sexta-feira, 30 de maio de 2008

O AVESSO DA TELA (Capítulo I)

CAPÍTULO I
O PRIMEIRO LUGAR
Meia-noite, avisou-lhe, num tilintar quase inaudível, o relógio da cabeceira. Camila estava inquieta, com todos os sentidos apuradíssimos. Deitada na cama, rolava de um lado para o outro sem sono. Começou, então, a observar a chuva descendo pelo vidro da janela. Aquela cena lhe lembrava seus quinze anos, logo após a morte de sua mãe. Foi com aquela idade que aprendera a observar a chuva e fugir da realidade. Fingia que as gotas escorriam por dentro de seu corpo, lavando sua alma, esfriando-a por dentro, carregando a saudade e inundando o vazio que a mãe deixou.

Ela havia morrido acometida de leucemia. Camila e o pai, atordoados e incrédulos, assistiram seus últimos dias de pé, ladeando-a na cama, fincados feito muralha, fingindo fortaleza. Por dentro, só os dois sabiam o quanto lhes faltavam pernas e pés naquele momento e o quanto, futuramente, lhes faltariam chão e percurso. Mas, nos anos vindouros, o caminho, outrora perdido, foi retomado e, atualmente, caminhavam de mãos dadas.

O amor entre ambos se fortaleceu e, em nome deste mesmo amor, Camila havia aberto mão de muitos de seus desejos e planos, aceitando, inclusive, trabalhar, literalmente, ao lado do pai, que era um grande empresário do ramo da construção civil. Ela se formou em arquitetura e não pôde dizer não ao engenheiro quando ele lhe presenteou com um escritório que, por óbvio, se avizinhava ao seu, ocupando o andar inteiro do prédio empresarial luxuoso que o próprio construiu.

Sempre que Camila observava o preparo da argamassa de uma das construções por si arquitetada e acompanhada, perguntava-se como algo tão líquido e sem substância podia, em tão pouco tempo, transformar-se tanto e, adulterando sua natureza, sustentar um prédio inteiro? Ela ainda não possuía uma resposta, mas o fato é que se sentia da mesma forma e o pai, no contexto e em analogia, representava para si a estrutura de concreto que ela precisava manter erguida, sendo ela a argamassa, agora já firme e rígida. Exatamente por isto, furtava-se a um relacionamento aprofundado com qualquer pessoa. Em sua vida, assim como entre os tijolos da construção que soerguera, não havia espaço para mais nada além do cimento, dizia ela para si mesma sempre que descartava mais uma de suas amantes furtivas. Era sua forma de evitar o remorso e, ao mesmo tempo, o desmoronar de sua estrutura, a qual, entretanto, embora não percebesse, continuava frágil por outros ardis da vida. Os vãos existiam em seu arcabouço, mas ela não os via.

Quando a chuva arrefeceu, Camila finalmente havia adormecido. Seus sentidos se entorpeceram e ela sequer ouviu o anunciar das duas horas. Seu vazio, entretanto, mantinha-se desperto e presente, como sempre, em que pese à ausência dos sentidos.

O dia seguinte foi tão longo quanto a noite. E ela o começou dando cores e formas a uma decisão, a mesma que, até ser tomada, lhe fez perder o sono. Depois de muito adiar, finalmente Camila resolveu retomar, ainda que minimamente, uma das poucas coisas que fazia com prazer: escrever. Ela daria um jeito de conciliar sua produção literária com o trabalho, mesmo que, para isso, fosse preciso perder os horários de almoço – exatamente como fazia naquele instante, em meio a um restaurante – corrigindo, um a um, seus contos. E ela se deu um prazo: em uma semana os selecionados deveriam estar registrados.

Absorta que estava, entre o silêncio interno e o burburinho externo, ela foi interrompida pelo celular. Era Débora, com uma notícia que classificou como imperdível: haveria um concurso nacional de contos eróticos femininos e Camila, ressaltou a outra, empolgada, tinha a obrigação de participar! Advertiu, por fim, que desta vez não a deixaria fugir.

Sim, fugir, era a palavra certa, concluiu Camila, enquanto meditava sobre a imposição da amiga. E foi exatamente o que ela teve vontade de fazer mais uma vez: fugir, fingir que possuía outras prioridades. Mas bem sabia ela que estas “prioridades” não eram de fato suas e sim de seu pai. Tal constatação tinha sido uma das mais duras dentre as trazidas pela insônia. Aquela história de deixar de lado o que realmente a impulsionava estava chegado ao limite. Ela andava extremamente infeliz, isto era um fato. Outro fato: ela não fugiria, nem fingiria mais. Era absolutamente incongruente estar ali, sentada, corrigindo seus textos para registrá-los, numa tentativa de dar algum prazer à sua vida, e dizer um “não” diante de uma grande chance. Ela participaria sim! E começaria naquele exato instante a escrever o tal conto.

Determinada que era, deixou de lado aquela correção, abriu uma nova tela e estipulou outro prazo, este mais curto: só ergueria a cabeça quando quedasse à sua frente o texto que enviaria. Dentro do envelope caberia – e ela remeteria! – muito mais do que a quantidade de páginas e caracteres estipulados. Disto ela sabia e esta foi a certeza que a fez digitar a primeira linha...

"Tarde de chuva. Mais uma vez, a chuva. Desta feita foi o relógio da parede que lembrou a Camila de seu atraso. Já passava das cinco horas da tarde e ela ainda estava ali, naquela sala de espera! Impaciente, ela ergueu-se. Em passos rápidos, atravessou o saguão da clínica e foi tomar um pouco de ar do lado de fora. Acomodou-se na varanda, respirou alguns segundos e ligou para Débora.

Com o resto de calma que possuía, explicou que não iria estar no restaurante às sete horas, como haviam combinado, pois até àquela hora ainda não tinha sido atendida. Como o esperado, Débora resmungou, relembrando-a de que não havia sido uma boa idéia marcar a ginecologista exatamente no dia de seu aniversário. Inconcebível começar a festa sem a aniversariante, justificou a interlocutora contrariada.

De volta ao sofá, mais irritada ainda, Camila começou a folhear pela décima vez a mesma revista, enquanto continha a vontade de rasgar página por página. Naquele instante, abreviando a contenção de seu impulso, a atendente a chamou. Era, finalmente, a sua vez. E só podia, afinal todos já haviam ido embora, constatou Camila antes de abrir a porta.

A médica a esperava e quando Camila a viu, instantaneamente, parte de sua raiva se dissipou. A Dra. Ângela Krauss era uma mulher muitíssimo atraente, foi essa a primeira constatação. Sentada, de cabeça baixa enquanto rabiscava alguma coisa numa agenda, ela lhe pareceu tão fria quanto bonita e esta foi a segunda impressão da expectadora. Quando o olhar verde se ergueu e as mãos firmes ocuparam-se com a retirada dos óculos de grau que o encobria, uma voz envolvente cumprimentou Camila de forma polida:

- Boa noite. Desculpe o atraso.

O pedido de desculpas logo foi aceito, seguido de muitas outras constatações: os olhos daquela mulher eram intensos, apesar da clareza da íris. Sua tez era avermelhada e sua postura, forte, quase austera. Ela era alta, muito mais do que a maioria das mulheres e suas mãos eram grandes, de unhas curtas. Os cabelos também não eram longos e deixavam à mostra um pescoço alvo, que chamava ao toque, fosse pela textura imaginada, fosse pela beleza real e exposta. Uma combinação que beirava o exótico e o másculo, a mesma que fez Camila, já desejosa, cogitar a hipótese de ela ser, também, lésbica. Mas o anel dourado, adornando-lhe o dedo anular da mão esquerda, logo a fez sopesar, ao menos, a última de suas impressões.

Naquele exato instante, diante daquela criatura que, num erguer de olhos tão verdes e singulares, havia preenchido tanto de seus espaços, reduzindo parte de seu vazio, Camila decidiu: iria colher daquela sala, daquela consulta e, sobretudo, daquela mulher, sua inspiração. A mesma que andava lhe faltando ultimamente. A médica lhe daria o conto. E o plano era por demais simples: Camila assumiria, em ousadia e ficção, um olhar diverso, uma personagem. E a doutora lhe serviria de par, ainda que sem conhecimento prévio da trama e das falas, naquela história que ela inventaria, ao passo que viveria, nos minutos vindouros.

A doutora, alheia ao turbilhão de pensamentos e sensações que já fervilhava a mente e o corpo da escritora, logo pegou uma ficha e começou a preenchê-la, anotando o nome e alguns dados da nova paciente. Em seguida, questionou o porquê de ela estar ali e Camila respondeu, sem qualquer embaraço, já interpretando:

- Hoje faço 30 anos e achei que estava na hora de um check-up! – disse sorrindo. Mas a médica manteve-se séria e não retribuiu, permanecendo concentrada na ficha, alheia à trama da qual já fazia parte, longe de ser apenas coadjuvante.

Sem erguer a vista, repondo os óculos de grau, a doutora passou às perguntas correlatas à sua vida íntima, às quais Camila também respondeu, sem qualquer desconforto:

- Você é virgem?
- Não, ainda existe alguém virgem aos 30 anos?
- Mais do que você imagina. – e finalmente a médica a encarou, demonstrando que não estava achando graça e que gostaria de continuar com seriedade. Camila logo entendeu o recado e acomodou-se de forma mais ereta na cadeira.

A médica continuou:

- É casada?
- Não...quer dizer, não formalmente falando – e Camila, naquele momento, já dava à sua personagem uma parceira, com a qual dividia a vida.
- Entendo. Mas tem um relacionamento sexual estável?
- Sim. Tenho – respondeu concisa, deixando a ficção avolumar-se a cada instante.
- Usa algum método anticoncepcional?
- Não precisamos – e Camila logo se preparou para a cara de interrogação que certamente viria, seguida da pergunta da médica.
- Algum de vocês é estéril ou fez alguma cirurgia?
- Não. Simplesmente não nos foi dado o poder de reproduzirmos em conjunto... – e Camila riu, decidindo que realmente brincaria com aquela criatura tão sisuda. Seria um prazer desconcertá-la.

A doutora fez cara de quem não estava entendendo e pediu:

- Pode ser mais clara?
- Sim. Sou lésbica e transo com mulheres. Aliás, mais específica e ultimamente, com a minha mulher – e dessa vez Camila respondeu séria, contendo a vontade enorme de rir da cara de espanto da doutora.
- Entendi... – e a médica suspirou, constrangida. Camila logo percebeu e começou a por em prática a parte da trama onde o objetivo era deixá-la ainda mais sem graça.
- Não sei por que vocês, ginecologistas, sempre emperram nessa pergunta e fingem não ficar assustadas, quando, de fato, ficam! Não precisa ficar constrangida. Não por mim.
- Não fico constrangida, nem assustada com o fato de você ser lésbica. Apenas me surpreende o de você admitir desta forma, tão abertamente. A maioria não age assim!
- Nossa! Pelo menos minha declaração arrancou da senhora mais do que três palavras! – e Camila riu, dessa vez vendo seu sorriso ser retribuído. Logo a paciente apreciou os dentes brancos e perfeitamente dispostos no sorriso franco que lhe fora lançado, acompanhando de um olhar menos gélido, quase cálido. Gostou também dos lábios que lhe sorriram. Eram lábios bonitos, rubros, que dispensavam o uso de batom e pareciam sempre acometidos pelo frio intensificando-lhes a tonalidade.
- Desculpe... – falou a médica, demonstrando, também, o rubor em sua face, fazendo com que Camila adorasse aquela reação súbita, aquele ar infantil que invadia, sem permissão, as expressões daquela mulher, antes tão dura e arredia. E Ângela continuou, tentando driblar o desconforto – não queria parecer rude, sou de poucas palavras. Nada pessoal.
- Imagino – respondeu Camila, consciente de que já exercia algum poder sobre sua personagem, principalmente pelo olhar diferenciado que ela, naquele instante, lhe lançava.

O restante da entrevista transcorreu de forma menos formal. A médica parecia apreciar, ainda que discretamente, cada detalhe que captava de Camila e esta, por sua vez, apreciava o jeito quase másculo da mulher que, aos poucos, assumia o papel – em olhar e palavras – que ela desejava.

No meio da conversa, Ângela admitiu que havia se surpreendido não apenas com a sinceridade de Camila, ao confessar-se gay, mas, sobretudo, com o fato de ela não ter qualquer jeito masculino, ao contrário, “ser tão feminina, delicada”. Foi assim que a médica a classificou, com os olhos verdes fulgurando a cada palavra.

Camila, pelo tom usado e pelo olhar que se intensificava a cada fala, tomou o comentário mais como um elogiou do que como uma constatação. E, em sua mente, já absolutamente corrompida pela personagem interpretada, uma observação surgiu, que ela, naquele instante, silenciou. Entretanto, antes de partirem para os exames, Camila não resistiu e ousou:

- Depois de tantas perguntas que me foram feitas, será que tenho o direito a, pelo menos, uma?
- Claro – e a médica pôs-se em pose de espera e curiosidade.
- A senhora me disse, agora a pouco, que nem suspeitou que eu fosse lésbica, não foi?
- Sim. Você foge aos padrões.
- E você, Ângela?
- Não entendi...eu o quê? – e a médica pareceu perturbar-se.
- Você é lésbica?
- Claro que não! Porque a pergunta?
E Camila, dessa vez rindo abertamente do rubor que novamente tomava conta do rosto da médica, explicou sem pudor:

- Porque, desculpe a sinceridade, mas você se encaixa perfeitamente no estereótipo criado, sabia?
- Continuo sem entender – mentiu a médica, que já compreendia perfeitamente o que Camila queria dizer. Desejou, porém, escutar a explicação que sairia daquela boca, mesmo que fosse tão devastadora quanto os lábios fartos que sensualmente se moviam.
- Ângela...você é máscula! Tem um rosto muito bonito, de traços perfeitos, mas é um rosto angular, não muito feminino. Além disso, olhe as suas mãos! Sei que a sua profissão exige, mas as unhas curtas não são apenas unhas curtas! São unhas sem esmalte, sem anéis delicados, de dedos fortes, de palmas avantajadas, também não muito femininas. Além disso, seus lábios estão sem batom, você está sem brinco e eu diria mais...aposto que ficará extremamente constrangida, agora que sabe que sou lésbica, ao me tocar, ao apalpar meus seios e vê-los intumescidos... e vai ficar imaginando se eu estou te desejando, se estou gostando de se tocada por você. E vou mais longe! Aposto também que ficaria toda sem jeito se eu dissesse que você me atrai sim, que me excita a idéia de ver suas mãos aí, onde elas estão, e imaginá-las em mim. E se isso que eu estou dizendo não fosse a mais pura verdade e você fosse uma hetero, caretíssima como as outras, com certeza já teria me colocado para fora de sua sala e se recusaria a me atender novamente, o que não fez e nem fará!

Ângela já estava suando e Camila apenas sorriu, quando concluiu sua maldade. Ela já não sabia o quão era má ou se má era apenas sua personagem! A médica, depois daquelas frases, só teve uma alternativa:

- Você está esquecendo que sou profissional e, como tal, lhe atenderei, independentemente de sua opção sexual e de sua opinião sobre a minha pessoa.

Dizendo isso, Ângela ergueu-se e caminhou até a maca, que ficava do outro lado de uma parece de gesso. Camila a seguiu e ela estendeu-lhe uma bata, indicando o banheiro para que a vestisse. A paciente obedeceu, imaginando que passara – ela ou a personagem? – dos limites. Mas agora era tarde demais. O conto já tinha um início e precisava urgentemente de um fim.

Ângela vestiu as luvas e tentou recompor-se enquanto esperava Camila. Lembrou de cada palavra escutada e rezou para que conseguisse agir naturalmente depois do vendaval de verdades proferidas por aquela criatura tão desconcertante e envolvente.

Ela sentia-se sim atraída por mulheres desde sua adolescência, mas nunca havia admitido nem para si mesma, tampouco concretizado os desejos que povoavam seus sonhos insistentemente, mesmo depois de casada. E agora, de repente, naquela altura da vida, em meio a uma crise matrimonial, lhe aparecia uma mulher daquelas, totalmente compatível com suas fantasias e demonstrando que cederia, caso ela a quisesse. Ela simplesmente não sabia o que fazer. Poderia, finalmente, permitir-se e, pelo menos, beijá-la. Fora exatamente isso que Ângela desejou assim que Camila entrou em sua sala, com aquela boca farta e descabida, tão bem disposta no rosto mosto moreno de traços marcantes e pele lisa.

Poderia ir além, despindo-a e despindo-se, principalmente, de sua hipocrisia, cogitou tentada. Mas a personagem interpretada por Ângela, ao contrário da de Camila, não se limitava a um conto. Ela a encenara durante toda a vida! Sua máscara já parecia haver se incrustado na carne e suas vestes, assumido o lugar de sua pele. Ela simplesmente não sabia como se sustentaria depois de tirá-las, como seu casamento se manteria, como ela se manteria sem seu casamento e, sobretudo, como faria para não sucumbir ao desejo de abandonar o palco onde sua vida, tão pateticamente, se encenava. Para não sucumbir às suas tentações, ela havia retirado de seus olhos o poder ver os outros como de fato eram e, bem por isto, naquele instante, sentiu-se incapaz de lançar para dentro de si um olhar diverso. Preferiu, mais uma vez, fingir e fugir de Camila e de si mesma...e lá ia ela conjugando em pensamento os mesmos verbos de sua parceira de trama. Ambas se fazendo represas.

Camila voltou e já não parecia tão disposta a provocá-la, concluiu Ângela, pelo silêncio da outra. A paciente sentou-se na maca, sem olhar a médica nos olhos e disse, em voz baixa:

- Desculpe-me. Sinto ter me excedido. – E neste instante ouviu-se mais a voz de Camila do que a de sua criação.
- Tudo bem – respondeu Ângela, triste por perceber que a moça havia desistido e, o pior, se arrependido!

Sob os comandos da médica, Camila abriu a bata e expôs os seios firmes aos olhos translúcidos de Ângela, que tentava conter o tremor das mãos. Com cautela e simulando uma frieza que não sentia, a médica tomou os seios de Camila e os apalpou lentamente, fingindo examinar algo além da textura daquela pele macia, da consistência perfeita daqueles montes volumosos que eram, definitivamente, o alvo exclusivo de sua atenção. Tentava também, a duras penas, ignorar que, realmente, os mamilos estavam arrepiados. Tentava, acima de tudo, não supor que a reação adviesse de seu toque. Mas como Camila permanecia inerte, a médica logo se julgou pretensiosa.

A paciente, dando continuidade ao conto, não encarou Ângela uma só vez. Percebeu o embaraço da médica, a vermelhidão de seu rosto, sua respiração quase ofegante, mas se conteve. Tinha certeza de que a doutora estava sim, excitada. Na verdade a juraria molhada, com aquela aproximação, com suas provocações, com sua pele, com seu cheiro. Mas permaneceria quieta, aguardando. Queria observar a reação de Ângela ao percebê-la também molhada, graças ao seu toque, e isso seria inevitável.

Quando Ângela, finalmente, mandou que Camila se deitasse, a paciente obedeceu. A médica tocou-lhe as pernas num pedido mudo para que as abrisse um pouco mais e Camila o fez. Porém, quando a doutora fez menção de lubrificar com o gel os dedos, já encobertos pelas luvas, para tocá-la, Camila não resistiu e intercedeu:

- Vamos, Ângela, não seja tola! Já não preciso disso e você sabe muito bem!

A médica desconcertou-se e ficou sem reação. Foi então que a paciente, já impaciente, se ergue, sentou-se na maca e puxou-a pelas mãos. Entorpecida de desejo, Ângela cedeu e aproximou-se. Camila ajeitou-se de forma que a doutora ficasse parada, de pé, entre suas pernas. De súbito, livrou-se totalmente da bata enquanto conduzia a cabeça loira pela nuca, até encostar a boca em seu ouvido, onde sussurrou:

- Eu sei que você vai saber me tocar como ninguém. Não perca tempo. Meta os dedos em mim...eu estou molhada desde o momento em imaginei exatamente o que agora te peço.

Em seguida, a boca de Camila escorregou pelo pescoço alvo da médica, que cerrou os olhos num gemido, tentando evitar que Camila lhe tomasse a boca, mas já era tarde. Os lábios voluptuosos já lhe sugavam a saliva, quentes, ardentes, parecendo querer comer-lhe por inteiro. E Camila realmente sabia como devia agir para arrastá-la para o desfecho daquele conto. Percebendo que ela excitava-se com as palavras, afastou a boca da sua, falando-lhe novamente ao ouvido, enquanto conduzia as mãos da médica por entre suas pernas:

- Ângela, por favor...eu preciso... – e a língua de Camila já tocava descaradamente o lóbulo da orelha da médica – eu quero você dentro de mim...quero ser a primeira mulher a gozar com você.

E Ângela cedeu. Livrou-se das luvas e, sobretudo, da máscara. Excitada, deliciada com a voz rouca e as palavras de Camila, meteu-lhe dois dedos de forma vigorosa e ritmada. E Camila aprovou, abrindo-se mais para senti-la lá dentro, mais forte.

- É assim que se faz, Ângela! E eu sempre soube o quanto você o faria com perfeição! – e Camila gemia alto, enquanto intercalava as palavras já nada ensaiadas, tampouco fictícias. E o conto lhe escapava, feito o gozo, por seus vãos...

Ângela estava enlouquecendo só de tocá-la e de ouvi-la falar daquele jeito, mas não era assim que a escritora queria findar aquelas últimas páginas que lhes restavam. Logo puxou a mão da médica, retirando os dedos trêmulos de dentro de si, ordenando que ela parasse. E ela parou, surpresa, com os olhos esfogueados de desejo, as mãos ensopadas pela umidade. Diante do susto da parceira, Camila sorriu e explicou o que queria, despindo rapidamente a médica e conduzindo-a para o chão.

Sobre o tapete, Camila deixou Ângela deitar-se e postou-se ajoelhada sobre seu ventre, de pernas abertas, indicando que os dedos da médica deveriam continuar ali, apoiados em sua pélvis, para que ela os engolisse novamente. E assim fizeram: Ângela postou os dedos longos como se fossem um membro rijo e Camila encaixou-se sobre eles, num movimento de sobe e desce que enlouqueceu a doutora. Em seguida, a personagem de Camila, ou o que restava dela, buscou entre as pernas de Ângela o espaço que pôde e foi a sua vez de penetrá-la.

Ajeitou-se sobre as mãos de Ângela e continuou a subir e descer, enquanto afundava também os dedos na médica, que se sentia entorpecer, com as pernas anestesiadas, os olhos fechados, os líquidos escorrendo, o ventre recebendo a agilidade daqueles dedos maravilhosos.

E o ritmo foi aumentando, tornando-se intenso, firme, seguro, forte...as mãos de ambas estocando com força, as gargantas ficando secas, na medida em que os ventres inundavam-se mais e mais. E quando o som do entrar e sair dos dedos tornou-se audível e, na seqüência, o silêncio se fez, após muitos gemidos, nada mais havia de ficção. A realidade escorria das duas. Foi então que, de olhos abertos, em todos os sentidos, elas se viram como realmente eram e os olhares que ambas se lançaram foram inteiramente diversos, além de límpidos.

Confusa, Camila quedou o corpo suado sobre o de Ângela e beijou-lhe a boca. A médica, por sua vez, abraçou-a, desejando que ela ficasse ali para sempre, sem saber que, nos planos daquela que tão perfeitamente cabia em seus braços, este seria o último parágrafo da história, onde aquele abraço, definitivamente, não cabia. Afinal, o conto, na concepção originária da autora, não deveria ostentar romance, apenas sexo. E assim ela o findaria.

Camila desvencilhou-se do abraço com outro beijo, este frio. Silenciosa, caminhou até o banheiro, onde trocou de roupa, enquanto Ângela permanecia inerte, ainda no chão, despida de tudo, assustada consigo e, mormente, com aquela mulher capaz de lhe dar em tão pouco tempo tudo o lhe faltou durante toda a vida.

Quando Camila voltou, Ângela havia se vestido do que ainda lhe cabia. Seu manto era de expectativas. Reconhecendo a esperança nos olhos verdes, ela aproximou-se e, rematando o conto, disse-lhe:

- Paramos por aqui – e esta frase foi o ponto final."

Mas o destino seria menos cruel com Camila do que ela foi ou fingiu ser. E, antes que ela continuasse manipulando as falas, os gestos e sentimentos – em sua vida e em seus escritos, que eram, em verdade, meros resumos inacabados de suas expectativas –, a bateria do laptop acabou, a tela escureceu e ela, assustada – mais com a descoberta de sua própria escuridão do que com a da tela –, foi então perceber que não havia como escrever um conto daquela forma, despida de envolvimento e, ainda assim, ganhar qualquer concurso. E mais: não havia como dar continuidade à sua vida evitando um enlace, tampouco poderia iniciar uma carreira de escritora sentindo-se pela metade, falando sobre sexo, simplesmente, porque desconhecia o amor. Só então, ela finalmente despertou, ao passo que constatou: queria mais do que qualquer coisa na vida voltar se a sentir inteira! Queria deixar de observar a chuva com o intuito infantil de preencher um vazio que simplesmente não se recheia com águas, com mágoas, com medos, com paredes, com tijolos, com muralhas. E esta certeza foi o prêmio que ela, naquele momento, ganhou, mesmo antes de participar do certame. O primeiro lugar tornou-se seu e ficava logo ali, exatamente onde ela estava, sentada naquela cadeira tosca, inanimada, com um laptop pousado sobre o seu colo sem qualquer vestígio de vida. O importante é que ela já se sentia cheia.

Munida desta nova sensação, laçou um olhar diverso sobre aquela tela, o mesmo que lançaria, doravante, sobre sua vida e, retirando mentalmente o ponto final, decidiu que permitiria uma continuação:

"- Paramos por aqui... por hoje. Mas queria te ver amanhã... "

3 comentários:

Anônimo disse...

Conheci seu blog em abril e fiquei viciada em seus contos...Parabéns pelo talento!!Estarei sempre aqui,lendo e me deliciando com seus textos.

Mina Blixen disse...

Aêêê, Marina!!!
Muito bancana ver esse conto aqui também. Tive o prazer de o ver nascer e, pra mim, desde o primeiro "choro da cria", é de fato O PRIMEIRO LUGAR!
Bjs, Mina Blixen.

Anônimo disse...

diferente...sensacional...quente...delicioso este conto. Conte mais (e sempre) para nós ...pobres mortais.

paulo. 16.06.2008