, não havia espaço para mais nada além do cimento, dizia ela para si mesma sempre que descartava mais uma de suas amantes furtivas. Era sua forma de evitar o remorso e, ao mesmo tempo, o desmoronar de sua estrutura, a qual, entretanto, embora não percebesse, continuava frágil por outros ardis da vida. Os vãos existiam em seu arcabouço, mas ela não os via.
Quando a chuva arrefeceu, Camila finalmente havia adormecido. Seus sentidos se entorpeceram e ela sequer ouviu o anunciar das duas horas. Seu vazio, entretanto, mantinha-se desperto e presente, como sempre, em que pese a ausência dos sentidos.
O dia seguinte foi tão longo quanto a noite. E Camila o começou dando cores e formas a uma decisão, a mesma que, até ser tomada, lhe fez perder o sono. Depois de muito adiar, finalmente Camila resolveu retomar, ainda que minimamente, uma das poucas coisas que fazia com prazer: escrever. Ela daria um jeito de conciliar sua produção literária com o trabalho, mesmo que, para isso, fosse preciso perder os horários de almoço – exatamente como fazia naquele instante, em meio a um restaurante – corrigindo, um a um, seus contos. E ela se deu um prazo: em uma semana os selecionados deveriam estar registrados.
Absorta que estava, entre o silêncio interno e o burburinho externo, ela foi interrompida pelo celular. Era Débora, com uma notícia que classificou como imperdível: haveria um concurso nacional de contos eróticos femininos e Camila, ressaltou a outra empolgada, tinha a obrigação de participar! Advertiu, por fim, que, desta vez, não a deixaria fugir.
Sim, fugir, era a palavra certa, concluiu Camila, enquanto meditava sobre a imposição da amiga. E foi exatamente o que ela teve vontade de fazer mais uma vez: fugir, fingir que possuía outras prioridades. Mas bem sabia ela que estas “prioridades” não eram de fato suas e sim de seu pai. Tal constatação tinha sido uma das mais duras dentre as trazidas pela insônia. Aquela história de deixar de lado o que realmente a impulsionava estava chegando ao limite. Ela andava extremamente infeliz, isto era um fato. Outro fato: ela não fugiria, nem fingiria mais. Era absolutamente incongruente estar ali, sentada, corrigindo seus textos para registrá-los, numa tentativa de dar algum prazer à sua vida, e dizer um “não” diante de uma grande chance. Ela participaria sim! E começaria naquele exato instante a escrever o tal conto.
Determinada que era, deixou de lado aquela correção, abriu uma nova tela e estipulou outro prazo, este mais curto: só ergueria a cabeça quando quedasse à sua frente o texto que enviaria. Dentro do envelope caberia – e ela remeteria! – muito mais do que a quantidade de páginas e caracteres estipulados. Disto ela sabia e esta foi a certeza que a fez digitar a primeira linha...
"Tarde de chuva. Mais uma vez, a chuva. Desta feita foi o relógio da parede que lembrou a Camila de seu atraso. Já passava das dezessete horas e ela ainda estava ali, naquela sala de espera! Impaciente, ela ergueu-se. Em passos rápidos, atravessou o saguão da clínica e foi tomar um pouco de ar do lado de fora. Acomodou-se na varanda, respirou alguns segundos e ligou para Débora.
Com o resto de calma que possuía, explicou que não iria estar no restaurante às dezenove horas, como haviam combinado, pois até então sequer tinha sido atendida. Como o esperado, Débora resmungou, relembrando-a de que não havia sido uma boa idéia marcar a ginecologista exatamente no dia de seu aniversário. Inconcebível começar a festa sem a aniversariante, justificou a interlocutora contrariada.
De volta ao sofá, mais irritada ainda, Camila começou a folhear pela décima vez a mesma revista, enquanto continha a vontade de rasgar página por página. Naquele instante, abreviando a contenção de seu impulso, a atendente a chamou. Era, finalmente, a sua vez. E só podia, afinal todos já haviam ido embora, constatou Camila antes de abrir a porta.
A médica a esperava e quando Camila a viu, instantaneamente, parte de sua raiva se dissipou. A Dra. Ângela Krauss era uma mulher muitíssimo atraente, foi essa a primeira constatação. Sentada, de cabeça baixa enquanto rabiscava alguma coisa numa agenda, ela lhe pareceu tão fria quanto bonita e este foi o segundo detalhe captado pela expectadora. Quando o olhar verde se ergueu e as mãos firmes ocuparam-se com a retirada dos óculos de grau que o encobria, uma voz envolvente cumprimentou Camila de forma polida:
- Boa noite. Desculpe o atraso.
O pedido de desculpas logo foi aceito, seguido de muitas outras constatações: os olhos daquela mulher eram intensos, apesar da clareza da íris. Sua tez era avermelhada e sua postura, forte, quase austera. Ela era alta, muito mais do que a maioria das mulheres e suas mãos eram grandes, de unhas curtas. Os cabelos também não eram longos e deixavam à mostra um pescoço alvo, que chamava ao toque, fosse pela textura imaginada, fosse pela beleza real e exposta. Uma combinação que beirava o exótico e o másculo, a mesma que fez Camila, já desejosa, cogitar a hipótese de ela ser, também, lésbica. Mas o anel dourado, adornando-lhe o dedo anular da mão esquerda, logo a fez sopesar, ao menos, a última de suas impressões.
Naquele exato instante, diante daquela criatura que, num erguer de olhos tão verdes e singulares, havia preenchido tanto de seus espaços, reduzindo parte de seu vazio, Camila decidiu: iria colher daquela sala, daquela consulta e, sobretudo, daquela mulher, sua inspiração. A mesma que andava lhe faltando ultimamente. A médica lhe daria o conto. E o plano era por demais simples: Camila assumiria, em ousadia e ficção, um olhar diverso, uma personagem. E a doutora lhe serviria de par, ainda que sem conhecimento prévio da trama e das falas, naquela história que ela inventaria, ao passo que viveria, nos minutos vindouros.
A doutora, alheia ao turbilhão de pensamentos e sensações que já fervilhava a mente e o corpo da escritora, logo pegou uma ficha e começou a preenchê-la, anotando o nome e alguns dados da nova paciente. Em seguida, questionou o porquê de ela estar ali e Camila respondeu, sem qualquer embaraço, já interpretando:
- Hoje faço trinta anos e achei que estava na hora de um check-up! – disse sorrindo. Mas a médica manteve-se séria e não retribuiu, permanecendo concentrada na ficha, alheia à trama da qual já fazia parte, longe de ser apenas coadjuvante.
Sem erguer a vista, repondo os óculos de grau, a doutora passou às perguntas correlatas à sua vida íntima, às quais Camila também respondeu, sem qualquer desconforto:
- Você é virgem?
- Não, ainda existe alguém virgem aos trinta anos?
- Mais do que você imagina. – e finalmente a médica a encarou, demonstrando que não estava achando graça e que gostaria de continuar com seriedade. Camila logo entendeu o recado e acomodou-se de forma mais ereta na cadeira.
A médica continuou:
- É casada?
- Não... quer dizer, não formalmente falando – e Camila, naquele momento, já dava à sua personagem uma parceira, com a qual dividia a vida.
- Entendo. Mas tem um relacionamento sexual estável?
- Sim. Tenho – respondeu concisa, deixando a ficção avolumar-se a cada instante.
- Usa algum método anticoncepcional?
- Não precisamos – e Camila logo se preparou para a cara de interrogação que certamente viria, seguida da pergunta da médica.
- Algum de vocês é estéril ou fez alguma cirurgia?
- Não. Simplesmente não nos foi dado o poder de reproduzirmos em conjunto... – e Camila riu, decidindo que realmente brincaria com aquela criatura tão sisuda. Seria um prazer desconcertá-la.
A doutora fez cara de quem não estava entendendo e pediu:
- Pode ser mais clara?
- Sim. Sou lésbica e transo com mulheres. Aliás, mais específica e ultimamente, com a minha mulher – e dessa vez Camila respondeu séria, contendo a vontade enorme de rir da cara de espanto da doutora.
- Entendi... – e a médica suspirou, constrangida. Camila logo percebeu e começou a pôr em prática a parte da trama onde o objetivo era deixá-la ainda mais sem graça.
- Não sei por que vocês, ginecologistas, sempre emperram nessa pergunta e fingem não ficar assustadas, quando, de fato, ficam! Não precisa ficar constrangida. Não por mim.
- Não fico constrangida, nem assustada com o fato de você ser lésbica. Apenas me surpreende o de você admitir desta forma, tão abertamente. A maioria não age assim!
- Nossa! Pelo menos minha declaração arrancou da senhora mais do que três palavras! – e Camila riu, dessa vez vendo o sorriso ser retribuído. Logo a paciente apreciou os dentes brancos e perfeitamente dispostos no sorriso franco que lhe fora lançado, acompanhado de um olhar menos gélido, quase cálido. Gostou também dos lábios que lhe sorriram. Eram lábios bonitos, rubros, que dispensavam o uso de batom e pareciam sempre acometidos pelo frio intensificando-lhes a tonalidade.
- Desculpe... – falou a médica, demonstrando, também, o rubor em sua face, fazendo com que Camila adorasse aquela reação súbita, aquele ar infantil que invadia, sem permissão, as expressões daquela mulher, antes tão dura e arredia. E Ângela continuou, tentando driblar o desconforto – não queria parecer rude, sou de poucas palavras. Nada pessoal.
- Imagino – respondeu Camila, consciente de que já exercia algum poder sobre sua personagem, principalmente pelo olhar diferenciado que ela, naquele instante, lhe lançava.
O restante da entrevista transcorreu de forma menos formal. A médica parecia apreciar, ainda que discretamente, cada detalhe que captava de Camila e esta, por sua vez, apreciava o jeito quase másculo da mulher que, aos poucos, assumia o papel – em olhar e palavras – que ela desejava.
No meio da conversa, Ângela admitiu que havia se surpreendido não apenas com a sinceridade de Camila, ao confessar-se gay, mas, sobretudo, com o fato de ela não ter qualquer jeito masculino, ao contrário, ser tão feminina, delicada. Foi assim que a médica a classificou, com os olhos verdes fulgurando a cada palavra.
Camila, pelo tom usado e pelo olhar que se intensificava a cada fala, tomou o comentário mais como um elogio do que como uma constatação. E, em sua mente, já absolutamente corrompida pela personagem interpretada, uma observação surgiu, que ela, naquele instante, silenciou. Entretanto, antes de partirem para os exames, Camila não resistiu e ousou:
- Depois de tantas perguntas que me foram feitas, será que tenho o direito a, pelo menos, uma?
- Claro – e a médica se pôs em pose de espera e curiosidade.
- A senhora me disse, agora a pouco, que nem suspeitou que eu fosse lésbica, não foi?
- Sim. Você foge aos padrões.
- E você, Ângela?
- Não entendi... eu o quê? – e a médica pareceu perturbar-se.
- Você é lésbica?
- Claro que não! Porque a pergunta?
E Camila, dessa vez rindo abertamente do rubor que novamente tomava conta do rosto da médica, explicou sem pudor:
- Porque, desculpe a sinceridade, mas você se encaixa perfeitamente no estereótipo criado, sabia?
- Continuo sem entender – mentiu a médica, que já compreendia perfeitamente o que Camila queria dizer. Desejou, porém, escutar a explicação que sairia daquela boca, mesmo que fosse tão devastadora quanto os lábios fartos que sensualmente se moviam.
- Ângela... você é máscula! Tem um rosto muito bonito, de traços perfeitos, mas é um rosto angular, não muito feminino. Além disso, olhe as suas mãos! Sei que a sua profissão exige, mas as unhas curtas não são apenas unhas curtas! São unhas sem esmalte, sem anéis delicados, de dedos fortes, de palmas avantajadas, também não muito femininas. Além disso, seus lábios estão sem batom, você está sem brinco e eu diria mais. Aposto que ficará extremamente constrangida, agora que sabe que sou lésbica, ao me tocar, ao apalpar meus seios e vê-los intumescidos... e vai ficar imaginando se eu estou te desejando, se estou gostando de ser tocada por você. E vou mais longe! Aposto também que ficaria toda sem jeito se eu dissesse que você me atrai sim, que me excita a idéia de ver suas mãos aí, onde elas estão, e imaginá-las em mim. E se isso que eu estou dizendo não fosse a mais pura verdade e você fosse uma hetero caretíssima como as outras, com certeza já teria me colocado para fora de sua sala e se recusaria a me atender novamente, o que não fez e nem fará!
Ângela já estava suando e Camila apenas sorriu, quando concluiu sua maldade. Ela já não sabia o quão era má ou se má era apenas sua personagem! A médica, depois daquelas frases, só teve uma alternativa:
- Você está esquecendo que sou profissional e, como tal, lhe atenderei, independentemente de sua opção sexual e de sua opinião sobre a minha pessoa.
Dizendo isso, Ângela ergueu-se e caminhou até a maca, que ficava do outro lado de uma parede de gesso. Camila a seguiu e ela estendeu-lhe uma bata, indicando o banheiro para que a vestisse. A paciente obedeceu, imaginando que passara – ela ou a personagem? – dos limites. Mas agora era tarde demais. O conto já tinha um início e precisava urgentemente de um fim.
Ângela vestiu as luvas e tentou recompor-se enquanto esperava Camila. Lembrou de cada palavra escutada e rezou para que conseguisse agir naturalmente depois do vendaval de verdades proferidas por aquela criatura tão desconcertante e envolvente.
Ela sentia-se sim atraída por mulheres desde sua adolescência, mas nunca havia admitido nem para si mesma, tampouco concretizado os desejos que povoavam seus sonhos insistentemente, mesmo depois de casada. E agora, de repente, naquela altura da vida, em meio a uma crise matrimonial, lhe aparecia uma mulher daquelas, totalmente compatível com suas fantasias e demonstrando que cederia, caso ela a quisesse. Ela simplesmente não sabia o que fazer. Poderia, finalmente, permitir-se e, pelo menos, beijá-la. Fora exatamente isso que Ângela desejou assim que Camila entrou em sua sala, com aquela boca farta e descabida, tão bem disposta no rosto moreno de traços marcantes e pele lisa.
Poderia ir além, despindo-a e despindo-se, principalmente, de sua hipocrisia, cogitou tentada. Mas a personagem interpretada por Ângela, ao contrário da de Camila, não se limitava a um conto. Ela a encenara durante toda a vida! Sua máscara já parecia haver se incrustado na carne e suas vestes, assumido o lugar de sua pele. Ela simplesmente não sabia como se sustentaria depois de tirá-las, como seu casamento se manteria, como ela se manteria sem seu casamento e, sobretudo, como faria para não sucumbir ao desejo de abandonar o palco onde sua vida, tão pateticamente, se encenava. Para não sucumbir às suas tentações, ela havia retirado de seus olhos o poder de ver os outros como de fato eram e, bem por isto, naquele instante, sentiu-se incapaz de lançar para dentro de si um olhar diverso. Preferiu, mais uma vez, fingir e fugir de Camila e de si mesma. E lá ia ela conjugando em pensamento os mesmos verbos de sua parceira de trama. Ambas se fazendo represas.
Camila voltou e já não parecia tão disposta a provocá-la, concluiu Ângela pelo silêncio da outra. A paciente sentou-se na maca sem olhar a médica nos olhos e disse em voz baixa:
- Desculpe-me. Sinto ter me excedido. – E neste instante ouviu-se mais a voz de Camila do que a de sua criação.
- Tudo bem – respondeu Ângela, triste por perceber que a moça havia desistido e, o pior, se arrependido!
Sob os comandos da médica, Camila abriu a bata e expôs os seios firmes aos olhos translúcidos de Ângela, que tentava conter o tremor das mãos. Com cautela e simulando uma frieza que não sentia, a médica tomou os seios de Camila e os apalpou lentamente, fingindo examinar algo além da textura daquela pele macia, da consistência perfeita daqueles montes volumosos que eram, definitivamente, o alvo exclusivo de sua atenção. Tentava também, a duras penas, ignorar que, realmente, os mamilos estavam arrepiados. Tentava, acima de tudo, não supor que a reação adviesse de seu toque. Mas como Camila permanecia inerte, a médica logo se julgou pretensiosa.
A paciente, dando continuidade ao conto, não encarou Ângela uma só vez. Percebeu o embaraço da médica, a vermelhidão de seu rosto, sua respiração quase ofegante, mas se conteve. Tinha certeza de que a doutora estava sim, excitada. Na verdade a juraria molhada, com aquela aproximação, com suas provocações, com sua pele, com seu cheiro. Mas permaneceria quieta, aguardando. Queria observar a reação de Ângela ao percebê-la também molhada, graças ao seu toque, e isso seria inevitável.
Quando Ângela, finalmente, mandou que Camila se deitasse, a paciente obedeceu. A médica tocou-lhe as pernas num pedido mudo para que as abrisse um pouco mais e Camila o fez. Porém, quando a doutora fez menção de lubrificar com o gel os dedos, já encobertos pelas luvas, para tocá-la, Camila não resistiu e intercedeu:
- Vamos, Ângela, não seja tola! Já não preciso disso e você sabe muito bem!
A médica desconcertou-se e ficou sem reação. Foi então que a paciente, já impaciente, se ergue, sentou-se na maca e puxou-a pelas mãos. Entorpecida de desejo, Ângela cedeu e aproximou-se. Camila ajeitou-se de forma que a doutora ficasse parada de pé entre suas pernas. De súbito, livrou-se totalmente da bata, enquanto, com suavidade, trazia a cabeça loira pela nuca, até encostar a boca em seu ouvido, onde sussurrou:
- Eu sei que você vai saber me tocar como ninguém. Não perca tempo. Meta os dedos em mim... eu estou molhada desde o momento em imaginei exatamente o que agora te peço.
Em seguida, a boca de Camila escorregou pelo pescoço alvo da médica, que cerrou os olhos num gemido, tentando evitar que a paciente lhe tomasse a boca, mas já era tarde. Os lábios voluptuosos já lhe sugavam a saliva, quentes, ardentes, parecendo querer comer-lhe por inteiro. E Camila realmente sabia como devia agir para arrastá-la para o desfecho daquele conto. Percebendo que a médica excitava-se com as palavras, afastou a boca da sua, falando-lhe novamente ao ouvido, enquanto conduzia as mãos da doutora por entre suas pernas:
- Ângela, por favor... eu preciso... – e a língua de Camila já tocava descaradamente o lóbulo da orelha da médica – eu quero você dentro de mim... quero ser a primeira mulher a gozar com você.
E Ângela cedeu. Livrou-se das luvas e, sobretudo, da máscara. Excitada, deliciada com a voz rouca e as palavras, meteu-lhe dois dedos de forma vigorosa e ritmada. E Camila aprovou, abrindo-se mais para senti-la lá dentro, mais forte.
- É assim que se faz, Ângela! E eu sempre soube o quanto você o faria com perfeição! – e Camila gemia alto, enquanto intercalava as palavras já nada ensaiadas, tampouco fictícias. E o conto lhe escapava, feito o gozo, por seus vãos.
Ângela estava enlouquecendo só de tocá-la e de ouvi-la falar daquele jeito, mas não era assim que a escritora queria findar aquelas últimas páginas que lhes restavam. Logo puxou a mão da médica, retirando os dedos trêmulos de dentro de si, ordenando que ela parasse. E ela parou, surpresa, com os olhos esfogueados de desejo, as mãos ensopadas pela umidade. Diante do susto da parceira, Camila sorriu e explicou o que queria, despindo rapidamente a médica e conduzindo-a para o chão.
Sobre o tapete, Camila deixou Ângela deitar-se e postou-se ajoelhada sobre seu ventre, de pernas abertas, indicando que os dedos da médica deveriam continuar ali, apoiados em sua pélvis, para que ela os engolisse novamente. E assim fizeram: Ângela postou os dedos longos como se fossem um membro rijo e Camila encaixou-se sobre eles, num movimento de sobe e desce que enlouqueceu a doutora. Em seguida, a personagem de Camila, ou o que restava dela, buscou entre as pernas de Ângela o espaço que pôde e foi a sua vez de penetrá-la.
Ajeitou-se sobre as mãos de Ângela e continuou a subir e descer, enquanto afundava também os dedos na médica, que se sentia entorpecer, com as pernas anestesiadas, os olhos fechados, os líquidos escorrendo, o ventre recebendo a agilidade daqueles dedos maravilhosos.
E o ritmo foi aumentando, tornando-se intenso, firme, seguro, forte. As mãos de ambas estocando com força, as gargantas ficando secas, na medida em que os ventres inundavam-se mais e mais. E quando o som do entrar e sair dos dedos tornou-se audível e, na seqüência, o silêncio se fez, após muitos gemidos, nada mais havia de ficção. A realidade escorria das duas. Foi então que, de olhos abertos, em todos os sentidos, elas se viram como realmente eram e os olhares que ambas se lançaram foram inteiramente diversos, além de límpidos.
Confusa, Camila quedou o corpo suado sobre o de Ângela e beijou-lhe a boca. A médica, por sua vez, abraçou-a, desejando que ela ficasse ali para sempre, sem saber que, nos planos daquela que tão perfeitamente cabia em seus braços, este seria o último parágrafo da história, onde aquele abraço, definitivamente, não cabia. Afinal, o conto, na concepção originária da autora, não deveria ostentar romance, apenas sexo. E assim ela o findaria.
Camila desvencilhou-se do abraço com outro beijo, este frio. Silenciosa, caminhou até o banheiro, onde trocou de roupa, enquanto Ângela permanecia inerte, ainda no chão, despida de tudo, assustada consigo e, mormente, com aquela mulher capaz de lhe dar em tão pouco tempo tudo o lhe faltou durante toda a vida.
Quando Camila voltou, Ângela havia se vestido do que ainda lhe cabia. Seu manto era de expectativas. Reconhecendo a esperança nos olhos verdes, ela aproximou-se e, rematando o conto, disse-lhe:
- Paramos por aqui – e esta frase foi o ponto final."
Mas o destino seria menos cruel com Camila, do que ela foi ou fingiu ser e, antes que ela continuasse manipulando as falas, os gestos e sentimentos – em sua vida e em seus escritos, que eram, em verdade, meros resumos inacabados de suas expectativas –, a bateria do laptop acabou, a tela escureceu e ela, assustada – mais com a descoberta de sua própria escuridão do que com a da tela –, foi então perceber que não havia como escrever um conto daquela forma, despida de envolvimento e, ainda assim, ganhar qualquer concurso. E mais: não havia como dar continuidade à sua vida evitando um enlace, tampouco poderia iniciar uma carreira de escritora sentindo-se pela metade, falando sobre sexo simplesmente porque desconhecia o amor. Só então, finalmente despertou, ao passo que constatou: queria mais do que qualquer coisa na vida voltar a se sentir inteira! Queria deixar de observar a chuva com o intuito infantil de preencher um vazio que simplesmente não se recheia com águas, com mágoas, com medos, com paredes, com tijolos, com muralhas. E esta certeza foi o prêmio que ela, naquele momento, ganhou, mesmo antes de participar do certame. O primeiro lugar tornou-se seu e ficava logo ali, exatamente onde ela estava, sentada naquela cadeira tosca, inanimada, com um laptop pousado sobre o seu colo sem qualquer vestígio de vida. O importante é que ela já se sentia cheia.
Munida desta nova sensação, laçou um olhar diverso sobre aquela tela, o mesmo que lançaria, doravante, sobre sua vida e, retirando mentalmente o ponto final, decidiu que permitiria uma continuação:
"- Paramos por aqui... por hoje. Mas queria te ver amanhã..."
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O AVESSO DA TELA (Capítulo II)
CAPÍTULO II
ENQUANTO DESCANSA A TELA
A princípio, findo estava o conto com o qual Camila havia se disposto a participar do concurso. Ela, enquanto escritora, possuía o poder de estancar o curso do enredo, compelindo os leitores a se conformarem com uma mera pincelada quanto à suposta continuação da relação esculpida entre Camila – a personagem – e a Dra. Ângela Krauss – sua personagem!
Entretanto, do lado de fora da tela, este poder não se fazia possível e a história de sua vida proclamava prolongamento. O dia-após-dia inevitavelmente viria e, com ele, Camila seria impulsionada a dar um arremate àquele seu ensaio de envolvimento, àquela sua tentativa de dar vazão a sentimentos que extrapolam a carne e povoam a alma, àquele seu recente experimento fincado num solo que, até então, lhe era desconhecido: o coração. E ela, definitivamente, sentia-se disposta a pôr em prática, do lado avesso da tela, aquela missão.
E foi movida por esta intenção que ela, resoluta, guardou o laptop e ergueu-se da mesa, saindo em passos firmes do restaurante que, àquela hora da tarde, já se fazia vazio. Em dois dias seria, de fato, seu aniversário e, na mesma página de sua agenda, ela havia marcado uma consulta com a ginecologista. Se por sua sorte alguém semelhante à Dra. Ângela Krauss a esperaria, disto ela não sabia. Mas, a esperança não fazia mal a ninguém.
Seus trinta anos chegaram trazidos por uma manhã nublada que se não era de todo bonita, a trouxe, estranhamente, felicidade. Logo a Camila, que não gostava de aniversários! Talvez a expectativa fizesse aquele ser diferente. Mas expectativa de que, exatamente? A aniversariante não soube, naquele primeiro momento, responder. Entretanto, dentre as hipóteses que flamejaram confusas em sua mente, uma lhe fez sorrir: expectativa de se apaixonar verdadeiramente.
Enquanto Camila divagava, aconchegada por entre as cobertas, sobre esta possibilidade, a campainha soou, chamando-a para a sala. Era seu pai que, do outro lado da porta, ansioso e visivelmente feliz, a esperava com uma cesta de café da manhã e toda a sinceridade que pode conter um desejo de “feliz aniversário”. Ao se deparar com aquele sorriso tão familiar, quanto querido, ela o enlaçou em um forte abraço, convidando-o para partilharem daquele presente. Naquele instante, uma certeza instalou-se em seu espírito inquieto: nada estragaria aquele dia.
Depois do café da manhã recheado de tudo que Camila mais gostava, ela e o pai rumaram para o escritório.
Lá chegando, Camila foi recebida com três orquídeas sobre sua mesa, um estojo de canetas específicas para finalização de projetos e um pequeno cartão. Neste, as explicações eram dadas: cada flor representava uma década de sua vida e todas elas, apesar das intempéries, haviam sido devidamente finalizadas. A coragem de Camila e, sobretudo, a força que a impulsionava e a fazia terminar com singularidade e determinismo tudo aquilo que começava eram atributos que todos ali admiravam. E era exatamente relatando este fato que o cartão se encerrava. Nas derradeiras linhas, o amor de todos restava estampado em letras de fôrma. E a última assinatura, firmada pela mesma letra que conduzia o texto, como Camila já esperava, era a de Débora, sua sócia e, também, arquiteta.
As duas eram amigas desde a época do colégio e, apesar das inúmeras diferenças que sempre as habitavam, elas se entendiam perfeitamente bem. O que tinha Camila de centrada e firme, principalmente no âmbito profissional, tinha Débora de extrovertida e maleável. Desta forma, confabularam montar um escritório assim que se formassem, plano este que logo se tornou concreto graças à ajuda de Aurélio, pai de Camila e seu eterno incentivador.
Nos primeiros anos de escritório, entretanto, as coisas não foram, de todo, fáceis. É que, se a estrutura física havia sido erguida e de primeira qualidade, a emocional ainda não restava inteiramente firmada nas sócias. Cada uma, justamente naquele momento, passava por uma crise de inconteste gravidade.
O primeiro ano de trabalho coincidiu com a época em que Camila se descobriu atraída por mulheres e isto, a princípio, a deixou um tanto quanto atordoada. Ela não sabia como o pai enfrentaria aquele assunto e Débora, desde a época de faculdade, se mostrava preconceituosa ao extremo quanto ao tema homossexualidade. Tais eventos, somados, cuidaram de intensificar sua angústia. Ela tinha receio de causar sofrimento às duas pessoas que considerava as mais importantes em sua vida e mais: não sabia se continuaria sendo, por ambas, igualmente amada.
Justamente na mesma temporada, Débora havia terminado o noivado de quase dez anos e o fez motivada por uma infeliz descoberta: o noivo a traíra. E o pior: com outro homem. Beirando uma depressão, ela estava prestes a desistir do escritório e aceitar o convite de uma de suas irmãs para ir morar na Alemanha.
Camila bem sabia, desde o começo do namoro, que, no fundo, Débora nem amava verdadeiramente Armando. O relacionamento de ambos tinha por base a carência mútua, a necessidade de companhia constante por ambos fomentada. Paixão, romance, intensidade, isto nunca os povoou e nem mesmo no início, o que era um fato tanto real, quanto notório.
Mas, a maior inquietação da noiva – apenas naquele instante. Camila percebia – não se devia ao fato de ter sido traída, tampouco de ter sido trocada. O que verdadeiramente a incomodava era o evento de, apenas agora, descobrir a homossexualidade do namorado. Assim, classificando seu desejo como “anormal e abominável”, ela abraçou-se desesperada à amiga que, sentindo seu coração se apertar, tanto quanto o acelerar de seu pulso, resolveu: aquela era a hora esperada!
Com a garganta inteiramente seca, prestes a proferir um segredo que, de há muito, lhe ressecava a própria alma, ela olhou Débora firmemente e lhe disse, com os olhos turvos pelas águas:
- Você me acha anormal e abominável?
E foi depois daquela pergunta e, sobretudo, da conseqüente resposta, a qual, gradativamente, ecoou dentro de Débora, que as duas, se já eram amigas, se tornaram ainda mais.
Na seqüência dos dias, todas as crises foram superadas, inclusive as oriundas do escritório, e os contratos mais importantes de suas vidas foram firmados. Eis o principal: o que as consagrava como verdadeiras irmãs, apesar dos pesares.
Estas lembranças, em parte doces, em outras amargas, passaram por Camila com a velocidade de uma bala até que, nos minutos seguintes, sua sala foi invadida por todos que, munidos de uma torta sobre a qual queimavam trinta velas, cantavam animadamente parabéns. Todo ano Camila recebia algo do estilo e se tais demonstrações de carinho já não tinham o poder de surpreendê-la, possuíam, ainda, o de genuinamente alegrá-la.
Depois das comemorações, muito trabalho a esperava. Assim, o resto da manhã transcorreu rapidamente, enquanto ela emergia para dentro de seus projetos, todos mergulhados na tela de seu computador. Ele, nos últimos tempos, vinha sendo seu mais aconchegante refúgio, o local onde se abrigava sempre que a vida lhe parecia vazia ou, simplesmente, sem graça. Entretanto, naquela ocasião, o mergulho se deu, em verdade, por simples obrigação. É que naquele dia, em especial, a fuga não estava em cogitação.
Revestida de entusiasmo, ela retornou a um projeto um tanto quanto complexo que deveria ser, impreterivelmente, terminado e, em virtude disto, sequer deu-se ao luxo de parar na hora do almoço. E não foram poucos os convites que recebeu. O primeiro veio de Débora que, insistente desde sempre, disse-lhe ser um absurdo alguém, no dia do próprio aniversário, não se dar ao direito de um almoço decente entre os amigos. E a constatação veio seguida de uma ameaça:
- Só não ouse sumir mais tarde. Estou organizando uma festa surpresa para você lá em casa, por volta das oito horas.
Acatando a convocação, ela apenas meneou a cabeça no sentido positivo, sem, sequer, atravessar a tela, submersa que estava. E, naquele lago digital, passou o restante do dia, até que o alarme a chamou: dentro de uma hora seria a consulta, há quinze dias marcada.
A imagem da Dra. Ângela Krauss, por si mesma confeccionada e devidamente descrita em seu mais recente conto, a acompanhou durante todo o percurso, este feito da forma mais lenta graças ao trânsito que, àquela hora da tarde, transformava as ruas de Recife num conturbado mar de carros. E foi inevitável rememorar as entrelinhas de seu desejo, devidamente camuflado nas derradeiras linhas de seu texto: o de se permitir a um dia seguinte, depois de suas casuais e vazias noitadas.
Ao estacionar o carro, ela observou externamente a clínica e surpreendeu-se com um fato: o local, de certa forma, se assemelhava ao idealizado e relatado em seu conto. Restava agora, contando com a mesma sorte, adentrar ao consultório e conhecer a médica. O nome dela, entretanto, já se antecipava, estampado que estava em uma das placas: Dra. Ângela Dias. A coincidência dos prenomes, entretanto, não a surpreendeu já que fora por si mesma causada. É que, quando Camila marcou a consulta, antes mesmo de começar a escrever o conto, já sabia como a médica se chamava, inclusive porque era renomada no meio. Assim, o nome da personagem foi escolhido justamente em sua homenagem.
Ao atravessar o jardim e subir os discretos degraus que davam acesso à casa, ela riu ao lembrar-se que aquele cenário, antes mesmo de ser tocado por seus pés, o foi por seu imaginário. Eis o poder de sua tela e, sobretudo, das palavras que, nela, mergulhavam, tanto quanto a autora e os fatos criados. E Camila deliciava-se toda vez que inventava uma “realidade” e, na seqüência de sua vida, terminava por vivenciar algo semelhante ao que, às vezes, até despretensiosamente, articulara. Pois era exatamente o caso.
No consultório, as pacientes eram muitas. Várias mulheres e de todas as idades esperavam: umas inquietas, folheando apressadamente uma revista ou comentando em voz alta com sua vizinha de sofá um fato; outras tranqüilas ou quase anestesiadas, fosse pela espera, fosse pela esperança acalentada. É que aquela clínica também tinha por especialidade a fertilidade e muitas daquelas que ali estavam eram pretensas grávidas.
Entretanto, em meio a tantas pessoas, uma, imediatamente, chamou a atenção da mais nova paciente. Era uma mulher que, nem de longe, se enquadrava nas duas categorias ensaiadas. A moça, que deveria ter também uns trinta anos, nem se mostrava apressada, tampouco quieta. Parecia, isto sim, de uma infelicidade quase palpável. Os olhos de íris clara e de cor incomum, inicialmente, indecifrável pousavam perdidos e vazios em uma página. O texto, para Camila, era presumível, inclusive pela capa: aquela revista, como tantas que ali dormitavam, tinha por conteúdo a maternidade. O que se passaria em sua cabeça, tão bem adornada pelos cabelos lisos e acobreados? O que se passaria, sobretudo, em seu coração, inteiramente desconhecido, apesar de, facilmente, detectado como angustiado? O que se esconderia por trás daquela imagem impassível, tão bonita quanto intrigante? Camila, definitivamente, não sabia responder. Mas, em meio a tantas questões e dúvidas, uma coisa era certa: ela gostaria imensamente de decifrá-la.
Seu devaneio foi interrompido pelo olhar da observadora que, de forma quase feroz, ergueu a vista em sua direção e, arqueando a sobrancelha bem feita, como se lesse seus pensamentos, pediu, ainda que em silêncio, para ser deixada em paz. E Camila, instintivamente, desviou a vista e o desejo, obedecendo ao pedido mudo, ao comando explícito daquele olhar tão límpido, quanto perturbador.
Antes disso, entretanto, a observadora se permitiu a uma última questão: que cor tornava aquela íris tão incomum? Entretanto, como resposta, ela, contrariada, ponderou: seria preciso chegar realmente perto para descobrir, evento que, naquele momento, lhe pareceu tão impossível quanto instigador.
Depois de quase uma hora de espera, a atendente, ao chamá-la, revelou a Camila pelo menos o nome daquela paciente: Ana Maria Furtado.
Então era assim que ela se chamava! E Camila, sem esforço, gravou aquela anunciação, observando de soslaio Ana Maria se levantar e admirando o movimento de seus quadris, ajustados de forma extremamente sensual na calça jeans, enquanto ela caminhava para o consultório.
Durante todo o tempo em que Ana Maria estava sendo atendida, Camila, mesmo sem querer, sentiu-se preenchida de uma estranha expectativa. Ela esperava, não sabia exatamente o quê, mas esperava. Talvez – ponderou enquanto consultava o relógio com as mãos frias – esperasse ver aquela mulher saindo pela porta da sala de Dra. Ângela Dias e presenteando-a com um olhar direto e nitidamente azul, ainda que fosse a última vez que a visse.
Entretanto, para sua surpresa, em mais alguns minutos a porta se abriu e Ana Maria saiu da sala com a cabeça baixa, a expressão consternada e os olhos turvos ainda mais desconhecidos. Certamente não ouvira da médica coisas agradáveis, adivinhou Camila assim que a viu. E, para intensificar seu lamento, a moça atravessou a sala apressadamente, passando por perto de Camila sem sequer fazer menção de olhá-la, quanto mais diretamente, como desejara. E assim, ao alcançar o trinco da porta e abri-la com força, tudo o que Ana Maria deixou para a expectadora foi seu perfume. E este, Camila logo soube, jamais seria esquecido.
Ao ouvir seu próprio nome sendo chamado pela atendente, Camila ergueu-se e, sem ânimo algum, entrou no consultório de Dra. Ângela Dias que, sentada e de cabeça baixa, a aguardava, desinteressante e em nada semelhante à sua personagem.
No decorrer da consulta, ao contrário do que em seu conto acontecia, Camila manteve-se absolutamente distante. Seu pensamento havia ficado do lado de fora e sua curiosidade sobre a médica simplesmente dissipou-se, assim como o perfume daquela que, minutos atrás, atravessara a porta.
Mas a vida real, assim como a inventada por aqueles que se aventuram à ficção, também surpreende. E, por ironia ou acaso, depois da consulta, quando Camila atravessou o jardim da clínica chegando ao seu carro, a primeira coisa que viu foi um imenso arranhão.
E o carro era novo! E caro! Foi tudo o que se passou em sua cabeça que, àquela altura, já fazia menção de doer, explodindo de exclamações. Imediatamente ela lembrou-se da premonição com a qual começara o dia: a de que nada o estragaria! E, na seqüência da ironia, extremamente irritada, ela rodeou o automóvel, verificando o tamanho do estrago e praguejando contra o imbecil que havia feito aquela barbaridade e o pior: estragado sim o dia do seu aniversário! No decorrer de seu exame, perguntou-se como alguém havia conseguido arrastar o próprio carro no seu, numa manobra tão absurda e inusitada quanto aquela?
Sem resposta, baixou a cabeça respirando fundo, enquanto sentia a veia pulsando em sua fronte. Foi então que, focando o chão, viu um pequeno bilhete que, sorrateiramente, escorregara do capô do carro, onde havia sido posto pelo culpado.
Apanhando-o apressadamente, Camila iniciou a leitura com a mesma velocidade. Mas foi preciso ler e reler mil vezes para acreditar no que via, para conceber o recado que ali jazia e que, com a assinatura, fez seu coração descompassar-se de vez e agradecer o fato de seu carro ter sido ferozmente abalroado:
Desculpe-me. Infelizmente causei este estrago em seu carro. Pretendo assumir integralmente o prejuízo. Não pude esperar, mas deixo meu telefone para contato: 9229 5555.
Ana Maria Furtado
Por alguns minutos, Camila encostou-se no carro e limitou-se a contemplar aquela letra tão bonita quanto a dona. E assim ficou até que seu coração, aos poucos, começou a voltar ao normal. Ainda boquiaberta, agradeceu ao destino: ele, sem dúvidas, havia lhe garantido um reencontro e nem fora preciso inventar qualquer pretexto, descobrir os lugares que Ana Maria costumava freqüentar ou tentar arranjar uma forma de contatá-la. Seu telefone estava bem ali e os números grafados partiam de seu próprio punho! E foi este seu maior presente de aniversário.
E, para intensificar novamente as batidas de seu coração, Camila percebeu – ou seria apenas sua imaginação? – enquanto dobrava o bilhete que, aquela que o assinou, involuntariamente, deixou vestígios de seu perfume no papel que, minutos antes, teve nas mãos.
Com o coração novamente aos saltos, ela entrou no carro que nunca lhe pareceu tão inteiro. Em verdade, Camila bem sabia que aquela sensação de completude vinha dela. E, tomada de euforia, enquanto arrancava na primeira marcha impingindo velocidade extrema ao veículo, ela desligou o ar-condicionado e ousou abrir as janelas, deixando que o vento açoitasse seu rosto, assim como a alegria açoitava seu espírito.
Foi com esta mesma alegria que Camila, naquela noite, depois da festa de aniversário, chegou em casa. E, na seqüência das horas, sem sequer percebê-las, a escritora atravessou a madrugada e a tela iluminada de seu laptop, indo reencontrar as personagens de seu conto, dando a ele continuidade.
De manhã, depois de poucas horas de sono, a primeira coisa que Camila observou ao acordar foi o celular. Nele, viu que horas eram. Depois de espreguiçar-se lentamente, sentindo a musculatura de seu corpo alongar-se, ela procurou na agenda o nome que em momento algum havia saído de sua mente: Ana Maria Furtado. Ali estava ele, logo no início da agenda eletrônica, no visor daquela outra tela. E onde estaria ela?
Nos minutos seguintes, sem erguer-se da cama, Camila fechou os olhos e, enquanto sentia o aconchego do colchão e das cobertas, tentou adivinhar o que Ana Maria, naquele instante, deveria estar fazendo. Quem a acompanhava? Quem se fazia próximo o suficiente para tocá-la? Para ouvir sua voz e sentir suas mãos? Para sentir o cheiro de seu perfume ou de sua pele?
Entretanto, o alarme da cabeceira a resgatou de seu devaneio e ela, tomada de alguma lucidez, questionou-se: o que estava acontecendo? Que loucura era aquela? Ela nunca havia se flagrado pensando tanto em alguém, quanto mais em uma criatura com a qual sequer havia trocado uma frase! Definitivamente aquilo não tinha cabimento. Não combinava com sua postura racional e altiva, com seu desapego. E foi diante desta última palavra que Camila assustou-se: desapego! Talvez algo dentro dela houvesse, de fato, mudado. E ela agora constatava: não queria mais se desapegar daquela história que tinha início do outro lado de sua tela, especificamente no avesso dela. E mais: talvez aquele novo sentimento responsável por sua mudança tivesse um nome bem definido e bastante complicado de ser experimentado: paixão.
Aturdida com sua descoberta, ela, num rompante, pegou novamente o celular e o desligou. Precisava ficar mais um pouco ali, no seu quarto, no seu aquário, sem contato com o mundo externo, apenas em contato com seu mundo interno. Precisava, isto sim, digerir aquela nova realidade em sua vida, cuja causa também possuía um nome e bem bonito: Ana Maria. Assim, nas horas subseqüentes, ela não mais o procurou no visor. Não se sentia preparada para ouvir a voz daquela que, num simples erguer de olhos, totalmente a habitou.
Mas o dia prometia. A quantidade de projetos a serem concluídos e obras a serem visitadas era tamanha e Camila, de certa forma, até agradeceu àquele fato. O corre-corre faria com que ela suavizasse, nem que fosse pelo cansaço, sua inquietude antes de ligar para Ana Maria. E, pensando assim, ela, finalmente, ergueu-se da cama, tomou uma ducha de água fria, vestiu-se de forma que se sentisse inteiramente segura e bonita e, como de hábito, tomou um café extremamente forte antes de sair de casa.
Porém, ao chegar no carro e ver o arranhão na pintura, estancou o passo, sentindo um certo nervosismo povoando-lhe o estômago. Era pura e simples ansiedade. Chateada com seu corpo que, feito o de uma adolescente, vinha lhe ensinando o que era sentir, literalmente, na pele, o fato de estar apaixonada, Camila olhou-se no retrovisor, antes de dar a partida.
Fixando o olhar nos próprios olhos, muito bem maquiados, de cílios delineados e compridos, ela riu de si mesma e de sua bobagem. Na seqüência daquele sorriso partilhado com o espelho, ela ainda lhe confessou:
- Essa aí ainda é a Camila que você conhece, a que sabe envolver, a que sabe jogar, a que sabe descartar, a que sabe, sobretudo, desvencilhar-se daquilo que lhe causa qualquer tipo de dor!
E assim, tentando se convencer de que não havia porque ter medo, ela tomou a direção com as mãos, fingindo manter o mesmo controle sobre o curso de sua vida. Mas, para lhe provar o contrário, seu telefone tocou.
O número desconhecido a fez olhar o visor com curiosidade. Imaginando tratar-se de algum cliente ela atendeu, falando secamente um “alô”. E, na seqüência, ouviu:
- Camila?
Era uma voz bonita a que lhe falava e ela simplesmente respondeu:
- Sim.
Dali em diante foi preciso estacionar novamente, pois a voz logo anunciou sua dona:
- Meu nome é Ana Maria... Ana Maria Furtado.
Camila simplesmente não acreditava no que estava ouvindo, mas, na seqüência da explicação, a voz tornava-se tão melodiosa e concreta que ela simplesmente acreditou:
- Estávamos ontem no consultório de Dra. Ângela Dias. Eu deixei um bilhete no seu carro, mas, como você não me ligou, imaginei que alguém o havia tirado.
E assim, enquanto o coração de Camila parecia querer saltar pela boca, a outra explicou calmamente: ao causar o arranhão no carro, Ana Maria logo supôs que o mesmo era de alguma paciente e retornou à clínica, onde a atendente, depois de consultar o manobrista, disse que, salvo engano, o veículo pertencia à moça que acabara de entrar na sala da médica. Na dúvida de ambas, a culpada resolveu deixar um bilhete com seu número e esperar uma ligação. Porém, como esta não veio, socorreu-se do número fornecido na clínica e antecipou-se, ligando para Camila.
Com poucas e escolhidas frases, Camila propôs um encontro na oficina de um conhecido seu, o que foi prontamente aceito pela outra interlocutora, que anotou cuidadosamente o endereço indicado. No dia seguinte elas se encontrariam. Antes de desligar, entretanto, docemente Ana Maria articulou:
- Desculpe-me o transtorno e obrigada pela atenção.
Mas Camila respondeu apenas internamente: eu é que lhe agradeço por me resgatar de meu conto e me fazer habitar, em carne, osso e espírito, este outro lado da tela, onde, finalmente, respiro.
E assim, antes de o telefone ficar mudo, tudo o que Ana Maria escutou foi uma desconhecida respirando fundo.
Três horas da tarde e Camila já estava impaciente. Andando por entre os carros estacionados na oficina, ela os olhava, mas não os via. Via tão somente a imagem que guardara de Ana Maria. Lembrava-se de suas mãos, de seus olhos, de seu andar, de seu perfume e agora, também, de sua voz. Aos poucos ela ia somando informações e detalhes daquela mulher que a atraía tanto quanto a assustava. Aliás, ponderava Camila, estava era assustada consigo mesma!
Suas divagações foram interrompidas por Ítalo que, saindo do escritório, caminhou em sua direção, entregando-lhe o orçamento. Enquanto Camila consultava os preços indicados, sentiu uma mão pousar levemente em seu ombro. Ao virar-se, surpreendeu-se refletida na ires dos olhos claros que a fitavam com uma interrogação:
- Você é Camila, não é?
Um “sim” foi tudo o que ela conseguiu articular diante de Ana Maria que, pedindo desculpas pelo atraso, olhou curiosa para o orçamento, pedindo permissão para verificar o tamanho do estrago, como a própria classificou, enquanto ensaiava um sorriso. Camila estendeu o papel e, por um segundo, as mãos das duas se tocaram, fazendo Ana Maria, instintivamente, olhá-la no fundo dos olhos.
Nesse segundo roubado do tempo, Camila sentiu como se tudo ao seu redor houvesse parado e seu coração também estancasse, suspenso pelo olhar que lhe fora lançado. E assim, como se prolongasse as sensações, ela experimentou pela primeira vez a quentura da mão de Ana Maria e o leve roçar de sua pele, que lhe pareceu suave desde o primeiro momento.
Alheia ao turbilhão de sentimentos que povoavam o corpo de Camila e, sobretudo, seu espírito, Ana Maria limitou-se a recuar a mão, detendo-se no orçamento. Enquanto isso, Camila sentia-se estúpida, imatura e insegura. Nem de longe reconhecia aquela criatura que, agora, habitava em seu corpo, tão diferente da Camila que estava acostumada a conduzir as situações e, sobretudo, a articular cada frase, cada encontro, cada nuança de seus contos e de seus relacionamentos furtivos.
Pondo os óculos escuros, ela respirou fundo e resolveu assumir seu antigo papel. Olhando para Ana Maria, questionou-a de forma fria e seca:
- E então, como você pretende fazer?
- Como eu lhe disse, pretendo arcar com o prejuízo e lhe peço novamente desculpas. Por mim, podemos começar o serviço.
Depois de um leve aceno de cabeça, Camila deu as costas e foi consultar Ítalo, que lhe deu três horas, no máximo, como prazo para concluir os reparos.
Enquanto isto, do lado de fora do escritório, Ana Maria observava através do vidro a mulher que, de forma firme e resoluta, acertava como seria feito o serviço. A distância a permitia visualizar Camila por outro ângulo. E, pela primeira vez, ela a achou bonita. Mas alguma coisa nela lhe causava estranheza, algo destoava em seu corpo de formas extremamente femininas, em suas roupas impecavelmente escolhidas. Porém, naquele segundo que, para Ana Maria, também pareceu roubado do tempo, ela não soube responder exatamente o quê lhe intrigava naquela que observava.
Saindo do escritório em passos firmes e harmoniosos, Camila foi ao encontro de Ana Maria, explicando que ficaria ali esperando o conserto, mas que ela já poderia ir embora. Olhando-a nos olhos, Ana Maria meneou a cabeça como se concordasse e encaminhou-se para o escritório, enquanto Camila seguiu, com o olhar, seus passos.
Encostada no carro, Camila assistiu, também através do vidro, Ana Maria preenchendo um cheque, como se estivesse totalmente alheia ao fato de ser observada e inteiramente focada no que fazia. Porém, ao destacá-lo, antes de entregá-lo nas mãos de Ítalo, Ana Maria olhou na direção da outra, séria e contida, como se estivesse o tempo todo sabendo que era analisada. E a expectadora, sem graça, desviou o olhar, enquanto sentia o coração descompassado.
Mas Ana Maria não fez o mesmo e sem tirá-la de foco, caminhou olhando-a intensamente e desconcertando-a de vez. Cruzando os braços e firmando posição de alerta, Camila desencostou-se do carro, preparando as mãos para cumprimentar Ana Maria numa formal despedida. Mas as mãos frias foram guardadas, pois a outra, sem fazer menção de se despedir, convidou:
- Toma um café comigo?
E mais um “sim”, talvez o mais surpreso de todos, foi dito.
A tarde estava chuvosa e o céu completamente cinza. Realmente um dia perfeito para um bom café, ainda que fosse na esquina. Esta foi a sugestão de Ana Maria, que era cliente de um posto de gasolina onde sempre tomava um expresso quando abastecia. E o posto ficava logo ali, no final da rua, apontou a moça de olhos desconhecidos, cuja cor, naquele instante, lembrou a Camila exatamente um dia de chuva.
Assim, enfrentando o vento e aquele verdadeiro ensaio de tempestade, as duas atravessaram a rua correndo até o carro de Ana Maria, que estava estacionado logo do outro lado. E aquele pequeno percurso foi o suficiente para que ambas entrassem no veículo bastante molhadas.
Com o rosto vermelho pelo frio e a respiração entrecortada, Ana Maria olhou para Camila, ensaiando um sorriso, ao qual a outra retribuiu, um tanto quanto sem graça. A falta de intimidade crescia naquele espaço tão contido. E imitando aquele adjetivo, Camila tentava, também, se conter. Não queria que a outra notasse sua inquietação.
Sem trocarem nenhuma palavra, as duas aproveitaram o percurso para recobrar a respiração. O perfume de Ana Maria tornara-se mais intenso ainda dentro do carro e Camila, mesmo sem querer, sentia-se parcialmente entorpecida, enquanto observava cada movimento da outra na direção. As mãos alvas, de unhas bem feitas e longas, chamavam ao toque e Camila, por segundos, imaginou como seria senti-las entre as suas. Foi então que, açoitando sua visão, a observadora se deparou com uma aliança de ouro. E aquele objeto tão simples, ao reluzir, atormentou-a tanto que a fez prender a respiração.
Chegando no posto, as duas se encaminharam para a loja de conveniência. O ar condicionado somado ao frio do dia tornava o ambiente ainda mais propício para um café extremamente quente. Com duas fichas na mão, Ana Maria disse para Camila sentar-se em uma das mesinhas, enquanto ela iria buscar os cafés na máquina. E assim, logo voltou com dois expressos curtos e fortes, como estava acostumada a escolher.
A loja era pequena, mas bastante aconchegante. As prateleiras eram de madeira escura, em contraste com o piso alvo e muito bem polido. Os vidros que compunham as paredes emprestavam ao local um certo ar futurista, que se contrapunha ao clima intimista proporcionado pelas mesinhas que, harmoniosas, ficavam num canto mais reservado. E assim, o cheiro do café, associado àquele peculiar espaço, tornava o ambiente extremamente acolhedor, ainda mais para os amantes daquele líquido que, sorvido nos dias de frio, parecia ainda mais saboroso.
Àquela hora da tarde as mesinhas estavam vazias e, escolhendo uma que ficava no canto esquerdo, abrigada num verdadeiro refúgio viabilizado por uma esquadria de madeira que rebaixava o teto, Camila sentou-se e ficou no aguardo. Ela ainda não estava acreditando no que lhe acontecia: ela e Ana Maria, sozinhas, num final de tarde chuvoso, munidas de um bom café. Aquele era, sem dúvidas, um bom começo. Mas logo o peso da aliança que a outra trazia nos dedos a resgatou de seu devaneio. E ela continuava a reluzir, enquanto a moça segurava os expressos nas mãos, caminhando em sua direção.
Depois do primeiro gole, entre a densidade fumegante advinda do líquido, as duas se olharam e Camila tentou, fingindo uma calma que não sentia, iniciar um diálogo. E assim, desculpou-se pelo mau jeito com que tratara Ana Maria ao telefone, dizendo-se estar extremamente ocupada no dia de sua ligação. E a outra, olhando-a atentamente, como se a invadisse e dissipasse sua calma, ria com o olhar estreito, como se adivinhasse seu desconcerto.
As desculpas foram aceitas, até porque, como bem lembrou Ana Maria, Camila possuía todos os motivos do mundo para tratá-la de forma ríspida. Afinal, ela havia batido em seu carro, exclamava Ana Maria, visivelmente constrangida com o fato. Mas Camila logo a tranqüilizou, dizendo que nunca em sua vida havia encontrado uma pessoa tão solícita, ainda que “culpada”. Disse também que nunca havia sido tão agradável ser vítima de alguém, até porque esse alguém, além de pagar o estrago, trazia café quente e em dia de chuva. E finalizou a frase com um sorriso amistoso abrigado entre lábios fartos e perfeitamente delineados, como logo admirou a outra. E as duas, pela primeira vez, riram juntas, ambas mais relaxadas.
Aos poucos, enquanto a chuva tornava-se mais intensa, a tensão que pairava entre ambas era amenizada. E assim, o segundo, o terceiro e o quarto café foram servidos e sorvidos, enquanto as duas se descobriam, ora com silêncios, ora com palavras.
Camila, a cada gole, aquecia seu espírito, já menos agoniado pela presença de Ana Maria e acalentado pelo olhar intenso que a outra lhe direcionava do outro lado da mesa cada vez que a ouvia. Mais segura de si, a arquiteta ensaiava falar um pouco sobre sua vida, escolhendo cuidadosamente alguns fatos que julgava mais interessantes e encobrindo aqueles que não condiziam com o momento. E assim, desnudava o que havia de mais envolvente em si, artifício do qual estava acostumada a se valer quando queria impressionar e seduzir.
Enquanto isto, Ana Maria, discretamente, também a observava. Gostava do movimento de suas mãos, sempre firmes, apesar de gentis; gostava de seus olhos intensos e de cílios longos; gostava de sua boca, de sua voz e, sobretudo, de sua forma de falar. Definitivamente, Camila era uma mulher diferente das que estava acostumada a lidar, concluía Ana Maria curiosa, muito embora ainda não soubesse indicar de forma exata o que a tornava tão peculiar.
Depois foi a vez de Ana Maria falar sobre si, mas, ao contrário da outra, os fatos escolhidos e elucidados não ostentavam o atributo de “interessantes” e sim de “tristes”. Com a voz embargada e expressões marcadas pela frustração, ela contou que estava casada há cinco anos e, apesar da vontade de ambos, não conseguia engravidar. Estava ali, portanto, o motivo de sua consulta no dia do incidente com o carro. Consternada, relatou ainda um aborto ocorrido há seis meses e o vazio que a consumia desde então. E de vazios Camila bem entendia, pensou a ouvinte, enquanto escutava Ana Maria.
Aquelas palavras segredadas e, sobretudo, o olhar turvo que, naquele instante, nublava o semblante de Ana Maria fizeram Camila querer abraçá-la. Mas, diante da impossibilidade de fazê-lo, ela limitou-se a lhe estender as mãos ainda frias. Estas sim foram, da forma que puderam, abraçadas pelas mãos quentes de Ana Maria, que não hesitou em tomá-las de forma justa, enquanto a agradecia.
Quando deram por si, as três horas já haviam transcorrido de há muito! Surpresa, Ana Maria observou o relógio na parede indicado por Camila com o olhar. Porém, antes de erguerem-se, Ana Maria propôs outros encontros.
Deveriam existir muitos outros cafés a serem descobertos na cidade do Recife, respondeu Camila concordando prontamente com a idéia. E, naquele instante, por ironia ou acaso, num minuto de silêncio partilhado, as duas respiraram fundo. Foi quando uma música em especial chegou aos ouvidos de ambas advinda do som ambiente.
A primeira frase, cantada por Marina Lima, ecoou dentro de Camila contundente a transformar-se em fato. E assim ela dizia: vou seguir o chamado e onde é que vai dar, e onde é que vai dar? Não sei...
Ela, de fato, não sabia. Sabia apenas que ia sim seguir O Chamado. Era este o título da música que, tomando Camila de surpresa, por ser tamanha a coincidência, a fez, mesmo sem querer, sorrir. E Ana Maria, curiosa, logo a questionou:
- De onde vem esse sorriso?
- De um tempo muito bom de minha vida que foi embalado por esta mesma melodia...
E esta foi a resposta dada que, entretanto, não convenceu àquela que questionava, observadora como sempre. Mas, mesmo desconfiada, Ana Maria nem de longe suspeitou que o tempo bom ao qual Camila se referia era exatamente o presente.
Já sozinha, enquanto voltava para a casa, Camila, exultante de alegria, resolveu estacionar o carro na avenida que ladeava a praia de Boa Viagem. O mar, logo adiante, se mostrava por demais bravio, deixando suas ondas arrebentarem forte maculando a tranqüilidade das areias que o margeavam. Anestesiada, Camila, com as janelas inteiramente vedadas, percebia que tanto fora quanto dentro de si havia uma intensa tempestade. E ali, durante alguns minutos, tomada da mais genuína felicidade, passou a observar a chuva que deslizava pelo vidro. E pela primeira vez em sua vida ela assistia o correr daquelas águas sem a necessidade de imaginá-las inundando-a por dentro. É que, naquele momento, não havia qualquer vazio a ser preenchido.
ENQUANTO DESCANSA A TELA
A princípio, findo estava o conto com o qual Camila havia se disposto a participar do concurso. Ela, enquanto escritora, possuía o poder de estancar o curso do enredo, compelindo os leitores a se conformarem com uma mera pincelada quanto à suposta continuação da relação esculpida entre Camila – a personagem – e a Dra. Ângela Krauss – sua personagem!
Entretanto, do lado de fora da tela, este poder não se fazia possível e a história de sua vida proclamava prolongamento. O dia-após-dia inevitavelmente viria e, com ele, Camila seria impulsionada a dar um arremate àquele seu ensaio de envolvimento, àquela sua tentativa de dar vazão a sentimentos que extrapolam a carne e povoam a alma, àquele seu recente experimento fincado num solo que, até então, lhe era desconhecido: o coração. E ela, definitivamente, sentia-se disposta a pôr em prática, do lado avesso da tela, aquela missão.
E foi movida por esta intenção que ela, resoluta, guardou o laptop e ergueu-se da mesa, saindo em passos firmes do restaurante que, àquela hora da tarde, já se fazia vazio. Em dois dias seria, de fato, seu aniversário e, na mesma página de sua agenda, ela havia marcado uma consulta com a ginecologista. Se por sua sorte alguém semelhante à Dra. Ângela Krauss a esperaria, disto ela não sabia. Mas, a esperança não fazia mal a ninguém.
Seus trinta anos chegaram trazidos por uma manhã nublada que se não era de todo bonita, a trouxe, estranhamente, felicidade. Logo a Camila, que não gostava de aniversários! Talvez a expectativa fizesse aquele ser diferente. Mas expectativa de que, exatamente? A aniversariante não soube, naquele primeiro momento, responder. Entretanto, dentre as hipóteses que flamejaram confusas em sua mente, uma lhe fez sorrir: expectativa de se apaixonar verdadeiramente.
Enquanto Camila divagava, aconchegada por entre as cobertas, sobre esta possibilidade, a campainha soou, chamando-a para a sala. Era seu pai que, do outro lado da porta, ansioso e visivelmente feliz, a esperava com uma cesta de café da manhã e toda a sinceridade que pode conter um desejo de “feliz aniversário”. Ao se deparar com aquele sorriso tão familiar, quanto querido, ela o enlaçou em um forte abraço, convidando-o para partilharem daquele presente. Naquele instante, uma certeza instalou-se em seu espírito inquieto: nada estragaria aquele dia.
Depois do café da manhã recheado de tudo que Camila mais gostava, ela e o pai rumaram para o escritório.
Lá chegando, Camila foi recebida com três orquídeas sobre sua mesa, um estojo de canetas específicas para finalização de projetos e um pequeno cartão. Neste, as explicações eram dadas: cada flor representava uma década de sua vida e todas elas, apesar das intempéries, haviam sido devidamente finalizadas. A coragem de Camila e, sobretudo, a força que a impulsionava e a fazia terminar com singularidade e determinismo tudo aquilo que começava eram atributos que todos ali admiravam. E era exatamente relatando este fato que o cartão se encerrava. Nas derradeiras linhas, o amor de todos restava estampado em letras de fôrma. E a última assinatura, firmada pela mesma letra que conduzia o texto, como Camila já esperava, era a de Débora, sua sócia e, também, arquiteta.
As duas eram amigas desde a época do colégio e, apesar das inúmeras diferenças que sempre as habitavam, elas se entendiam perfeitamente bem. O que tinha Camila de centrada e firme, principalmente no âmbito profissional, tinha Débora de extrovertida e maleável. Desta forma, confabularam montar um escritório assim que se formassem, plano este que logo se tornou concreto graças à ajuda de Aurélio, pai de Camila e seu eterno incentivador.
Nos primeiros anos de escritório, entretanto, as coisas não foram, de todo, fáceis. É que, se a estrutura física havia sido erguida e de primeira qualidade, a emocional ainda não restava inteiramente firmada nas sócias. Cada uma, justamente naquele momento, passava por uma crise de inconteste gravidade.
O primeiro ano de trabalho coincidiu com a época em que Camila se descobriu atraída por mulheres e isto, a princípio, a deixou um tanto quanto atordoada. Ela não sabia como o pai enfrentaria aquele assunto e Débora, desde a época de faculdade, se mostrava preconceituosa ao extremo quanto ao tema homossexualidade. Tais eventos, somados, cuidaram de intensificar sua angústia. Ela tinha receio de causar sofrimento às duas pessoas que considerava as mais importantes em sua vida e mais: não sabia se continuaria sendo, por ambas, igualmente amada.
Justamente na mesma temporada, Débora havia terminado o noivado de quase dez anos e o fez motivada por uma infeliz descoberta: o noivo a traíra. E o pior: com outro homem. Beirando uma depressão, ela estava prestes a desistir do escritório e aceitar o convite de uma de suas irmãs para ir morar na Alemanha.
Camila bem sabia, desde o começo do namoro, que, no fundo, Débora nem amava verdadeiramente Armando. O relacionamento de ambos tinha por base a carência mútua, a necessidade de companhia constante por ambos fomentada. Paixão, romance, intensidade, isto nunca os povoou e nem mesmo no início, o que era um fato tanto real, quanto notório.
Mas, a maior inquietação da noiva – apenas naquele instante. Camila percebia – não se devia ao fato de ter sido traída, tampouco de ter sido trocada. O que verdadeiramente a incomodava era o evento de, apenas agora, descobrir a homossexualidade do namorado. Assim, classificando seu desejo como “anormal e abominável”, ela abraçou-se desesperada à amiga que, sentindo seu coração se apertar, tanto quanto o acelerar de seu pulso, resolveu: aquela era a hora esperada!
Com a garganta inteiramente seca, prestes a proferir um segredo que, de há muito, lhe ressecava a própria alma, ela olhou Débora firmemente e lhe disse, com os olhos turvos pelas águas:
- Você me acha anormal e abominável?
E foi depois daquela pergunta e, sobretudo, da conseqüente resposta, a qual, gradativamente, ecoou dentro de Débora, que as duas, se já eram amigas, se tornaram ainda mais.
Na seqüência dos dias, todas as crises foram superadas, inclusive as oriundas do escritório, e os contratos mais importantes de suas vidas foram firmados. Eis o principal: o que as consagrava como verdadeiras irmãs, apesar dos pesares.
Estas lembranças, em parte doces, em outras amargas, passaram por Camila com a velocidade de uma bala até que, nos minutos seguintes, sua sala foi invadida por todos que, munidos de uma torta sobre a qual queimavam trinta velas, cantavam animadamente parabéns. Todo ano Camila recebia algo do estilo e se tais demonstrações de carinho já não tinham o poder de surpreendê-la, possuíam, ainda, o de genuinamente alegrá-la.
Depois das comemorações, muito trabalho a esperava. Assim, o resto da manhã transcorreu rapidamente, enquanto ela emergia para dentro de seus projetos, todos mergulhados na tela de seu computador. Ele, nos últimos tempos, vinha sendo seu mais aconchegante refúgio, o local onde se abrigava sempre que a vida lhe parecia vazia ou, simplesmente, sem graça. Entretanto, naquela ocasião, o mergulho se deu, em verdade, por simples obrigação. É que naquele dia, em especial, a fuga não estava em cogitação.
Revestida de entusiasmo, ela retornou a um projeto um tanto quanto complexo que deveria ser, impreterivelmente, terminado e, em virtude disto, sequer deu-se ao luxo de parar na hora do almoço. E não foram poucos os convites que recebeu. O primeiro veio de Débora que, insistente desde sempre, disse-lhe ser um absurdo alguém, no dia do próprio aniversário, não se dar ao direito de um almoço decente entre os amigos. E a constatação veio seguida de uma ameaça:
- Só não ouse sumir mais tarde. Estou organizando uma festa surpresa para você lá em casa, por volta das oito horas.
Acatando a convocação, ela apenas meneou a cabeça no sentido positivo, sem, sequer, atravessar a tela, submersa que estava. E, naquele lago digital, passou o restante do dia, até que o alarme a chamou: dentro de uma hora seria a consulta, há quinze dias marcada.
A imagem da Dra. Ângela Krauss, por si mesma confeccionada e devidamente descrita em seu mais recente conto, a acompanhou durante todo o percurso, este feito da forma mais lenta graças ao trânsito que, àquela hora da tarde, transformava as ruas de Recife num conturbado mar de carros. E foi inevitável rememorar as entrelinhas de seu desejo, devidamente camuflado nas derradeiras linhas de seu texto: o de se permitir a um dia seguinte, depois de suas casuais e vazias noitadas.
Ao estacionar o carro, ela observou externamente a clínica e surpreendeu-se com um fato: o local, de certa forma, se assemelhava ao idealizado e relatado em seu conto. Restava agora, contando com a mesma sorte, adentrar ao consultório e conhecer a médica. O nome dela, entretanto, já se antecipava, estampado que estava em uma das placas: Dra. Ângela Dias. A coincidência dos prenomes, entretanto, não a surpreendeu já que fora por si mesma causada. É que, quando Camila marcou a consulta, antes mesmo de começar a escrever o conto, já sabia como a médica se chamava, inclusive porque era renomada no meio. Assim, o nome da personagem foi escolhido justamente em sua homenagem.
Ao atravessar o jardim e subir os discretos degraus que davam acesso à casa, ela riu ao lembrar-se que aquele cenário, antes mesmo de ser tocado por seus pés, o foi por seu imaginário. Eis o poder de sua tela e, sobretudo, das palavras que, nela, mergulhavam, tanto quanto a autora e os fatos criados. E Camila deliciava-se toda vez que inventava uma “realidade” e, na seqüência de sua vida, terminava por vivenciar algo semelhante ao que, às vezes, até despretensiosamente, articulara. Pois era exatamente o caso.
No consultório, as pacientes eram muitas. Várias mulheres e de todas as idades esperavam: umas inquietas, folheando apressadamente uma revista ou comentando em voz alta com sua vizinha de sofá um fato; outras tranqüilas ou quase anestesiadas, fosse pela espera, fosse pela esperança acalentada. É que aquela clínica também tinha por especialidade a fertilidade e muitas daquelas que ali estavam eram pretensas grávidas.
Entretanto, em meio a tantas pessoas, uma, imediatamente, chamou a atenção da mais nova paciente. Era uma mulher que, nem de longe, se enquadrava nas duas categorias ensaiadas. A moça, que deveria ter também uns trinta anos, nem se mostrava apressada, tampouco quieta. Parecia, isto sim, de uma infelicidade quase palpável. Os olhos de íris clara e de cor incomum, inicialmente, indecifrável pousavam perdidos e vazios em uma página. O texto, para Camila, era presumível, inclusive pela capa: aquela revista, como tantas que ali dormitavam, tinha por conteúdo a maternidade. O que se passaria em sua cabeça, tão bem adornada pelos cabelos lisos e acobreados? O que se passaria, sobretudo, em seu coração, inteiramente desconhecido, apesar de, facilmente, detectado como angustiado? O que se esconderia por trás daquela imagem impassível, tão bonita quanto intrigante? Camila, definitivamente, não sabia responder. Mas, em meio a tantas questões e dúvidas, uma coisa era certa: ela gostaria imensamente de decifrá-la.
Seu devaneio foi interrompido pelo olhar da observadora que, de forma quase feroz, ergueu a vista em sua direção e, arqueando a sobrancelha bem feita, como se lesse seus pensamentos, pediu, ainda que em silêncio, para ser deixada em paz. E Camila, instintivamente, desviou a vista e o desejo, obedecendo ao pedido mudo, ao comando explícito daquele olhar tão límpido, quanto perturbador.
Antes disso, entretanto, a observadora se permitiu a uma última questão: que cor tornava aquela íris tão incomum? Entretanto, como resposta, ela, contrariada, ponderou: seria preciso chegar realmente perto para descobrir, evento que, naquele momento, lhe pareceu tão impossível quanto instigador.
Depois de quase uma hora de espera, a atendente, ao chamá-la, revelou a Camila pelo menos o nome daquela paciente: Ana Maria Furtado.
Então era assim que ela se chamava! E Camila, sem esforço, gravou aquela anunciação, observando de soslaio Ana Maria se levantar e admirando o movimento de seus quadris, ajustados de forma extremamente sensual na calça jeans, enquanto ela caminhava para o consultório.
Durante todo o tempo em que Ana Maria estava sendo atendida, Camila, mesmo sem querer, sentiu-se preenchida de uma estranha expectativa. Ela esperava, não sabia exatamente o quê, mas esperava. Talvez – ponderou enquanto consultava o relógio com as mãos frias – esperasse ver aquela mulher saindo pela porta da sala de Dra. Ângela Dias e presenteando-a com um olhar direto e nitidamente azul, ainda que fosse a última vez que a visse.
Entretanto, para sua surpresa, em mais alguns minutos a porta se abriu e Ana Maria saiu da sala com a cabeça baixa, a expressão consternada e os olhos turvos ainda mais desconhecidos. Certamente não ouvira da médica coisas agradáveis, adivinhou Camila assim que a viu. E, para intensificar seu lamento, a moça atravessou a sala apressadamente, passando por perto de Camila sem sequer fazer menção de olhá-la, quanto mais diretamente, como desejara. E assim, ao alcançar o trinco da porta e abri-la com força, tudo o que Ana Maria deixou para a expectadora foi seu perfume. E este, Camila logo soube, jamais seria esquecido.
Ao ouvir seu próprio nome sendo chamado pela atendente, Camila ergueu-se e, sem ânimo algum, entrou no consultório de Dra. Ângela Dias que, sentada e de cabeça baixa, a aguardava, desinteressante e em nada semelhante à sua personagem.
No decorrer da consulta, ao contrário do que em seu conto acontecia, Camila manteve-se absolutamente distante. Seu pensamento havia ficado do lado de fora e sua curiosidade sobre a médica simplesmente dissipou-se, assim como o perfume daquela que, minutos atrás, atravessara a porta.
Mas a vida real, assim como a inventada por aqueles que se aventuram à ficção, também surpreende. E, por ironia ou acaso, depois da consulta, quando Camila atravessou o jardim da clínica chegando ao seu carro, a primeira coisa que viu foi um imenso arranhão.
E o carro era novo! E caro! Foi tudo o que se passou em sua cabeça que, àquela altura, já fazia menção de doer, explodindo de exclamações. Imediatamente ela lembrou-se da premonição com a qual começara o dia: a de que nada o estragaria! E, na seqüência da ironia, extremamente irritada, ela rodeou o automóvel, verificando o tamanho do estrago e praguejando contra o imbecil que havia feito aquela barbaridade e o pior: estragado sim o dia do seu aniversário! No decorrer de seu exame, perguntou-se como alguém havia conseguido arrastar o próprio carro no seu, numa manobra tão absurda e inusitada quanto aquela?
Sem resposta, baixou a cabeça respirando fundo, enquanto sentia a veia pulsando em sua fronte. Foi então que, focando o chão, viu um pequeno bilhete que, sorrateiramente, escorregara do capô do carro, onde havia sido posto pelo culpado.
Apanhando-o apressadamente, Camila iniciou a leitura com a mesma velocidade. Mas foi preciso ler e reler mil vezes para acreditar no que via, para conceber o recado que ali jazia e que, com a assinatura, fez seu coração descompassar-se de vez e agradecer o fato de seu carro ter sido ferozmente abalroado:
Desculpe-me. Infelizmente causei este estrago em seu carro. Pretendo assumir integralmente o prejuízo. Não pude esperar, mas deixo meu telefone para contato: 9229 5555.
Ana Maria Furtado
Por alguns minutos, Camila encostou-se no carro e limitou-se a contemplar aquela letra tão bonita quanto a dona. E assim ficou até que seu coração, aos poucos, começou a voltar ao normal. Ainda boquiaberta, agradeceu ao destino: ele, sem dúvidas, havia lhe garantido um reencontro e nem fora preciso inventar qualquer pretexto, descobrir os lugares que Ana Maria costumava freqüentar ou tentar arranjar uma forma de contatá-la. Seu telefone estava bem ali e os números grafados partiam de seu próprio punho! E foi este seu maior presente de aniversário.
E, para intensificar novamente as batidas de seu coração, Camila percebeu – ou seria apenas sua imaginação? – enquanto dobrava o bilhete que, aquela que o assinou, involuntariamente, deixou vestígios de seu perfume no papel que, minutos antes, teve nas mãos.
Com o coração novamente aos saltos, ela entrou no carro que nunca lhe pareceu tão inteiro. Em verdade, Camila bem sabia que aquela sensação de completude vinha dela. E, tomada de euforia, enquanto arrancava na primeira marcha impingindo velocidade extrema ao veículo, ela desligou o ar-condicionado e ousou abrir as janelas, deixando que o vento açoitasse seu rosto, assim como a alegria açoitava seu espírito.
Foi com esta mesma alegria que Camila, naquela noite, depois da festa de aniversário, chegou em casa. E, na seqüência das horas, sem sequer percebê-las, a escritora atravessou a madrugada e a tela iluminada de seu laptop, indo reencontrar as personagens de seu conto, dando a ele continuidade.
De manhã, depois de poucas horas de sono, a primeira coisa que Camila observou ao acordar foi o celular. Nele, viu que horas eram. Depois de espreguiçar-se lentamente, sentindo a musculatura de seu corpo alongar-se, ela procurou na agenda o nome que em momento algum havia saído de sua mente: Ana Maria Furtado. Ali estava ele, logo no início da agenda eletrônica, no visor daquela outra tela. E onde estaria ela?
Nos minutos seguintes, sem erguer-se da cama, Camila fechou os olhos e, enquanto sentia o aconchego do colchão e das cobertas, tentou adivinhar o que Ana Maria, naquele instante, deveria estar fazendo. Quem a acompanhava? Quem se fazia próximo o suficiente para tocá-la? Para ouvir sua voz e sentir suas mãos? Para sentir o cheiro de seu perfume ou de sua pele?
Entretanto, o alarme da cabeceira a resgatou de seu devaneio e ela, tomada de alguma lucidez, questionou-se: o que estava acontecendo? Que loucura era aquela? Ela nunca havia se flagrado pensando tanto em alguém, quanto mais em uma criatura com a qual sequer havia trocado uma frase! Definitivamente aquilo não tinha cabimento. Não combinava com sua postura racional e altiva, com seu desapego. E foi diante desta última palavra que Camila assustou-se: desapego! Talvez algo dentro dela houvesse, de fato, mudado. E ela agora constatava: não queria mais se desapegar daquela história que tinha início do outro lado de sua tela, especificamente no avesso dela. E mais: talvez aquele novo sentimento responsável por sua mudança tivesse um nome bem definido e bastante complicado de ser experimentado: paixão.
Aturdida com sua descoberta, ela, num rompante, pegou novamente o celular e o desligou. Precisava ficar mais um pouco ali, no seu quarto, no seu aquário, sem contato com o mundo externo, apenas em contato com seu mundo interno. Precisava, isto sim, digerir aquela nova realidade em sua vida, cuja causa também possuía um nome e bem bonito: Ana Maria. Assim, nas horas subseqüentes, ela não mais o procurou no visor. Não se sentia preparada para ouvir a voz daquela que, num simples erguer de olhos, totalmente a habitou.
Mas o dia prometia. A quantidade de projetos a serem concluídos e obras a serem visitadas era tamanha e Camila, de certa forma, até agradeceu àquele fato. O corre-corre faria com que ela suavizasse, nem que fosse pelo cansaço, sua inquietude antes de ligar para Ana Maria. E, pensando assim, ela, finalmente, ergueu-se da cama, tomou uma ducha de água fria, vestiu-se de forma que se sentisse inteiramente segura e bonita e, como de hábito, tomou um café extremamente forte antes de sair de casa.
Porém, ao chegar no carro e ver o arranhão na pintura, estancou o passo, sentindo um certo nervosismo povoando-lhe o estômago. Era pura e simples ansiedade. Chateada com seu corpo que, feito o de uma adolescente, vinha lhe ensinando o que era sentir, literalmente, na pele, o fato de estar apaixonada, Camila olhou-se no retrovisor, antes de dar a partida.
Fixando o olhar nos próprios olhos, muito bem maquiados, de cílios delineados e compridos, ela riu de si mesma e de sua bobagem. Na seqüência daquele sorriso partilhado com o espelho, ela ainda lhe confessou:
- Essa aí ainda é a Camila que você conhece, a que sabe envolver, a que sabe jogar, a que sabe descartar, a que sabe, sobretudo, desvencilhar-se daquilo que lhe causa qualquer tipo de dor!
E assim, tentando se convencer de que não havia porque ter medo, ela tomou a direção com as mãos, fingindo manter o mesmo controle sobre o curso de sua vida. Mas, para lhe provar o contrário, seu telefone tocou.
O número desconhecido a fez olhar o visor com curiosidade. Imaginando tratar-se de algum cliente ela atendeu, falando secamente um “alô”. E, na seqüência, ouviu:
- Camila?
Era uma voz bonita a que lhe falava e ela simplesmente respondeu:
- Sim.
Dali em diante foi preciso estacionar novamente, pois a voz logo anunciou sua dona:
- Meu nome é Ana Maria... Ana Maria Furtado.
Camila simplesmente não acreditava no que estava ouvindo, mas, na seqüência da explicação, a voz tornava-se tão melodiosa e concreta que ela simplesmente acreditou:
- Estávamos ontem no consultório de Dra. Ângela Dias. Eu deixei um bilhete no seu carro, mas, como você não me ligou, imaginei que alguém o havia tirado.
E assim, enquanto o coração de Camila parecia querer saltar pela boca, a outra explicou calmamente: ao causar o arranhão no carro, Ana Maria logo supôs que o mesmo era de alguma paciente e retornou à clínica, onde a atendente, depois de consultar o manobrista, disse que, salvo engano, o veículo pertencia à moça que acabara de entrar na sala da médica. Na dúvida de ambas, a culpada resolveu deixar um bilhete com seu número e esperar uma ligação. Porém, como esta não veio, socorreu-se do número fornecido na clínica e antecipou-se, ligando para Camila.
Com poucas e escolhidas frases, Camila propôs um encontro na oficina de um conhecido seu, o que foi prontamente aceito pela outra interlocutora, que anotou cuidadosamente o endereço indicado. No dia seguinte elas se encontrariam. Antes de desligar, entretanto, docemente Ana Maria articulou:
- Desculpe-me o transtorno e obrigada pela atenção.
Mas Camila respondeu apenas internamente: eu é que lhe agradeço por me resgatar de meu conto e me fazer habitar, em carne, osso e espírito, este outro lado da tela, onde, finalmente, respiro.
E assim, antes de o telefone ficar mudo, tudo o que Ana Maria escutou foi uma desconhecida respirando fundo.
Três horas da tarde e Camila já estava impaciente. Andando por entre os carros estacionados na oficina, ela os olhava, mas não os via. Via tão somente a imagem que guardara de Ana Maria. Lembrava-se de suas mãos, de seus olhos, de seu andar, de seu perfume e agora, também, de sua voz. Aos poucos ela ia somando informações e detalhes daquela mulher que a atraía tanto quanto a assustava. Aliás, ponderava Camila, estava era assustada consigo mesma!
Suas divagações foram interrompidas por Ítalo que, saindo do escritório, caminhou em sua direção, entregando-lhe o orçamento. Enquanto Camila consultava os preços indicados, sentiu uma mão pousar levemente em seu ombro. Ao virar-se, surpreendeu-se refletida na ires dos olhos claros que a fitavam com uma interrogação:
- Você é Camila, não é?
Um “sim” foi tudo o que ela conseguiu articular diante de Ana Maria que, pedindo desculpas pelo atraso, olhou curiosa para o orçamento, pedindo permissão para verificar o tamanho do estrago, como a própria classificou, enquanto ensaiava um sorriso. Camila estendeu o papel e, por um segundo, as mãos das duas se tocaram, fazendo Ana Maria, instintivamente, olhá-la no fundo dos olhos.
Nesse segundo roubado do tempo, Camila sentiu como se tudo ao seu redor houvesse parado e seu coração também estancasse, suspenso pelo olhar que lhe fora lançado. E assim, como se prolongasse as sensações, ela experimentou pela primeira vez a quentura da mão de Ana Maria e o leve roçar de sua pele, que lhe pareceu suave desde o primeiro momento.
Alheia ao turbilhão de sentimentos que povoavam o corpo de Camila e, sobretudo, seu espírito, Ana Maria limitou-se a recuar a mão, detendo-se no orçamento. Enquanto isso, Camila sentia-se estúpida, imatura e insegura. Nem de longe reconhecia aquela criatura que, agora, habitava em seu corpo, tão diferente da Camila que estava acostumada a conduzir as situações e, sobretudo, a articular cada frase, cada encontro, cada nuança de seus contos e de seus relacionamentos furtivos.
Pondo os óculos escuros, ela respirou fundo e resolveu assumir seu antigo papel. Olhando para Ana Maria, questionou-a de forma fria e seca:
- E então, como você pretende fazer?
- Como eu lhe disse, pretendo arcar com o prejuízo e lhe peço novamente desculpas. Por mim, podemos começar o serviço.
Depois de um leve aceno de cabeça, Camila deu as costas e foi consultar Ítalo, que lhe deu três horas, no máximo, como prazo para concluir os reparos.
Enquanto isto, do lado de fora do escritório, Ana Maria observava através do vidro a mulher que, de forma firme e resoluta, acertava como seria feito o serviço. A distância a permitia visualizar Camila por outro ângulo. E, pela primeira vez, ela a achou bonita. Mas alguma coisa nela lhe causava estranheza, algo destoava em seu corpo de formas extremamente femininas, em suas roupas impecavelmente escolhidas. Porém, naquele segundo que, para Ana Maria, também pareceu roubado do tempo, ela não soube responder exatamente o quê lhe intrigava naquela que observava.
Saindo do escritório em passos firmes e harmoniosos, Camila foi ao encontro de Ana Maria, explicando que ficaria ali esperando o conserto, mas que ela já poderia ir embora. Olhando-a nos olhos, Ana Maria meneou a cabeça como se concordasse e encaminhou-se para o escritório, enquanto Camila seguiu, com o olhar, seus passos.
Encostada no carro, Camila assistiu, também através do vidro, Ana Maria preenchendo um cheque, como se estivesse totalmente alheia ao fato de ser observada e inteiramente focada no que fazia. Porém, ao destacá-lo, antes de entregá-lo nas mãos de Ítalo, Ana Maria olhou na direção da outra, séria e contida, como se estivesse o tempo todo sabendo que era analisada. E a expectadora, sem graça, desviou o olhar, enquanto sentia o coração descompassado.
Mas Ana Maria não fez o mesmo e sem tirá-la de foco, caminhou olhando-a intensamente e desconcertando-a de vez. Cruzando os braços e firmando posição de alerta, Camila desencostou-se do carro, preparando as mãos para cumprimentar Ana Maria numa formal despedida. Mas as mãos frias foram guardadas, pois a outra, sem fazer menção de se despedir, convidou:
- Toma um café comigo?
E mais um “sim”, talvez o mais surpreso de todos, foi dito.
A tarde estava chuvosa e o céu completamente cinza. Realmente um dia perfeito para um bom café, ainda que fosse na esquina. Esta foi a sugestão de Ana Maria, que era cliente de um posto de gasolina onde sempre tomava um expresso quando abastecia. E o posto ficava logo ali, no final da rua, apontou a moça de olhos desconhecidos, cuja cor, naquele instante, lembrou a Camila exatamente um dia de chuva.
Assim, enfrentando o vento e aquele verdadeiro ensaio de tempestade, as duas atravessaram a rua correndo até o carro de Ana Maria, que estava estacionado logo do outro lado. E aquele pequeno percurso foi o suficiente para que ambas entrassem no veículo bastante molhadas.
Com o rosto vermelho pelo frio e a respiração entrecortada, Ana Maria olhou para Camila, ensaiando um sorriso, ao qual a outra retribuiu, um tanto quanto sem graça. A falta de intimidade crescia naquele espaço tão contido. E imitando aquele adjetivo, Camila tentava, também, se conter. Não queria que a outra notasse sua inquietação.
Sem trocarem nenhuma palavra, as duas aproveitaram o percurso para recobrar a respiração. O perfume de Ana Maria tornara-se mais intenso ainda dentro do carro e Camila, mesmo sem querer, sentia-se parcialmente entorpecida, enquanto observava cada movimento da outra na direção. As mãos alvas, de unhas bem feitas e longas, chamavam ao toque e Camila, por segundos, imaginou como seria senti-las entre as suas. Foi então que, açoitando sua visão, a observadora se deparou com uma aliança de ouro. E aquele objeto tão simples, ao reluzir, atormentou-a tanto que a fez prender a respiração.
Chegando no posto, as duas se encaminharam para a loja de conveniência. O ar condicionado somado ao frio do dia tornava o ambiente ainda mais propício para um café extremamente quente. Com duas fichas na mão, Ana Maria disse para Camila sentar-se em uma das mesinhas, enquanto ela iria buscar os cafés na máquina. E assim, logo voltou com dois expressos curtos e fortes, como estava acostumada a escolher.
A loja era pequena, mas bastante aconchegante. As prateleiras eram de madeira escura, em contraste com o piso alvo e muito bem polido. Os vidros que compunham as paredes emprestavam ao local um certo ar futurista, que se contrapunha ao clima intimista proporcionado pelas mesinhas que, harmoniosas, ficavam num canto mais reservado. E assim, o cheiro do café, associado àquele peculiar espaço, tornava o ambiente extremamente acolhedor, ainda mais para os amantes daquele líquido que, sorvido nos dias de frio, parecia ainda mais saboroso.
Àquela hora da tarde as mesinhas estavam vazias e, escolhendo uma que ficava no canto esquerdo, abrigada num verdadeiro refúgio viabilizado por uma esquadria de madeira que rebaixava o teto, Camila sentou-se e ficou no aguardo. Ela ainda não estava acreditando no que lhe acontecia: ela e Ana Maria, sozinhas, num final de tarde chuvoso, munidas de um bom café. Aquele era, sem dúvidas, um bom começo. Mas logo o peso da aliança que a outra trazia nos dedos a resgatou de seu devaneio. E ela continuava a reluzir, enquanto a moça segurava os expressos nas mãos, caminhando em sua direção.
Depois do primeiro gole, entre a densidade fumegante advinda do líquido, as duas se olharam e Camila tentou, fingindo uma calma que não sentia, iniciar um diálogo. E assim, desculpou-se pelo mau jeito com que tratara Ana Maria ao telefone, dizendo-se estar extremamente ocupada no dia de sua ligação. E a outra, olhando-a atentamente, como se a invadisse e dissipasse sua calma, ria com o olhar estreito, como se adivinhasse seu desconcerto.
As desculpas foram aceitas, até porque, como bem lembrou Ana Maria, Camila possuía todos os motivos do mundo para tratá-la de forma ríspida. Afinal, ela havia batido em seu carro, exclamava Ana Maria, visivelmente constrangida com o fato. Mas Camila logo a tranqüilizou, dizendo que nunca em sua vida havia encontrado uma pessoa tão solícita, ainda que “culpada”. Disse também que nunca havia sido tão agradável ser vítima de alguém, até porque esse alguém, além de pagar o estrago, trazia café quente e em dia de chuva. E finalizou a frase com um sorriso amistoso abrigado entre lábios fartos e perfeitamente delineados, como logo admirou a outra. E as duas, pela primeira vez, riram juntas, ambas mais relaxadas.
Aos poucos, enquanto a chuva tornava-se mais intensa, a tensão que pairava entre ambas era amenizada. E assim, o segundo, o terceiro e o quarto café foram servidos e sorvidos, enquanto as duas se descobriam, ora com silêncios, ora com palavras.
Camila, a cada gole, aquecia seu espírito, já menos agoniado pela presença de Ana Maria e acalentado pelo olhar intenso que a outra lhe direcionava do outro lado da mesa cada vez que a ouvia. Mais segura de si, a arquiteta ensaiava falar um pouco sobre sua vida, escolhendo cuidadosamente alguns fatos que julgava mais interessantes e encobrindo aqueles que não condiziam com o momento. E assim, desnudava o que havia de mais envolvente em si, artifício do qual estava acostumada a se valer quando queria impressionar e seduzir.
Enquanto isto, Ana Maria, discretamente, também a observava. Gostava do movimento de suas mãos, sempre firmes, apesar de gentis; gostava de seus olhos intensos e de cílios longos; gostava de sua boca, de sua voz e, sobretudo, de sua forma de falar. Definitivamente, Camila era uma mulher diferente das que estava acostumada a lidar, concluía Ana Maria curiosa, muito embora ainda não soubesse indicar de forma exata o que a tornava tão peculiar.
Depois foi a vez de Ana Maria falar sobre si, mas, ao contrário da outra, os fatos escolhidos e elucidados não ostentavam o atributo de “interessantes” e sim de “tristes”. Com a voz embargada e expressões marcadas pela frustração, ela contou que estava casada há cinco anos e, apesar da vontade de ambos, não conseguia engravidar. Estava ali, portanto, o motivo de sua consulta no dia do incidente com o carro. Consternada, relatou ainda um aborto ocorrido há seis meses e o vazio que a consumia desde então. E de vazios Camila bem entendia, pensou a ouvinte, enquanto escutava Ana Maria.
Aquelas palavras segredadas e, sobretudo, o olhar turvo que, naquele instante, nublava o semblante de Ana Maria fizeram Camila querer abraçá-la. Mas, diante da impossibilidade de fazê-lo, ela limitou-se a lhe estender as mãos ainda frias. Estas sim foram, da forma que puderam, abraçadas pelas mãos quentes de Ana Maria, que não hesitou em tomá-las de forma justa, enquanto a agradecia.
Quando deram por si, as três horas já haviam transcorrido de há muito! Surpresa, Ana Maria observou o relógio na parede indicado por Camila com o olhar. Porém, antes de erguerem-se, Ana Maria propôs outros encontros.
Deveriam existir muitos outros cafés a serem descobertos na cidade do Recife, respondeu Camila concordando prontamente com a idéia. E, naquele instante, por ironia ou acaso, num minuto de silêncio partilhado, as duas respiraram fundo. Foi quando uma música em especial chegou aos ouvidos de ambas advinda do som ambiente.
A primeira frase, cantada por Marina Lima, ecoou dentro de Camila contundente a transformar-se em fato. E assim ela dizia: vou seguir o chamado e onde é que vai dar, e onde é que vai dar? Não sei...
Ela, de fato, não sabia. Sabia apenas que ia sim seguir O Chamado. Era este o título da música que, tomando Camila de surpresa, por ser tamanha a coincidência, a fez, mesmo sem querer, sorrir. E Ana Maria, curiosa, logo a questionou:
- De onde vem esse sorriso?
- De um tempo muito bom de minha vida que foi embalado por esta mesma melodia...
E esta foi a resposta dada que, entretanto, não convenceu àquela que questionava, observadora como sempre. Mas, mesmo desconfiada, Ana Maria nem de longe suspeitou que o tempo bom ao qual Camila se referia era exatamente o presente.
Já sozinha, enquanto voltava para a casa, Camila, exultante de alegria, resolveu estacionar o carro na avenida que ladeava a praia de Boa Viagem. O mar, logo adiante, se mostrava por demais bravio, deixando suas ondas arrebentarem forte maculando a tranqüilidade das areias que o margeavam. Anestesiada, Camila, com as janelas inteiramente vedadas, percebia que tanto fora quanto dentro de si havia uma intensa tempestade. E ali, durante alguns minutos, tomada da mais genuína felicidade, passou a observar a chuva que deslizava pelo vidro. E pela primeira vez em sua vida ela assistia o correr daquelas águas sem a necessidade de imaginá-las inundando-a por dentro. É que, naquele momento, não havia qualquer vazio a ser preenchido.
O AVESSO DA TELA (Capítulo III)
CAPÍTULO III
CONTO E REENCONTRO
O primeiro pacto selado entre Camila e Ana Maria logo foi estipulado: uma vez por semana elas se encontrariam em algum café de Recife, escolhido, de preferência, dentre os mais peculiares e tranqüilos. E assim, a cada encontro pretendiam provar novos grãos e, ao mesmo tempo, sorverem novos sabores e detalhes delas próprias que, cúmplices em gostos e histórias, aos poucos, se descobriam.
Nos dias que precederam o próximo café, Camila não mais andava pelas ruas de Recife. Ela, nos dizeres de Clarice Lispector, praticamente flutuava por cada uma delas, vivenciado como bem definiria a escritora sua Felicidade Clandestina, aquela que antecede os fatos e é experimentada gradativamente, a cada passo que distava do tão esperado encontro.
E foi naquela mesma semana que seu conto foi transformado no primeiro capítulo de um livro: O Avesso da Tela. E, na seqüência dos dias, ela dedicou-se ao segundo. Camila queria mais, queria divagar pelas ruas, também, daquela história inventada, queria dar à Camila, sua personagem, os mesmos prazeres que, em carne, vivia. Para tanto, diante da tela iluminada, atravessando-a durante as madrugadas, ela mergulhava naquele lago digital trocando o sono pena vigília.
E, indo ao fundo, fez a Camila inventada ligar para a Dra. Ângela Kraus e as duas marcaram, também, um encontro em um café qualquer da vida, o qual, naquele instante, a escritora não se preocupou em descrever. Mais importante do que definir o ambiente freqüentado por suas personagens era relatar o espaço que, amplo e cálido, se formava dentro de ambas, verdadeiro abrigo onde elas, em corpo e espírito, se permitiam a um segundo encontro.
Assim, as duas, na tela da que escrevia, sorveram sem pressa um café expresso curto e forte, igual ao que Camila provara com Ana Maria. E na seqüência de uma tarde chuvosa inspirada na que vivera, a paciente e a médica conversaram sobre suas vidas, sobre seus medos, sobre seus planos e, para a surpresa da personagem principal, a Dra. Ângela Krauss confessou sua necessidade de mudar de vida, de despir-se de sua máscara, de desnudar-se diante do mundo e experimentar, verdadeiramente, ser o que sempre fora. Tudo isto em virtude da mulher ousada e apaixonante que, naquele momento, estava sentada à sua frente e que, por ironia da vida, era uma de suas pacientes.
Surpresa, a Camila inventada admirava os olhos verdes que, misturados à fumaça que advinha do café sorvido, pareciam querer, também, bebê-la e, desta vez, sem o mesmo receio de outrora. E aos poucos, a Dra. Ângela Krauss tornava-se ainda mais apaixonante do ângulo criado pelas mãos hábeis daquela que escrevia.
Mas, no dedo anular da médica, naquele instante, a escritora ainda vislumbrava uma aliança de ouro, a qual, entretanto, no texto não foi descrita. É que a escritora não queria quebrar o encanto daquele diálogo sem voz, povoado de luar, que apenas dois olhares apaixonados são capazes de travar mesmo à luz do dia.
Na madrugada que finalmente antecedia a data do encontro real, o segundo capítulo foi encerrado com um encontro de corpos descrito virtualmente por Camila. E na tela plana de seu laptop os relevos dos corpos da médica e da personagem, novamente, se misturaram, enquanto as duas se amaram, desta vez, sob uma enorme cama macia.
O sol despontou intenso e encontrou o rosto de Camila por volta das oito horas da manhã, acordando-a para vivenciar com igual intensidade aquele dia. Ao lavar o rosto e observar-se no espelho, ela ensaiou mais um diálogo com aquele eterno amigo dizendo-lhe com um largo sorriso:
- Hoje esta que você vê é a mais inteira das Camilas, a mais verdadeira, a que nem eu mesma conhecia!
E se ao espelho fosse dado o poder de responder, certamente ele lhe diria um “prazer em conhecê-la!”, pois ela estava linda.
Às três horas da tarde Camila atravessou os portões do Castelo Brennand. Reduzindo a velocidade do veículo, que passou a vibrar ao tocar a estrada reta de paralelepípedos, ela sentia seu coração, também, vibrando intensamente! E sua vontade era a de desobedecer às placas que sinalizavam a velocidade máxima permitida e correr alucinadamente para que pudesse, o mais rápido possível, mergulhar nos olhos de chuva de Ana Maria.
O Castelo Brennand era um lugar magnífico. Distante do centro da cidade, ele fora construído por Ricardo Brennand num reduto verde, entrecortado por alguns córregos, povoado de variadas árvores, com o relevo levemente enladeirado, sobre o qual o céu sempre parecia mais azul e as flores, mais vivas.
Ali, o renomado pernambucano ergueu, em formas e estilo, um pequeno castelo medieval e o fez com uma finalidade tão peculiar quanto a própria construção: abrigar sua coleção de armas, todas extremamente raras e antigas, adquiridas em suas numerosas viagens pelo mundo. E talvez este fosse o detalhe mais interessante do lugar: ele fora planejado pelo dono atendendo a um pedido da esposa, que não encontrava mais local em casa para abrigar aquela coleção quase infinita.
Na cadência do bom gosto, o esposo construiu, vizinho ao castelo, um museu onde tinha lugar sua outra coleção: a das pinturas de Frans Post, ao qual foi dada a incumbência de ilustrar o Brasil Colônia durante a estada dos Holandeses nestas terras. Assim, seus quadros serviram como verdadeiros diários, onde, com as tintas de seu talento e de sua aquarela, ele elucidou cada recanto recém descoberto da Nova América.
Assim, tanto o museu quanto o castelo, cercados das mais verdes gramas, adornados pelas sombras de imensos eucaliptos, embalados pelo som de um singelo riacho, pareciam povoados de encanto. Ali, o tempo se fazia suspenso e o passado, aproveitando o ensejo, regressava ao presente fazendo-o especial para qualquer visitante.
E, para completar a perfeição daquela pitoresca tela, o proprietário, com a sensibilidade de sempre, cuidou ainda de construir um café, este tão peculiar quanto o restante do lugar.
O refúgio dos amantes daquele líquido escuro e saboroso ficava no jardim que ladeava o museu, especificamente à esquerda. Ali, algumas mesinhas foram harmoniosamente organizadas em uma enorme varanda que, acompridada feito um corredor, deixava parte de seu encanto ao ar livre e a outra parte coberta. Na frente das mesas um pequeno balcão dava suporte às máquinas de café expresso e às vitrines dos pães de queijo e das tapiocas, ambos feitos na hora.
E era justamente ali que Ana Maria esperava, absorta em pensamentos, lembrando-se do olhar de Camila, que lhe pareceu tão escuro e denso quanto o café que pretendia tomar. E como se reproduzisse a cena que já habitava em sua mente, logo a dona dos olhos chegou, resgatando Ana Maria de seu devaneio e prendendo-a com o olhar intenso que, imediatamente, lhe lançou.
As duas sorriram ao se verem e o sorriso aumentava ao passo que a distância diminuía. E assim, finalmente, se encontraram num abraço que, apesar de mútuo, surpreendeu a ambas de tão saudoso e apertado. Parecia que se conheciam há tanto tempo! E, também mutuamente, comentaram: aquele era, de fato, um reencontro, no sentido mais amplo da palavra e do sentimento.
E assim, enlevadas, sentaram-se uma de frente para a outra, se conhecendo e, ao mesmo tempo, reconhecendo. As palavras mal cabiam entre os sorrisos e, apesar da amenidade dos assuntos, tudo parecia intenso. E no ritmo da música que, sequer, tocava, ambas atenderam a cada chamado que era feito em palavras, em gestos, em olhares, em pensamentos. E seguiram a letra, estrofe por estrofe, pouco se importando aonde iriam dar aquelas silenciosas promessas.
E com a sede de quem tem fome, sorveram vários cafés naquela tarde nem de longe nublada, onde só havia espaço para o sol que irradiava em ambas. Para completar o passeio, depois de perderem as contas dos expressos, resolveram caminhar um pouco pelo castelo, onde imaginaram se o encontro primeiro das duas viria de outra vida, talvez tão antiga quanto as peças que ali disputavam espaço.
E a conclusão pareceu extremamente clara para as duas: elas, certamente, possuíram outros corpos, dentro dos quais seus espíritos sempre foram afins. E, bem por isto, venciam o tempo e os espaços, viabilizando novamente um encontro para permanecerem unidos.
Naquele instante e, sobretudo, naquele novo caminho que iniciavam, enquanto se despediam do castelo e iam buscar seus carros, por muito pouco não caminharam de mãos dadas.
No estacionamento, que formava um círculo gigante adornado com um denso gramado onde palmeiras imperiais se erguiam e farfalhavam ao mínimo vento, o luar já pousava iluminando os paralelepípedos, deixando aquele cenário tão bonito quanto envolvente. Por acaso, os carros das duas eram os únicos que restavam e estavam parados lado a lado, feito elas naquele momento. A coincidência, assim que notada, despertou um sorriso partilhado. E, tomadas pela leveza da brisa que por ali passava, elas se olharam demoradamente, ensaiando a contragosto uma despedida.
Aproximando-se lentamente, Camila tomou as mãos de Ana Maria entre as suas e, sem dizer-lhe nada, beijou-lhe a face, testando com sua boca a textura daquela pele branca, que parecia mais iluminada devido à luz da lua. E o beijo, ousado e doce, foi dado bem próximo à boca da outra.
De início, Ana Maria assustou-se com a atitude de Camila, mas em um segundo o receio dissipou-se, dando espaço a um suspiro longo e denso.
Quando os lábios, suavemente, se afastaram de seu rosto, o corpo de Ana Maria tremia por inteiro e ela, novamente assustada, apertou as mãos de Camila com força, enquanto se afastava bruscamente. E assim, também sem dizer nada, entrou no carro e partiu o mais rápido que pôde, deixando para trás seu perfume, agora misturado ao das flores.
CONTO E REENCONTRO
O primeiro pacto selado entre Camila e Ana Maria logo foi estipulado: uma vez por semana elas se encontrariam em algum café de Recife, escolhido, de preferência, dentre os mais peculiares e tranqüilos. E assim, a cada encontro pretendiam provar novos grãos e, ao mesmo tempo, sorverem novos sabores e detalhes delas próprias que, cúmplices em gostos e histórias, aos poucos, se descobriam.
Nos dias que precederam o próximo café, Camila não mais andava pelas ruas de Recife. Ela, nos dizeres de Clarice Lispector, praticamente flutuava por cada uma delas, vivenciado como bem definiria a escritora sua Felicidade Clandestina, aquela que antecede os fatos e é experimentada gradativamente, a cada passo que distava do tão esperado encontro.
E foi naquela mesma semana que seu conto foi transformado no primeiro capítulo de um livro: O Avesso da Tela. E, na seqüência dos dias, ela dedicou-se ao segundo. Camila queria mais, queria divagar pelas ruas, também, daquela história inventada, queria dar à Camila, sua personagem, os mesmos prazeres que, em carne, vivia. Para tanto, diante da tela iluminada, atravessando-a durante as madrugadas, ela mergulhava naquele lago digital trocando o sono pena vigília.
E, indo ao fundo, fez a Camila inventada ligar para a Dra. Ângela Kraus e as duas marcaram, também, um encontro em um café qualquer da vida, o qual, naquele instante, a escritora não se preocupou em descrever. Mais importante do que definir o ambiente freqüentado por suas personagens era relatar o espaço que, amplo e cálido, se formava dentro de ambas, verdadeiro abrigo onde elas, em corpo e espírito, se permitiam a um segundo encontro.
Assim, as duas, na tela da que escrevia, sorveram sem pressa um café expresso curto e forte, igual ao que Camila provara com Ana Maria. E na seqüência de uma tarde chuvosa inspirada na que vivera, a paciente e a médica conversaram sobre suas vidas, sobre seus medos, sobre seus planos e, para a surpresa da personagem principal, a Dra. Ângela Krauss confessou sua necessidade de mudar de vida, de despir-se de sua máscara, de desnudar-se diante do mundo e experimentar, verdadeiramente, ser o que sempre fora. Tudo isto em virtude da mulher ousada e apaixonante que, naquele momento, estava sentada à sua frente e que, por ironia da vida, era uma de suas pacientes.
Surpresa, a Camila inventada admirava os olhos verdes que, misturados à fumaça que advinha do café sorvido, pareciam querer, também, bebê-la e, desta vez, sem o mesmo receio de outrora. E aos poucos, a Dra. Ângela Krauss tornava-se ainda mais apaixonante do ângulo criado pelas mãos hábeis daquela que escrevia.
Mas, no dedo anular da médica, naquele instante, a escritora ainda vislumbrava uma aliança de ouro, a qual, entretanto, no texto não foi descrita. É que a escritora não queria quebrar o encanto daquele diálogo sem voz, povoado de luar, que apenas dois olhares apaixonados são capazes de travar mesmo à luz do dia.
Na madrugada que finalmente antecedia a data do encontro real, o segundo capítulo foi encerrado com um encontro de corpos descrito virtualmente por Camila. E na tela plana de seu laptop os relevos dos corpos da médica e da personagem, novamente, se misturaram, enquanto as duas se amaram, desta vez, sob uma enorme cama macia.
O sol despontou intenso e encontrou o rosto de Camila por volta das oito horas da manhã, acordando-a para vivenciar com igual intensidade aquele dia. Ao lavar o rosto e observar-se no espelho, ela ensaiou mais um diálogo com aquele eterno amigo dizendo-lhe com um largo sorriso:
- Hoje esta que você vê é a mais inteira das Camilas, a mais verdadeira, a que nem eu mesma conhecia!
E se ao espelho fosse dado o poder de responder, certamente ele lhe diria um “prazer em conhecê-la!”, pois ela estava linda.
Às três horas da tarde Camila atravessou os portões do Castelo Brennand. Reduzindo a velocidade do veículo, que passou a vibrar ao tocar a estrada reta de paralelepípedos, ela sentia seu coração, também, vibrando intensamente! E sua vontade era a de desobedecer às placas que sinalizavam a velocidade máxima permitida e correr alucinadamente para que pudesse, o mais rápido possível, mergulhar nos olhos de chuva de Ana Maria.
O Castelo Brennand era um lugar magnífico. Distante do centro da cidade, ele fora construído por Ricardo Brennand num reduto verde, entrecortado por alguns córregos, povoado de variadas árvores, com o relevo levemente enladeirado, sobre o qual o céu sempre parecia mais azul e as flores, mais vivas.
Ali, o renomado pernambucano ergueu, em formas e estilo, um pequeno castelo medieval e o fez com uma finalidade tão peculiar quanto a própria construção: abrigar sua coleção de armas, todas extremamente raras e antigas, adquiridas em suas numerosas viagens pelo mundo. E talvez este fosse o detalhe mais interessante do lugar: ele fora planejado pelo dono atendendo a um pedido da esposa, que não encontrava mais local em casa para abrigar aquela coleção quase infinita.
Na cadência do bom gosto, o esposo construiu, vizinho ao castelo, um museu onde tinha lugar sua outra coleção: a das pinturas de Frans Post, ao qual foi dada a incumbência de ilustrar o Brasil Colônia durante a estada dos Holandeses nestas terras. Assim, seus quadros serviram como verdadeiros diários, onde, com as tintas de seu talento e de sua aquarela, ele elucidou cada recanto recém descoberto da Nova América.
Assim, tanto o museu quanto o castelo, cercados das mais verdes gramas, adornados pelas sombras de imensos eucaliptos, embalados pelo som de um singelo riacho, pareciam povoados de encanto. Ali, o tempo se fazia suspenso e o passado, aproveitando o ensejo, regressava ao presente fazendo-o especial para qualquer visitante.
E, para completar a perfeição daquela pitoresca tela, o proprietário, com a sensibilidade de sempre, cuidou ainda de construir um café, este tão peculiar quanto o restante do lugar.
O refúgio dos amantes daquele líquido escuro e saboroso ficava no jardim que ladeava o museu, especificamente à esquerda. Ali, algumas mesinhas foram harmoniosamente organizadas em uma enorme varanda que, acompridada feito um corredor, deixava parte de seu encanto ao ar livre e a outra parte coberta. Na frente das mesas um pequeno balcão dava suporte às máquinas de café expresso e às vitrines dos pães de queijo e das tapiocas, ambos feitos na hora.
E era justamente ali que Ana Maria esperava, absorta em pensamentos, lembrando-se do olhar de Camila, que lhe pareceu tão escuro e denso quanto o café que pretendia tomar. E como se reproduzisse a cena que já habitava em sua mente, logo a dona dos olhos chegou, resgatando Ana Maria de seu devaneio e prendendo-a com o olhar intenso que, imediatamente, lhe lançou.
As duas sorriram ao se verem e o sorriso aumentava ao passo que a distância diminuía. E assim, finalmente, se encontraram num abraço que, apesar de mútuo, surpreendeu a ambas de tão saudoso e apertado. Parecia que se conheciam há tanto tempo! E, também mutuamente, comentaram: aquele era, de fato, um reencontro, no sentido mais amplo da palavra e do sentimento.
E assim, enlevadas, sentaram-se uma de frente para a outra, se conhecendo e, ao mesmo tempo, reconhecendo. As palavras mal cabiam entre os sorrisos e, apesar da amenidade dos assuntos, tudo parecia intenso. E no ritmo da música que, sequer, tocava, ambas atenderam a cada chamado que era feito em palavras, em gestos, em olhares, em pensamentos. E seguiram a letra, estrofe por estrofe, pouco se importando aonde iriam dar aquelas silenciosas promessas.
E com a sede de quem tem fome, sorveram vários cafés naquela tarde nem de longe nublada, onde só havia espaço para o sol que irradiava em ambas. Para completar o passeio, depois de perderem as contas dos expressos, resolveram caminhar um pouco pelo castelo, onde imaginaram se o encontro primeiro das duas viria de outra vida, talvez tão antiga quanto as peças que ali disputavam espaço.
E a conclusão pareceu extremamente clara para as duas: elas, certamente, possuíram outros corpos, dentro dos quais seus espíritos sempre foram afins. E, bem por isto, venciam o tempo e os espaços, viabilizando novamente um encontro para permanecerem unidos.
Naquele instante e, sobretudo, naquele novo caminho que iniciavam, enquanto se despediam do castelo e iam buscar seus carros, por muito pouco não caminharam de mãos dadas.
No estacionamento, que formava um círculo gigante adornado com um denso gramado onde palmeiras imperiais se erguiam e farfalhavam ao mínimo vento, o luar já pousava iluminando os paralelepípedos, deixando aquele cenário tão bonito quanto envolvente. Por acaso, os carros das duas eram os únicos que restavam e estavam parados lado a lado, feito elas naquele momento. A coincidência, assim que notada, despertou um sorriso partilhado. E, tomadas pela leveza da brisa que por ali passava, elas se olharam demoradamente, ensaiando a contragosto uma despedida.
Aproximando-se lentamente, Camila tomou as mãos de Ana Maria entre as suas e, sem dizer-lhe nada, beijou-lhe a face, testando com sua boca a textura daquela pele branca, que parecia mais iluminada devido à luz da lua. E o beijo, ousado e doce, foi dado bem próximo à boca da outra.
De início, Ana Maria assustou-se com a atitude de Camila, mas em um segundo o receio dissipou-se, dando espaço a um suspiro longo e denso.
Quando os lábios, suavemente, se afastaram de seu rosto, o corpo de Ana Maria tremia por inteiro e ela, novamente assustada, apertou as mãos de Camila com força, enquanto se afastava bruscamente. E assim, também sem dizer nada, entrou no carro e partiu o mais rápido que pôde, deixando para trás seu perfume, agora misturado ao das flores.
O AVESSO DA TELA (Capítulo IV)
CAPÍTULO IV
O AVESSO DA VIDA
A semana subseqüente ao próximo encontro fez-se tão lenta que Camila mal podia consultar os relógios que a cercavam: o do pulso a incomodava, apertando-lhe demasiadamente; o da parede parecia brincar consigo, emperrando os ponteiros, açoitando os azulejos, retirando seu brilho; o da cabeceira não a deixava dormir, com seu tic-tac antes praticamente inaudível; e o do celular parecia atrasado feito os projetos e compromissos que, no escritório, se acumularam, aguardando-a.
Enquanto isto, ela aguardava a dona de seus sentidos: a única mulher capaz de fazê-la se sentir inteira, sem, sequer, tocá-la; a única capaz de lhe causar arrepios sem sussurros; calor em dia de frio; fome com a mesa farta; a que lhe causava vertigens e lhe proporcionava miragens, mesmo quando usava lentes para sua miopia. E só agora ela, realmente, via. Só agora ela enxergava o mundo que havia fora das telas e que, antes, era incapaz de atiçar seus sentidos, seu espírito, sua vontade. Sobretudo, a de amor.
Débora, boquiaberta, assistia Camila enlevada, absorta, leve, em estado permanente de graça apesar do acúmulo de trabalho, das ligações insistentes dos clientes e mesmo das de suas inúmeras “namoradas”. Ela nunca a vira tão feliz, tão bonita, tão Camila. Uma nova Camila, era verdade, mas genuína como nunca.
Num final de tarde, as duas, visitando um dos projetos, iniciaram uma conversa sobre as dificuldades do passado e, achando uma oportunidade, a amiga lhe questionou sobre o presente, perguntando-lhe como ela estava. E a resposta veio simples tanto quanto precisa: feliz!
Com um sorriso, Camila relatou rapidamente o incidente com o carro e, sobretudo, o encontro e reencontro com a moça dos olhos de chuva. Omitiu, entretanto, um pequeno e, ao mesmo tempo, imenso detalhe: a aliança.
Acompanhando a felicidade da outra, Débora sorriu e a abraçou com entusiasmo, brincando:
- Finalmente vejo que a conquistadora inveterada foi, desta vez, conquistada!
A aprovação da amiga aumentou o entusiasmo de Camila que, retornando ao escritório, ainda naquela tarde, pôs em dia o que estava atrasado. E o estímulo era visível e estava bem ali, à sua frente: um círculo vermelho rabiscado no calendário. O dia seguinte era dia de Ana Maria, como a arquiteta nomeava os encontros marcados.
E o próximo café seria na Livraria Cultura, onde o cheiro dos expressos se misturava ao dos livros, que, novinhos em folha, também eram extremamente saborosos à vista dos freqüentadores.
Camila estacionou o carro no pavimento superior e, apressadamente, rumou à livraria. E nem foi preciso atravessar a porta de vidro para avistar a mulher de cabelos acobreados e brilhantes que, vestida de preto, de costas para a entrada, encontrava-se no andar de cima sentada em uma das mesas do café, esperando-a.
Entretanto, antes de ir ao encontro de Ana Maria, Camila arrefeceu o passo, respirou fundo e dirigiu-se a uma sessão especial: a direcionada ao público gay. Lá, procurou entre os títulos emparelhados na estante, Duas Iguais, romance de Cíntia Moscovich, um dos livros mais belos que lera em sua vida. E logo se deparou com a capa lilás, que guardava em cada página, em cada canto, encanto e sensibilidade. A narrativa que se encorpava em tom de poesia contava a história de amor entre duas mulheres. E este sentimento era tão intenso que, ao final, o tema homossexualidade perdia relevância. Relevante era viver e com a urgência merecida, o amor, sem importar em que corpo ele habitava.
Assim, dar a Ana Maria aquele livro foi a forma mais amena e precisa que Camila encontrou de revelar-lhe mais do que sua homossexualidade: seu amor. Cada página, portanto, abrigava sua esperança, não apenas de compreensão e tolerância, mas, sobretudo, de reciprocidade.
Mas a que presenteava sabia: deveria ter muita paciência e cautela. Deveria, principalmente, se preparar para um recuo, um choque, um afastamento súbito provocado em Ana Maria pela leitura daquele livro. E pensando exatamente nisto, tentando trabalhar aquelas hipóteses, Camila perdera o sono na noite anterior.
Entretanto, ao ver o sol nascer, ela foi tomada por uma certeza: era preciso deixar a verdade assumir cores claras, assim como o dia. Melhor seria um afastamento naquele momento, ainda que motivado pelo preconceito, do que em momento futuro, quando Camila estivesse mais envolvida e com suas esperanças fortalecidas pelo tempo.
E assim, tomando por acertada sua conclusão, ela assistia com pressa Duas Iguais sendo embalado para presente.
Enquanto isto, Ana Maria, com as mãos frias e o estômago quente, aguardava inquieta para rever os olhos escuros que, nos últimos tempos, encontrava constantemente em seus sonhos. É que, acobertada pelo véu do inconsciente, enquanto dormia, ela assistia, a cada noite, Camila despindo-a de seus disfarces e mesmo de suas vestes, retirando a aliança de seu dedo, tocando levemente seus cabelos, beijando seu rosto da forma como havia feito. E, no silêncio de um quarto desconhecido, ao fechar os olhos e entregar-se completamente àquele beijo, a sonhadora chegava a ouvir o farfalhar das palmeiras imperiais e a sentir na pele a mansuetude do vento. E era neste momento que, sem se conter, Ana Maria tomava a boca que lhe beijava com a própria boca. Porém, antes de sentir o gosto dos lábios grossos e sedutores de Camila, o sonho se dissipava e, num sobressalto, ela acordava suada, trêmula, pulsando, com a umidade brotando de seu ventre e o controle fugindo de sua vida.
Ana Maria tinha medo daquele sentimento novo, tinha medo daqueles olhos negros, tinha medo de Camila, mas, sobretudo, de si mesma. Ana Maria tinha medo da felicidade que vinha sentindo, tinha medo dos sorrisos bobos que povoavam, atualmente, seu semblante, dando-lhe luminosidade ímpar, dissipando de seu rosto qualquer resquício de chuva. Ana Maria tinha medo dos rótulos, dos nomes, do preconceito que ela mesma tinha. Mas, principalmente, Ana Maria tinha medo de perder Camila, de deixar de estar distraída e ser pega de surpresa com um telefonema, com um poema em seu e-mail, com um cheiro que lembrava o dela, com a cena de um beijo vista num filme ou no meio da rua, quando, instintivamente, a observadora se punha num dos pólos, enquanto no outro idealizava a boca e o sabor de Camila.
E foi exatamente por isto que, sobre a mesa, repousava Para Não Esquecer, seu livro favorito de Clarice Lispector, devidamente embrulhado em papel de presente. E a terceira crônica cabia perfeitamente: Por Não Estarem Distraídos. Ali, a escritora descrevia com a beleza e preciosismo de sempre a relação entre duas pessoas que, antes de nomearem o que tinham, eram perfeitamente felizes. E, de mãos dadas, caminhavam sem perceber a poeira das ruas, o barulho dos carros, as gentes. E a leveza do andar era tão boa e mútua que pareciam verdadeiramente flutuar. A dureza do chão e a aspereza das calçadas por onde passeavam eram inteiramente incompatíveis com o estado de graça de seus espíritos. Até que um dia eles puseram um rótulo, ensaiaram um título, quiseram ser o que eram, quiseram ter o que tinham. E nesse querer, perderam-se. E o “sim” transformou-se em “não”. E tudo se tornou áspero, duro, frio. Tudo por não mais estarem distraídos.
Era este o recado que Ana Maria queria dar a Camila com o livro. Ela queria propor o silêncio dos sentimentos, exatamente para que eles pudessem ser, com leveza, vividos.
Cada uma com suas mensagens, as duas, finalmente, se encontraram no café. E, na seqüência, viabilizaram também o encontro dos livros. A surpresa nos olhos de ambas era explícita! As duas tiveram idéias tão semelhantes quanto as próprias: elas, definitivamente, eram parecidas. Talvez Duas Iguais, logo brincou Ana Maria, em analogia ao título do livro que recebera, cujo tema ainda lhe era desconhecido.
Camila retribuiu o sorriso e a brincadeira, dizendo que, aquela tarde, definitivamente, era Para Não Esquecer.
E assim vários cafés foram servidos, vários grãos saboreados, tudo enquanto as palavras eram ditas de forma mais velada do que explícita, tudo porque ainda estavam distraídas.
Na semana seguinte, cada uma leu o presente recebido e foi o suficiente para que os receios crescessem em ambas no mesmo compasso da paixão e da saudade.
É que o recado dado pelo livro escolhido por Camila, ironicamente, era o inverso do que continha o livro escolhido por Ana Maria.
O primeiro, Duas Iguais, fazia um apelo para que o amor fosse vivido em palavras e silêncios, em sua integralidade, mesmo que, para tanto, fosse preciso nomear os sentimentos, dar-lhes um título. O último parágrafo era evidente nesse sentido e dizia que o amor exigia voz para ser liberto, exigia expressão. Caso contrário, ao ser contido, estouraria todos os vidros e verteria todos os líquidos em vão, até se perder.
Já o segundo livro, Para Não Esquecer, especificamente a terceira crônica, que fora demarcada por Ana Maria, esta propunha o amor em vivência silenciosa, que proibia todos os rótulos e títulos, que impedia a voz e impunha a distração. E o fundamento era o seguinte: algumas verdades, caso relevadas, ganhavam formas e cores incompatíveis com a tolerância do mundo, inconcebíveis aos olhos e ouvidos dos próprios amantes, muito embora povoassem seus corações. E o silêncio não implicava covardia, ao menos nos dizeres de Clarice e de Ana Maria: garantiria a leveza.
Apesar desta derradeira mensagem, não era leve que Ana Maria se sentia, muito menos Camila.
O casamento de Ana Maria ia de mal a pior e ela, já sem qualquer sorriso, mal conseguia esperar o próximo encontro. E todas as noites, antes que o marido fosse para a cama, ela tombava o corpo que parecia extremamente pesado sob o colchão macio, afundando-o nas cobertas, onde, inquieta, revirava durante horas a fio até encontrar Camila nos sonhos que lhe entorpeciam os sentidos.
Camila já não flutuava pelas ruas de Recife. Em verdade, nos últimos dias, mal saía de casa, a não ser para o escritório. E aquela tristeza quase palpável vinha deixando Débora e o pai preocupados. A Felicidade Clandestina parecia ter se dissipado e na mesma medida em que os telefonemas de Ana Maria tornavam-se mais escassos.
Também insone, atravessava as madrugadas defronte à sua tela. Pelo menos nela a Camila inventada e a Dra. Ângela Krauss ousavam uma realidade que, apesar de virtual, lhe parecia concreta. Naquele lago digital, submersa, a escritora dava ao enredo as cores que bem entendia. E assim, valendo-se desse poder, ali as verdades eram ditas e vividas, entre as duas iguais que povoavam sua aquarela.
Na quinta-feira, véspera do encontro, Camila foi surpreendida com um telefonema por volta da meia-noite. Era Ana Maria que, de forma ríspida, lhe dizia que não seria possível vê-la no dia seguinte. Na seqüência das frases entrecortadas e confusas, a interlocutora ensaiou uma desculpa sem qualquer resquício de verdade e, enquanto a chuva começava a cair lá fora, as duas se despediram.
Camila supunha o motivo daquela atitude: Ana Maria deveria ter terminado o livro, compreendido o recado nele contido e, na seqüência, decidido se afastar. Elas, definitivamente, não eram iguais.
O equívoco, entretanto, era imenso. Ana Maria era tão parecida com Camila que, naquele instante, enquanto observava a chuva com o fito de dissipar seu vazio exatamente como a outra fazia, vertia, pelos olhos nublados, também suas chuvas. E estas, se não escorriam pelo vidro, desciam por sua face, aumentando-lhe o frio.
Sozinha, ela, de fato, havia lido o último capítulo do livro e, finalmente, compreendia o poder das palavras: amava e muito Camila, não havia como silenciar isto. Por outro lado, não se sentia ainda preparada para gritar aquele sentimento aos quatro ventos, como sentia vontade. E essa contradição era tão atordoante que ela, simplesmente, não conseguia mais ficar distraída um só instante daquela sua vida medíocre.
Ana Maria não mais suportava a voz, o cheiro, o gosto de Gabriel, seu marido. Não agüentava mais ser tocada por ele, tampouco se imaginava grávida. E ele, percebendo a mudança, questionou exatamente naquela noite o que tinha havido.
Foi então que a esposa disse que andava confusa com tudo, com seus antigos planos e, tomada de desengano, pediu um tempo para repensar a vida. Aturdido, ele saiu de casa desesperado e no meio da chuva que agora vertia dentro e fora de Ana Maria.
Também atordoada e tomada de remorso, ligou e desmarcou o encontro com Camila. O que havia dito no telefonema, nem mesmo ela sabia. Sabia tão somente de um fato: queria estancar aquele pranto que de há muito, ainda que silencioso, povoava seu espírito. E apenas agora, àquela altura da vida, descobria alguém apto a tanto: Camila.
Com as mãos trêmulas, Ana Maria pegou a chave do carro e saiu alucinada, no meio da chuva e, neste mesmo instante, no visor do celular de Camila, apareceu o nome daquela que dirigia.
“Ana Maria Furtado”, lia Camila sem saber o que fazer. Terminou atendendo, novamente, O Chamado. Em verdade ela sempre o atenderia.
Depois de algumas coordenadas, Ana Maria, completamente molhada, punha-se defronte à porta. E Camila a recebeu com pressa e uma toalha, puxando-a para dentro assustada. E assim, as duas sentaram lado a lado no sofá que, alheio à cena, era o único que parecia tranqüilo.
O que tinha havido? Qual o motivo de aqueles olhos de chuva, literalmente, verterem águas? Estas foram as perguntas docemente formuladas por Camila.
Sem fazer menção de respondê-las, Ana Maria aproximou-se de forma mansa, enquanto afagava os cabelos da outra com os dedos trêmulos e frios. Contendo o choro, mas não o desejo, ela puxou levemente o rosto de Camila, pondo-o a centímetros do seu. E, com a respiração ofegante, demorou-se com os olhos nublados na boca da outra, que, instintivamente, molhou-a com a própria língua. Diante desta visão absolutamente sedutora, Ana Maria cerrou os olhos.
E, no desenlace dos olhares, os lábios finalmente se enlaçaram entreabertos e macios, dissolvendo na saliva as palavras que faltavam.
E o beijo foi tão intenso e sôfrego, que os corpos das duas iguais tremiam, no impacto das vontades e na força da vertigem.
As mãos, também ávidas de tudo, em momento algum se distraíram e, reconhecendo a semelhança das formas e dos gestos, vaguearam eriçando os poros e provocando o transbordar dos líquidos.
Camila, mesmo sem saber, repetia em atos e imagens, os sonhos que acalentavam as noites de Ana Maria e, despindo-a de suas máscaras, livrando-a de suas vestes, libertando-a de sua aliança, pôs em suas mãos uma nova: a delas, que, abstrata, sequer exigia ouro para ser preciosa.
E assim, tomando para si o que era dela, Camila sorvia os lábios de Ana Maria que, naquele instante, se faziam doces. E a que era bebida gemia compassadamente, dando ritmo aos dedos que lhe penetravam de forma vigorosa. E Ana Maria pedia mais: ela queria mais do beijo, mais da boca, mais dos dedos, mais das mãos, mais dos líquidos, mais da outra que, agora, era sua, só sua.
Livrando-se, também, das próprias roupas, Camila, sem separar-se um instante de Ana Maria, deitou-a e logo se pôs por cima. Assim, no compasso do encontro, na dança dos corpos nus e febris, as duas descobriam aonde exatamente iria dar o chamado que de há muito seguiam. Foi quando o gozo, com a intensidade da chuva e para ambas, chegou.
E assim, encaixadas em corpo e em alma, deram ritmo, música e, finalmente, letra ao amor. Ele, definitivamente, exigia expressão e o presente escolhido por Camila vingou.
Com a chegada do dia e com a fome de alma parcialmente saciada, as duas, depois de um longo e tépido banho, povoado de beijos e carícias, puseram a mesa e deram início ao primeiro café da manhã juntas.
Atordoada pelos últimos dias, Camila havia deixado a geladeira e a despensa completamente vazias. Assim, no armário havia café, mas faltava açúcar. Tal ausência, entretanto, não foi motivo de lamento para nenhuma das duas. E o café partilhado naquela manhã foi, simplesmente, o melhor de todos.
Na volta para casa Ana Maria mal cabia em si de tanta alegria e nem por um segundo deixou o remorso afastar de seu rosto o sorriso largo que refletia a luz do dia. Entretanto, ao adentrar na garagem, seus olhos, novamente, nublaram-se. Era o carro de Gabriel e não o de Camila que ladearia o seu.
Ele já estava em casa esperando-a. Porém, para sua surpresa, com as malas prontas. E antes que Ana Maria pudesse ensaiar qualquer desculpa para o fato de chegar àquela hora, o próprio iniciou um monólogo.
E em suas falas, carregadas de culpa, o rapaz desculpava-se por sua ausência, pelo excesso de trabalho, pela pressão exercida em relação ao filho que ainda não possuíam e por todos os fatos que, naquele instante, eram narrados como os responsáveis pela confusão de Ana Maria e, sobretudo, pela necessidade de tempo que esta lhe articulara na noite anterior.
Apenas neste momento o remorso pareceu assumir formas concretas e pontiagudas, capazes de causarem dor física em Ana Maria. É que Gabriel, nem de longe, conhecia o real motivo de sua mudança: Camila.
Calada, retesando o corpo, com o estomago completamente revirado, ela assistiu o monólogo sendo encerrado. E no desfecho, o marido ergueu-se com os olhos vermelhos pelo choro e disse que rumava para o aeroporto. Passaria uma semana distante, a trabalho, momento que deveria ser utilizado por ambos para dissiparem suas dúvidas, repensarem o relacionamento e, finalmente, modelarem o que podia e o que precisavam para continuar juntos. Era este o seu desejo.
Intimamente, Ana Maria só pôde perceber que a vontade elucidada pelo marido era tão solitária quanto o monólogo que este encerrava. Mas aquele, definitivamente, não era o momento de refutar o plano do outro. Que ele viajasse, que a poeira baixasse. Ela esperaria seu regresso para dizer-lhe de seu projeto: separar-se e dar nome ao que tinha com Camila, vivenciando com a plenitude merecida o amor que sentiam. É que tal plano havia sido mais forte do que ela, pois, antes mesmo de concebê-lo em mente, fora construído com vigas profundas e muito concreto num terreno que encontrou fértil: seu coração.
Durante a semana vindoura, Ana Maria e Camila experimentaram o amor que ousa dizer o nome. E assim, as ruas de Recife, todos os cafés, todas as esquinas, as praças que pareciam perfeitas mesmo nos dias de chuva, os museus, os viadutos, as galerias, as beiras de mar, as margens de rios e todos os recantos que existiam dentro e fora delas duas foram estreitos e insuficientes para abrigar a intensidade do que sentiam.
Mas, como sempre, houve um contraponto. E, na sexta-feira, as duas ousaram, pela primeira vez, irem a uma boate gay juntas. Ana Maria queria conhecer o que Camila denominada submundo. No fundo, talvez a moça quisesse antever o que lhe esperava.
Depois de muitas ressalvas e tentativas de dissuadi-la, Camila concordou e, cedendo, a levou. Sem qualquer poesia, o ambiente escuro, a fumaça e a mistura das luzes logo inquietaram Ana Maria que, surpresa, via pela primeira vez casais gays se beijando, se tocando, dançando sensualmente e de forma tão lasciva quanto alucinada.
A princípio, apesar do desconforto, Ana Maria insistiu em ficar. Tinha necessidade de se testar, de ver até onde seria capaz de mergulhar de cabeça no mundo que Camila, de há muito, habitava. O suor frio, o brilho turvo dos olhos denunciavam a Camila a agonia da outra, mas, com teimosia, Ana Maria sorveu a primeira dose de vodka. E a pediu pura, como nenhuma das criaturas que ali dançavam lhe parecia. Em verdade, todos os gays, naquele momento, aos olhos da expectadora, se mostravam extremamente despudorados.
E logo o fogo tomou suas faces e Ana Maria, tentando sentir-se igual naquele meio, enlaçou Camila pela cintura e ensaiou um beijo tão explícito quanto os que assistia. Acompanhando-a em língua e em desejo, a outra correspondeu na mesma intensidade, só que, ao contrário de Ana Maria, sentindo-se extremamente confortável com o ambiente e com os olhares.
Mas, naquele momento, nem mesmo os braços de Camila lhe serviram como abrigo. E Ana Maria tonteou graças ao efeito do álcool e da verdade que a consumia: ela não se via daquela forma e nem o queria.
Desvencilhando-se bruscamente de Camila, ela olhou-a com estranheza. O efeito da vodka multiplicou-se aliado à seus medos e procurando um espelho, ela também se desconheceu. Aturdida, abatida, vendo-se assim refletida, ela pediu para ir embora e Camila prontamente obedeceu.
Mas, enquanto se encaminhavam para a porta uma loira voluptuosa em gestos e curvas interrompeu-as com o próprio corpo, pondo-se entre as duas, de frente para Camila. Olhando nos olhos negros, a desconhecida de Ana Maria mostrou-se perfeitamente conhecida da outra e, sem qualquer desfaçatez e em tom provocativo, propôs:
- Vamos fazer um trio novamente ou essa ruiva é exclusiva, Camila?
Sem resposta e sem ar, Camila deu as costas e saiu rapidamente, puxando Ana Maria pela mão de forma desgovernada e quase arredia. Era sua tentativa de protegê-la daquele mundo que para si própria, naquele instante, lhe parecia inteiramente promíscuo e vazio. Ela estava farta daquilo, mas disto Ana Maria não sabia.
E então, o jogo do desencontro. No carro, Ana Maria chorava compulsivamente, enquanto Camila tentava acalmá-la. Mas nada a convencia, nada se mostrava capaz de estancar aquele choro, nem mesmo um sonoro “eu te amo” profundamente pronunciado por Camila. Ana Maria, simplesmente, não acreditava. Via-se como mais uma nas mãos daquela que, agora, lhe parecia outra Camila. Elas não eram mais iguais. Não eram mais delas, não se pertenciam. E isto foi tudo o que Ana Maria disse durante o percurso.
E ao descer do carro, sem qualquer cuidado, Ana Maria bateu a porta. E, somente naquele instante, Camila sentiu o peso das mãos da outra.
A sala recebeu Ana Maria com as luzes apagadas e, tomada de sua própria escuridão, ela deitou-se de qualquer jeito no sofá. Sua cabeça rodava e ela não sabia mais o que queria. Para sua surpresa, Gabriel havia voltado para casa e, silencioso, caminhou em sua direção, sentando no chão.
Percebendo o estado da esposa e supondo-o fruto da saudade que ele não era mais capaz de provocar, o rapaz olhou-a profundamente, dizendo que a amava demais e que queria o conforto daquela sala novamente, daquela vida partilhada, daquela boca que, na seqüência das palavras, ele beijou.
Tomada da necessidade de fugir daquele emaranhado de sentimentos que a atormentavam e, sobretudo, dos olhos de Camila, Ana Maria cedeu ao beijo e ao abraço. Atordoada, assistiu Gabriel despir-se e foi por ele despida. Mas, se seu corpo estava ali, sua alma voltou-se ao passado e especificamente pousou nos braços de Camila. Só então seu ventre encheu-se de umidade, fazendo o membro ereto deslizar para dentro de si e, no aprofundar dos segundos, jorrar de forma intensa, enquanto ela fechava os olhos e queria sumir.
E os dias transcorreram sem que Ana Maria desse notícias. Camila, desolada, não acreditava naquele desencontro. Elas que haviam nascido para o reencontro, não podiam terminar daquele jeito, era este seu pensamento. De tão aturdida, Camila abandonou momentaneamente o escritório, esqueceu-se do livro e sequer enviou o primeiro capítulo que serviria como conto. Desistiu do concurso, mas não desistiria de Ana Maria.
E tomada desta certeza, em mais uma noite de chuva, depois de meses de espera, Camila foi à casa de Ana Maria. Bem sabia que sua atitude não era nem de longe sensata, mas, definitivamente, àquela altura não conseguia mais agir com sensatez.
Para sua sorte, no momento em que seu carro despontou na rua, Ana Maria também chegava e antes que ela entrasse na garagem, Camila correu pela rua, alheia à chuva, alcançando-a.
Ao bater no vidro do carro, Camila viu Ana Maria olhá-la, primeiramente, com susto e depois com desespero. A dor era tanta que os olhos de chuva sequer pareciam os mesmos. Algo neles havia se dissipado. Talvez a vivacidade, talvez a ingenuidade, talvez o amor, talvez o respeito. Camila não soube definir.
Apressada, Ana Maria abriu a porta e saiu, puxando Camila pela mão até chegarem ao carro da outra. O coração de ambas batia tão forte que demoraram a articular as primeiras palavras. Até que Camila, finalmente, conseguiu:
- Desculpe-me pelo incidente na boate! Eu já fui mesmo uma Camila indigna de você! Mas, em meio a todas as dúvidas que me assombraram nestes meses, só encontrei uma certeza: eu te amo e foi este amor que me fez renascer. Hoje sou outra, uma Camila que apenas você conhece e mais ninguém há de conhecer.
No carro, a música que tocava era O Chamado e Ana Maria, reconhecendo imediatamente a melodia, olhou para Camila como no dia em que a escutaram juntas pela primeira vez. Naquele instante, o olhar nublado deixou fulgurar alguma luz, enquanto a dona dos olhos azuis disse mansamente:
- Eu acredito em você.
E tomando os lábios de Camila com os seus, Ana Maria sorveu o gosto que apenas aquele beijo possuía: o da mistura de café com chuva. E ali as duas se reconheceram.
Mas, em poucos minutos, interrompendo aquele reencontro, Ana Maria afastou-se e, pondo fim ao ar de mistério que pairava em seu silêncio, deixou seus olhos perderem o último vestígio de luz ao dizer:
- Camila, eu estou esperando um bebê.
E deixando que tais palavras estocassem o coração de Camila, Ana Maria, antes de sair do carro, interrompendo O Chamado, pôs no som outra música, também escolhida a dedo. E na casa dos segundos a melodia iniciou intensa, com batidas abafadas intercaladas com acordes suaves de um violão. Era a simulação de um coração que, naquele instante, pareceu a Camila extremante aturdido. E este era o novo recado deixado por Ana Maria na voz de Marina Lima:
Olhar você e não saber Que você é a pessoa mais linda do mundo Eu queria alguém lá no fundo do coração
Ganhar você e não querer É porque eu quero que nada aconteça Deve ser porque eu não ando bem da cabeça Ou eu já cansei de acreditar
O meu medo é uma coisa assim Que corre por fora entra, vai e volta sem sairOh, não ! Não tente me fazer feliz Eu sei que o amor é bom demais Mas dói demais sentir,
Mas dói demais sentir...
Agora, enquanto a música tocava, tudo se explicava: o silêncio, o mistério, o afastamento de Ana Maria. E, naquele momento, Camila também não a reconheceu, tampouco se reconhecia. Ela bem deveria saber que a outra jamais retiraria a aliança do dedo, quiçá aceitaria criar aquele filho consigo.
E sua indignação crescia enquanto ela acelerava o carro e aumentava o volume do recado. Com a visão comprometida pela chuva e pela raiva, ela concluiu que Ana Maria, apesar de tudo, ainda continuara insistindo em engravidar e, em verdade, nunca havia deixado de transar com o marido. Como havia sido cega e estúpida!
Sentindo-se pelo avesso e avessando a própria realidade, tudo o que Camila desejou foi voltar ao seu conto, mergulhar em seu lago digital, onde, uma vez submersa, dava ao enredo o curso que queria, recobrando inteiramente a direção da vida que, apesar de inventada, também era sua.
E assim, invadida pela vontade de transpassar a tela, de transpassar os vidros, aumentou de forma alucinada a velocidade enquanto sentia o acelerar de seu próprio pulso.
Mas o único vidro que se estilhaçou foi o do carro que, numa derrapagem, arremessou-se numa das tantas pontes do Recife encontrando com força extrema as águas do Rio Capibaribe onde Camila, ironicamente, terminou por submergir. É que ela, ao inverso de seu desejo, perdeu completamente a direção.
Recobrando a consciência ou a inconsciência, sem noção do tempo decorrido, Camila, ao abrir os olhos, deparou-se com o olhar de chuva pousado em si. Mas, no piscar seguinte, os olhos que lhe pareceram ser os de Ana Maria, aos poucos, clareavam e adquiriam outros traços, outros laços, outras formas, também a prendê-la, a domá-la, a lhe causar vertigem. De repente, raios esverdeados os invadiam e o céu nublado tornou-se extremamente claro, translúcido, adornados com sobrancelhas loiras, assim como os cílios.
E a mulher vestida de branco que, naquele momento, deixava de observar seus olhos e passava a examinar seu corpo finalmente foi reconhecida por Camila. Era ela: Ângela, a sua Ângela. E nas mãos dela não havia qualquer aliança, tampouco em seus olhos verdes dormitava o medo.
Se aquela imagem retratava sonho ou realidade, se aquela mulher existia em seu conto ou em sua vista, Camila não soube responder, ao menos do avesso da tela onde dormia.
E a última frase ouvida foi uma que nunca havia saído de sua mente, tampouco deixado de ecoar em seu coração:
- Paramos por aqui...por hoje. Mas queria te ver amanhã...
FIM
O AVESSO DA VIDA
A semana subseqüente ao próximo encontro fez-se tão lenta que Camila mal podia consultar os relógios que a cercavam: o do pulso a incomodava, apertando-lhe demasiadamente; o da parede parecia brincar consigo, emperrando os ponteiros, açoitando os azulejos, retirando seu brilho; o da cabeceira não a deixava dormir, com seu tic-tac antes praticamente inaudível; e o do celular parecia atrasado feito os projetos e compromissos que, no escritório, se acumularam, aguardando-a.
Enquanto isto, ela aguardava a dona de seus sentidos: a única mulher capaz de fazê-la se sentir inteira, sem, sequer, tocá-la; a única capaz de lhe causar arrepios sem sussurros; calor em dia de frio; fome com a mesa farta; a que lhe causava vertigens e lhe proporcionava miragens, mesmo quando usava lentes para sua miopia. E só agora ela, realmente, via. Só agora ela enxergava o mundo que havia fora das telas e que, antes, era incapaz de atiçar seus sentidos, seu espírito, sua vontade. Sobretudo, a de amor.
Débora, boquiaberta, assistia Camila enlevada, absorta, leve, em estado permanente de graça apesar do acúmulo de trabalho, das ligações insistentes dos clientes e mesmo das de suas inúmeras “namoradas”. Ela nunca a vira tão feliz, tão bonita, tão Camila. Uma nova Camila, era verdade, mas genuína como nunca.
Num final de tarde, as duas, visitando um dos projetos, iniciaram uma conversa sobre as dificuldades do passado e, achando uma oportunidade, a amiga lhe questionou sobre o presente, perguntando-lhe como ela estava. E a resposta veio simples tanto quanto precisa: feliz!
Com um sorriso, Camila relatou rapidamente o incidente com o carro e, sobretudo, o encontro e reencontro com a moça dos olhos de chuva. Omitiu, entretanto, um pequeno e, ao mesmo tempo, imenso detalhe: a aliança.
Acompanhando a felicidade da outra, Débora sorriu e a abraçou com entusiasmo, brincando:
- Finalmente vejo que a conquistadora inveterada foi, desta vez, conquistada!
A aprovação da amiga aumentou o entusiasmo de Camila que, retornando ao escritório, ainda naquela tarde, pôs em dia o que estava atrasado. E o estímulo era visível e estava bem ali, à sua frente: um círculo vermelho rabiscado no calendário. O dia seguinte era dia de Ana Maria, como a arquiteta nomeava os encontros marcados.
E o próximo café seria na Livraria Cultura, onde o cheiro dos expressos se misturava ao dos livros, que, novinhos em folha, também eram extremamente saborosos à vista dos freqüentadores.
Camila estacionou o carro no pavimento superior e, apressadamente, rumou à livraria. E nem foi preciso atravessar a porta de vidro para avistar a mulher de cabelos acobreados e brilhantes que, vestida de preto, de costas para a entrada, encontrava-se no andar de cima sentada em uma das mesas do café, esperando-a.
Entretanto, antes de ir ao encontro de Ana Maria, Camila arrefeceu o passo, respirou fundo e dirigiu-se a uma sessão especial: a direcionada ao público gay. Lá, procurou entre os títulos emparelhados na estante, Duas Iguais, romance de Cíntia Moscovich, um dos livros mais belos que lera em sua vida. E logo se deparou com a capa lilás, que guardava em cada página, em cada canto, encanto e sensibilidade. A narrativa que se encorpava em tom de poesia contava a história de amor entre duas mulheres. E este sentimento era tão intenso que, ao final, o tema homossexualidade perdia relevância. Relevante era viver e com a urgência merecida, o amor, sem importar em que corpo ele habitava.
Assim, dar a Ana Maria aquele livro foi a forma mais amena e precisa que Camila encontrou de revelar-lhe mais do que sua homossexualidade: seu amor. Cada página, portanto, abrigava sua esperança, não apenas de compreensão e tolerância, mas, sobretudo, de reciprocidade.
Mas a que presenteava sabia: deveria ter muita paciência e cautela. Deveria, principalmente, se preparar para um recuo, um choque, um afastamento súbito provocado em Ana Maria pela leitura daquele livro. E pensando exatamente nisto, tentando trabalhar aquelas hipóteses, Camila perdera o sono na noite anterior.
Entretanto, ao ver o sol nascer, ela foi tomada por uma certeza: era preciso deixar a verdade assumir cores claras, assim como o dia. Melhor seria um afastamento naquele momento, ainda que motivado pelo preconceito, do que em momento futuro, quando Camila estivesse mais envolvida e com suas esperanças fortalecidas pelo tempo.
E assim, tomando por acertada sua conclusão, ela assistia com pressa Duas Iguais sendo embalado para presente.
Enquanto isto, Ana Maria, com as mãos frias e o estômago quente, aguardava inquieta para rever os olhos escuros que, nos últimos tempos, encontrava constantemente em seus sonhos. É que, acobertada pelo véu do inconsciente, enquanto dormia, ela assistia, a cada noite, Camila despindo-a de seus disfarces e mesmo de suas vestes, retirando a aliança de seu dedo, tocando levemente seus cabelos, beijando seu rosto da forma como havia feito. E, no silêncio de um quarto desconhecido, ao fechar os olhos e entregar-se completamente àquele beijo, a sonhadora chegava a ouvir o farfalhar das palmeiras imperiais e a sentir na pele a mansuetude do vento. E era neste momento que, sem se conter, Ana Maria tomava a boca que lhe beijava com a própria boca. Porém, antes de sentir o gosto dos lábios grossos e sedutores de Camila, o sonho se dissipava e, num sobressalto, ela acordava suada, trêmula, pulsando, com a umidade brotando de seu ventre e o controle fugindo de sua vida.
Ana Maria tinha medo daquele sentimento novo, tinha medo daqueles olhos negros, tinha medo de Camila, mas, sobretudo, de si mesma. Ana Maria tinha medo da felicidade que vinha sentindo, tinha medo dos sorrisos bobos que povoavam, atualmente, seu semblante, dando-lhe luminosidade ímpar, dissipando de seu rosto qualquer resquício de chuva. Ana Maria tinha medo dos rótulos, dos nomes, do preconceito que ela mesma tinha. Mas, principalmente, Ana Maria tinha medo de perder Camila, de deixar de estar distraída e ser pega de surpresa com um telefonema, com um poema em seu e-mail, com um cheiro que lembrava o dela, com a cena de um beijo vista num filme ou no meio da rua, quando, instintivamente, a observadora se punha num dos pólos, enquanto no outro idealizava a boca e o sabor de Camila.
E foi exatamente por isto que, sobre a mesa, repousava Para Não Esquecer, seu livro favorito de Clarice Lispector, devidamente embrulhado em papel de presente. E a terceira crônica cabia perfeitamente: Por Não Estarem Distraídos. Ali, a escritora descrevia com a beleza e preciosismo de sempre a relação entre duas pessoas que, antes de nomearem o que tinham, eram perfeitamente felizes. E, de mãos dadas, caminhavam sem perceber a poeira das ruas, o barulho dos carros, as gentes. E a leveza do andar era tão boa e mútua que pareciam verdadeiramente flutuar. A dureza do chão e a aspereza das calçadas por onde passeavam eram inteiramente incompatíveis com o estado de graça de seus espíritos. Até que um dia eles puseram um rótulo, ensaiaram um título, quiseram ser o que eram, quiseram ter o que tinham. E nesse querer, perderam-se. E o “sim” transformou-se em “não”. E tudo se tornou áspero, duro, frio. Tudo por não mais estarem distraídos.
Era este o recado que Ana Maria queria dar a Camila com o livro. Ela queria propor o silêncio dos sentimentos, exatamente para que eles pudessem ser, com leveza, vividos.
Cada uma com suas mensagens, as duas, finalmente, se encontraram no café. E, na seqüência, viabilizaram também o encontro dos livros. A surpresa nos olhos de ambas era explícita! As duas tiveram idéias tão semelhantes quanto as próprias: elas, definitivamente, eram parecidas. Talvez Duas Iguais, logo brincou Ana Maria, em analogia ao título do livro que recebera, cujo tema ainda lhe era desconhecido.
Camila retribuiu o sorriso e a brincadeira, dizendo que, aquela tarde, definitivamente, era Para Não Esquecer.
E assim vários cafés foram servidos, vários grãos saboreados, tudo enquanto as palavras eram ditas de forma mais velada do que explícita, tudo porque ainda estavam distraídas.
Na semana seguinte, cada uma leu o presente recebido e foi o suficiente para que os receios crescessem em ambas no mesmo compasso da paixão e da saudade.
É que o recado dado pelo livro escolhido por Camila, ironicamente, era o inverso do que continha o livro escolhido por Ana Maria.
O primeiro, Duas Iguais, fazia um apelo para que o amor fosse vivido em palavras e silêncios, em sua integralidade, mesmo que, para tanto, fosse preciso nomear os sentimentos, dar-lhes um título. O último parágrafo era evidente nesse sentido e dizia que o amor exigia voz para ser liberto, exigia expressão. Caso contrário, ao ser contido, estouraria todos os vidros e verteria todos os líquidos em vão, até se perder.
Já o segundo livro, Para Não Esquecer, especificamente a terceira crônica, que fora demarcada por Ana Maria, esta propunha o amor em vivência silenciosa, que proibia todos os rótulos e títulos, que impedia a voz e impunha a distração. E o fundamento era o seguinte: algumas verdades, caso relevadas, ganhavam formas e cores incompatíveis com a tolerância do mundo, inconcebíveis aos olhos e ouvidos dos próprios amantes, muito embora povoassem seus corações. E o silêncio não implicava covardia, ao menos nos dizeres de Clarice e de Ana Maria: garantiria a leveza.
Apesar desta derradeira mensagem, não era leve que Ana Maria se sentia, muito menos Camila.
O casamento de Ana Maria ia de mal a pior e ela, já sem qualquer sorriso, mal conseguia esperar o próximo encontro. E todas as noites, antes que o marido fosse para a cama, ela tombava o corpo que parecia extremamente pesado sob o colchão macio, afundando-o nas cobertas, onde, inquieta, revirava durante horas a fio até encontrar Camila nos sonhos que lhe entorpeciam os sentidos.
Camila já não flutuava pelas ruas de Recife. Em verdade, nos últimos dias, mal saía de casa, a não ser para o escritório. E aquela tristeza quase palpável vinha deixando Débora e o pai preocupados. A Felicidade Clandestina parecia ter se dissipado e na mesma medida em que os telefonemas de Ana Maria tornavam-se mais escassos.
Também insone, atravessava as madrugadas defronte à sua tela. Pelo menos nela a Camila inventada e a Dra. Ângela Krauss ousavam uma realidade que, apesar de virtual, lhe parecia concreta. Naquele lago digital, submersa, a escritora dava ao enredo as cores que bem entendia. E assim, valendo-se desse poder, ali as verdades eram ditas e vividas, entre as duas iguais que povoavam sua aquarela.
Na quinta-feira, véspera do encontro, Camila foi surpreendida com um telefonema por volta da meia-noite. Era Ana Maria que, de forma ríspida, lhe dizia que não seria possível vê-la no dia seguinte. Na seqüência das frases entrecortadas e confusas, a interlocutora ensaiou uma desculpa sem qualquer resquício de verdade e, enquanto a chuva começava a cair lá fora, as duas se despediram.
Camila supunha o motivo daquela atitude: Ana Maria deveria ter terminado o livro, compreendido o recado nele contido e, na seqüência, decidido se afastar. Elas, definitivamente, não eram iguais.
O equívoco, entretanto, era imenso. Ana Maria era tão parecida com Camila que, naquele instante, enquanto observava a chuva com o fito de dissipar seu vazio exatamente como a outra fazia, vertia, pelos olhos nublados, também suas chuvas. E estas, se não escorriam pelo vidro, desciam por sua face, aumentando-lhe o frio.
Sozinha, ela, de fato, havia lido o último capítulo do livro e, finalmente, compreendia o poder das palavras: amava e muito Camila, não havia como silenciar isto. Por outro lado, não se sentia ainda preparada para gritar aquele sentimento aos quatro ventos, como sentia vontade. E essa contradição era tão atordoante que ela, simplesmente, não conseguia mais ficar distraída um só instante daquela sua vida medíocre.
Ana Maria não mais suportava a voz, o cheiro, o gosto de Gabriel, seu marido. Não agüentava mais ser tocada por ele, tampouco se imaginava grávida. E ele, percebendo a mudança, questionou exatamente naquela noite o que tinha havido.
Foi então que a esposa disse que andava confusa com tudo, com seus antigos planos e, tomada de desengano, pediu um tempo para repensar a vida. Aturdido, ele saiu de casa desesperado e no meio da chuva que agora vertia dentro e fora de Ana Maria.
Também atordoada e tomada de remorso, ligou e desmarcou o encontro com Camila. O que havia dito no telefonema, nem mesmo ela sabia. Sabia tão somente de um fato: queria estancar aquele pranto que de há muito, ainda que silencioso, povoava seu espírito. E apenas agora, àquela altura da vida, descobria alguém apto a tanto: Camila.
Com as mãos trêmulas, Ana Maria pegou a chave do carro e saiu alucinada, no meio da chuva e, neste mesmo instante, no visor do celular de Camila, apareceu o nome daquela que dirigia.
“Ana Maria Furtado”, lia Camila sem saber o que fazer. Terminou atendendo, novamente, O Chamado. Em verdade ela sempre o atenderia.
Depois de algumas coordenadas, Ana Maria, completamente molhada, punha-se defronte à porta. E Camila a recebeu com pressa e uma toalha, puxando-a para dentro assustada. E assim, as duas sentaram lado a lado no sofá que, alheio à cena, era o único que parecia tranqüilo.
O que tinha havido? Qual o motivo de aqueles olhos de chuva, literalmente, verterem águas? Estas foram as perguntas docemente formuladas por Camila.
Sem fazer menção de respondê-las, Ana Maria aproximou-se de forma mansa, enquanto afagava os cabelos da outra com os dedos trêmulos e frios. Contendo o choro, mas não o desejo, ela puxou levemente o rosto de Camila, pondo-o a centímetros do seu. E, com a respiração ofegante, demorou-se com os olhos nublados na boca da outra, que, instintivamente, molhou-a com a própria língua. Diante desta visão absolutamente sedutora, Ana Maria cerrou os olhos.
E, no desenlace dos olhares, os lábios finalmente se enlaçaram entreabertos e macios, dissolvendo na saliva as palavras que faltavam.
E o beijo foi tão intenso e sôfrego, que os corpos das duas iguais tremiam, no impacto das vontades e na força da vertigem.
As mãos, também ávidas de tudo, em momento algum se distraíram e, reconhecendo a semelhança das formas e dos gestos, vaguearam eriçando os poros e provocando o transbordar dos líquidos.
Camila, mesmo sem saber, repetia em atos e imagens, os sonhos que acalentavam as noites de Ana Maria e, despindo-a de suas máscaras, livrando-a de suas vestes, libertando-a de sua aliança, pôs em suas mãos uma nova: a delas, que, abstrata, sequer exigia ouro para ser preciosa.
E assim, tomando para si o que era dela, Camila sorvia os lábios de Ana Maria que, naquele instante, se faziam doces. E a que era bebida gemia compassadamente, dando ritmo aos dedos que lhe penetravam de forma vigorosa. E Ana Maria pedia mais: ela queria mais do beijo, mais da boca, mais dos dedos, mais das mãos, mais dos líquidos, mais da outra que, agora, era sua, só sua.
Livrando-se, também, das próprias roupas, Camila, sem separar-se um instante de Ana Maria, deitou-a e logo se pôs por cima. Assim, no compasso do encontro, na dança dos corpos nus e febris, as duas descobriam aonde exatamente iria dar o chamado que de há muito seguiam. Foi quando o gozo, com a intensidade da chuva e para ambas, chegou.
E assim, encaixadas em corpo e em alma, deram ritmo, música e, finalmente, letra ao amor. Ele, definitivamente, exigia expressão e o presente escolhido por Camila vingou.
Com a chegada do dia e com a fome de alma parcialmente saciada, as duas, depois de um longo e tépido banho, povoado de beijos e carícias, puseram a mesa e deram início ao primeiro café da manhã juntas.
Atordoada pelos últimos dias, Camila havia deixado a geladeira e a despensa completamente vazias. Assim, no armário havia café, mas faltava açúcar. Tal ausência, entretanto, não foi motivo de lamento para nenhuma das duas. E o café partilhado naquela manhã foi, simplesmente, o melhor de todos.
Na volta para casa Ana Maria mal cabia em si de tanta alegria e nem por um segundo deixou o remorso afastar de seu rosto o sorriso largo que refletia a luz do dia. Entretanto, ao adentrar na garagem, seus olhos, novamente, nublaram-se. Era o carro de Gabriel e não o de Camila que ladearia o seu.
Ele já estava em casa esperando-a. Porém, para sua surpresa, com as malas prontas. E antes que Ana Maria pudesse ensaiar qualquer desculpa para o fato de chegar àquela hora, o próprio iniciou um monólogo.
E em suas falas, carregadas de culpa, o rapaz desculpava-se por sua ausência, pelo excesso de trabalho, pela pressão exercida em relação ao filho que ainda não possuíam e por todos os fatos que, naquele instante, eram narrados como os responsáveis pela confusão de Ana Maria e, sobretudo, pela necessidade de tempo que esta lhe articulara na noite anterior.
Apenas neste momento o remorso pareceu assumir formas concretas e pontiagudas, capazes de causarem dor física em Ana Maria. É que Gabriel, nem de longe, conhecia o real motivo de sua mudança: Camila.
Calada, retesando o corpo, com o estomago completamente revirado, ela assistiu o monólogo sendo encerrado. E no desfecho, o marido ergueu-se com os olhos vermelhos pelo choro e disse que rumava para o aeroporto. Passaria uma semana distante, a trabalho, momento que deveria ser utilizado por ambos para dissiparem suas dúvidas, repensarem o relacionamento e, finalmente, modelarem o que podia e o que precisavam para continuar juntos. Era este o seu desejo.
Intimamente, Ana Maria só pôde perceber que a vontade elucidada pelo marido era tão solitária quanto o monólogo que este encerrava. Mas aquele, definitivamente, não era o momento de refutar o plano do outro. Que ele viajasse, que a poeira baixasse. Ela esperaria seu regresso para dizer-lhe de seu projeto: separar-se e dar nome ao que tinha com Camila, vivenciando com a plenitude merecida o amor que sentiam. É que tal plano havia sido mais forte do que ela, pois, antes mesmo de concebê-lo em mente, fora construído com vigas profundas e muito concreto num terreno que encontrou fértil: seu coração.
Durante a semana vindoura, Ana Maria e Camila experimentaram o amor que ousa dizer o nome. E assim, as ruas de Recife, todos os cafés, todas as esquinas, as praças que pareciam perfeitas mesmo nos dias de chuva, os museus, os viadutos, as galerias, as beiras de mar, as margens de rios e todos os recantos que existiam dentro e fora delas duas foram estreitos e insuficientes para abrigar a intensidade do que sentiam.
Mas, como sempre, houve um contraponto. E, na sexta-feira, as duas ousaram, pela primeira vez, irem a uma boate gay juntas. Ana Maria queria conhecer o que Camila denominada submundo. No fundo, talvez a moça quisesse antever o que lhe esperava.
Depois de muitas ressalvas e tentativas de dissuadi-la, Camila concordou e, cedendo, a levou. Sem qualquer poesia, o ambiente escuro, a fumaça e a mistura das luzes logo inquietaram Ana Maria que, surpresa, via pela primeira vez casais gays se beijando, se tocando, dançando sensualmente e de forma tão lasciva quanto alucinada.
A princípio, apesar do desconforto, Ana Maria insistiu em ficar. Tinha necessidade de se testar, de ver até onde seria capaz de mergulhar de cabeça no mundo que Camila, de há muito, habitava. O suor frio, o brilho turvo dos olhos denunciavam a Camila a agonia da outra, mas, com teimosia, Ana Maria sorveu a primeira dose de vodka. E a pediu pura, como nenhuma das criaturas que ali dançavam lhe parecia. Em verdade, todos os gays, naquele momento, aos olhos da expectadora, se mostravam extremamente despudorados.
E logo o fogo tomou suas faces e Ana Maria, tentando sentir-se igual naquele meio, enlaçou Camila pela cintura e ensaiou um beijo tão explícito quanto os que assistia. Acompanhando-a em língua e em desejo, a outra correspondeu na mesma intensidade, só que, ao contrário de Ana Maria, sentindo-se extremamente confortável com o ambiente e com os olhares.
Mas, naquele momento, nem mesmo os braços de Camila lhe serviram como abrigo. E Ana Maria tonteou graças ao efeito do álcool e da verdade que a consumia: ela não se via daquela forma e nem o queria.
Desvencilhando-se bruscamente de Camila, ela olhou-a com estranheza. O efeito da vodka multiplicou-se aliado à seus medos e procurando um espelho, ela também se desconheceu. Aturdida, abatida, vendo-se assim refletida, ela pediu para ir embora e Camila prontamente obedeceu.
Mas, enquanto se encaminhavam para a porta uma loira voluptuosa em gestos e curvas interrompeu-as com o próprio corpo, pondo-se entre as duas, de frente para Camila. Olhando nos olhos negros, a desconhecida de Ana Maria mostrou-se perfeitamente conhecida da outra e, sem qualquer desfaçatez e em tom provocativo, propôs:
- Vamos fazer um trio novamente ou essa ruiva é exclusiva, Camila?
Sem resposta e sem ar, Camila deu as costas e saiu rapidamente, puxando Ana Maria pela mão de forma desgovernada e quase arredia. Era sua tentativa de protegê-la daquele mundo que para si própria, naquele instante, lhe parecia inteiramente promíscuo e vazio. Ela estava farta daquilo, mas disto Ana Maria não sabia.
E então, o jogo do desencontro. No carro, Ana Maria chorava compulsivamente, enquanto Camila tentava acalmá-la. Mas nada a convencia, nada se mostrava capaz de estancar aquele choro, nem mesmo um sonoro “eu te amo” profundamente pronunciado por Camila. Ana Maria, simplesmente, não acreditava. Via-se como mais uma nas mãos daquela que, agora, lhe parecia outra Camila. Elas não eram mais iguais. Não eram mais delas, não se pertenciam. E isto foi tudo o que Ana Maria disse durante o percurso.
E ao descer do carro, sem qualquer cuidado, Ana Maria bateu a porta. E, somente naquele instante, Camila sentiu o peso das mãos da outra.
A sala recebeu Ana Maria com as luzes apagadas e, tomada de sua própria escuridão, ela deitou-se de qualquer jeito no sofá. Sua cabeça rodava e ela não sabia mais o que queria. Para sua surpresa, Gabriel havia voltado para casa e, silencioso, caminhou em sua direção, sentando no chão.
Percebendo o estado da esposa e supondo-o fruto da saudade que ele não era mais capaz de provocar, o rapaz olhou-a profundamente, dizendo que a amava demais e que queria o conforto daquela sala novamente, daquela vida partilhada, daquela boca que, na seqüência das palavras, ele beijou.
Tomada da necessidade de fugir daquele emaranhado de sentimentos que a atormentavam e, sobretudo, dos olhos de Camila, Ana Maria cedeu ao beijo e ao abraço. Atordoada, assistiu Gabriel despir-se e foi por ele despida. Mas, se seu corpo estava ali, sua alma voltou-se ao passado e especificamente pousou nos braços de Camila. Só então seu ventre encheu-se de umidade, fazendo o membro ereto deslizar para dentro de si e, no aprofundar dos segundos, jorrar de forma intensa, enquanto ela fechava os olhos e queria sumir.
E os dias transcorreram sem que Ana Maria desse notícias. Camila, desolada, não acreditava naquele desencontro. Elas que haviam nascido para o reencontro, não podiam terminar daquele jeito, era este seu pensamento. De tão aturdida, Camila abandonou momentaneamente o escritório, esqueceu-se do livro e sequer enviou o primeiro capítulo que serviria como conto. Desistiu do concurso, mas não desistiria de Ana Maria.
E tomada desta certeza, em mais uma noite de chuva, depois de meses de espera, Camila foi à casa de Ana Maria. Bem sabia que sua atitude não era nem de longe sensata, mas, definitivamente, àquela altura não conseguia mais agir com sensatez.
Para sua sorte, no momento em que seu carro despontou na rua, Ana Maria também chegava e antes que ela entrasse na garagem, Camila correu pela rua, alheia à chuva, alcançando-a.
Ao bater no vidro do carro, Camila viu Ana Maria olhá-la, primeiramente, com susto e depois com desespero. A dor era tanta que os olhos de chuva sequer pareciam os mesmos. Algo neles havia se dissipado. Talvez a vivacidade, talvez a ingenuidade, talvez o amor, talvez o respeito. Camila não soube definir.
Apressada, Ana Maria abriu a porta e saiu, puxando Camila pela mão até chegarem ao carro da outra. O coração de ambas batia tão forte que demoraram a articular as primeiras palavras. Até que Camila, finalmente, conseguiu:
- Desculpe-me pelo incidente na boate! Eu já fui mesmo uma Camila indigna de você! Mas, em meio a todas as dúvidas que me assombraram nestes meses, só encontrei uma certeza: eu te amo e foi este amor que me fez renascer. Hoje sou outra, uma Camila que apenas você conhece e mais ninguém há de conhecer.
No carro, a música que tocava era O Chamado e Ana Maria, reconhecendo imediatamente a melodia, olhou para Camila como no dia em que a escutaram juntas pela primeira vez. Naquele instante, o olhar nublado deixou fulgurar alguma luz, enquanto a dona dos olhos azuis disse mansamente:
- Eu acredito em você.
E tomando os lábios de Camila com os seus, Ana Maria sorveu o gosto que apenas aquele beijo possuía: o da mistura de café com chuva. E ali as duas se reconheceram.
Mas, em poucos minutos, interrompendo aquele reencontro, Ana Maria afastou-se e, pondo fim ao ar de mistério que pairava em seu silêncio, deixou seus olhos perderem o último vestígio de luz ao dizer:
- Camila, eu estou esperando um bebê.
E deixando que tais palavras estocassem o coração de Camila, Ana Maria, antes de sair do carro, interrompendo O Chamado, pôs no som outra música, também escolhida a dedo. E na casa dos segundos a melodia iniciou intensa, com batidas abafadas intercaladas com acordes suaves de um violão. Era a simulação de um coração que, naquele instante, pareceu a Camila extremante aturdido. E este era o novo recado deixado por Ana Maria na voz de Marina Lima:
Olhar você e não saber Que você é a pessoa mais linda do mundo Eu queria alguém lá no fundo do coração
Ganhar você e não querer É porque eu quero que nada aconteça Deve ser porque eu não ando bem da cabeça Ou eu já cansei de acreditar
O meu medo é uma coisa assim Que corre por fora entra, vai e volta sem sairOh, não ! Não tente me fazer feliz Eu sei que o amor é bom demais Mas dói demais sentir,
Mas dói demais sentir...
Agora, enquanto a música tocava, tudo se explicava: o silêncio, o mistério, o afastamento de Ana Maria. E, naquele momento, Camila também não a reconheceu, tampouco se reconhecia. Ela bem deveria saber que a outra jamais retiraria a aliança do dedo, quiçá aceitaria criar aquele filho consigo.
E sua indignação crescia enquanto ela acelerava o carro e aumentava o volume do recado. Com a visão comprometida pela chuva e pela raiva, ela concluiu que Ana Maria, apesar de tudo, ainda continuara insistindo em engravidar e, em verdade, nunca havia deixado de transar com o marido. Como havia sido cega e estúpida!
Sentindo-se pelo avesso e avessando a própria realidade, tudo o que Camila desejou foi voltar ao seu conto, mergulhar em seu lago digital, onde, uma vez submersa, dava ao enredo o curso que queria, recobrando inteiramente a direção da vida que, apesar de inventada, também era sua.
E assim, invadida pela vontade de transpassar a tela, de transpassar os vidros, aumentou de forma alucinada a velocidade enquanto sentia o acelerar de seu próprio pulso.
Mas o único vidro que se estilhaçou foi o do carro que, numa derrapagem, arremessou-se numa das tantas pontes do Recife encontrando com força extrema as águas do Rio Capibaribe onde Camila, ironicamente, terminou por submergir. É que ela, ao inverso de seu desejo, perdeu completamente a direção.
Recobrando a consciência ou a inconsciência, sem noção do tempo decorrido, Camila, ao abrir os olhos, deparou-se com o olhar de chuva pousado em si. Mas, no piscar seguinte, os olhos que lhe pareceram ser os de Ana Maria, aos poucos, clareavam e adquiriam outros traços, outros laços, outras formas, também a prendê-la, a domá-la, a lhe causar vertigem. De repente, raios esverdeados os invadiam e o céu nublado tornou-se extremamente claro, translúcido, adornados com sobrancelhas loiras, assim como os cílios.
E a mulher vestida de branco que, naquele momento, deixava de observar seus olhos e passava a examinar seu corpo finalmente foi reconhecida por Camila. Era ela: Ângela, a sua Ângela. E nas mãos dela não havia qualquer aliança, tampouco em seus olhos verdes dormitava o medo.
Se aquela imagem retratava sonho ou realidade, se aquela mulher existia em seu conto ou em sua vista, Camila não soube responder, ao menos do avesso da tela onde dormia.
E a última frase ouvida foi uma que nunca havia saído de sua mente, tampouco deixado de ecoar em seu coração:
- Paramos por aqui...por hoje. Mas queria te ver amanhã...
FIM
Para aquela com quem me reencontrarei por todas as vidas.
Com amor,
Marina Porteclis.
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