sexta-feira, 26 de setembro de 2008
A VIDA DURA (Poesia)
Mesmo quando se perde a chave do carro,
Mesmo quando se chega atrasado,
Mesmo quando se anda estressado,
Com o preço do combustível,
Com o cheiro dos esgotos,
Com o vazio que corroí a alma,
Com a inquietude que dissipa a calma,
Com a angústia que fere, mas não mata
E a vida dura
Mesmo quando não se tem fome,
Mesmo quando não se tem cura,
Mesmo quando se esquece o nome,
Daquilo que se sente quando se perde o que não se tem
Ou se acha o que não procura
E a vida dura
No silêncio das palavras,
No barulho das ausências,
Nas varandas, nas janelas, nas sacadas
De onde a vista é encurtada
E não se põe horizonte
Nem se semeia violetas, rosas ou verbenas
E a vida dura
Mesmo quando já não há espanto,
Mesmo quando já não há encanto,
Mesmo quando se preserva o que não mais dura
E a vida dura
Mesmo quando tão pungente
Mesmo quando de repente
Deixa de valer a pena
E o poeta diz que vale
Se a alma não é pequena
E a vida dura mesmo quando se mente
E a vida dura
Com ou sem o pão nosso de cada dia
Com ou sem o pai nosso de cada dia
Sempre há alimento
Viva-se de mentiras ou de verdades,
Viva-se de aleluias ou lamentos
E a vida dura
E, sem poesia ou piedade, nos segura
Pelos últimos fios,
Pelas últimas seivas,
Pelas últimas crenças,
Até que, cansada, nos liberta,
E, traiçoeira, nos arremessa
Para a morte de mais um corpo
Enquanto se cava mais um fosso
Em meio à terra plana e adubada de sonhos
Mas nem aí jaz nosso último embate
Pois mesmo quando se morre
A vida dura
E é dura também na imortalidade.
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
RÉGUA (Poesia)
E desde cedo engolimos o que, fatalmente, nos servem aos estoques:
Verdades que já nascem prontas, tontas, inverossímeis,
Certezas que morrem quando saltam dos livros e ganham o chão,
Sentidos que existem apenas no domínio do possível, do previsível, do digerível,
Histórias legendadas, limitadas, mediocridade em horário nobre
E assim crescemos consumindo fórmulas, molduras, modelos, antídotos
Incapazes de nos curar dos males que criamos
E que descem pontiagudos por nossas gargantas inflamadas de vícios
Enquanto nossas vozes e vontades restam represadas, pavimentadas, amarradas
Por um nó tão cruel quanto invisível
Sufocados, poucos seguem abandonando as regras e as rédeas,
Escapando das réguas com as quais o outro ousa pautar-lhe o destino;
Cansados, muitos morrem à beira do caminho;
Indignados, tantos se perdem mirando um vale que não existe;
Miragens feitas de sombras e luzes que oscilam e encandeiam
Aqueles que ousar enxergar além do permitido e do espelho
E eu, que já saltei dos braços de tantos mitos,
Não aceito esta garganta seca, tampouco os entraves de cada gole sorvido
Não aceito esta placa que sinaliza o “não” frente ao meu desejo contido
Não quero o antídoto que me servem para cada frustração
Não quero a falta de ar, a margem, nem a miragem do caminho vão
Não quero o que já nasce construído
Quero a verdade que eu criar, ainda que impossível
Quero devassar de antemão todos os meus jazigos
Quero a régua curva, trincada, inservível para a retidão
Quero a régua curta, incolor, sem medição de centímetros
Tudo o que exijo é conduzi-la com minhas próprias mãos
O projeto que me cabe é o que tracejo
Ainda que tosca, ergo minha construção
E da janela de vidros fechados e espessos
Lamento por todos aqueles que se solidificam feito gelo
Em cubos pré-moldados que, ao mínimo sol, derreterão.
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
RECIPIENTES (Poesia)
Seja ela feita de vidro,
Seja ela feita de muro,
E assim tudo o que digo
Cabe no vazio que desnudo
Entre a letra e sua ausência
Entre mim e meu escuro
A palavra é recipiente do qual me sirvo
Para derramar o que sinto
Para conter o que não seguro
Se calo ou se minto
Não importa
De tudo se diz mesmo em letra torta
Quem me conhece, me decifra
E eu, finalmente, desponto
No domínio do escrito,
Sobretudo do não escrito,
Nas reticências ou ponto.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
O JARDIM SECRETO (Capítulo I)
VIOLETAS
Imagens disformes e vacilantes formadas pelas sombras das árvores no chão, que pareciam dançar mesclando o sol e sua ausência no piso do terraço, graças ao vento da tarde que arremessava os eucaliptos para todos os lados. Era esta a cena que atraía a atenção de Marília.
Deitada em uma das redes que rodeava a casa, observava aqueles desenhos formados ao acaso. Instintivamente, introspectiva desde sempre, voltou-se para dentro de si, comparando e mesclando também as imagens de seu presente e passado.
As imagens da infância eram tão turvas e desconexas quanto as que se formavam nos recantos do piso, beirando a parede e os umbrais das portas da varanda que davam para dentro de casa. Quando criança vivia com os pais, mas guardava de ambos pouquíssimos detalhes.
Da mãe, recordava-se dos olhos esverdeados e puxados feito os seus, do cheiro adocicado do hálito e do tom cálido da voz, que, vez por outra, lhe entoava canções antes de dormir.
Do pai, lembrava-se da textura grossa das mãos, donde advinham afagos tão raros quanto pesados, da barba impecavelmente aparada, que exalava um perfume cítrico, semelhante ao dos eucaliptos que naquele instante se embalavam.
Dos dois juntos, mal se recordava. Talvez de um passeio de mãos dadas num final de tarde feito aquele, o qual nem mesmo Marília soube ser real ou inventado. A vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.
Os recortes da adolescência eram os mais claros. A nitidez, capaz de arder na íris e na alma da que lembrava, advinha, sobretudo, de um fato: aos dezesseis anos expulsaram-na de casa. E tal evento deveu-se também a uma cena, esta menos nítida e vista não propriamente por Marília, mas por seus pais, no espaço restrito da fechadura de uma porta: a de seu quarto.
Ironicamente, no dia em que a observada descobrira-se viva, pensando-se guardada e protegida em seu quarto, num primeiro beijo partilhado com uma jovem igualmente apaixonada, os pais desejaram-na morta. Diante da impossibilidade do concreto, retiraram-lhe o chão e o teto.
Atravessando o jardim que adornava a casa paterna, ela foi arrastada por entre a alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas suas favoritas. Par e passo, as pegadas dos pais, ladeando as suas, iam sendo fincadas no solo de tão pesadas e duras. Enquanto as folhas e flores eram arrancadas pelos passos trôpegos da menina aturdida, a terra subia e sujava as vestes que usava, únicas que levaria. Não sabia que se sentiria impregnada por aquela terra escura durante tantos anos, tampouco sabia que as pegadas deixadas por aquele dia continuariam marcando o solo de sua jornada, mesmo depois que as primeiras chuvas apagassem as que marcaram o caminho de sua antiga casa.
Enquanto atravessava o portão baixo, de ferro adornado, que separava seu antigo lar do mundo, Marília sentiu formar-se dentro de si um imenso deserto. E, naquele instante de choro e vazio, não soube se, um dia, algo de bom ainda brotaria por ali.
O choro já não era audível, nem externo, quando Marília foi deixada na porta daquela que se tornaria sua casa. Parada diante do portão imenso, na mansão do único tio, limitou-se a olhar para frente, ainda que, naquele momento, visse tão somente um muro alto e de pedras escuras.
Acompanhou, apenas com a audição, a partida dos pais que, acelerando o carro, deixaram-na para trás. Mas ela seguiria em frente. Com o pouco de força que encontrou, abraçou-se ao tio Abílio, que, naquela época, era para si um desconhecido, mas o único capaz de lhe oferecer abrigo. Ele lhe abriu os portões, ela entrou.
E agora estava ali à sua frente, o seu presente. O tio era um grande amigo e, alheio à retrospectiva que Marília, involuntariamente, fazia, vinha ao seu encontro, chamando-a para o chá da tarde. Com a cabeça branca e os olhos claros, com um sorriso amistoso e um beijo suave pousado na cabeça da sobrinha, despertou-a do devaneio proporcionado pelas imagens. Instantaneamente as sombras se dissiparam e Marília, erguendo-se da rede, aceitou o convite, mas, antes de dar o primeiro passo rumo à sala, o abraçou.
Abílio, com estranheza, apertou-a nos braços, afagando com graça os cabelos curtos e lisos de Marília, já desalinhados pelo vento. Curioso, perguntou o porquê daquela demonstração súbita de afeto, o que era uma raridade. E aquela que, para ele, ainda era uma menina, com a voz de adulta, prontamente lhe explicou:
- Saudade.
Se ela sentia saudade do contato proporcionado pelo abraço ou de algum fato perdido no passado, Abílio não soube precisar. Na verdade, nem mesmo Marília sabia do que sentia saudade. Talvez de um tempo bom que ainda não havia vivido, apesar dos trinta anos de idade.
O portão imenso que um dia lhe deu passagem, guiado pela mão de Abílio, depois da entrada de Marília, fechou-se tanto quanto a jovem que, durante os anos vindouros, imitando a fortaleza e imponência dos portais, não deu acesso a mais ninguém, a não ser ao tio. E talvez a falta que sentisse naquele instante fosse exatamente de um tempo em que, mais do que muralha, ainda se sentia capaz de ser ponte ou cais.
Antes de entrar na sala, a moça ousou olhar para o chão da varanda e já não existia nem luz, nem sombra. Era noite. A noite que sempre lhe restou.
Ela e o tio se entendiam, mesmo sendo ambos extremamente calados. Seus olhares eram, na maior parte das vezes, o bastante para travarem os mais diversos e sinceros diálogos. Eram cúmplices e parecidos, em silêncio e em semblante. Poucos sabiam que naquela casa não morava pai e filha, mas tio e sobrinha.
O casarão ficava em Aldeia, recanto conhecido pelo clima frio, pela tranqüilidade, pelo ar de campo, pelas frondosas árvores, pelo sabor de fazenda, apesar de distar poucos quilômetros de Recife, a grande cidade. Morar ali era feito morar no interior. Nada mais apropriado para dois intimistas bem peculiares.
Com vários quartos, salas, dentre outros tantos ambientes, todos adornados de forma aconchegante e condizente com a personalidade de ambos, a mansão contava ainda com uma imensa varanda, que, povoada de redes e plantas, verdadeiramente a circundavam.
O terreno, por sua vez, era composto por vários lotes, alguns planos, outros em relevo rebaixado, de modo que, no próprio quintal de casa, existia um genuíno vale formado graças a um córrego estreito que atravessava o derradeiro lote, avizinhando-se à mata.
E foi à beira daquele vale que Marília, livrando-se, dia a dia, de seu deserto, construiu seu jardim secreto, onde nem mesmo o tio ousava passear. Ele bem sabia das manias da sobrinha e, sobretudo, sua necessidade de solidão. E era ali que a moça, exorcizando fantasmas, construíra anos a fio uma alameda de violetas, roseiras e verbenas, estas últimas, ainda, suas favoritas.
E o jardim secreto, por si mesmo, falava. A plantação não era aleatória, mas permeada de significados. As violetas eram plantadas em dias de tristeza; as roseiras, em dia de inquietude; as verbenas, em dias de alegria, bem por isto o canteiro destinado às últimas era o mais curto, tomando o mínimo de chão.
Naquela tarde, mesmo debaixo de chuva, Marília havia plantado meia dúzia de violetas, cuja cor ainda lhe parecia confusa. As comprara como azuis, mas, na dúvida, preferiu não apostar na futura tonalidade daquelas flores, como não apostava nos tons dos dias vindouros.
O irmão, que há anos não via e com quem pouco convivera, regressaria a Recife. O real motivo de sua volta, ela e Abílio não suspeitavam. A desculpa dada ao tio tinha sido simplória e pareceu a Marília um tanto quanto desconfiável: o rapaz, de vinte e sete anos, depois de levar uma vida desregrada em São Paulo, sustentado pela escassa herança dos pais, já falecidos, viria tentar a vida com a noiva em Recife. Dizia sentir saudade dos verdadeiros laços. Queria rever o tio e Marília, os únicos que possuíam seu sangue e com quem poderia trilhar novos passos. Estava cansado da loucura que experimentava desde adolescente, perdido naquela cidade entre os maiores lunáticos, envolvido no meio artístico e de marketing, onde conheceu as figuras mais esquisitas e intragáveis. Foi o que, com ênfase, relatou ao pedir uma chance a ambos, além de hospedagem. Queria o aconchego de um lugar calmo e de uma nova vida, onde pudesse, realmente, tomar ares mais suaves.
Apesar de pouco convencido, desconfiado que era por natureza, Abílio estancou diante do instintivo não. Respirando fundo, olhou para Marília, que, ao lado, supunha o teor da conversa, tanto pelas palavras intercaladas que ouvia, quanto pelo silêncio de consternação que demarcava a testa franzida do tio. Também contrariada, mas sem muita opção, a moça assentiu com a cabeça, dando suporte à decisão. Em verdade, o fez mais por receio de cometer uma injustiça do que por seguir o que lhe dizia a razão. A ligação interurbana era cara, dizia o rapaz, enquanto relatava com exagero sua atual situação financeira, com o intuito de apressar a deliberação. E ela veio do jeito que ele e Sarah esperavam.
O plano era tão simples quanto sórdido: Abílio estava doente e possivelmente aquele seria o último ano de sua vida. A notícia chegou aos ouvidos de Rafael, causando-lhe um sorriso nada disfarçado. O tio era um grande empreendedor, possuidor de patrimônio incalculável. Não tinha esposa, nem filhos, apenas os dois sobrinhos. Marília era, por óbvio, a única considerada em termos de herança. Mas aquela situação poderia, certamente, ser revertida. E isto seria, a seu ver, inteiramente fácil.
Apesar de o assunto sempre ter sido escondido pela família, Rafael já tinha ouvido, por entre as paredes, os pais comentando sobre a orientação sexual da filha, motivo pelo qual expulsaram-na de casa. E, em seu imaginário, trazer a tona tal circunstância e de maneira politicamente incorreta seria o bastante para que o tio, possivelmente tão conservador quanto a irmã, deserdasse a sobrinha e, novamente, a deixasse sem nada.
Na seqüência, somente a ele caberia a fortuna a ser herdada, até por que pretendia ganhar a confiança e carinho do tio. Para tanto, não hesitaria em articular a forma exata de enlamear a imagem da irmã, que, a seu ver, nem deveria ser tão casta.
Para pôr o plano em prática precisaria de uma coadjuvante e logo lhe veio um nome à mente: Sarah. Ela, dentre todas as namoradas de Rafael, fora a única que chegou a participar de suas escolhas equivocadas com igual entusiasmo. A ousadia lhe era um atributo nato. Da forma de se vestir, à de se portar, ousava. Ademais, sua beleza, que beirava a estranheza do excêntrico, fatalmente envolvia a todos que desejasse. Era segura de si e, por vezes, essa segurança extrapolava o bom senso, tornando-a extremamente arrogante e intimidando quem quisesse enfrentá-la. Mas nada que ela não soubesse remediar, ainda mais quando era necessário seduzir e ludibriar o adversário.
O namoro durou pouco tempo. A irresponsabilidade de ambas as partes era tanta que, juntos, concluíram que se matariam. As noitadas, as drogas, as companhias, as brigas sempre exacerbadas, culminaram com tantos atropelos e desgastes que decidiram terminar. Entretanto, vez por outra ainda se encontravam. A atração nunca deixara de existir e, pelo menos fisicamente, eles a arrefeciam quando, esporadicamente, transavam.
Sim, somente Sarah, que era tão sórdida quanto o próprio articulador do plano, aceitaria o convite. Ainda mais com pagamento garantido e em curto prazo. Foi com este pensamento que, na última semana, Rafael a procurou.
Os dois se encontraram no estúdio de um artista plástico que se dizia amigo de Rafael, desde que este lhe servisse algumas carreiras de cocaína ou coisa mais “louvável”, era este o pacto. O pequeno e bagunçado espaço, cujas paredes eram tomadas de desenhos sombrios, geralmente era o usado pelo casal quando, no meio da tarde, arrumavam tempo para uma transa, onde nada era muito convencional.
Daquela feita, despiram-se sem dizer nada. Ele já excitado, ela convencida de que se sentiria mais leve depois de alguns orgasmos. Vinha se sentindo tão pesada, tão cansada daquela vida vazia de sentido, apesar de cheia de fatos.
Tomando-a de forma vigorosa e apressada, Rafael a empurrou num sofá acinzentado feito o céu daquela tarde fria em São Paulo, fazendo-a abrir as penas com um sorriso sarcástico enquanto anunciava a novidade. Sarah cedeu com a respiração já alterada e, enquanto o sentia invadindo sua carne, olhava-o nos olhos, como costumava fazer, sempre mantendo o controle e esperando. Ele, então, começou a relatar, com palavras entrecortadas e a respiração sôfrega, o tão estimado plano, enquanto, de forma ritmada, a penetrava.
O prazer estampado em seus olhos encontrou respaldo nos olhos de Sarah, que atentamente o assistia, o ouvia e, sobretudo, o recebia dentro de si, em paridade de vontade e crueldade.
E assim, enquanto se moviam de forma cada vez mais intensa e acelerada, a doença terminal do tio, o patrimônio deste, a herança a ser deixada, as investidas para seduzir Marília, a cunhada, e de mostrá-la como uma lésbica inescrupulosa capaz de roubar a noiva do próprio irmão, serviram de afrodisíacos. E os dois, ao selarem o trato também de forma ritmada, gozaram.
Depois do gozo, os corpos suados deitaram de forma displicente no tapete que se estendia, salpicado de tintas coloridas, sob o sofá. Silenciosos, respiraram fundo, ambos olhando o teto, enquanto acendiam cigarros. Mas, naquele instante, não havia o costumeiro tédio que os assolava depois do orgasmo. Eles ainda se sentiam preenchidos.
Finalmente o dia da viagem chegou e com ele, muita inquietação para quase todos. Enquanto Marília, em seu quarto e insone, assistia a chuva escorrendo pela janela, Rafael, Sarah e Lis inquietavam-se no avião. Cada um experimentado as turbulências que lhes eram inevitáveis.
Marília, com a chegada da noite, já identificava com precisão o sentimento que a tomava, ousando adivinhar a tonalidade e as flores a serem semeadas nos dias vindouros, o que ainda não havia feito no início da tarde. O sentimento era o de inquietação. Sentia-se inteiramente apreensiva com a chegada do irmão, da cunhada e da filha desta, que se daria em algumas horas. E se naquele instante possuísse disposição, se ergueria e plantaria uma roseira na madrugada.
A doença de Abílio vinha sendo a responsável pelas inúmeras noites que Marília virava insone. Graças ao câncer que, gradativamente, tomava o corpo do tio, o canteiro de violentas, também de forma gradativa, crescia e tomava a maior parte de seu jardim secreto. Mas, definitivamente, no dia seguinte, depois de muitas violetas plantadas, Marília voltaria a semear roseiras. E que o jardim, por ela, falasse. Afinal, a inquietação, naquela noite, mais do que a tristeza, lhe aturdia e lhe fazia prever os novos canteiros que estavam por vir, todos feitos de rosas vermelhas.
Já Rafael e Sarah, estes se inquietavam com a farsa que começariam a vivenciar no dia seguinte, trajando as vestes do casal perfeito que, em harmonia, dividia a vida com a menina de sete anos, filha de Sarah.
Rafael seria o jovem de boa índole que pedira ajuda ao tio, aceitando o emprego em sua construtora, especificamente no projeto que se iniciava em Aldeia, onde seria construído, sob os comandos da engenheira, Marília, um grande e luxuoso condomínio.
Sarah seria a noiva solícita e doce, praticamente esposa, que, acompanhando os sonhos e projetos do quase marido, também aceitara mudar de vida e de ares, mesmo que, para tanto, fosse preciso morar momentaneamente e de favor na casa do tão querido tio Abílio. E ela já chegaria dizendo que o sobrinho, do tio, muito falava.
Lis, na inocência de seus tão poucos anos, era a única que não interpretava. Apenas sorria, enquanto percebia a mãe e o ex-namorado vestindo roupas formais e falando sem gírias, forçando bons modos, com os quais não estavam acostumados.
Abílio era o único que, naquela noite, dormia. Já não temia a morte, quiçá as intempéries da vida. Não havia flores a escolher, tampouco farsas a ensaiar. Apesar de doente, sentia-se curado de grandes males.
O JARDIM SECRETO (Capítulo II)
ROSAS
Parados diante do portão destinado ao desembarque, Sarah e Rafael, impacientes, esperavam. O Aeroporto Internacional dos Guararapes estava absolutamente lotado. A confusão era patente dentro e fora do saguão e o tumulto era causado por pessoas e carros, que, apressados, pareciam querer fugir dali. Férias do meio do ano, eis a explicação.
Enquanto o casal partilhava o mesmo cigarro, dialogando em voz sussurrada e intercalando os tragos, Lis observava as crianças que, feito ela, viajavam de férias. Esta fora a explicação dada pela mãe quando falou da ida a Recife. Sarah havia lhe alertado, entretanto, de que aquelas férias poderiam ser mais longas do que o normal. Mas a menina não pareceu preocupar-se. Não se sentia feliz em São Paulo e, em seus sete anos de idade, acreditava que a infelicidade poderia advir do local que habitava, desconsiderando o peso das pessoas que a acompanhavam. Talvez em Recife se sentisse feliz, cogitava a menina enquanto percebia as crianças ao seu redor sorrindo e correndo animadamente pelo aeroporto. Tudo lhe parecia novidade.
Nos derradeiros tragos, forçando os últimos vestígios de bom-humor, Sarah questionou a Rafael:
- Será que eles desistiram de abraçar a causa?
E ele logo retrucou em voz igualmente baixa, permeada de fumaça e de sorriso:
- Não, minha querida. Eles não têm como descobrir que sou uma causa perdida.
Encerrada a frase, o cigarro foi lançado ao chão e esmagado com a ponta do sapato lustroso e sofisticado. A força depositada no ato anunciava que Rafael já não estava tão seguro quanto tentava demonstrar. Atenta, Sarah observou a cena e tentou descontraí-lo, mudando de assunto:
- Já se conformou em aposentar os tênis?
Lembrando do Adidas surrado que o levou até a loja onde, dissipando as últimas notas de cinqüenta reais, havia comprado aquele sapato, Rafael ponderou em resposta:
- É fácil se adaptar ao mais caro.
E os dois deixaram de dividir o mesmo cigarro, para partilhar do mesmo sorriso e do mesmo sarcasmo. Eles, assim como Lis, experimentavam da felicidade equivocada que conheciam. E para ambos tudo era, também, novidade.
Antes de embarcarem, Sarah havia questionado ao falso noivo se a cunhada era mesmo entendida. E o rapaz, em gracejo, disse-lhe que qualquer mulher passaria a gostar da fruta, caso Sarah oferecesse a sua, ainda mais descaradamente, como era a proposta do plano. Mas a moça não pareceu gostar da resposta. Queria a certeza da homossexualidade e não mais uma piadinha de mau-gosto.
Entendendo perfeitamente o recado, graças ao simples erguer de sobrancelhas de Sarah, ato que ainda tinha o poder de intimidá-lo, Rafael retomou a seriedade e lhe disse:
- Você verá com seus próprios olhos.
E agora, enquanto a caminhonete de cabine dupla se aproximava e era apontada pelo rapaz como sendo a da irmã, Sarah compreendia cada palavra. Apesar dos vidros escuros, a silhueta da condutora já podia ser analisada. E, pelo menos daquela distância, a moça que dirigia poderia facilmente ser confundida com um rapaz.
Um belo rapaz, ponderou Sarah quando Marília, finalmente, desceu do carro e encaminhou-se para o lado do passageiro, onde o tio estava. Com cuidado extremado, a sobrinha o auxiliou na descida. Abílio se sentia fraco e já não se movia com a mesma leveza de outrora.
O vento que açoitava a tarde fazia com que os cabelos lisos e curtos inquietassem o semblante da moça, que, entretanto, em momento algum deixou de ocupar as mãos com o tio, até que este se postasse com retidão e a olhasse, dizendo-lhe em silêncio que já poderia soltá-lo. Só então, as mãos longas tocaram os fios e, num gesto rápido, os puseram no lugar.
O corpo esguio, com pouco busto e ombros largos; as vestes simples, formadas por um jeans surrado e uma camiseta básica; os tênis sujos de terra; os olhos puxados, de sobrancelhas grossas e íris clara; o maxilar quadrado e a boca rubra, apesar da ausência de qualquer maquiagem, faziam com que Marília lembrasse, de fato, um jovem de corpo magro e rosto de porcelana, semelhante aos modelos mais andróginos que ousavam fotografias nada convencionais.
A observadora riu e, desviando o olhar para Rafael, meneou a cabeça em sentido afirmativo, como se, finalmente, confirmasse a homossexualidade da moça. Tudo daria certo, foi o que ambos, silentes, concluíram.
Abílio abraçou o sobrinho com pouca intimidade e, logo em seguida, Sarah. Interrompendo as apresentações, Lis se aproximou e, enquanto puxava a mão da mãe, olhou na direção de Abílio, como se anunciasse também sua presença mirim. O senhor riu e, com suavidade, perguntou:
- E quem é essa mocinha tão bonita?
A criança de olhos intensos e escuros logo respondeu com doçura ímpar:
- Eu sou a Lis – e deixou Abílio boquiaberto com a simpatia do sorriso que lhe foi lançado.
Enquanto isso, Marília abria a mala do carro, observando de esgueira a cena, enquanto ainda se preparava para o encontro. Geralmente não gostava de contato físico, muito menos com estranhos. E aqueles três não passavam disto, inclusive o que trazia no corpo o mesmo sangue.
Diante da impossibilidade de adiar o contato, aproximou-se em passos firmes e rápidos, olhando o irmão nos olhos, enquanto ignorava a presença das outras duas. Parando diante do par de olhos também puxados, Marília respirou fundo e disse com polidez:
- Seja bem-vindo.
Antes que Rafael fizesse menção de abraçá-la, a moça estendeu a mão e o cumprimentou com vigor. Não havia espaço para mais nada naquele momento e ele sabia disto. Pressentindo o mesmo, Sarah limitou-se a cumprimentá-la da mesma forma, apresentando rapidamente a filha.
Acuada, Lis também estendeu a mãozinha. O aperto foi suave, mas a anfitriã não sorriu para a criança quando a cumprimentou.
Abílio sabia que seria assim e, sem esboçar qualquer surpresa, tocou de leve o ombro da sobrinha, como se dissesse que estava na hora de partirem antes que o desconforto do silêncio se tornasse ainda mais pesado.
Eles foram e durante o percurso, embora a certeza da homossexualidade existisse, já não parecia tão simples seduzir aquela criatura.
O início da estrada, naquele final de tarde, estava mais engarrafado do que o normal. O emaranhado dos carros anunciava, para o pesar de todos, que o percurso até Aldeia seria demorado. Com o intuito de quebrar o constrangimento inicial, Abílio puxava assunto e questionava como havia sido a viagem.
O casal respondeu e Sarah, já fazendo uso de seu disfarce, ensaiava a simpatia que não tinha, emendando o assunto com outras amenidades. Falou sobre o clima frio de São Paulo; a alegria de estar conhecendo o Nordeste; relatou alguns comentários graciosos da filha, elucidando ainda a inquietação da criança durante toda a semana que antecedeu a viagem, animada que estava para conhecer o tio Abílio e a tia Marília.
E apenas neste momento, ao ouvir seu nome ser lentamente pronunciado, a condutora direcionou o olhar para o retrovisor, captando os olhos escuros e ousados de Sarah, que já a observava.
Sem desviar a vista, Marília ergueu a sobrancelha. E a outra, sem esperar ver no semblante da cunhada a expressão que lhe era tão própria, ficou sem reação e baixou o olhar.
Este primeiro embate, no entanto, ninguém notou. A não ser as duas que, de forma desconcertante e estranha, apenas agora pareciam se apresentar. Se não em nomes, em olhar.
O jantar seria servido às vinte horas, anunciou Abílio enquanto direcionou o casal para uma das suítes da casa. Na seqüência, questionou a Sarah:
- A mocinha já dorme só?
Antes que a mãe pudesse responder, Lis justificou:
- Temos apenas um quarto lá em casa – e fez cara de decepcionada e desejosa.
Entendendo o recado, pela primeira vez Marília dirigiu-se à menina:
- Aqui tem quartos de sobra. Venha e escolha em qual você quer ficar.
A menina assustou-se com a regalia oferecida e mais ainda com o fato de ser a moça de olhos verdes a oferecer. Olhando-a intensamente e agradecida, Lis sorriu, mesmo sem esperar um sorriso de volta.
Marília, que permanecia séria, também a olhou, desta vez interrogativa, pois a menina, apesar de nitidamente animada com a idéia de ter um quarto só para si, ainda não tinha feito menção de sair do lugar. Continuava parada, olhando fixamente para os olhos daquela que ainda não ousava chamar de tia. Entendendo a interrogação silenciosa de Marília, Lis, com toda doçura e ingenuidade, justificou:
- Gosto dos seus olhos. Verde é minha cor favorita.
E Marília não teve como não rir. Pegando a menina pela mão, saíram pelo corredor à procura do quarto. E, para o encanto da criança, havia um cuja decoração mesclava tons esverdeados. Neste ela ficou.
Sarah sorriu ao observar as duas caminhando de mãos dadas. Aquela cena lhe pareceu absolutamente inusitada. Talvez a criança, mais do que ela, possuísse o poder de sedução.
Naquela primeira noite a chuva regou as roseiras plantadas durante a manhã por Marília. E ela, fazendo jus ao acréscimo das mudas em seu jardim secreto, permanecia insone e intranqüila.
A presença do irmão naquela casa e naquelas circunstâncias a intrigava. Isto era um fato. Mas, indubitavelmente, a postura de Sarah a intrigava e inquietava mais ainda.
Lembrou-se do jantar, servido há algumas horas. Naquela noite, a mesa retangular que nunca havia sido inteiramente preenchida, estava menos vazia. Como de costume, Marília havia se sentado na cabeceira defronte ao tio.
Rafael sentou-se ao lado de Abílio e logo puxou conversa. Já Sarah, sem titubear, ao invés de acomodar-se perto do noivo, encaminhou-se para o lado de Marília, no outro hemisfério. Antes de sentar, entretanto, olhando-a de forma casual e perguntou, tentando dar tom de gracejo à frase:
- Este lugar está ocupado?
Marília segurou-se para não dizer, também ironicamente, que sim. O lugar estava ocupado. Mas, além de inverdade, tal resposta soaria por demais rude. Limitou-se a menear a cabeça em sentido negativo. E logo sentiu o perfume de Sarah que, de forma lenta e pensada, sentou-se ao seu lado.
Sem qualquer rodeio, apenas algum constrangimento, Lis se aproximou de Marília e, falando baixinho, lhe pediu para sentar do outro lado, junto dela e defronte à mãe. Em resposta, a anfitriã apontou o antigo pratinho infantil que fora seu, pousado exatamente naquele canto. É que, minutos antes, quando Ernesta ia começar a pôr a mesa, a dona da casa pediu à governanta que preparasse aquele lugar para a criança.
Lis, rapidamente, sentou-se em seu cantinho, descobrindo com entusiasmo extremo que o mesmo já estava para si reservado. E o fez com um sorriso estampado no rosto de feições perfeitamente simétricas e delicadas, tão semelhante ao de Sarah, em expressões e traços.
A mãe observava a filha, pela primeira vez na vida, parecendo o que nunca fora: feliz. E, ainda que por via transversa, Sarah, estranhamente, também experimentava da felicidade. Sorriu de cabeça baixa, sem coragem de, naquele instante, despida da máscara, olhar na direção de Marília, a responsável.
Enquanto isto, Rafael, do outro lado da mesa, conversava com o tio, alheio e cada vez mais assíduo na farsa engendrada. E ele sorria animadamente, só que, ao contrário do sorriso experimentado por Sarah, todos os que partiam dele eram falsos.
Depois do jantar, Abílio, Rafael e a noiva foram para a varanda. Acomodados nas cadeiras de vime, começaram a conversar sobre o projeto a ser implementado em Aldeia e os futuros resultados. O frio e a umidade da noite faziam com que as palavras parecessem flutuar, lentas e esfumaçadas, quando pronunciadas de forma mais vigorosa.
Marília não os acompanhou. Preferiu acomodar-se em uma rede mais distante. Porém, de longe, assistia Lis entretida com uma boneca, sentada ao lado da mãe no chão da varanda.
Vez por outra, os gestos e a voz de Sarah desviavam sua atenção e a observadora deixava de apreciar a filha para apreciar a mãe. Ela era uma mulher atraente e altiva, ponderava Marília. E tais atributos pareciam destoar do tom doce e humilde que Sarah tentava impingir à voz e às mãos. Ela gesticulava como se estivesse sempre contida, forçando uma suavidade que, definitivamente, não parecia ter. Era como se a simpatia fosse incongruente com o corpo e o olhar daquela mulher, que tinha porte de vilã.
Sarah, apesar de sentir-se observada, não olhou uma vez sequer na direção de Marília. Porém, cada vez que sentia o olhar verde pousado sobre seu corpo, a voz perdia parte da firmeza e as mãos estremeciam.
Depois de entediar-se com a conversa, Lis ergueu-se e caminhou na direção de Marília, levando no colo a boneca. Alcançando-a na rede, a menina pediu:
- Ela pode dormir aí com você?
Pega de surpresa, Marília disse que sim, dando a permissão. Mas não apenas a boneca deitou-se na rede. A dona fez o mesmo, deixando a moça absolutamente sem reação. Percebendo o desconcerto de Marília, Sarah levantou-se e intercedeu, aproximando-se:
- Filha, deixe tia Marília sossegada. Ela não quer brincar agora, meu amor.
E mais uma vez mãe e filha foram surpreendidas.
- Elas não querem brincar, querem dormir, não é Lis? – e voltando-se para Sarah, continuou – Pode deixar.
Marília sentiu-se um tanto quanto constrangida com a aproximação e o pedido da criança, mas não teve coragem de afastá-la. A necessidade de carinho e de proteção era tão explícita, quanto comovente. E assim, prontamente, começou a tentar ajeitar a menina ao seu lado, com a ajuda da mãe.
Nesse momento, as mãos e braços de Sarah roçaram em Marília. Mas o contato foi inevitável e não proposital. A que estava deitada retesou o corpo e manteve-se praticamente estática, enquanto a outra cuidava, por fim, de colocar a boneca nos braços da filha. Tinha que haver espaço para as três e houve. Logo a quarta sairia de perto. Porém, antes de dar as costas, Sarah articulou em voz baixa:
- Obrigada.
Em menos de meia hora Lis adormeceu. Entretanto, antes que Sarah viesse retirá-la de seus braços e levá-la para o quarto, a própria Marília o fez. Não queria experimentar novamente qualquer espécie de contato com a noiva do irmão. Já conseguia visualizar os canteiros cheios de rosas vermelhas graças àquela furtiva aproximação.
Com as pernas dormentes devido ao tempo em que permaneceu imóvel para não acordar a criança, Marília caminhou com Lis nos braços até o quarto esverdeado, o eleito.
A sensação de formigamento, entretanto, não seria mais intensa e inquietante do que a de estupor que viria a sentir mais tarde, não propriamente nas pernas, mas no ventre, quando, finalmente, adormecesse. É que Marília, depois de reviver em imagens os últimos acontecimentos e somar os detalhes captados de Sarah, terminou sonhando com ela. E no sonho também dividiram uma rede.
Por volta das cinco horas, a cama de Marília já se encontrava vazia. À beira de um dos canteiros, ela se punha de joelho, preparando a pequena vala onde faria alguns enxertos.
Queria rosas híbridas, que representassem aquele misto de inquietação e de tantos outros sentimentos, para si, desconhecidos. E, naquele instante, enquanto planejava a reunião das espécies, nem quis relembrar do sonho que havia lhe tirado da cama tão cedo.
Bastaria fechar os olhos e seria capaz de sentir novamente o cheiro, o gosto, o desejo em forma de líquido que invadiu seu inconsciente. Assim, para evitar tal acontecimento, mantinha os olhos bem abertos, enquanto ocupava as mãos preparando a terra escura e o olfato com o perfume das rosas que por ali desabrochavam.
Depois da chuva, todos os cheiros que emanavam do jardim secreto se tornavam mais intensos e a dona daquele reduto era capaz de captar o que advinha de cada flor. Era este um de seus exercícios diários que, naquela manhã em especial, deveria pôr em prática.
Antes de retornar à varanda, onde todos já se encontravam sentados a espera do café da manhã, Marília caminhou até o pequeno riacho, que descia pelo quintal, de águas tão geladas quanto cristalinas. Sentindo-se estranhamente invadida, agachou-se e lavou as mãos, livrando-se das terras escuras e estancando o filete de sangue que brotava de um arranhão. Os espinhos sempre lhe machucavam. Alguns porque adentravam em sua carne, outros porque faziam o mesmo em sua vida.
O cheiro do café fresco já se misturava ao das rosas quando Marília ergueu a vista em direção a casa. O olhar verde foi imediatamente fisgado pelos olhos escuros que da varanda a espreitavam.
O dia foi corrido para todos. Marília acompanhou durante todo o tempo o início das obras do complexo arquitetônico que construiriam em Aldeia. Com poucas palavras, apresentou o lugar e parte dos funcionários ao irmão, que parecia extremamente interessado.
Rafael trabalharia com a divulgação do condomínio, o que faria com mais afinco em Recife do que propriamente em Aldeia. No shopping Center Recife, um dos maiores da América Latina, Abílio e Marília haviam preparado um grande e luxuoso stand. A intenção era atrair a população com poder aquisitivo compatível com a grandiosidade do empreendimento. E era lá que, na maior parte do tempo, Rafael, doravante, ficaria.
Entretanto, naquele primeiro dia, imprescindível apresentar ao publicitário o empreendimento em cores e formas vivas. E era exatamente o que a engenheira faria.
Sarah preferiu ficar em casa. Optou por conhecer o lugar quando as obras já estivessem relativamente encaminhadas. Aproveitaria o dia para dar atenção à filha, o que há muito não fazia.
O dia nublado inviabilizou o banho de piscina tão desejado por Lis e as duas ficaram, durante todo o dia, dentro de casa.
Abílio, que vinha passando os dias praticamente sozinho, já que não mais se sentia em condições físicas de acompanhar Marília nas infinitas obras pelos dois articuladas, tentou relaxar, apesar das visitas. Assim, mesmo com seu jeito sério e calado, decidiu permitir uma aproximação. Iria tentar aproveitar a companhia da menina e de Sarah.
No final da tarde, já formavam um pitoresco trio, que, no correr das horas, havia assistido a diversos desenhos animados, comido algumas terrinas de pipoca e jogado várias e acirradas partidas de Detetive, antigo jogo que Marília adorava quando adolescente.
Sarah, como quem não queria nada, vez por outra direcionava a conversa tentando captar as histórias, os gostos, as particularidades da cunhada. Precisava conhecê-la e desvendá-la para conquistá-la. Para tanto, enquanto não podia colher informações direto da fonte, colheria do tio, que era o único que parecia conhecer a fundo aquela criatura sisuda e calada.
Abílio, visivelmente, amava a sobrinha e sempre que falava dela o fazia com os olhos emocionados. A seu modo e aos poucos, falava o que achava conveniente, mas nada que revelasse detalhes muito concretos do passado da sobrinha.
Ernesta, enquanto servia o almoço, já percebia com alegria Abílio sorrindo com as graças de Lis e a desenvoltura de Sarah. Elas duas pareciam, aos poucos, estar resgatando a alegria daquela casa.
Por volta das dezenove horas, quando Marília chegou acompanhada de Rafael, assustou-se com as gargalhadas que ecoavam pela sala. Era Sarah e Lis que, sem qualquer recato, imitavam personagens de filmes e novelas para que Abílio, amante do cinema, adivinhasse de quem se tratava.
Parecendo contrariada, a moça entrou sem, sequer, dar boa noite. Lis imediatamente estancou o riso. Sarah, por sua vez, fingindo não perceber a irritação, ergueu-se e recebeu Rafael com um beijo e um abraço. Na seqüência, antes que Marília saísse da sala, perguntou-lhe em tom de graça:
- Como foi seu dia?
A cunhada, sem qualquer simpatia, lhe retrucou:
- Certamente menos divertido do que o seu – e passou direto para o quarto.
Aquela primeira semana se passou e nenhum resultado havia sido obtido. Sarah não tinha conseguido travar um diálogo sequer com Marília. Aliás, a cunhada não lhe dispensara nem mesmo um sorriso ou um olhar mais demorado, ao reverso, fazia questão de pôr-se distante e arredia. Não lhe tratava mal, mas nem de longe parecia querer aproximar-se. A única que recebia atenção era Lis.
A menina, com jeitinho carinhoso, sempre impetuosa e carismática, de forma surpreendente, conseguia arrancar Marília da introspecção. E a moça, mesmo quando chegava do trabalho extremamente cansada, dedicava alguns minutos à criança que já a esperava diariamente na porta de casa.
A menina respeitava seu espaço e, embora a vontade fosse perceptível, se segurava para não recebê-la com um efusivo abraço. E assim, as duas se entendiam e Marília, baixando a guarda, já a tratava com o carinho de que se sentia capaz.
Sarah observava aquela aliança se formando e, apesar de irritar-se por não conseguir o mesmo, sentia-se feliz por ver a filha sorrindo como nunca. A menina já ousava chamar a moça de tia Marília e não havia como não achar graça cada vez que a cunhada atendia, ainda que constrangida, àquele chamado.
Na noite de sexta-feira Rafael inquietou-se e, trancando a porta do quarto, questionou a Sarah o que estava havendo. Como poderia a irmã, sendo lésbica e durante cinco dias, não ter cedido um milímetro das barreiras para que a outra se aproximasse?
Também irritada, a falsa noiva cogitou de maneira franca e firme:
- Talvez tenhamos nos enganado e sua irmã não seja lésbica, Rafael!
Mas o rapaz, tornando-se agressivo, pegou-a pelos ombros e passou a lhe arrancar as roupas, enquanto bradava entre os dentes:
- Se ela ainda não é, torne-a! Até o final da próxima semana quero que Marília tenha te comido inteira, quero que ela tenha te virado pelo avesso como eu vou fazer agora!
E naquela noite o casal não saiu do quarto. Lis sabia que, quando se trancavam daquela forma não era para, sequer, bater na porta. Foi o que a menina, com ingenuidade, disse a Ernesta quando a governanta fez menção de ir chamá-los.
Tomando a frente da situação, Marília interrompeu o diálogo e, pegando Lis pela mão, chamou-a para a mesa. Abílio já as esperava.
Naquele jantar, seguindo as indicações da menina, Marília, pela primeira vez na vida, compôs outro prato que não o próprio. Um tanto quanto sem jeito, partiu em pedaços bem pequenininhos o bife acebolado, como Sarah costumava fazer. Era assim que Lis gostava.
Calado, o tio admirava a paciência dispensada e sentia-se feliz em perceber que a sobrinha, mesmo a seu modo, já deixava que o coração acolhesse a criança. Ambas precisavam daquela relação que, a cada dia, se estreitava.
Na madrugada, Marília que, como sempre, havia custado a dormir, foi despertada por ruídos vindos do quarto ao lado. Recostando-se na cama, contrariada, passou a decifrar as pancadas que, certamente, eram causadas pelo encosto da outra cama confrontando-se com a parede.
Enquanto as batidas tornavam-se mais intensas, pensou escutar gemidos e palavras sussurradas. Em instantes soube: era a voz de Sarah. Ela pedia para ser invadida com força. Queria sentir dor, queria ser punida...queria ser amada? Esta derradeira pergunta foi formulada pela mente daquela que escutava. E muitas outras vieram.
Que tipo de relação seria aquela? Que tipo de penetração aquela mulher deveria estar experimentando naquele instante? Imaginou-a submissa, de quatro, sendo penetrada vigorosamente pelo namorado, enquanto se apoiava na cabeceira da cama que rangia de forma cada vez mais acelerada. Imaginou-a nua, suada, com os seios volumosos, eriçados e em movimento, com os cabelos longos revoltos, adornando parte do rosto moreno que, de boca entreaberta e de olhos fechados, agüentava de forma voraz cada investida. Imaginou-a se movendo contra o corpo do outro, empurrando de forma desgovernada os quadris bem feitos contra o pênis que nela adentrava. Imaginou-a infeliz, solitária, desolada, apesar do prazer que, em instantes, lhe faria gozar e gritar.
E Marília ouviu o grito e supôs o gozo, enquanto, do outro lado da parede, se tocava, assustada consigo e com o desejo de estar dentro daquela que gozava.
Quando as pancadas pararam, Marília também parou, ofegante e impressionada com tudo. Também estava à beira do gozo, mas não se permitiria a tamanho absurdo! A umidade já escorria por entre as pernas e pelos dedos trêmulos que tirava de dentro de si, num impulso. Ergueu-se, ajeitou as roupas, recompôs o fôlego e saiu do quarto, com as pernas bambas. Precisava urgentemente de ar e de razão. Foi para a varanda e deitou-se numa rede, num canto escuro.
Nem mesmo o vento úmido foi capaz de esfriar a temperatura daquele corpo durante os primeiros minutos em que quedou ali, inerte, em estado de absoluto estupor. Com os olhos fechados, Marília não conseguia acreditar naquela vontade que ainda latejava, que ainda pulsava dentro de si, arrebatando-a daquele jeito inconseqüente. E antes que pudesse restaurar a calma, outro ruído a alcançou.
Desta feita, o silêncio era cortado pelo choro. Um choro manso e baixo, que vinha da sala. Erguendo-se, Marília aproximou-se da porta e parou.
A silhueta, que, no escuro, parecia misturar-se às sombras pousadas no sofá, era a de uma mulher parcialmente despida e em situação de penúria. Com uma das mãos e de forma trêmula, conduzia o cigarro lentamente até a boca. Com a outra, tentava dar alguma ordem aos cabelos longos e às lágrimas, que pareciam verter soltas, mesmo estando com os olhos fechados. Enquanto tentava conter o choro, ora enxugando-o, ora engolindo-o, ora lamentando-o, a moça engasgava-se, esticava-se sob o encosto, contorcia-se, como se sentisse dor.
Preocupada com o que via, a expectadora decidiu revelar a presença ensaiando passos suaves na direção da outra que, imediatamente, os percebeu. Parecendo assustar-se, Sarah sentou-se, rapidamente, de forma ereta, ajeitando o corpo e o resto da camisola, cuja alça caída deixava parte dos seios a mostra.
Sem uma palavra, Marília sentou ao seu lado, mantendo a distância necessária para que os corpos não se tocassem. Involuntariamente, Sarah cruzou os braços, enquanto olhou-a de forma confusa. Finalmente o silêncio foi quebrado:
- Você está precisando de alguma coisa?
Um copo de água com açúcar foi tudo o que Sarah conseguiu pedir, antes que Marília, mesmo sem permissão, tomasse o rosto dela com as mãos e o virasse para o lado onde havia um vestígio de luz. Como se a examinassem, os olhos verdes investigaram algum sinal de violência e de maus-tratos. Mas as feridas, se realmente existiam, não estavam ali.
Virando bruscamente a face e livrando-se das mãos que a seguravam, Sarah questionou bravia:
- O que você quer ver?
E Marília, com toda a sinceridade de que era capaz, prontamente respondeu:
- Você!
Com velocidade, Sarah levantou-se e saiu trôpega por entre os móveis, tateando algum caminho, a procura de alguma luz. Chegando ao quarto, trancou-se: nele e em si.
Sábado chegou e, com ele, o sol que há muito não despontava em Aldeia. Piscina! Foi a primeira palavra pronunciada por Lis ao chegar à sala e encontrar a mãe já acordada. Com os olhos vermelhos, um cigarro aceso e uma xícara fumegante, Sarah a recebeu num abraço apertado.
A cena foi vista por Marília, que acabava de chegar, também, à sala, silenciosa como sempre. A menina, ao notar a presença, desvencilhou-se dos braços maternos e correu para os da outra, aos gritos.
- Tia Marília! Hoje vai ser o dia da piscina!
Marília sorriu e a ergueu alto, buscando por entre os espaços dos braços visualizar Sarah, que estava ali na frente. As duas se olharam firmemente e Sarah respirou fundo. Logo deu as costas e saiu.
Lis, ao ser posta no chão, correu atrás da mãe, puxando Marília pela mão. Ao alcançar Sarah na varanda, a menina também a segurou e, entre as duas, olhando para o alto, satisfeita por tê-las, finalmente, próximas, pediu:
- Quero tomar banho com as duas!
Sarah e Marília entreolharam-se e sorriram, tentando dissipar a tensão. Na cadência daquela trégua momentânea, cedendo ao pedido da criança, em alguns minutos estavam as três na piscina, tentando um diálogo ameno, enquanto partilhavam algumas bóias e um colchão.
A menina escolheu a bóia que tinha formato de um jacaré absolutamente inofensivo; Marília apoiou os cotovelos no colchão inflável e colorido, deixando o restante do corpo submerso; Sarah aproximou-se da bóia em formato de tubarão e ia tentar domá-lo, quando a menina gritou, fingindo desespero:
- Não, mamãe! Ele morde! O tubarão é um monstro perigoso e a gente precisa correr e subir no barco.
Lis concluiu a frase apontando para o colchão onde Marília calmamente descansava. E foi o suficiente para que esta logo entendesse a brincadeira. Sua bóia e sua paz seriam os alvos.
Entrando, na brincadeira, imediatamente, Sarah afastou-se do temido monstro e nadou apressada na direção de Marília, assim como fez a filha. E, em instantes, as três disputavam espaço no barco improvisado.
A princípio, Marília hesitou em participar. Mas, vendo a alegria estampada no rosto das outras duas, concluiu em voz alta que quem estava na água era, literalmente, para se molhar. O ditado, apesar de distorcido, foi recebido com uma gargalhada, pois cabia perfeitamente na cena. Em minutos, a criatura com fama de sisuda resgatou parte da infantilidade e, deixando de ser rude, tornou-se quase doce e amena.
Da varanda, Abílio e Rafael assistiam as brincadeiras que se estenderam por toda a manhã. Cada um sentindo-se satisfeito por motivos diversos.
No início da tarde, Lis já exibia com orgulho os dedinhos enrugados pelo tempo que estavam submersos n’água. Porém, a mãe não achou a graça esperada. Saindo da piscina, cuidou de retirá-la também, adornando-a em uma toalha felpuda que a criança já havia elegido a favorita.
Marília foi a única que ficou. Sentia-se tão leve que considerou o colchão desnecessário para que o corpo flutuasse. Livrando-se dele, pousou sobre a água, como não fazia desde criança e, de olhos fechados, assim ficou.
Sarah foi chamá-la para o almoço, mas, ao vê-la entregue daquela forma, parou silenciosa à beira da piscina. O corpo esguio e de pele alva estava, naquele instante, eriçado pelo frio; a tez já não se mostrava pálida e sim avermelhada pelo sol sem proteção; os lábios, rubros por natureza, involuntariamente secavam e eram molhados pela língua; Marília, finalmente parecia permissível, acessível, vulnerável, passível de invasão.
Entrando lentamente na piscina, Sarah deslocou-se tentando ao máximo não se fazer notar. Parou somente quando já podia sentir, com as vibrações da água, o compasso da respiração daquela que parecia adormecida. Aproximando o rosto do de Marília, sentiu o hálito que escapulia da boca bem feita e entreaberta. Chegando-se ainda mais, investigou as pálpebras, que estavam absolutamente vedadas, sem movimento. A respiração de Marília já tocava sua face e vice-versa. Quase encostando a boca no ouvido da que dormia, Sarah preparava o convite sussurrado para o almoço, quando foi surpreendida pelos olhos verdes e por um bote arisco.
Marília ergueu-se e segurou as mãos de Sarah com força, que já faziam uma concha à beira de seu ouvido. Com os corações aos saltos, as duas olharam-se de forma inquiridora, enquanto mantinham os corpos próximos e instantaneamente aquecidos. Sarah aproximou-se ainda mais, tocando as pernas de Marília com as suas, valendo-se da leveza proporcionada pela água e pela ebulição dos sentidos. Marília, desta vez, não recuou, permitindo que os corpos se encostassem em inteireza: seios, abdomens, ventres, coxas, olhares...vontades? O que Sarah sentia Marília não sabia, sabia tão somente da própria umidade. Afastou-se.
Saiu da piscina de forma veloz, praticamente em fuga. De quem, propriamente, fugia, não sabia.
Naquele final de tarde rosas vermelhas, brancas, amarelas, rosas chá e híbridas foram plantadas à beira do vale. Qualquer truque, qualquer terapia, qualquer gatilho, qualquer antídoto, qualquer escape seria bem-vindo para aquele coração, que ora julgava-se cretino, ora covarde.
O JARDIM SECRETO (Capítulo III)
CAPÍTULO III
VERBENAS
O sol daquele sábado propagou-se pela semana e Marília, mesmo durante as noites, sentia-se estranhamente aquecida.
As obras iam de vento em popa e as vendas, quase no mesmo compasso. Rafael passaria alguns dias em Recife, pois a procura pelos lotes tornava-se acirrada, exigindo presença constante no stand. E uma coisa era fato: a ausência daquele visitante tornava a casa, ao menos na perspectiva de Marília, menos desconfortável.
Lis já não a incomodava. Ao contrário, a menina vinha até lhe dando motivos para acrescer algumas mudas no canteiro das verbenas, que de há muito andava abandonado.
Quanto a Sarah, esta andava mais quieta e calada. Marília, dentre muitas cogitações, questionava-se se a mudança de atitude adviria da aproximação experimentada na piscina, naquele mais do que agitado sábado. Apesar de muitas perguntas, respostas não existiam.
Aquela mulher a confundia. Ora Sarah parecia saber exatamente o efeito que causava e a olhava como se quisesse intensificar as batidas de seu coração, deixando-a agoniada, constrangida, excitada. Ora, ao reverso, a olhava como se estivesse assustada, como se não esperasse ver no corpo de Marília o desejo que provocava, como se não a visse somente como presa, mas como armadilha.
Sarah era sórdida e simplesmente gostava de envolver, pelo simples prazer de seduzir e de brincar com os menos avisados? Sarah era cínica e sentia atração pela cunhada, dando em cima dela descaradamente e na frente do noivo? Sarah era apenas uma mulher triste e vazia, que estava começando a se envolver de verdade? Talvez fosse, isto sim, uma rosa híbrida, especulava Marília no arremate.
E era exatamente esta derradeira possibilidade que aquecia as noites e os dias de Marília, enquanto intercalava rosas híbridas e verbenas em seu vale.
Mas, de certa forma, ainda havia espaço para o frio que, sorrateiro, sempre dava um jeito de chegar-se. Vinha nos finais de tarde, quando Marília voltava do trabalho e deparava-se com Abílio sentado na varanda, coberto por um espesso manto de lã, com o olhar perdido no vale. A cada instante, os olhos queridos do tio tornavam-se mais opacos; a cada dia, recolhia-se mais cedo para o quarto; a cada despedida, deixava a varanda mais vazia e o final de tarde mais amargo. Apenas por isto, as violetas ainda eram semeadas.
Lis, que já adorava a companhia de Abílio, também sofria com o visível abatimento. Esforçava-se para fazê-lo sorrir, brincando sempre por perto, imitando os personagens que ele gostava, contando e criando contos de fadas, cantando as mais diversas canções, insistindo em jogar Detetive. Esforçava-se em fazê-lo ficar mais tempo na varanda, em ajeitar-lhe os travesseiros, em embalá-lo na cadeira de balaço, em mantê-lo aquecido e acordado. Toda tarde lhe trazia o cobertor e os afagos com os quais cochilava e sonhava um descanso sem interrupções.
Percebendo a tristeza da menina e com a intenção de contribuir para a diversão do tio, que tanto gostava de assistir as brincadeiras da criança, Marília articulou duas novidades: faria um balaço numa ingazeira que ficava logo à frente do terraço e, na mesma sombra, armaria uma antiga barraca de camping que sabia capaz de encontrar, desde que estivesse disposta a vasculhar as velharias enfurnadas no sótão.
Mas as novidades, apesar do número reduzido, exigiriam muito! Ela bem sabia. Assim, na tarde de quinta-feira, chegou mais cedo em casa e, arregaçando as mangas, tomou as providências.
A primeira foi descobrir, com o auxílio de Ernesta, por onde andava a escada. Munida daquela imensa ferramenta, a moça subiu no sótão, literalmente em busca da barraca perdida, enquanto Lis, Abílio e Sarah a olhavam pasmos e achando graça. Depois de alguns minutos, voltou com o rosto inteiramente empoeirado, mas com um largo sorriso e, é claro, a barraca.
Na seqüência, mais uma vez fazendo uso dos degraus e, desta feita, com a ajuda de Bartolomeu, o caseiro e marido de Ernesta, Marília aventurou-se a subir na árvore. Lá em cima, cuidadosamente sentada em um dos galhos mais altos, recebeu a corda de nylon arremessada pelo ajudante. Em pouco tempo e muitos nós, o balanço estava montado.
Lis mal acreditava no que via. Não cabia em si de tanto entusiasmo. Abílio, da mesma forma, depois de muitos dias praticamente imóvel, ousou articular alguns passos até a sombra da ingazeira, de onde ora incentivava a sobrinha, ora a mandava ter cuidado.
Sarah, esta era a mais contida, próxima ao tronco da árvore, protegendo o sol com as mãos pousadas na testa em forma de concha, parecia a mais preocupada de todos com aquelas estripulias. Vez por outra levava uma das mãos à boca, de susto, sempre que Marília se movia de forma mais brusca ou arriscada.
Ernesta, já acostumada com as artimanhas de Marília, não parecia animada, nem assustada. Sabia que aquele alvoroço todo seria sinônimo de mais trabalho. Prevendo a fome que estava por vir, partiu para a cozinha com o intuito de preparar um lanche. Pobre de Bartolomeu, falava baixinho para si mesma, enquanto via o marido suado e arfante, sorrindo de forma boba enquanto segurava a escada com todo afinco para que a patroa pudesse descer sem se machucar.
E logo Marília retornou ao chão. Agora era a vez de montar a barraca. Anunciando o próximo passo, disse, olhando na direção de Sarah:
- E nesta parte você vai ajudar, já que até agora não fez nada a não ser se apavorar.
E a moça encerrou a frase com um sorriso franco, enquanto passava a mão pela testa suada. Mas Sarah sequer se moveu, tampouco fez menção de acatar o chamado. Parecia concentrada observando os movimentos das mãos de Marília, que estava com a respiração ofegante, com a camiseta molhada e com os olhos verdes ainda mais cintilantes em meio ao rosto empoeirado.
Lis, que observava as duas, estranhou o tempo em que a mãe ficou paralisada. Aproximando-se, tocou-lhe a mão e falou:
- Venha mamãe, ajude a gente com a barraca!
E só então Sarah pareceu escutar alguma coisa. Sem muito jeito, sentou no gramado e, um tanto quanto desconcentrada, alheia ao instante, acatava automaticamente os comandos de Marília na montagem.
Quando a barraca, finalmente, estava erguida, Abílio já se encontrava deitado. No quarto escuro, coberto pelo edredom e pela saudade, sentia que, a cada dia, se despedia daquela casa, daquele quintal, e, sobretudo, daqueles personagens.
A noite ia alta, com o céu inteiramente estrelado e a lua minguante, quando Sarah, finalmente, conseguiu convencer a filha a sair da barraca. Marília havia passado um bom par de horas lá dentro com a criança, lendo gibis à luz de uma lanterna mais minguante do que a lua, cuja bateria já se fazia fraca.
Contrariada, sonolenta e cambaleante, a menina ergueu-se e já ia sair pelo gramado com os pés descalços, quando Marília antecipou-se e pegou-a nos braços, prevendo o sereno e um resfriado. Sarah aproximou-se e, pousando um casaco sob a cabecinha da filha, passou a caminhar lado a lado com Marília, enquanto a ajudava.
Lis estava ficando pesada, foi o que a mãe disse quando, tentando dar suporte aos braços de Marília, sustentou parte do peso da filha com os próprios braços. A aproximação estava justificada. E assim, os corpos caminharam em sincronia pelo gramado.
Perto da meia-noite, Marília, que depois de muitos dias, finalmente, havia conseguido dormir antes daquele horário, despertou. Os latidos de Malvina, a dálmata da casa, pareciam anunciar algo estranho.
Levantando-se, com o fito de investigar os motivos do alarido, Marília foi à varanda. A dálmata a recebeu com certa euforia, abanando fortemente o rabo e voltando a cabeça para o lado do gramado. Aquele semblante amigo, que parecia maquiado pelas manchas pretas harmoniosamente espalhadas no branco, sempre diziam com precisão o que queria. E, da forma que pôde, Malvina avisou: havia alguém na barraca de camping.
Marília observou que a lanterna, a qual, tinha certeza, havia deixado desligada, agora cintilava acesa, iluminando o interior da cabana e fazendo despontar na lona a réstia de um corpo.
Preocupada, supondo tratar-se de Lis, que, inconformada, havia dado um jeito de retomar a brincadeira, Marília foi ao seu encontro. Ao som dos grilos e dos próprios passos, que, entoando o som de charco, afundavam na umidade da grama, lentamente, caminhou até a barraca.
Ao abrir o zíper que vedava a entrada, deparou-se com um corpo nada infantil. Com vestes mais apropriadas para outro cenário, Sarah estava deitada de forma provocativa, voltada para a porta. Em seus olhos não havia qualquer vestígio de susto ou surpresa. Em verdade, o modo de deitar e, sobretudo, de olhar para Marília denunciava que aquela mulher já a esperava. A barraca era a armadilha.
Avançando um primeiro passo, um tanto quanto desequilibrado, Marília entrou. Mas imediatamente pensou em retroceder. Na dúvida, ficou inerte, de costas para a porta. Sarah, aproveitando o ensejo, se levantou. Caminhando de forma casual, parou na frente da outra, não deixando muita escolha aos olhos verdes que, naquele instante, só conseguiam deter-se em sua boca.
Sentindo a veia pulsando na fronte e a garganta inteiramente seca, Marília buscou a voz e pontuou:
- Você sabe que eu não posso entrar, nem ficar.
Mas Sarah, que, agora, finalmente, lhe acuara feito presa, aproximando-se ainda mais, lhe pediu:
- Deixe que eu mesma diga o quanto você pode entrar e ficar, Marília – e encerrou a frase com tom de convite, deixando claro que não falava da barraca, mas do próprio corpo.
Sem fôlego, Marília buscou o ar que restava, mas tudo o que sentiu foi o hálito doce de Sarah. E esta, valendo-se da malícia que lhe era tão própria, colou o corpo ao da outra e vagarosamente escorregou, indo buscar o zíper da barraca na parte de baixo, aos pés daquela, que se mantinha estática, em verdadeiro estado de estupor. Na seqüência, de posse do zíper, passou a erguer-se, arrastando novamente o próprio corpo no de sua presa, enquanto vedava-lhe a saída.
Já de pé, de volta ao ponto de partida, Sarah fixou o olhar na íris esverdeada e, com a sobrancelha arqueada, explicou:
- Não gosto de portas entreabertas.
Entendendo perfeitamente o recado, foi a vez de Marília, finalmente, dar o seu. Enlaçando Sarah pela cintura, a puxou com força. Agora a transformaria, também, em presa.
Sarah assustou-se com a brusquidão do gesto, mas não recuou. O corpo cedeu ao contato e cederia ao desejo, não tivessem as duas sido interrompidas pelo barulho do carro que parecia estacionar na garagem. Era Rafael. Ambas souberam, mas só Marília perturbou-se.
Soltando o corpo que já se moldava deliberadamente ao seu, Marília abriu a porta e saiu desnorteada pelo gramado. Também sem norte, procurando a parede que não havia para encostar-se, Sarah ficou por mais alguns instantes dentro da barraca.
A noite girou demoradamente nos ponteiros do relógio que, na sala, afrontavam o silêncio com seu tic-tac. E no compasso das horas, não apenas Marília sofreu de insônia.
No dia seguinte, Marília tinha inventado outra novidade: um piquenique. No momento em que Lis ouviu a palavra, correu e pendurou-se no pescoço da que falava. Antes de ser posta no chão, questionou:
- Mamãe pode ir?
- Claro – foi tudo o que Marília quis dizer e, de fato, disse.
O plano era simples e tinha uma vantagem: nada trabalhoso, nem perigoso! Esta, inclusive, foi a condição imposta por Sarah quando Marília, fingindo que nada tinha havido, aproximando-se com um sorriso um tanto quanto desconfiado, lhe fez o convite.
Mas o semblante da que convidara não convenceu Sarah, que, definitivamente, não estava acostumada com aquele sorriso, com aquela candura, com aquela Marília! A que não mais fugia!
Para certificar-se de que a moça falava a verdade e queria realmente sua companhia, olhou-a nos olhos de maneira séria e com a sobrancelha erguida. Na seqüência, perguntou autoritária:
- Jura?
- Juro! – respondeu Marília, com ênfase exagerada e beijando os dedos cruzados pousados sobre a boca que ainda ria. No arremate da brincadeira, cuidou ainda de, imitando a outra, erguer a sobrancelha também.
Lis sorriu e puxou as duas pelas mãos com extrema pressa. Simplesmente não conseguia mais esperar.
Na cozinha, Ernesta já havia preparado uma cesta de vime com os quitutes e separado uma toalha longa e quadriculada, que seria forrada logo mais no chão do quintal. Sim, pois o piquenique seria realizado no derradeiro lote da casa, na beira do riacho e sob a sombra dos frondosos eucaliptos que adornavam aquele cenário.
A menina nunca havia ousado andar por aquelas bandas e não apenas porque a mãe proibira, mas porque tinha medo de avançar nos terrenos que não conhecia. Havia sido criada num apartamento pequeno e, até chegar a Aldeia, pouco sabia de plantas, insetos, mato, caminhos. Exatamente por isto estava tão eufórica com a idéia do piquenique. Era um misto de medo e de alegria.
Mas não apenas a criança sentia-se tomada pela dicotomia daqueles sentimentos. O medo e a alegria caminhavam par e passo com Marília ultimamente. E ela, ao lado de Sarah, ousava também naquele caminho.
Logo chegaram ao reduto eleito por Marília como o perfeito para o piquenique. E as outras duas imediatamente concordaram com a escolha. O lugar distava poucos metros da casa. No entanto, apesar desta realidade geográfica, as três se sentiam em outra dimensão.
Tomadas pelo mesmo entusiasmo, forraram a toalha no chão e começaram a organizar as comidas. Tudo tinha que ficar tão perfeito quanto aquela tarde, justificava Sarah, enquanto estudava a posição das frutas, dos pães, dos queijos, das fatias de goiabada, dos sucos e, sobretudo, das mãos que, vez por outra, passavam próximas às de Marília. Ambas se serviam, trocavam as frutas, os pratos, experimentavam.
Num dado instante, enquanto Lis, mais afastada, tentava capturar uma borboleta que por ali rondava, Sarah aproximou-se vagarosamente de Marília, que estava deitada na ponta da toalha, observando a copa de uma árvore, em silêncio.
Fazendo sombra sobre a face da outra e bloqueando-lhe a visão, Sarah inclinou o tronco e pôs o rosto defronte. Capturando o olhar verde e já inquieto, questionou:
- Você vai continuar fingindo que não nos beijamos ontem?
Confusa, Marília rapidamente retrucou, fazendo a única constatação que talvez diminuísse sua culpa:
- Mas nós não nos beijamos!
E Sarah remendou:
- Não? Pois, no meu imaginário, você não apenas me beijou, como tirou minha roupa, entrou e ficou por um bom tempo, ocupando todo o espaço que encontrou.
Mal acreditando no que acabara de ouvir, Marília fez menção de erguer-se e sair dali o mais rápido possível, antes que seu jardim secreto fosse, de fato, invadido por aquela intrusa que, aos poucos, ganhava território. Sarah sim, era quem vinha ocupando todos os espaços que ainda restavam vazios dentro de Marília.
Mas a fuga não foi necessária. É que, interrompendo o momento, Lis chegou feliz da vida mostrando uma nova amiga: uma pequena borboleta que, agoniada, debatia-se nas mãos da menina.
Marília apiedou-se, irritou-se, identificou-se com o inseto e ordenou de forma mais brusca do que a desejada que a menina a libertasse. Lis a libertou.
O sol já pedia descanso quando Marília sugeriu que voltassem para casa. Lis fez bico, mas logo concordou. Já se sentia muito premiada e sem direito de exigir mais nada.
Porém, quando Sarah fez menção de começar a guardar as coisas, Marília lhe pediu em tom de favor:
- Espere um pouco. Preciso mostrar a Lis mais uma coisa. Você pode nos aguardar aqui?
- Sim – respondeu Sarah sem erguer a vista, fingindo aceitar com resignação a exclusão.
Marília queria respirar um pouco; queria assegurar-se de que seu refúgio continuava intacto, escondido; queria certificar-se de que, por enquanto, apenas suas próprias pegadas restavam fincadas no jardim secreto; queria, sobretudo, permitir que outras pegadas, estas menores do que as suas, marcassem aquele solo dali por diante. E não seriam as da mãe, mas as da filha.
E assim, de mãos dadas com a menina, atravessou a pequena ponte de madeira que separava aquele local de um recanto mais reservado, onde, anos a fio, construía seu eterno abrigo.
A criança, que não sabia exatamente o que veria, limitava-se a caminhar de cabeça baixa, enquanto tentava desviar-se dos gravetos e das pedrinhas que se punham no percalço. E assim, seguia distraída, quando, aos comandos de Marília, estancou o passo e ergueu a vista.
Deslumbrou-se. Logo ali à frente, o chão parecia tornar-se colorido. Eram os canteiros que, de forma harmoniosa e precisa, haviam sido planejados de modo a formar verdadeiros desenhos, ora geométricos, ora espirais, estampados pelas cores das flores diversas e extremamente vívidas.
Enternecida, a criança logo compreendeu que o jardim tinha um mistério. É que, apesar da diversidade das cores, só existiam flores de três espécies. E o mais curioso aos olhos infantis foi perceber que elas não se misturavam nem nos canteiros, nem nos perfumes, nem nos estilos. Aguçando a percepção, reconheceu as rosas e as violetas. E logo se inquietou com o terceiro tipo:
- Que florezinhas tão lindas são aquelas, Tia Marília?
Eram as verbenas, as favoritas. A resposta veio rápida e precisa. E mais uma vez a menina mostrou-se intranqüila:
- Então por que o canteiro delas é o menorzinho?
Para aquela pergunta, Marília não teve resposta. Nunca soube por que tivera tão poucas alegrias na vida.
Tentando escapar da questão, aproximou-se do canteiro das verbenas e, puxando a menina pela mão, a fez agachar-se a seu lado.
Analisando um dos cachos que pendia de um galho, Lis impressionou-se com a quantidade de florezinhas que nasciam juntas, formando um pequeno e delicado buquê, o que não ocorria com as outras flores.
Diante da patente diferença, pensando ter, finalmente, compreendido o porquê de aquelas serem as favoritas da tia, comentou:
- Elas são mesmo especiais, não é, tia Marília? – e a criança sorriu, buscando cumplicidade.
A dona do jardim, num menear de cabeça, concordou com a menina. Entretanto, julgou necessário um complemento, talvez o único que justificasse quão especiais eram aquelas flores:
- As verbenas nunca ficam sozinhas.
Aquele era o recado. E assim, antes de voltarem, Marília e Lis, com extremo cuidado e candura, fincaram no solo do jardim secreto mais uma muda da flor que, agora, era a favorita das duas.
O JARDIM SECRETO (Capítulo IV)
CAPÍTULO IV
ROSAS HÍBRIDAS
No caminho para a casa, apesar de a cesta de vime restar vazia, Marília carregava um enorme peso. Percebia que nem sempre era possível voltar de determinados lugares. De um estranho modo, sentia-se prisioneira da dimensão que acabara de visitar ao lado de Sarah e de Lis, ambas já conhecedoras do jardim secreto, embora a primeira sequer houvesse avistado as flores.
Para aumentar o pesar, enquanto subia o primeiro degrau que dava acesso à varanda, quase bate de frente com o irmão que, fazendo o caminho inverso, apressava-se em alcançar a noiva no gramado. Abraçando Sarah fortemente, Rafael deu-lhe um beijo longo e escancarado, absolutamente alheio aos demais, inclusive a Lis que, envergonhada, baixou os olhos.
Apenas uma cena na vida havia lhe causado aquele mal-estar súbito. Um nó na garganta impediu qualquer tentativa de respiração e Marília, impressionada com a reação do próprio corpo, sentiu-se novamente a adolescente frágil e assustada sendo arrastada pelos pais em meio às flores que, inocentes, morriam para lhe dar passagem naquele doloroso percurso.
Desolada, Marília também baixou os olhos, tentando recuperar o fôlego. Mas logo se assustou com o que viu: as vestes pareciam inteiramente cobertas pela mesma terra escura que adubava o jardim da casa paterna; nos pés chegou a sentir as ramagens e galhos das violetas, roseiras e verbenas emaranhando, enroscando, atravancando seu curso; na mão esquerda passou a sentir a aspereza e o peso das mãos do pai, apertando-a; na direita, mesclavam-se a maciez e crueldade das mãos da mãe; na alma, sentiu o derradeiro golpe, o último puxão: aquele que lhe fez atravessar o portão de muros baixos e lhe lançou no mundo, defronte a um enorme muro desconhecido de pedras escuras. O deserto voltou.
Marília não sabia se conseguiria, daquela vez, seguir em frente. Descobriu que sim ao dar as costas para a cena e avistar os olhos do tio que, da soleira de casa, a fitavam. Sem desviar o olhar verde do azul, traçou mentalmente uma reta e apressadamente caminhou. Mais uma vez o tio lhe abriu as portas e ela entrou.
De noite, Aldeia recebeu a visita da chuva e do frio. Ernesta, aproveitando o clima intimista, preparou um amistoso fondue de queijo, a ser servido com um bom vinho tinto.
Rafael estava por demais animado com as vendas e, sobretudo, com a aproximação gradativa que notava entre Marília e Sarah. Havia percebido o ciúme estampado nos olhos da irmã quando beijou a noiva e já conseguia vislumbrar cifras e cifras de uma herança que, em breve, estaria em seu bolso.
Efusivo com as perspectivas, principalmente por notar que o tio, a cada dia, aproximava-se da partida, propôs um brinde em voz alta, homenageando aquele que, em verdade, desejava que já estivesse morto:
- Ao meu querido tio Abílio!
Mas o homenageado, que havia decidido ir dormir um pouco mais tarde naquela noite, ocupando a taça de cristal com suco de uva, propôs um outro brinde:
- À minha querida filha, para quem hei de abrir todas as portas do mundo!
E apenas naquele instante Marília deixou uma lágrima rolar pelo rosto.
Pousando os talheres no prato, dizendo que não se sentia muito bem, Sarah pediu licença e retirou-se.
No dia seguinte, a casa atravessou a manhã mais silenciosa do que o normal. Rafael, apesar do avantajar das horas, permanecia dormindo, trancado. Abílio não quis sair do quarto e Lis pediu para ficar ao seu lado, contando-lhe pela milionésima vez as mesmas histórias. Quanto a Sarah, desta não se ouviu sequer a voz.
Marília, apesar de ter acordado antes de todos, resolveu que só iria trabalhar à tarde. Sentia-se exausta e, para renovar as forças, resolveu fazer o que há muito não fazia: meditar.
Ao lado da casa principal, descendo um pouco a encosta que ladeava o terreno, existia um pequeno chalé que, outrora, servia como casa de hóspedes. Como, em verdade, nenhum dos dois anfitriões gostava de receber visitas que passassem mais do que um dia, a pedido de Marília o chalé virou um local voltado para atividades alternativas.
A moça interessava-se por diversas práticas e técnicas orientais, dentre elas a meditação, o uso de florais, a aplicação de Reiki e acupuntura. Vez por outra proporcionava a alguns conhecidos de Aldeia sessões gratuitas, principalmente àqueles que sofriam de males que não se limitavam a atingir o corpo.
À soleira da porta, girou a chave. Porém, antes de entrar, fechou os olhos e entoou rapidamente um mantra, retomando o hábito. Como se apenas naquele instante se sentisse preparada, respirou fundo e atravessou o umbral.
O chalé estava escuro e úmido, pois ficara por muitos dias trancado. Bem por isto, ao abrir as janelas, percebeu a poeira pairando, como se dançasse à melodia da luz. Para harmonizar o ambiente e combater o cheiro do mofo, acendeu vários incensos de sândalo e os espalhou em lugares estratégicos. Mais relaxada, ligou a pequena fonte estilo zen budista, pôs para tocar seu cd preferido de Lorena Mckennitt e, finalmente, sentou-se no colchão em posição de yoga para iniciar o ritual.
No entanto, assim que cerrou as pálpebras, pressentiu uma presença. Era Sarah que, da porta, pedia licença para se aproximar.
Com a permissão dada, a visitante logo se chegou e explicou quem tinha lhe dado as coordenadas sobre o paradeiro: Abílio.
Como Sarah não dizia o porquê de estar ali, Marília, com a voz firme, lhe questionou. No tom usado, deixou claro que não queria mais se aproximar da outra a não ser por um bom motivo.
Como resposta, Sarah articulou:
- Estou com muita dor e seu tio disse que talvez apenas você possa me aliviar.
A expressão do rosto moreno não foi de ironia, isto Marília pôde constatar. Os lábios também não pareceram prender um sorriso ou sombrear qualquer vestígio de graça. Marília sabia o que não via, mas não o que via. Não soube decifrar que tipo de sentimento movia aquele semblante, muito menos aquela mulher que lhe falava de forma compassada e profunda.
Percebendo que Marília permanecia arredia, Sarah decidiu dissipar qualquer sentido dúbio:
- Sinto muitas dores nas costas desde ontem. Você pode me ajudar?
Marília ofereceu-lhe uma aplicação de Reiki e Sarah prontamente aceitou. E assim, ao som da música céltica que dava um ar mítico ao ambiente, a visitante pôs-se deitada no colchão, aguardando as mãos que, em instantes, recuperariam a energia de seu corpo.
Tentando controlar o próprio fluxo energético, que já estava absolutamente intenso desde o momento em que aquela criatura anunciara-se, Marília suavizou um pouco a luz, concentrou-se por alguns instantes de olhos fechados e iniciou a imposição de mãos, pondo-se de joelhos ao lado da outra.
Sem tocar os chakras de Sarah, passou a vagar por cada um deles, aproximando as mãos, com as palmas voltadas para baixo, apenas o suficiente para que a energia fosse trocada, purificada, recuperada.
Entretanto, era impossível se ater apenas nos pontos que deveria ter por foco. É que Marília, além dos chakras, não podia deixar de ver o rosto, os seios, as curvas de Sarah modeladas sob as vestes. Na seqüência, supunha a pele, o cheiro, os pêlos, o gosto daquele corpo tão entregue.
Percorridos alguns caminhos, justamente enquanto respirava fundo e tentava se conter, a que vagava percebeu a respiração de Sarah se alterando. O abdome e, sobretudo, o busto oscilavam visivelmente e de forma cada vez mais acelerada. Talvez denunciassem a reciprocidade do desejo, cogitou, com a garganta seca, a que observava.
Quando Marília, finalmente, impunha energia no chakra frontal, localizado entre as sobrancelhas, Sarah abriu os olhos e, com as próprias mãos, fez com que a mão da outra pousasse em sua boca. Marília recebeu o gesto com surpresa e umidade.
De forma deliberada, consciente do poder que exercia, Sarah entreabriu os lábios e começou a passear com a língua por cada um dos dedos longos que lhe eram servidos.
Sem esquivar-se, Marília olhou-a fundo e, abrindo caminho entre os lábios, fez com que um de seus dedos fosse inteiramente tomado por Sarah, que passou a sugá-lo com gosto.
Mas Marília não queria apenas a saliva. Por isto, ainda de joelhos, deslizou a outra mão pelo abdome de Sarah, que continuava deitada e parecia, também, excitada. Entretanto e daquela vez Marília não se conformaria com dúvidas. Queria certezas! Avançando vagarosamente sob a saia, adentrou e, sem pedir permissão, entreabriu os outros lábios da moça. Lá encontrou em abundância surpreendente outro tipo de umidade. A certeza procurada estava ali, em forma de visgo.
Sarah, então, passou a mover os quadris, como se pedisse para que o toque fosse aprofundado, intensificado. Aqueles lábios também pareciam querer engolir os dedos de Marília. Mas, apesar do desgoverno dos movimentos, Sarah continuava firme, de olhos abertos, olhando para a outra. Era como se tentasse manter o controle, pelo menos, sob o que via.
Percebendo a necessidade que Sarah tinha de comandar, controlando, inclusive, o momento do orgasmo, Marília estancou. Diante dos olhos incrédulos, retirou os dedos da boca de Sarah e de dentro dela, ambos molhados. Faria diferente.
Sabendo exatamente de onde vinha a força do governo de Sarah, Marília vedou-lhe os olhos, fazendo-a sentir o próprio cheiro.
A princípio, a que era experimentada quis se rebelar e retirar as mãos que a cegavam. Foi quando Marília sussurrou ao seu ouvido:
- Deixe que eu guie...deixe que eu entre e fique o tempo que quiser, como você me prometeu.
Cumprindo a promessa, Sarah entregou-se à escuridão e ao desejo. A princípio, teve medo e apertou com força os dedos que devassaram sua intimidade. Mas logo passou a alterar a pressão e a passagem, prendendo e soltando Marília dentro de si. Nessas viagens, perdeu o controle dos sons que fazia, das imagens que se formavam no fundo das pálpebras; perdeu o controle dos quadris, do orgasmo que chegava, do plano que a fez chegar ali.
Já Marília, esta não perdeu um detalhe sequer daquela entrega, tampouco da personagem. Foi quando uma centelha de rancor e culpa fulgurou no peito. Lembrou-se de que Sarah era sua cunhada. E com essa lembrança, veio a das pancadas ouvidas por entre as paredes. Depois, a cena do beijo no gramado.
Agora quem se sentia cega era Marília. O ciúme, então, a fez começar a açoitar Sarah com três dedos fortes, que a cada invasão arrancavam longos gemidos. Talvez até mais altos do que os ouvidos no dia de sua chegada. Sarah, definitivamente, gostava de dor, percebia Marília, que lhe concederia essa regalia.
Porém, a cada investida, a que machucava também se sentia dolorida, confrontada, aturdida. Ainda assim, iria até o fim, fiel aos seus propósitos e motivos. Seria uma dupla punição.
Com o corpo cada vez mais trêmulo e enfraquecido, Sarah continuava recebendo bravamente a força depositada dentro de si, até que, sem conseguir se conter, derramou-se nas mãos da que, agora, sozinha, governava. Arbitraria, Marília sorriu com sarcasmo e libertou a presa. O gozo e o castigo caminharam juntos e a mais nova vilã deu-se por satisfeita.
Sarah, vencida, retomou a visão e sentou-se, parecendo assustada. Fitando os olhos verdes, aproximou-se lentamente e ousou um beijo. Mas Marília lhe impediu, segurando-lhe a face:
- Pensei que eu já havia lhe dado o que você queria.
A ironia da frase feriu mais do que a invasão da carne e Sarah, com os olhos marejados, retrucou de forma dura:
- Eu nunca quis apenas a dor, Marília. Aliás, eu vim aqui em busca da cura.
E só então, movida pelo remorso e pelo amor, Marília a beijou. Nos lábios de ambas, a maciez das pétalas. Violetas, rosas e verbenas permeando o imaginário. Os cheiros das flores, intensificados pela chuva que caía lá fora, pareciam ter viajado desde o jardim secreto para alcançar o olfato das duas, que, naquele momento, cresciam no mesmo canteiro, híbridas, profundas em corpos e raízes. E elas, finalmente, colheram-se.
Antes de saírem daquele lugar onde, secretamente, lançaram tantas sementes, Sarah, vendo o receio fulgurar nos olhos de Marília, valendo-se da sinceridade que pôde, lhe disse:
- O elo que você vê entre mim e Rafael já não existe.
E só então, nos olhos verdes, em plena anuência de cores, cintilou a esperança. Naquelas palavras, Marília colheu a promessa de um novo jardim.
O JARDIM SECRETO (Capítulo V)
FLOR DE LIS
Marília, enquanto fitava a outra se afastando, sentia como se cada metro vencido lhe ferisse. Eram os espinhos inevitáveis daquela distância. Mas ela poderia ser momentânea, cogitava a moça, tentando livrar-se da angústia pontiaguda.
Ao chegar à sala, Sarah deparou-se com Rafael que, vendo-a, rapidamente ergueu-se do sofá onde se sentava displicentemente, indo ao seu encontro com um sorriso sarcástico e o olhar curioso. Puxando-a pela mão, arrastou-a para um dos cantos do terraço e questionou animado:
- E aí? Você conseguiu?
Hesitante, Sarah demorou-se na resposta. E quando a deu, não olhou Rafael nos olhos:
- Ainda não foi desta vez.
Desconfiado, já agressivo, Rafael segurou o queixo de Sarah com força, fazendo-a erguer a vista:
- Tem certeza de que está me dizendo a verdade?
E neste momento, a mulher de olhos negros titubeou na voz e nos passos, fraquejando para trás como se suas raízes estivessem corroídas. Engolindo a saliva, que lhe desceu amarga, respondeu tentando não oscilar o tronco e as palavras, em meio àquela ventania:
- Sim...eu tenho.
Mas o silêncio que antecedeu a resposta falou mais alto do que a moça. E, na ausência da voz, Rafael escutou outras tantas coisas: Sarah, certamente, tinha mudado de plano. Havia se apaixonado por Marília e agora, juntas, o enganavam, ganhando tempo enquanto o tio não morria! Enfim, ele era o traído! Só podia ser isto!
Na seqüência das conclusões, tomado da mais genuína ira e vazio de toda razão, o rapaz pegou Sarah pelo pescoço, sufocando-a com toda a força que possuía, enquanto espalhava as pétalas imaginárias que ali ainda jaziam.
Com a outra mão, ergueu a saia da moça e, absolutamente rude, devassou sua carne, buscando a prova que queria. E só então sentiu com os próprios dedos os vestígios da traição.
Sarah fechou os olhos e engasgou-se com o choro, enquanto pressentia que o jardim recém construído estava preste a ruir. E imediatamente soube: mais que o ventre, a alma fora invadida por aquele desconhecido que não parecia, tão cedo, querer sair.
Mas, no segundo vindouro, Rafael saiu, pelo menos de seu corpo. Entretanto, ainda não era a hora da trégua. A maldade maior estava por vir.
Erguendo os dedos trêmulos e brilhosos, o estranho os esfregou no rosto de Sarah, como se quisesse esgotar todo o ódio do mundo, e, rangendo os dentes, bradou:
- Você esqueceu que sou o único capaz de distinguir sua verdade e sua mentira, não foi? – e valendo-se do duplo sentido, continuou – Somente eu a conheço a fundo!
Interrompendo a seqüência dos absurdos, Marília os surpreendeu com a chegada. Com os olhos confusos e visivelmente aturdida, somente agora compunha aquela cena grotesca e o fazia abismada. O semblante assustado de ambos e, principalmente, o silêncio instantâneo a fez perceber que ali se calava um segredo. E logo intuiu, com angústia: Rafael já sabia de tudo!
Só não conseguia entender por que Sarah, a única capaz de elucidar o segredo das duas, o havia feito? Com que intento a moça revelou ao irmão o caminho do jardim secreto que, com cumplicidade, habitaram naquela tarde? Por que deixar Rafael esmagar as rosas híbridas?
Como se desvendasse seus pensamentos, o irmão lhe deu a explicação da forma mais dolorosa possível, porém, com a ênfase da verdade:
- Seduzi-la foi apenas parte de um plano que em breve me permitirá expulsá-la desta casa, Marília! O pai precisa saber a filha que tem para poder deserdá-la!
Neste instante, Sarah deixou-se escorregar para o chão e, ao tocá-lo, não sentiu a maciez das pétalas.
Enquanto Rafael partia para o quarto de Abílio, com o intento de dar por findo o plano, ainda que sem o auxílio da coadjuvante, Marília saía com pressa, abalroando os móveis da varanda, como se arremessasse terra escura a cada passo.
A chuva, que caía forte, deu àquela fuga o som dos trovões e a claridade desnorteante de relâmpagos indecisos. Atravessando os eucaliptos, tombando pela lama, com a vista inteiramente turva, finalmente Marília avistou o jardim, que lhe pareceu borrado, manchado, com as cores misturadas e mais escuras.
Ao entrar naquele reduto, outrora tão cálido e querido, tudo o que sentiu foi o frio capaz de congelar os lábios e os passos. E ela parou. Estranhou o antigo abrigo. Na tentativa de reconhecê-lo, buscou distinguir o perfume das flores, mas o único que captou foi o de Sarah.
Olhando para o alto, sentiu o verde da íris afogando-se nas lágrimas e na chuva. E com amargura constatou: seu amor também desabaria e escorreria feito aquelas águas. Inconformada, rodopiou com os braços abertos, como se quisesse ser salva, mas não foi. Caiu.
Na queda, espalhou a terra escura para todos os lados e, sobretudo, dentro de si. Ergueu-se e quis vingar-se. Com este intento, caminhou até o canteiro e passou a arrancar, em primeiro lugar, as rosas híbridas. Na seqüência, as vermelhas, brancas, amarelas e rosas chá foram, também, desalojadas. Não mais teriam casa, decidiu a dona do jardim com crueldade ímpar! E tudo isto fez sem se preocupar com os espinhos que lhe sangravam: aquela dor era pequena.
Depois foi a vez das verbenas. De joelhos, resoluta, Marília arrancou uma a uma. Sentiu que não as merecia. Definitivamente, não havia nascido para tê-las. E que morressem, como ela mesma morria. Apiedou-se apenas de uma: a que plantou com Lis. E só esta ficou.
E assim, apenas o canteiro das violetas permaneceu intacto, a ser multiplicado nos dias que estavam por vir.
Na mesma noite, a verbena que sobreviveu ao embate viajaria no colo da criança que, durante todo o vôo, a regou com lágrimas infantis.
Mesmo depois de tantos anos, Marília ainda se lembrava com nitidez daquele fatídico dia. À beira da sepultura do tio, enquanto depositava um pequeno jarro com violetas azuis próximo à lápide, lembrou-se de seus olhos, de sua voz, de seu amor irrestrito.
Vasculhando outras lembranças, dando corda ao relógio da memória, retornou exatamente ao momento em que resolvera voltar para a casa, depois de destruir quase a inteireza do jardim secreto.
Lá chegando, resgatando os últimos vestígios de força, passou pela sala tentando ignorar Sarah. Mas esta foi ao seu encontro e, lhe segurando pelo braço, fez com que parasse e lhe disse, aos soluços:
- Perdoe-me, Marília!
Mas Marília não estava preparada para o perdão. Estava era preparada para o embate com o irmão. E assim, rumou para o quarto do tio, onde encontrou ambos. Diante da porta, estancou. Abílio lhe disse para entrar e ela o fez.
Rafael acabara de relatar ao tio a traição e, em atuação, fingiu a sofreguidão de um inocente, tentando convencê-lo de que, realmente, sofria; já havia posto a máscara de vilã na irmã que, seduzindo a própria cunhada, tinha lhe arrastado para uma armadilha; já tinha erguido sobre a própria cabeça uma auréola e, com os olhos molhados, apesar de vazios, esperava a sentença do tio. E agora, para sua surpresa, assistia com prazer contido a chegada da ré: Marília.
Sem alterar a voz, com os olhos azuis que, apenas agora, lembraram a cor das violetas, Abílio sentenciou, não a sobrinha, mas o sobrinho:
- Conheço inteiramente Marília. Dela sei até o que a própria não sabe e sinto-me extremamente orgulhoso por isto. Já de você, Rafael, sei muito pouco. E não gostei do que acabei de descobrir... – depois de uma pausa e um suspiro, continuou – Saiba que já está no meu testamento e desde cedo. Agora, por favor, saia desta casa e de nossa vida. Algumas coisas não se herdam e você não teve a sorte de herdar o caráter de Marília.
A sentença estava dada e o remorso, mais do que a força, fez com que Rafael desaparecesse por todos aqueles anos. De Sarah, Marília também não teve notícias. O desencontro emocional, mais do que o físico, as afastou e a dona da casa sequer viu a visitante partindo.
Em verdade, naquele memorável dia, despediu-se apenas de Lis, presenteando-a com a única verbena que sobreviveu ao embate. Esta foi a forma que Marília encontrou de desejar a menina toda a felicidade que a própria não possuía. Lis a merecia.
E assim, durante todos aqueles anos, Marília reuniu forças e flores, forçou sorrisos e reestruturou o seu jardim. Buscou amores-perfeitos, brincou de bem-me-quer e mal-me-quer com as margaridas, provou das mais sofisticadas orquídeas, encantou-se com algumas sempre-vivas, só não conseguiu semear novamente verbenas.
Diante da violeta depositada no jazigo, olhando a data inscrita na lápide, percebeu surpresa e comovida: dez anos haviam se passado desde a morte de Abílio. E assim, abandonando as lembranças e voltando ao presente, depois da visita que fizera ao tio que, em verdade, habitava em outro plano, certamente mais florido do que aquele, Marília resolveu que era a hora de voltar para casa.
Tomando o caminho de Aldeia, logo chegou àquela mesma mansão em que agora morava sozinha. Para apressar seus passos, antes mesmo de abrir a porta, Marília escutou o telefone.
Atravessando a sala, logo atendeu ao chamado. Com inquietação, esperou que a voz feminina se identificasse. Na seqüência, veio a surpresa e um sorriso. No dia seguinte receberia uma visita inusitada. Por este motivo, naquela noite, a insônia também lhe visitou.
Com antecedência exagerada, no dia seguinte, Marília saiu de casa. Tomada de entusiasmo, dirigiu apressada até o Aeroporto Internacional dos Guararapes. Lá chegando, ao avistar o local destinado ao desembarque, algumas lembranças foram inevitáveis e ela, inesperadamente, sentiu o cheiro das rosas híbridas.
Em instantes, estava no saguão de piso polido, aguando inquieta, enquanto, em seu coração, involuntariamente, rosas vermelhas floresciam.
Já impaciente, evitando recordar-se de algumas imagens, sobretudo das violetas, finalmente Marília ergueu a vista. Foi quando, no meio da multidão que se aproximava, distinguiu a jovem de rosto moreno e de traços perfeitamente simétricos que, emocionada, lhe sorria.
Aproximando-se lentamente, Lis parou de frente para Marília, fisgando absolutamente os olhos verdes que a investigavam, brilhantes e na expectativa do abraço que não vinha.
Na seqüência dos segundos, que pareciam avolumar-se, antes de abraçar a inesquecível amiga, a menina que agora era uma moça de corpo e de alma, estendeu-lhe o presente que, até aquele momento, Marília sequer havia notado.
Era um pequeno vaso povoado de verbenas. E, ao oferecê-las, Lis demonstrou ter entendido perfeitamente o recado que, há tantos anos, Marília havia lhe dado em meio ao jardim secreto, naquela tarde de tanta alegria:
- As verbenas nunca ficam sozinhas.
E só então veio o abraço, justo feito o destino que, novamente, as unia. E assim as duas ficaram alguns instantes, de olhos bem fechados, embalando os corpos e as verbenas que, dentro de ambas, brotavam com euforia.
Quando os olhos verdes, finalmente, resolveram retomar a vista, perceberam que, logo adiante, mais um semblante conhecido despontava. Incrédula, Marília piscou os olhos, mas estes continuavam turvos e ela, indecisa.
Muito embora não tivesse certeza do que via, Marília bem sabia: a vontade tinha aquele poder absurdo de criar e recriar imagens, das mais amargas às mais queridas.
E, fosse real ou imaginada, fato era que, à frente, estava Sarah e esta lhe sorria. O tempo havia modificado um pouco aquele semblante, mas Marília o reconheceria em qualquer lugar do mundo! É que aquele rosto, mesmo estando distante, jamais saíra de seu jardim secreto.
De posse da verbena, Marília, finalmente, sentia-se feliz. E o mais inusitado de tudo: aquele encontro, mesmo que não durasse mais do que um segundo roubado da razão, devia-se tão somente à flor de Lis.