quinta-feira, 1 de maio de 2008

BONECAS (Conto Erótico Feminino)


O shopping estava totalmente lotado quando Catarina chegou. Eis a explicação: final de ano. No estacionamento, um caos. Carro para todos os lados, em cima dos meio-fios, das calçadas, um inferno natalino. E ela tinha pressa! Isso era um péssimo sinal, pois a pressa já havia lhe compelido a fazer inúmeras e imperdoáveis besteiras no correr de seus trinta e dois anos muito bem vividos, diga-se de passagem. Odiava sentir-se pressionada, fosse pelas pessoas, fosse pelos ponteiros do relógio que lhe apertavam o pulso, fosse por seus próprios impulsos, por vezes até irracionais. Antes que largasse o carro ali mesmo, no meio de um dos pavimentos do estacionamento, ligou para Leon, seu fidelíssimo escudeiro:

– Alô, Leon, pelo amor de Deus, venha para o terceiro andar do estacionamento agora!
– Credo, Nina, o que houve?
– Corra!

Depois de desligar o celular sem responder à pergunta desesperada do amigo, riu do que havia feito. Sabia de seu exagero inato. Tinha a certeza de que Leon deveria estar, naquele exato instante, atravessando a porta de vidro que guardava a Diabolic feito um louco, esfogueado, arfante – pois sempre ficava assim quando fazia qualquer movimento mais brusco, devido ao desleixado excesso de peso – e ganhando os corredores do shopping com sua discrição tão característica: alguma sandália bem fashion, daquelas que sempre fazem um barulhinho irritante quando encontram o piso, calças pantalonas em cores tão fluorescentes quanto as que contornavam o letreiro da loja de Catarina, uma blusinha daquelas por ele denominada de básica, com estampas extravagantes, quase sempre com motivos alternativos – para não dizer gay –, geralmente mais apertadas do que o moralmente permitido e óculos de cores que serviam mais como diademas, prendendo os cabelos lisos. E adivinhou!

Lá se ia ele, exatamente como Catarina imaginara, suando, correndo, parando, respirando, recompondo-se, ajeitando os cabelos e correndo novamente, tentando não deslizar no piso liso que cobria o shopping, com todo o exagero e fidelidade de que um ser é capaz, para salvar a chefe, amiga e musa, pela qual dizia fazer tudo o que fosse preciso, desde que isso não incluísse transar com uma de suas amantes enquanto ela conquistava outras.

“Você que dê conta das múltiplas escolhas, Nina”, era o que rosnava sempre que ela lhe pedia para despistar uma das namoradas, ora entretendo-as com seu humor irresistível, ora mentindo com seu cinismo devassador, ora distraindo-as com seus artifícios, enquanto ela conquistava mais uma. “Você é a criatura mais bela, mais cruel, mais terrível e mais sem escrúpulos que eu conheço, falta muito pouco para ser um daqueles cafajestes malditos e sedutores que eu tanto amo... acho até que por isso sou apaixonado por você”. Era isso o que Leon comentava, sempre com um risinho sarcástico, cada vez que a chefe lhe confidenciava alguma das intermináveis aventuras amorosas.

Apesar de reprimi-la, sabia que, no fundo, o amigo a admirava e a queria bem... um bem infinito, que incluía preocupação, cuidados e conselhos, algumas vezes seguidos, outras totalmente ignorados.

Quando Leon finalmente avistou o carro de Catarina, seu coração descompassou-se de vez. A pajero estava atrapalhando o trânsito, pois a motorista havia, simplesmente, parado no meio da via. Alguma coisa grave deveria ter acontecido, foi o que pensou antes de reunir as últimas forças que tinha para correr na direção.

Ao vê-lo pelo retrovisor, Catarina abriu a porta e desceu calmamente. Após estender-lhe a chave, sob o olhar incrédulo do amigo, pediu:

– Ache uma vaga para mim, Leon, que eu já to me estressando.

Sem acreditar no que ouvia, ele apertou os olhos, fez cara de ódio mortal e tomou abruptamente a chave das mãos irritantemente bonitas da chefe, dizendo:

– Você é mesmo uma vadia sem coração! Vá! Xô!

E expulsou-a, cumprindo a ordem com raiva e, ao mesmo tempo, alívio. Pelo menos essa maldita está inteira, pensou Leon, ao observar a amiga se afastando, com o andar lânguido, quadris bem feitos, costas largas e altivas.

Catarina não pôde deixar de rir da expressão de preocupação do amigo, reprimindo-se, logo em seguida, por abusar tanto de sua amizade. Parte da pressa já havia se dissipado e caminhou calmamente pelo shopping, observando algumas vitrines, até chegar à Diabolic.

Porém, assim que avistou a loja e a quantidade de pessoas que a aguardavam, o estresse quis apressar novamente os passos.

Seria a manhã de entrevistas. Deveria contratar, pelo menos, mais três funcionários para cobrirem a demanda de final de ano. E todo ano era aquele inferno! Contratos temporários, aborrecimentos corriqueiros.

A Diabolic era uma loja bem alternativa, que só vendia grifes badaladas, cujas roupas traziam sempre estilos diferenciados. Para incrementar ainda mais, Catarina havia colocado dois stands lá mesmo, um para a aplicação de piercings, outro para tatuagens. Os freqüentadores eram bem fieis. Um público diversificado, entre adolescentes fazendo gênero rebeldes sem causas, adultos estilosos, criaturas cults do mundo artístico e, principalmente, gays. Todos ricos, afinal nada dali era barato, e mimados, exigentes, alguns até teatrais e dramáticos, que exigiam um tratamento mais do que vip. Exatamente por estes motivos, Catarina não contratava qualquer pessoa, mesmo que fosse para ficar temporariamente.

Existia um verdadeiro paradigma a ser observado para ser funcionário da Diabolic. E as exigências eram tantas que trabalhar ali virara sinônimo de status no mundo mix, por assim dizer.

Em primeiro lugar, o requisito extrínseco: a figura deveria ser interessante. Nada de criaturas comuns, nem em estilo, nem em beleza. O padrão era ser fora dos padrões. Essa era a exigência número um.

O segundo requisito, esse intrínseco: a criatura deveria ser inteligente, culta, envolvente, carismática. Catarina odiava as pessoas sem sal e medíocres, era o que repetia sempre para a equipe de funcionários permanentes. “Os clientes não querem apenas um rostinho bonito para lhes paparicar, querem alguém inteligente, envolvente e culto para seduzirem... e serem seduzidos. Seduzam os clientes para que comprem, depois vocês se façam de inocentes e mandem eles pastarem. Assim sempre voltarão. Afinal, o ser humano adora ser enganado e rejeitado... é assim que fica de quatro e gasta bastante!”, ensinava a chefe.

Em terceiro lugar – e talvez, aos olhos da chefe, esse fosse o atributo mais importante – para trabalhar ali era preciso ser gay. Sim, porque a maioria, se já não possuísse os demais requisitos, facilmente os desenvolveria, ao contrário dos heteros que, segundo Catarina, insistiam em ser chatos, caretas, desinteressantes, comuns e sem estilo.

Sempre que Leon ouvia a terceira e última regra da casa olhava para Catarina fingindo-se incrédulo diante do cinismo. Um dia não resistiu e, cutucando a chefe, questionou baixinho e sorrateiramente, lembrando-a de sua contradição:

– É, mas bem que a senhora tem uma quedinha pelas mulheres caretinhas que aparecem na sua frente e termina traçando todas... elas também são chatas, desinteressantes, comuns e sem estilo?

E Catarina retrucou com a mesma ironia, respondendo sem qualquer culpa ou pudor:

– Na cama não, meu amor, mas isso você nunca vai saber, suponho eu!

Era uma verdade: Catarina tinha lá uma quedinha especial por iniciantes. Era assim que chamava as mulheres “desentendidas” que conhecia e com as quais se envolvia até conseguir trazê-las para a irmandade. Enquanto Leon a chateava, chamando-a de lésbica fria e calculista, ela se defendia dizendo que estava era fazendo uma boa ação, afinal, segundo a própria, nenhuma mulher que ficasse com outra já não teria um pezinho, nem que fosse bem discreto, no mundo homo, nem que fosse nas mais secretas fantasias e ela, como boa moça que era, apenas tratava de libertá-las – as fantasias e as lésbicas que existiam por trás das mulheres caretas que ela, tão astuciosamente, envolvia.

Apesar de tudo ser dito em tom de brincadeira, tanto Leon quanto Catarina sabiam lá do verdadeiro motivo dessa preferência quase cruel da empresária. Como grande parte dos traumas, este também vinha da infância e tivera até um nome, um nome bem bonito, assim como a dona: Leila.

Tudo havia começado com uma amizade ingênua, como ingênua é toda amizade que se faz aos seis anos de idade, despidos que são os seres humanos, pelo menos nessa época da vida, das malícias e artifícios tão próprios da idade adulta.
Assim, despidas de medos, de zelos, de maquiagens, Catarina e Leila cresceram juntas, não apenas como quase vizinhas de porta – a mansão da família de Catarina ficava no final da rua, ocupando quase todo o lado esquerdo, enquanto a casa modesta dos pais de Leila era a terceira, do lado direito – mas também como colegas de escola. E na mesma sala de aula faziam questão de ser, também, vizinhas, pois sentavam o mais próximo que podiam diariamente, ano após ano.

Os pais de ambas também eram amigos e incentivavam, achando até certa graça, o companheirismo e cumplicidade das duas que, feito encaixe, se completavam com perfeição, totalmente alheias à disparidade financeira que havia entre as famílias, totalmente indiferentes às diferenças físicas que possuíam. Fato era que se entendiam, se preenchiam.

Catarina sempre fora do gênero atleta e moleque. Adorava jogar bola, sujar-se de lama, travar as maiores e mais extravagantes disputas com os meninos do tipo “quem sobe na árvore mais alta, quem ganha na quebra de braço, quem junta mais bolinhas de gude?”, nos intermináveis duelos que ocorriam na areia do campinho de futebol, que ficava no final da rua, logo ao lado da casa de Catarina. Ali alcançara – e isso só viera a descobrir mais tarde – as melhores conquistas, dentre elas a admiração da mais fiel expectadora: Leila.

Enquanto Catarina crescia como a protagonista das maiores aventuras da rua, Leila era apenas a coadjuvante. Cuidava de assisti-la, acompanhando-a de longe, sempre sem se esforçar muito para ser a mais veloz ou a mais forte. Contentava-se com o fato de ter o título de melhor amiga da mais veloz e mais forte de todos: Catarina.

O forte de Leila sempre fora os estudos. Nisto, sim, era boa e deixava Catarina abismada. Leila era a maior cdf do colégio e Catarina, para descontar a falta de esforços da outra nos esportes e nas outras peripécias de rua, sempre se justificava diante das notas baixas, dizendo que ela, por sua vez, se contentava em possuir o título de melhor amiga da mais inteligente do colégio. E, muito embora Catarina também a considerasse a mais bonita, a mais delicada, a mais educada, a mais cuidadosa, a perfeição em figura de gente, essa opinião, pelo menos naquela idade, Catarina nunca chegou a revelar-lhe e nem tinha consciência do verdadeiro motivo. Preferia xingá-la de cdf de uma figa, sempre que Leila vinha com um dez enquanto ela ficava nos seis ou sete.

Os únicos momentos em que as duas se dedicavam com o mesmo afinco eram os dependidos nas brincadeiras de Barbie e Bob. E nem precisa dizer quem era o quê naquelas tardes infinitas de prazer, apesar de ingênuo, por ambas partilhado.

Os papéis sempre estiveram tão definidos! Era através da figura masculina do Bob, aquele boneco bonito, musculoso e loiro, que Catarina investia todo seu charme, todo seu poder inato de conquistadora, todo seu desejo, ainda infantil e tosco, de paixão e conseguia demonstrar, sem consciência plena do que se passava, todo seu encantamento e devoção pela sua eterna Barbie: Leila.

Enquanto isso, a Barbie se permitia ao luxo de ser galanteada, conquistada, seduzida e acariciada pelas mãos daquele tão querido e estimado Bob, mãos de plástico, é bem verdade, mas que traduziam o desejo nada artificial da criança que as manipulava. Leila se sentia, também, enternecida, apaixonada, envolvida, tocada, naquelas tardes onde, através dos bonecos, interpretavam os verdadeiros sentimentos, as inconfidenciáveis vontades.

O envolvimento pela brincadeira – e pela realidade, na verdade, – era tanto e tão intenso, que, as duas, mesmo sem perceber, na medida em que o tempo passava, se tornavam as réplicas, quase fieis, dos queridos bonecos de infância.

Catarina tornou-se uma adolescente de porte atlético, jeito meio moleque, musculatura aparente e invejável, cabelos curtos, loiros e mãos quase másculas, contrastando com a perfeição feminina do rosto que ostentava os únicos traços que lhe diferenciavam bastante do Bob. Até as roupas eram parecidas. Apesar das opiniões nada favoráveis dos pais, utilizava modelos despojados, abusava das calças jeans e das camisetas que deixavam os ombros aparentes e os braços mais torneados.

Enquanto isso, Leila aderiu ao estilo Barbie. Os cabelos longos e castanhos claros emoldurando o rosto bonito de nariz afilado, de lábios bem feitos e de olhos amarelados, amendoados, destacados por cílios longos e escuros e por sobrancelhas impecavelmente talhadas. O corpo, então, nem se fala. Logo adquiriu formas muito femininas, até precoces para a idade. Os seios perfeitos em tamanho e formato, a cintura fina, mais acentuada ainda pelos quadris largos, as pernas longas e torneadas, o porte delicado, a pele de tonalidade ímpar, coberta por uma penugem dourada que a fazia reluzir quando se bronzeava. Essa era a réplica mais perfeita da Barbie, de sua Barbie, pensava Catarina já menos inocente, aos dezesseis anos de idade.

Naquela época os bonecos foram guardados, enquanto os sentimentos despertados e demonstrados através deles, foram, por sua vez, escondidos, trancafiados. Nunca tocaram no assunto.

Substituíram as brincadeiras por intermináveis conversas, confidências, saídas para cinemas, sorvetes, praia, reclamações pela falta de liberdade que tinham, pelas broncas que levavam dos pais; trocaram os dias de infância, quase sempre curtos demais para as brincadeiras e vividos com pressa extrema, por dias outros, esses longos e saborosos, vividos com mais maturidade, dias que passavam juntas estudando ou simplesmente se curtindo e que, quase sem perceber, se transformavam em noites quentes, em que dormiam juntas, na mesma cama, com as desculpas mais esfarrapadas do mundo, dentre a de que assistiriam Tela Quente juntas, pois passaria um filme de terror e ambas tinham medo de assisti-lo sozinhas. Era esse o modo de se sentirem próximas, até onde o mundo as permitia.

E tudo isso viveram e sentiram em silêncio, silêncio compartilhado. Era como se tivessem um segredo que nem para si mesmas podiam revelar: era esse o trato, silenciosamente travado.

E tudo ia muito bem até chegar o primeiro namorado de Leila. E, é claro, foi a Catarina que confidenciou o primeiro beijo. Mas a amiga, de súbito, sentiu-se roubada. Era essa – e nenhuma outra! – a palavra que lhe secou a garganta. Sim, pois o primeiro beijo de Leila era para ser com ela, era pra ser dela!

E só então Catarina deu-se conta do verdadeiro sentimento que lhe povoava, e deu-se conta com espanto, com desespero, com pavor, sem muito jeito, sem muito disfarce.

Leila, por sua vez, a percebeu contrariada e também se deu conta do frio nas próprias mãos, da cara de culpada ao contar para Catarina toda aquela enrascada na qual havia se metido. Sim, porque nem gostava tanto do rapaz, mas sentiu-se, mesmo sem consciência exata do porquê, na obrigação de namorá-lo. As outras amigas já lhe cobravam isso, os pais também. Aquela amizade com Catarina já estava ficando estranha, era o que vinha ouvindo ultimamente e ela, fraca, simplesmente, cedeu. Beijou e foi beijada, com certo asco, sem qualquer vontade ou jeito.

Mas agora – e Leila continuava a contar, meio sem graça, constrangida – já passeavam de mãos dadas e aprendiam a beijar juntos. E Catarina, diante daquela confessada traição, sentiu-se enjoada, revoltada, contrariada, mais roubada, roubada e roubada. Era essa a questão!

Os dias se passaram e Catarina afastava-se de Leila. Mal suportava encará-la, quanto mais vê-la ao lado daquele almofadinha babaca, como rapidamente o denominara, e isso estava se tornando uma constante pelos pátios do colégio!

Nem ela conseguia compreender a dimensão do ciúme que sentia. A amiga fora sempre tão sua e ela dela que não compreendia como outro poderia ocupar o seu lugar! Era inadmissível ser trocada, era inadmissível ser roubada, mas, acima de tudo, era inadmissível descobrir-se apaixonada por Leila!

E custou a entender e aceitar o amor que já existia ali, há tantos anos! Custou a perceber que amava sua Barbie desde que tinham apenas seis anos de idade! Custou a admitir que nascera para ser sempre o Bob, mesmo que aquela Barbie não a quisesse! Mas antes deveria saber se Leila realmente não a queria. Decidiu: perguntaria a ela, contaria sobre o que sentia, proporia tirarem os bonecos do armário, libertá-los daquela prisão e vivenciar os papéis em carne. Ela a queria tanto e não acreditava que Leila também não a quisesse.

Foi numa sexta-feira que Catarina explodiu. Haviam combinado de estudarem para a prova de segunda, na casa de Leila, durante o final de semana. Naqueles dois dias acharia coragem para dizer à amiga tudo o que sentia, numa tentativa de resgatá-la. Mas Leila, no final da última aula, lhe passou um bilhetinho dizendo: “Acho que não vai dar para estudarmos juntas nesse final de semana. Miguel vai almoçar lá em casa no sábado. Meus pais querem conhecê-lo. Se der, domingo a gente revisa. Não fique chateada, um dia você vai me entender. Beijo, Leila.”

Não, ela não ia entender! Aquilo era um absurdo! Definitivamente Catarina jamais trocaria a companhia de Leila pela de nenhum outro ser humano na face da terra e perceber que ela não faria o mesmo doía demais. Leila era quem precisava entender de uma vez por todas que o que tinham, isso sim era especial!

Odiou a amiga durante os exatos cinco segundos em que leu o bilhete, depois a olhou, ainda com olhos contaminados pela raiva, e, em seguida, levantou-se e arrastou-a para fora da sala de aula, onde lhe disse o que não conseguia mais calar:

– Olhe, Leila, eu odeio seu namorado, odeio seu namoro, odeio o fato de você trocar minha companhia pela dele, odeio o fato de seus pais quererem conhecê-lo e prestigiá-lo com um almoço, odeio estar me afastando de você, odeio estar te perdendo, odeio esse colégio, essas pessoas que nos olham pelo canto dos olhos e que fizeram você querer andar de mãos dadas por aí com o primeiro babaca que te apareceu e eu odeio, acima de tudo, o fato de ter que te dizer o que você já deveria saber: eu amo você! Pronto.

Os olhos de Leila restaram incrédulos, a boca infantilizada pelo choro, o rosto vermelho pela vergonha, pelo receio de que outras pessoas tivessem ouvido aquela declaração tão passional e impulsiva quanto a dona das palavras proferidas. Teve vontade de sumir. Desejou que Catarina jamais tivesse dito aquilo. Definitivamente não queria ouvir! Agora não saberia o que fazer, dali para frente.

Sem intenção alguma de magoar Catarina, mas simplesmente compelida pela necessidade quase vital de sair dali, deu as costas e correu. Desapareceu pelo pátio do colégio, entre as plantas e a grama verdes, entre as pessoas alheias e estúpidas, e chorou, chorou e chorou, enquanto continuava a correr feito louca.

Essa foi a última vez em que se viram. Os pais de Leila logo ficaram sabendo do ocorrido e proibiram a filha de freqüentar a rua, mudaram-na de escola e, meses depois, mudaram-se de casa. Cortaram até as relações de amizade com os pais de Catarina, que ficaram mais horrorizados com a atitude dos pais de Leila do que com a atitude da própria filha. Afinal, conheciam Catarina e não ficaram muito surpresos com a audácia e paixão da filha. Aliás, foram os únicos que deram sustentáculo àquela adolescente que se descobria apaixonada e rejeitada pela melhor amiga.

Os anos passaram e Catarina nunca se recuperou do ocorrido. Leon chegara a essa conclusão. Era, há muitos anos, seu melhor amigo e conselheiro. O único para quem contara aquela história boba de adolescente, como classificara a personagem principal. Segundo ele, vinha daquele episódio o gostinho especial que Catarina tinha pelas mulheres “reprimidas”. Ela queria era vingança, embora negasse sempre. Queria, ainda que inconscientemente, provar que era capaz de arrancar os sentimentos e desejos mais escondidos de qualquer hetero que se pusesse a sua frente. Na verdade, tentava resgatar, em cada uma delas, a eterna Barbie. Era essa a análise do amigo.

“Você se tornou um Bob cafajeste, irracional e nada ingênuo, Catarina. A Barbie original não apreciaria em nada sua conduta, meu bem, pode apostar”, era a realidade que Leon lhe mostrava, tentando convencê-la a mudar, mas Catarina apenas escutava calada, enquanto desejava em silêncio: “Ela que se dane! Aliás, elas que se danem! São todas um bando mulheres fracas, frustradas e covardes que só têm o que merecem.”
Quando Catarina finalmente entrou na loja, o burburinho provocado pelos pretensos empregados temporários que aguardavam uma entrevista tornou-se mais do que audível; inconveniente. Todos a olharam, alguns sabendo exatamente de quem se tratava, outros admirando a beleza, apesar de desconhecê-la, e ainda havia aqueles que se encarregavam de questionar, de forma nada discreta, quem era aquela, se era, finalmente, a tal dona da Diabolic, Catarina Monteiro de Bragança.

Fato era que se tornara uma empresária muito bem sucedida não apenas por seu talento inato para a administração de empresas, aliado ao estilo próprio e audacioso, mas também – e isso não se pode negar! – pelo prestígio da família, pelo peso do sobrenome. Afinal, os Monteiro de Bragança tinham tradição e muito dinheiro. O pai e os tios eram donos de todos os shoppings da cidade, inclusive daqueles, onde Catarina tinha várias lojas. A Diabolic, entretanto, fazia questão de gerenciar pessoalmente. Era a favorita.

Passou feito um raio e logo se trancou em sua sala, tentando ignorar aquela confusão que se instaurara na loja. Em seguida, ligou para o balcão em busca de Leon. Ele havia acabado de chegar e ainda estava esbaforido.

– Leon, por favor, organize esse pessoal aí fora, criatura! Os clientes devem estar incomodados com esse barulho. Quantas vezes vou ter que dizer: receberei um a um, desde que marquem hora... e que cheguem exatamente na hora! Não quero esse alvoroço aqui!

– Pode deixar, Sua Alteza! – e Leon colocou o telefone no gancho, puto da vida!

Ele já havia tido o cuidado de selecionar alguns currículos e chamado para a entrevista apenas aqueles que tivessem alguma probabilidade de ser contratado. Conhecia os requisitos impostos por Catarina. Havia analisado foto por foto, as atividades desenvolvidas anteriormente, o perfil de cada um e, ainda assim, aquele monte de gente havia chegado ali, mesmo sem ser chamado! Um inferno! E ainda saía, aos olhos da chefe, como incompetente.

E todo ano era a mesmíssima coisa! Todos queriam trabalhar ali, afinal, além de ser sinônimo de prestígio dentro do mundo gay, o salário pago pela Diabolic era, simplesmente, o melhor que se recebia em termos de loja. Catarina justificava a diferença dizendo que exigia muito mais do que o trabalho de seus funcionários. Exigia o charme, a ousadia, a sensualidade, a personalidade... a amizade. E conseguia.

A equipe oficial era formada por dez pessoas: Leon, o sub-gerente; Desirré, a encarregada de receber e paparicar os clientes, direcionando-os, segundo os estilos, a um determinado vendedor – pois era assim que a loja funcionava –; Priscila, Lola, Pablo e Juliano, o quarteto de vendedores especializado em moda punk, clubber, gótico e fashion-chick, respectivamente; Vanessa, a tatuadora; Jane, sua assistente – e vitrine ambulante de suas tatuagens – e, finalmente, Cássio e Gunter, os encarregados dos piercings. E todos eram singulares, cada um à sua forma.

Leon, que já fora devidamente descrito, dispensava qualquer comentário. Era o mascote de todos, inclusive da dona.
Desirré era uma ruiva voluptuosa e com ar arrogante, desconcertante, sedutora por natureza e, por isso mesmo, contratada exclusivamente para atrair os clientes, convidá-los a provarem tanto quanto quisessem da Diabolic até fartarem-se ou encontrarem exatamente o que procuravam.

Priscila era a mais jovem, uma adolescente bem undergound, punk legítima, que usava todos os acessórios de couro e aço que podia nos braços alvos e delicados que possuía. O escuro das vestes e dos cabelos contrastando com a palidez do rosto jovem, quase infantil.

Lola era uma porra-louca. A legítima patricinha aloprada, rebelde sem causa, filha única, rica e revolucionária de uma família extremamente convencional, à qual afrontava com sandálias pink, com pulseiras fluorescentes, inúmeras fivelinhas coloridas que prendiam os cabelos lisinhos e ralos, e, principalmente, com os piercing e tatuagens de motivos infantis. Só para exemplificar, tinha as superpoderosas tatuadas nas costas e as três ficavam à mostra, logo acima da barra das saias brilhosas que usava, e isso, por si só, já diz um bocado da figura.

Pablo era, talvez, o mais esquisito de todos. Um ser muito tímido e quieto, de cabelos muito lisos e compridos. Vestia-se sempre de preto, pintava fortemente os olhos, não ficava exposto a qualquer raio de sol – e por isso conservava-se quase fluorescente –, usava aqueles anéis enormes, de prata, com caveiras, cruzes e outros adereços que lembravam a morte, pois era gótico e, como os demais, cultuava mais o final da vida do que a própria vida. Porém, era extremamente culto, conhecedor profundo de muitas coisas, apesar de a maioria não ter muita utilidade ou sentido. Para arrancar dele um sorriso era preciso muito, mas quando conseguiam, ele era um doce.

Juliano era a legítima bicha afetada. Tinha um rosto perfeito, de traços extremamente femininos e delicados, assim como os gestos. Era uma verdadeira lady. Com certeza – dizia Catarina - tinha alma e porte de madame. Aquelas de antigamente, bem clássicas, frescas e mimadas, que usariam com o maior gosto roupas esvoaçantes, espartilhos bem apertados, anáguas e, principalmente, chapéus enormes, femininíssimos, de abas mais do que largas. Era o preferido das senhoras que freqüentavam a loja e procuravam um estilo fashion-chick e não por outro motivo, era quem ocupava justamente o posto de vendedor deste tipo de linha. Era também o preferido dos machões musculosos, os populares bofes que freqüentavam academias durante os dias e boates gays durante as noites. Fazia sucesso com seus trejeitos e belos olhos azuis piscina – era essa a cor que dizia trazer na íris, nada mais, nada menos do que um singelo azul piscina e ai de quem dissesse que eram apenas azuis.

Vanessa e Jane eram namoradas há anos e traziam nos corpos, em forma de tatuagens idênticas e multicoloridas, a semelhança que lhes faltava em formas concretas. Vanessa fazia o estilo despojado, meio menino, meio homem mesmo. Era muito alta e isso favorecia a imponência. Usava os cabelos bem curtos e as roupas bem folgadas. As mãos eram grossas, assim como o resto do corpo robusto. Tinha um rosto até bonito, mas o forte eram os músculos. Era a favorita das patricinhas enrustidas que freqüentavam a Diabolic, para o completo ciúme de Jane.

Esta, por sua vez, fazia o estilo mignonzinha. Era sensível, frágil, delicada. Usava quase sempre vestidinhos leves, de alcinhas, que davam uma feminilidade impar ao corpo pequeno, apesar das inúmeras tatuagens que o ornamentavam. Era delicadíssima. Até a voz era suave e discreta. Um anjo, classificava Vanessa, que era alucinada pela namorada. As duas se entendiam muito bem, apesar de serem extremos em formas e gestos. E essa mistura que se completava lembrava um pouco a Catarina sua antiga amiga de colégio: o par tão ímpar que formavam.

Cássio era o único homem da loja que não dava pinta. Era um típico moreno alto, bonito e sensual, digno da música dos anos oitenta que tocou de enjoar. Ainda em conformidade com a letra, fora a solução do problema de muitas mulheres carentes, jovens e de meia-idade, que procuravam um cara carinhoso e discreto. Fora, durante muito tempo, um perfeito amante profissional. Até que, um belo dia, pela primeira vez, topou um programa com outro homem. Um cara muito carismático e envolvente, de cabelos quase brancos de tão loiros, pele avermelhada, corpo quente, um verdadeiro gentleman, recém chegado ao Brasil, importado da Alemanha. Depois, a transa – que foi muito boa, para a surpresa de Cássio – virou amizade, companheirismo, carinho, cuidados e, finalmente, amor. Coisas que nunca havia experimentado. Logo se apaixonaram. Cássio se permitiu envolver além do esperado e abandonou a vida injustamente considerada fácil, sendo muito bem-vindo ao mundo gay. O nome de seu salvador era Gunter e todos da loja demoraram bastante a aprender a pronunciar.

Era essa a equipe permanente da Diabolic. E todos agradeciam àquela permanência. Adoravam seus trabalhos, seus salários, adoravam-se entre si e adoravam a chefe mor, Catarina. Ela era, além de chefe, amiga e eles sabiam disso. Sentiam isso. Contavam com isso sempre.

Leon, ainda irritadíssimo, cuidou de despistar os candidato às vagas com o máximo de polidez que pôde. Organizou uma fila, anotou nome por nome e marcou uma entrevista a cada meia hora, dizendo, já sem muita classe:

– Agora dêem o fora daqui, vão passear no bosque, vulgo shopping, e só me apareçam na hora exata!

Todos obedeceram e saíram, exceto a bola da vez, que era uma moça, de origem oriental, com certeza, que fora a primeira a chegar e que acabara de entrar na sala de Catarina.

Leon estava se recompondo. Desirré havia lhe trazido um copo d’água e Juliano o abanava com um leque imenso, seu companheiro de traje. Enquanto isso, Lola e Priscila riam de sua cara vermelha e suada, lembrando de que, qualquer dia destes, enfartaria.

– Deixe de agonia, criatura! Catarina não vive sem você e você não vive sem levar uns esporros dela! Tranqüiliza, meu. – era Lola quem apaziguava, com linguagem mais do que coloquial.

– É isso mesmo, Leon. Você está parecendo um louco, eufórico. Sua maquiagem já ta toda borrada – era a vez de Priscila, rindo da cara de contrariado que o amigo fez ao ouvir a palavra “maquiagem”.

– Eu não estou maquiado, meu amor... essa é a tonalidade original e perfeita da minha cútis. Nada de base, nem pó. Logo, não pode estar nada borrado e você não me chateie, fedelha sem coração. Não está vendo o meu estado?

Foi quando as atenções voltaram-se para uma mulher que entrou na Diabolic. Era uma criatura bonita, de formas longilíneas e delicadas. Os olhos de um castanho claro translúcido, muito bem pintados, chamaram a atenção de todos, mesmo do único que não chegou a desejá-la: Leon. Enquanto isso, as outras três – que não apenas admiravam, mas curtiam aquela espécie – permaneceram inertes, nada discretas diante da visão. Foi Leon quem pigarreou e interpelou-a, pensando-a cliente:

– Podemos ajudar?
– Sim, procuro por Catarina.
– Algum assunto pessoal?
– Não, apenas sobre as contratações.

Nesse momento, o silêncio se fez. Não era uma compradora, era mais uma tentando tornar-se vendedora. Lola e Priscila instintivamente direcionaram os olhares para Leon, numa tentativa de frear um novo ataque do amigo, repreendendo-o. Dessiré, por sua vez, não participou da tentativa, pois quedou-se absorta, apreciando a bela mulher a frente, medindo-a com os olhos verdes de tigresa. Depois de alguns segundos de desconforto, ele questionou, fingindo calma:

– A senhorita, por acaso, teve currículo selecionado?

– Não, na verdade não cheguei a deixar currículo por aqui, apenas soube que hoje seria o dia das entrevistas e...

Ela ia continuar, alheia a toda a repercussão de suas palavras, revestida apenas de ingenuidade, mas Leon perdeu toda a paciência. A vontade que tinha era apenas uma: a de esbravejar um “o que é que a senhorita está pensando que isso aqui é, uma pocilga? Existe ordem nesse pardieiro, meu bem! Não é assim que a banda toca não!”, mas Desirré – que se não lia o pensamento do amigo, o conhecia a ponto de supor o que estava por vir – intercedeu a tempo e, ensaiando uma explicação mais solícita à bela mulher, questionou:

– Como é seu nome? – e a ruiva sorriu, com a polidez e sensualidade tão próprias de suas recepções.

– Leila... Leila Prata – e o nome pareceu brilhar nos lábios cheios e bonitos, assim como as argolas, ironicamente de prata, perdidas entre os cabelos castanhos e compridos. Lola e Priscila não perderam nenhum detalhe daquela anunciação quase divina.

Leon segurou a fronte alguns segundos, fechando os olhos. Perplexo, raciocinou o pouco que pôde. Leila Prata... não, não poderiam existir duas criaturas com aquele mesmo nome e o pior, com aquela mesma pose de Barbie, tão capaz de enfeitiçar todos os Bobs – agora Kens – daquela loja, inclusive a mais exigente de todas, Catarina!.

Concluindo em silêncio, abriu os olhos, deu as costas e rumou para a parte administrativa da loja, esbaforido. As três ficaram sem entender nada, e Leila, intimamente, desejou não ter entendido também. Porém, por mais que não quisesse lembrar, havia sim motivos para aquele estardalhaço: “Será que ele sabia da história? Aliás, será que todos dali sabiam?” E quase se arrependeu de ter ido procurar Catarina. Ainda mais numa situação humilhante daquelas: pedindo-lhe emprego! Porém, o orgulho que se calasse. Não tinha muita escolha. Esperaria com toda a humildade de que fosse capaz para ser recebida por sua antiga amiga e esperaria mais ainda: que ela a perdoasse e a ajudasse.

Mas o receio de ser mal tratada, quem sabe enxotada dali fazia com que o estômago se contorcesse. A vontade e curiosidade de rever Catarina, por sua vez, faziam com que as mãos suassem frio, o coração descompassasse, os olhos brilhassem. Afinal, dezesseis anos haviam se passado e o tempo muda muita coisa, muita mesmo. O fato dela estar ali era a maior prova disso.

A vida havia dado muitas voltas desde que Catarina ousara contar, em voz alta, o segredo que partilhavam, dando-lhe nome e som: amor. Aquela declaração, aquele sentimento transformado em palavras, fora tão forte, tão assustador, tão inconcebível, ao menos, aos ouvidos e ao coração de uma adolescente de dezesseis anos que não teve como não correr, fugir, esconder-se!

Nada daquilo deveria ter acontecido. Catarina e sua impulsividade... Catarina e sua sinceridade! Leila a culpou durante anos pelo desenlace. Tentou despejar na amiga o peso da própria consciência pelo que havia feito. Afinal, será que Catarina não sabia que era proibido? Será que não sabia que ela já sabia de tudo, sempre soubera, mas não queria... não podia ouvir, nem sentir? Por que tinha que jogar na sua cara aquela verdade tão vergonhosa, tão incabível! Se não o tivesse feito, talvez as duas fossem amigas até hoje.

Era essa a conclusão covarde de Leila, a que tirou de sua vida grande parte da alegria, a que a fez permitir que os pais a afastassem da amiga, a que lhe impulsionou a jamais procurá-la para pedir desculpas, para revê-la, para abraçá-la como desejava todas as noites, a que a compeliu a casar-se com Miguel, mesmo contra a vontade dos pais que, desde aquele fatídico primeiro almoço, foram capazes de perceber o quanto aquele “sujeitinho medíocre e sem caráter” era desmerecedor da filha. Logo assim o reconheceram e o classificaram.

Agora ali estava. A percepção dos pais sobre Miguel fora perfeita: era, realmente, medíocre e cafajeste! E Leila sentia o peso da decisão precipitada, da saída descabida, da fuga desarrazoada.

O marido não conseguia passar mais do que três meses num emprego. Bebia demais, falava demais, era mulherengo e sem qualquer ambição. Por isso, ela teve que trancar a faculdade e começar a trabalhar os dois horários. Não sobrava tempo nem dinheiro para os estudos e sua vida estava um caos completo. Sentia-se frustrada em todos os aspectos humanamente possíveis.

Os pais lhe negaram apoio, pois alegaram ter avisado e ela quase berra na cara deles “a culpa desse casamento maldito é exclusivamente de vocês!”. Mas calou-se. No fundo não era. A culpa era apenas dela, de sua fraqueza e covardia... de sua eterna fuga.

Um belo dia abriu o jornal e deparou-se com Catarina. Era a manchete. “A belíssima Catarina Monteiro de Bragança, empresária do ano”. O coração apertou-se e não foi por inveja, despeito, ou pela ironia da vida, foi por saudade. Saudade daqueles olhos tão fortes, tão escuros, que sempre procurava para captar alguma segurança, fosse nas horas de prova, fosse nas brincadeiras de rua, fosse nos desafios da adolescência; saudade daqueles cabelos loiros, curtos, desalinhados, que tantas vezes prendeu entre os dedos, ora em forma de afagos, ora em forma de puxões repressores; daquele rosto tão familiar, tão querido, enfim, saudade enorme daquela criatura que nunca saiu de sua cabeça, nem de seu coração.

E por que não procurá-la? A desculpa para revê-la e aproximar-se seria perfeita: estava realmente precisando de emprego e lá pagavam muito bem, sabia. Poderia voltar para a faculdade, terminar de cursar Direito, realizar-se, pelo menos, profissionalmente. Era isso o que queria, pelo menos isso!

Leila sabia que sua aparição, aos olhos de Catarina, seria uma quase imperdoável tentativa de tirar vantagem. E não deixava de ser isso também, admitia. Era até mais fácil para si mesma pensar assim. Mas, ao lado dessa certeza, Leila sabia também do imenso poder da amiga de perdoar. Quem sabe a perdoaria, tanto por seus atos de dezesseis anos atrás, quanto pelo fato de apenas procurá-la agora, diante das dificuldades que enfrentava. Forçar-se-ia a ser o que, normalmente, não era: humilde. Trataria de engolir o orgulho e pediria perdão. Na verdade, seria até cômodo unir o útil ao agradável: ganharia bem e trabalharia ao lado de alguém que simplesmente adorava. Resgataria a faculdade e a amiga, e porque não? Que mal haveria nisso? E ela mesma tentava se convencer de que a atitude não era digna de reprovação, fingindo uma ingenuidade que já não tinha, aos trinta e dois anos de idade.

Quando Leon entrou no escritório de Catarina, esbaforido, interrompendo sem qualquer pedido de licença a entrevista com aquela mulher tão interessante – o que era simplesmente inadmissível, pensou a chefe! – ela já esperava uma bomba, mas não tamanha:

– Nina, Leila esta aí ... Leila Prata, a Barbie! – Esse foi o modo mais preciso que Leon encontrou para definir com pressa extrema a mulher que esperava para vê-la.

Catarina quase se engasgou. A moça oriental comprimiu ainda mais os olhinhos já tão puxados, sem entender absolutamente nada. A chefe pediu licença à jovem, dizendo-lhe que estava contratada. Leon ficou boquiaberto, pois era a primeira a ser recebida! Porém, entendeu o motivo da pressa e da contratação. Catarina deveria estar mais aturdida do que ele, claro, e queria que a sala estivesse vazia para que ela pudesse pensar, respirar, se preparar para receber Leila. Parecia precisar de ar!

A moça saiu feliz da vida e quando a porta fechou Catarina esbravejou:

– Leon, espero que você não tenha se enganado!

– Impossível, minha cara... além do nome, a cintura de Barbie e o jeito manso de olhar a denunciaram. É ela sim! Pode retocar a maquiagem... tentou brincar Leon, ainda que sem esperança de trazer qualquer descontração àquele momento.

Catarina sequer fez menção de rir da piada. Mandou que ele saísse e pedisse a Leila para entrar. A receberia. Quase não conseguia suportar os segundos que a separava da explicação: afinal, para que Leila a havia procurado depois de tantos anos? A faria responder assim que entrasse.

E Leila não tardou a entrar. Bateu à porta suavemente, antes de abri-la. Pediu licença, diante dos olhos impávidos de Catarina e sentou-se. A falta de intimidade entre duas pessoas que foram tão íntimas denunciava o passar do tempo. Ele tinha esse poder quase intransponível.

– Ora, ora, se não é a minha mais do que querida amiga, Leila... que bons ventos a trazem? – foi Catarina quem interrompeu o silêncio com um tom tão sarcástico do qual nem mesmo se sabia capaz.

Leila, pela primeira vez, duvidou da capacidade da amiga de perdoar. Ela havia mudado sim e muito! Estupidez não contar com a intensidade da mudança. Catarina já não tinha dezesseis anos, onde tudo era perdoável, justificável. Agora era uma mulher, plenamente capaz de nutrir rancor, ódio e tantos outros sentimentos desconhecidos a uma criança. E Leila, temerosa, preferiu os olhos infantis de Catarina, os mesmos que conhecera profundamente e que ficavam em festa cada vez que chegava, preferiu a meiguice deles à mágoa e raiva que via, tão nitidamente agora, nos olhos negros que a fitavam. Definitivamente não eram os mesmos, apesar de continuarem imensamente bonitos. Aliás, Catarina, definitivamente não era a mesma, apesar de ter se tornado mais bonita ainda.

Sem a certeza de que deveria mesmo declarar que procurava emprego, Leila titubeou. Considerou a hipótese de mentir, dizer que tinha passado por ali simplesmente para revê-la, matar as saudades – e isso não seria, de todo, uma mentira – mas logo se lembrou de que não poderia sair-se com essa. Havia comentado lá fora sua intenção e, querendo ou não, agora teria de enfrentar a fúria de sua já não tão amiga. Com a pressa que pôde, falou:

– Eu estou precisando de emprego e achei que talvez você pudesse me ajudar!

Esse foi o modo mais brando e simples que Leila achou para justificar sua presença ali. Mas, diante das próprias palavras, até ela assustou-se. O que havia acabado de dizer era algo totalmente distante da realidade, uma frase fria, desprezível, um absurdo, uma mentira! Mais uma! Só então entendeu que não era nada daquilo o que realmente queria, não era a falta de emprego, as dificuldades financeiras, a faculdade, nada disso! Nenhuma dessas desculpas – sim, porque haviam acabado de virar meras desculpas! – seria capaz de compeli-la daquele jeito, se por trás de toda a história não houvesse a saudade. Sim, era esse e só esse o motivo: a saudade, imensa, dolorida, cheia de culpa, impregnada de remorso... sua saudade. Sincera e quente.

Os olhos de Catarina não tiveram como disfarçar a surpresa, seguida de decepção. Então era isso! Necessidade!, pensou. Preferia ter morrido sem rever Leila a sabê-la procurando-a por mera necessidade e o pior, de cunho financeiro. Era o fim! O cúmulo! Mas daria o que ela precisava, calculou cruelmente a empresária.

Leila percebeu a decepção nos olhos negros de Catarina e, por segundos, os reconheceu com alívio. Talvez ainda lhe quisesse algum bem, senão, por que teria se decepcionado? Mas logo em seguida, os olhos retomaram a expressão cínica e desconhecida.

Catarina a olhou de forma penetrante, parando mais do que o necessário no busto, no decote, depois deslizou a vista descarada pelo pescoço de Leila, passando pela boca, pelos lábios desconcertados e Leila sentiu-se estranhamente invadida, conturbada. Por fim, Catarina olhou-a nos olhos e só então Leila entendeu o motivo daquela cena. E queria afrontá-la, desprezá-la, humilhá-la. As palavras que se seguiram só comprovaram a tese:

– Eu até lhe daria o emprego, Leila, em nome dos velhos tempos, afinal você já me fez tantos favores, não é mesmo? – e Leila soube exatamente ao que Catarina se referia – mas... – fez uma pausa, fingindo suspense, deixando os lábios sorrirem sorrateiramente e de forma quase perversa – mas, meu amor, esta casa tem algumas regras das quais eu não posso me esquivar, inclusive por pregá-las, diariamente, entre os meus funcionários, exigindo isso deles, me entende?

Leila apenas escutava, incrédula. Fez que “sim” com a cabeça aguardando mais ironia da parte de Catarina. E ela continuou, ainda insultando Leila com o olhar:

– Regra número um: meus funcionários, aliás, principalmente minhas funcionárias – e frisou demasiadamente o pronome possessivo, provocando Leila – têm de ser criaturas bonitas, gostosas, comestíveis, enfim, pessoas que os clientes olhem e desejem possuir mais do que às próprias roupas que procuram comprar aqui. Nesse aspecto, você faz o estilo... e Catarina deixou-se soar vulgar, olhando Leila como se quisesse devorá-la.

E Leila, por óbvio, percebeu e entendeu perfeitamente a necessidade de Catarina de magoá-la. Talvez fizesse o mesmo, caso a situação fosse inversa. Em seguida, Catarina respirou fundo, já se sentindo mal por fazer aquilo, contendo a vontade de proteger Leila, abraçá-la, saudá-la com todo o amor que ainda sentia. Mas o ódio, pelo menos naquele instante, foi maior e mais merecido do que o amor e continuou:

– Regra número dois: têm de ser interessantes, envolventes, excitantes, apaixonantes, sedutores... e nisso, Leila, você também se sairia muito bem, afinal não é toda criatura que consegue seduzir outra com apenas seis anos de idade...

E, nesse momento, Leila sentiu-se o pior de todos os seres por causar tanta tristeza em Catarina. Sim, porque era tristeza o que os olhos negros demonstravam naquele instante. Eles estavam brilhando, beirando, talvez, um choro reprimido há tantos anos.
E Catarina realmente esforçou-se para não chorar. A tristeza, apesar de julgá-la e jurá-la consumida, ainda existia e estava ali, bem ali. Sentiu-se novamente a adolescente de dezesseis anos que assistiu a amiga correndo pelo pátio, feito uma louca, fugindo de um monstro. E o monstro era ela, que se disse, naquele instante, apaixonada! Isso ainda doía bastante e Catarina respirou fundo para continuar.

– Agora a terceira regra e a única que é totalmente inflexível: meus funcionários têm de ser gays, assumidos, despudorados, pervertidos, mundanos, felizes, sinceros, realizados... é que odeio criaturas recalcadas, reprimidas, fracas, caretas, covardes, cheias de pudores, infelizes e fracassadas. Infelizmente a maioria dos heteros é assim. Não sei se é o seu caso, Leila, não me interprete mal – e nesse instante, Catarina retomou todo o ar de crueldade e superioridade, aquela seria a oportunidade de ofendê-la, de dar-lhe o troco e o faria, custasse o que custasse! – mas... ainda que não o seja, enfim, ainda que você seja uma hetero bem feliz e satisfeita, você não é lésbica e eu não posso abrir uma exceção dessas. É uma pena! Aliás, sempre foi uma pena. Eu lamento, como sempre lamentei, o fato de você não apenas não ser, mas, sobretudo, fugir dos gays. Eis o impasse, nosso eterno impasse, novamente, entre nós.

Leila entendeu perfeitamente o recado e, dessa vez, foi quem sentiu ódio. Não apenas de Catarina, por jogar na sua cara aquelas coisas todas, mas, principalmente por considerar-se recalcada, reprimida, fraca, careta, covarde, cheia de pudores, infeliz e fracassada. Ela havia sim se tornado aquilo. Tudo aquilo, exceto hetero, foi esta a conclusão repentina que a tomou naquele instante de humilhação e raiva.

Se sentia gay, como sempre se sentira e nada, nem mesmo o casamento, a fuga, o tempo, nada havia a transformado, como gostaria. Mas isso Catarina não saberia jamais.

Sentindo o pulso acelerado, o rosto vermelho, engoliu em seco e questionou, compelida simplesmente pela necessidade de conseguir o que queria: reaproximar-se de Catarina:

– E quem precisaria saber que eu não sou gay? Se é esse o problema...

– Leila, as pessoas daqui não são estúpidas. Aliás, já ouviu dizer que um bicho conhece o outro? Da primeira vez em que você levasse alguma cantada de uma das nossas clientes e fizesse aquela cara de pânico tão inesquecível para mim, todos perceberiam!

Agora Catarina parecia ter baixado um pouco a guarda e tentava realmente justificar a negativa em conceder-lhe o emprego. Aproveitando a brecha, Leila ousou:

– Eu sei disso, Catarina, e poderia muito bem me controlar... sei lá, fingir que acho isso normal!

E, mesmo sem querer, Leila terminou irritando novamente Catarina com o comentário. Quando percebeu a besteira que havia dito já era tarde, Catarina já estava novamente ríspida, munida dos olhos desconhecidos e contrariados.

Leila quis corrigir-se e terminou enrascando-se ainda mais:
– Catarina, eu não quis dizer isso. Eu... – Leila gaguejava diante da mulher que, parecendo adquirir a consistência do mármore, permanecia inerte, dura, fria, branca, linda, esperando que findasse o comentário e continuou – ...você pode dizer a eles que sou gay e eu tentarei me comportar como tal.

Catarina não resistiu e caiu na gargalhada, questionando logo em seguida.

– Sei, sei... isso ta começando a ficar interessante. E o que você faria para convencê-los, Leila? Imitaria o jeito másculo de seu marido ou o meu? Não creio que você iria conseguir... – e ela começava a soar rude novamente.

– Não seja ridícula, Catarina, eu apenas tentaria não me assustar com as cantadas baratas de suas clientes, nem com as de suas funcionárias... – e Leila, ao concluir, pensou ter visto uma pontinha de ciúme nos olhos de Catarina, que realmente já começava a imaginar que alguma das meninas já deveria ter olhado para Leila com visível interesse, senão todas.

A empresária limitou-se a dizer, com objetividade e sinceridade:

– Eu não lhe exporia a isso, Leila. Não acho que você deva se submeter a esse tipo de coisa a essa altura da vida e depois de tudo...

Leila logo percebeu o que se escondia por trás daquela frase, daquele tom de voz e concordou com Catarina. Era tarde demais e simplesmente ridículo ter aberto mão do que tinham por medo dos comentários para agora se expor e o pior, sem estar realmente vivendo um relacionamento daquele tipo... deveria estar ficando louca ao propor uma coisa daquelas justamente para Catarina! Era, simplesmente, inconcebível!, pontificou em anuência.

Mas os olhos negros, de repente, adquiriram um brilho estranho de entusiasmo. Uma nova idéia fervilhando-lhe na cabeça e no coração. Um modo de proteger Leila, ajudando-a, resguardando-a e, ao mesmo tempo, permitindo uma reaproximação entre elas invadiu Catarina, feito um insight e propôs:

– A menos que eu diga... – e Catarina fez uma pausa para observar a reação de Leila diante do que viria em seguida. Não poderia perder nem um detalhe de sua expressão! – ... que eu estou me relacionando com você... esse é o único meio de todos se afastarem e até protegerem sua integridade física do ataque das clientes.

Catarina havia exagerado e sabia disso! Ninguém ali, nem clientes, nem os funcionários, atacariam Leila se ela não se permitisse a intimidades. “Mas... até que seria bem interessante fazê-la passar por aquilo. Ela merecia.” E Catarina, intimamente, também sentiu-se merecedora de receber o título de “amante” de Leila, ainda que fosse fictícia a rotulação.

Leila, surpresa consigo mesma, aceitou a proposta. Esforçou-se para não admitir para si um certo agrado em receber o título de protegida da toda poderosa... Como o mundo dava voltas! Foi impossível não lembrar do último título: o de melhor amiga. De há muito ambas sabiam que este nunca fora o verdadeiro – afinal, não era apenas a amizade que as unia – e, ainda assim, o sustentaram por anos... que mal haveria em inventar um novo e igualmente falso rótulo agora? Ambas tinham motivos. Ambas lucrariam com isso. Foi esse o pensamento, motivo da aceitação mútua.

Mas, antes que Leila pudesse ergue-se para sair, Catarina impôs mais uma regra e esta sem qualquer flexibilidade. Anunciou:

– Só mais uma coisa, Leila... os maridos de minhas amantes são terminantemente proibidos de passarem, sequer, diante dessa loja – Catarina frisou, com a intenção de provocá-la e continuou – disso eu não abro mão.

Leila quis afrontá-la por sua prepotência, por sua arrogância, por seu cinismo, e... principalmente por Catarina ter deixado tão claro que tinha amantes – esse plural foi, simplesmente, o fim!, pensou – e o pior, casadas! Isso era um absurdo! Um escândalo! Um abuso dizer-lhe aquilo e daquela forma! Pensou irritada, possessa... enciumada. Era isso o que sentia sim: ciúme! Ela mesma percebeu e deu o nome àquele sentimento. Em seguida, desejou por tudo na vida que Catarina não tivesse percebido ele, bem ali, estampado em sua cara de raiva. A contra-gosto, ficou calada e não cedeu ao impulso de mandá-la por inferno com sua loja, suas amantes, os respectivos maridos e seu dinheiro!

Se Catarina percebeu ou não todo aquele acesso silencioso de Leila, esta não soube dizer. Fato é que, depois de tudo o que fora dito e esclarecido, Catarina ergueu-se, aproximou-se e, em voz branda, finalmente fez-se conhecida de Leila, em olhos, boca, sorriso e mãos.

Aquelas mesmas mãos tão lindas e que há tanto tempo não tocava se estenderam no ar à espera das suas e Leila, mesmo sem jeito, as tomou. Catarina segurou as mãos finas e delicadas de Leila entre as suas com carinho extremo e disse:

– Desculpe... eu senti muito sua falta.

E Leila retribuiu o sorriso franco com outro, cheio de felicidade e alívio. O tempo passara sim e trouxera muitas mudanças. As marcas que já apareciam nos olhos de ambas quando sorriam, apesar de discretas, já diziam bastante sobre os anos. Mas, Leila concluiu, Catarina ainda possuía aquele imenso coração que, um dia, só teve espaço para ela, lembrou com pesar.

Catarina, por sua vez, limitou-se apenas a sentir novamente a suavidade daquele toque, a quentura daquela pele que ainda povoava o corpo daquela mulher tão bela que agora, finalmente, estava a seu alcance. Leila não era mais uma adolescente e Catarina percebia isso com certo encanto, com certa surpresa, apesar de ser tão obvio que não o seria depois de passados tatos anos. E havia se transformado numa mulher magnífica, como nem mesmo Catarina fora capaz de prever, apesar de todas conjecturas e projeções que fez durante todo aquele tempo.

Com uma saudade enorme, se envolveram num abraço e foi estranho captarem nos braços as diferenças trazidas pelo tempo. Era incrível perceber que todas as mudanças vividas por ambas ainda cabiam ali, entre elas, e que as duas ainda se encaixavam com a perfeição de sempre!

Catarina apertou Leila nos braços, sentindo o cheiro dos cabelos e provando-lhe a textura, afagando-os, como sempre fazia. E, ao menos eles, não haviam mudado, constatou com um sorriso. Continuavam longos, sedosos e cheirosos... o mesmo cheiro da infância. Foi inevitável lembrar-se de quantas vezes dormiu sentindo aquele perfume, enquanto abraçava a amiga na estreita cama de solteiro do quarto. Naquela época, o fogo que sentia em seu corpo tão jovem e ingênuo tinha como desculpa a temperatura da noite que insistia em continuar absurdamente quente, apesar do ar condicionado. E agora? Naquele instante? O que as aquecia? Catarina bem sabia que era o desejo.

Leila, por sua vez, de olhos fechados, contornou as costas de Catarina com as palmas das mãos. Percebeu que a musculatura que tanto admirava continuava ali, ainda mais trabalhada. As costas haviam se tornado mais largas e, ao toque, instantaneamente Leila aprovou a mudança. Sentiu-se guardada e protegida como há tantos anos não se sentia. Em seguida, como era de praxe, deslizou os dedos longos pelos cabelos loiros e desalinhados de Catarina, puxando-os para que se afastasse. Antes o fazia por brincadeira, castigo, pirraça... aqueles puxões eram tão conhecidos de Catarina, principalmente quando aprontava. Mas agora, somente Leila sabia o verdadeiro motivo do gesto de desenlace, que veio como uma forma de afastar do próprio corpo o desejo que já se expandia além do permitido. A saudade convertendo-se em umidade pelo prazer do toque de Catarina... e Leila, mais uma vez, fugiu. Concluiu o abraço, fingindo apenas brincar, como quando eram crianças.

Catarina obedeceu e cedeu ao puxão de Leila, que sorriu, agora meio sem jeito, tentando esconder o desejo que deveria estar tão explícito em seus olhos quanto estava nos olhos negros que a fitavam.

Leila recebeu com satisfação aquele olhar de desejo que Catarina lhe lançava. Estava feliz que ainda fosse querida por ela. E Catarina sorriu de forma marota, consciente de que a mulher que Leila se tornara era menos imune ao seu toque do que a adolescente que sempre fugia. Talvez até pela ingenuidade que naquela época povoava os corpos de ambas. Fato era que, agora, os corpos já não eram tão ingênuos, os toques, tão amenos, os olhares, tão desprovidos do desejo.

– Começa hoje? – Catarina questionou, retomando a pose de chefe, sem, entretanto, tirar o riso dos lábios cheios.

– Sim. Hoje – foi a resposta de Leila, meio embaraçada.

Catarina, apesar de um tanto quanto contrariada, teve que terminar as entrevistas e, pela primeira vez, não demorou muito em nenhuma delas. Até as mulheres mais bonitas foram entrevistadas com pressa e terminou contratando um rapaz que, ao lado de Leila e da moça oriental cujo nome Catarina nem lembrava, formariam o trio de empregados temporários da Diabolic.
Assim que as entrevistas foram encerradas, a empresária saiu da sala e cuidou de apresentar Leila ao restante da equipe. Era a única que começaria a trabalhar ainda naquele dia e Leon soube muito bem o motivo.

– O senhor Bob não tem jeito mesmo, né? Tantos anos de fúria e já está aí se derretendo de novo pela eterna Barbie! – dizia Leon ao ouvido de Catarina, em sussurro, enquanto ela fazia as apresentações – Olhe bem o que vai fazer com a moça, hein? E com você mesma!

Catarina nem lhe deu ouvidos. Sabia muito bem o que faria. Só precisava de tempo.

Todos receberam Leila com muita simpatia e respeito, pois já supunham, pela velocidade da contratação e, principalmente, da prestação do serviço, que deveria ser a mais nova queridinha da chefe. Isso havia se tornado quase um código entre eles.

Leila, alheia a esses detalhes, apenas impressionava-se com a educação de todos, a polidez, o empenho em mostrar-lhe como a loja funcionava, os tipos de roupa, as dicas para vender e tantas outras coisas que lhe seriam bem úteis.

Catarina a observou durante os primeiros minutos, achando graça, e Leila, buscando a aprovação de seu olhar, pouco concentrou-se enquanto ela estava ali.

Depois de algum tempo, Catarina voltou à sala e lá permaneceu o resto do dia, fingindo ocupar-se com alguns pedidos e compras. Na verdade, não parava de pensar em Leila e imaginar como seria bom tê-la novamente dentro, ao menos, de seu ângulo de visão e proteção. Policiava-se para não lembrar da decepção que tivera... não queria nutrir o ódio de que ainda sabia-se capaz. Deixaria o tempo passar e, quem sabe, levar o resto da mágoa que guardava. Daria a Leila a chance de se redimir.

Quando Leila chegou em casa, depois daquele primeiro dia de trabalho, a cabeça parecia que ia explodir. Definitivamente, não estava preparada para tantas mudanças num só dia. Rever Catarina e reavivar aquilo tudo que ainda sentia lhe causava pânico. Mas, na mesma intensidade, uma felicidade incrível! Tinha a certeza de que poderia reconquistar, ao menos, a amizade daquela criatura tão linda, tão impulsiva, tão querida. E era isso o que mais queria.

Quando Miguel chegou em casa nunca o achou tão irritante na vida. Nunca a incomodou tanto dormir ao lado. Até a respiração passou a irritá-la. Sabia muito bem quem desejava que estivesse em sua cama e isso a fez perder o sono.

Os dias passavam e, a cada um deles, Catarina estava mais exultante. Todos percebiam. Até Leon nunca mais havia sido submetido as torturas diárias da chefe, que era como o próprio denominava os acessos de raiva e mal-humor de Catarina que, quase sempre, voltavam-se contra ele.

Desirré havia se tornado a mais próxima de Leila. Priscila e Lola a endeusavam demais para fingirem apenas amizade. “Essa criatura é divina! Não consigo soar simpática e extrovertida estando próxima, fico querendo sempre rezar ao pé do seu altar... e me desconcerto toda!”, era a explicação de Priscila, diante da pergunta de Leon, quanto ao fato de a menina falar tão pouco quando Leila estava por perto.

Já Lola, a mais desbocada, confessava ao sub-gerente:

– Ah, Leon, o que é da chefe ninguém tasca, eu sei, mas... fico me segurando para que cada palavra minha não soe como uma cantada e isso me incomoda. Prefiro me aproximar dela quando a chefe já estiver em outra.

Leon não fez nenhum comentário, porém, intimamente, bem que pensou: se prepare para esperar um bocado, Lola... dessa a chefe não vai enjoar nem tão cedo! Já se passaram dezesseis anos e nada...

Um mês se passou e tudo estava correndo em perfeita ordem.

Leila e Catarina, a cada dia, se reconheciam mais e mais. A intimidade voltando, aos poucos, assim como os risos e implicâncias tão típicas da infância e da adolescência.

A pretexto de que seria necessário fazer algo para simular o caso que não tinham, passaram a almoçar juntas todos os dias, algumas vezes no shopping mesmo, outras em alguns restaurantes escolhidos pela chefe, onde saboreavam comidas das mais requintadas às mais populares. Catarina tinha pressa em mostrar a Leila tudo o que adorava, todos os lugares que costumava freqüentar naqueles anos em que estiveram longe, todas as novas manias, em termos gastronômicos, musicais, cinematográficos... era como se tivesse pressa em inteirá-la de sua vida novamente, pois já haviam perdido muito tempo.

As duas, muitas vezes, esticavam o almoço e iam ao cinema, ou passavam horas e horas em lojas de Cds, ou em livrarias, em galerias de arte. Também não recusaram as sorveterias, lojas de brinquedos e tudo o mais o que lhes desse na telha. Qualquer bobagem que servisse de pretexto para estarem juntas e rindo era bem-vinda. Testavam se ainda se conheciam, tentando adivinhar os novos estilos e gostos e, quase sempre, acertavam. Ainda estavam em sintonia, era essa a conclusão a qual sempre chegavam.

Todos na Diabolic achavam o máximo o fato de a chefe, finalmente, estar namorando com alguém, sim, porque aquilo, nem de longe, lembrava um simples caso. Elas, aos olhos de todos, estavam visivelmente envolvidas, apaixonadas e essa certeza era tão intensa que ninguém questionava o porquê de nunca terem presenciado um beijo. Talvez Leila simplesmente não gostasse de se expor. Aliás, ela era realmente muito discreta, era o que todos concluíam quando confabulavam juntos.

Leon evitava pronunciar-se sobre o romance vivido por ambas com tamanha discrição. Apenas arriscava uma justificativa: talvez Catarina tenha, finalmente, amadurecido e esteja amando de verdade. Era esse seu modo de falar algo que realmente pensava e que era verdadeiro, diante de tantas coisas que tinha de omitir.

Catarina havia contado apenas a ele o trato estabelecido e Leon, no início, achara aquilo um verdadeiro absurdo! Porém, depois de ver a alegria que aquela farsa estava proporcionando a ambas, terminou concordando que, talvez, fosse aquela uma idéia brilhante e excitante. Pelo menos Catarina havia “baixado o fogo” e nunca mais tinha se metido – nem lhe metido! E isso era muito importante! – em nenhuma enrascada.

Com o primeiro salário, Leila voltou para a faculdade e ainda sobrou algum dinheiro para comprar algumas roupas, coisa que não fazia há um bom tempo. Aproveitou o ensejo e, sob a orientação de Lola e Priscila, que já estavam mais chegadas, resolveu ousar ainda mais: colocou um piercing no umbigo e uma tatuagem no punho.

O piercing do umbigo foi presente de Cássio e Gunter, que fizeram questão de pagarem pela jóia, escolhida por Cássio dentre as da loja. Modéstias à parte, entendiam do assunto e Leila vibrou com a idéia. Optaram por um piercing bem delicado, de tamanho pequeno, nada que afrontasse, nada que destoasse da beleza feminina de Leila, eleita a musa da Diabolic. Gunter, com inconfundível sotaque, foi quem deu a primeira opinião, enquanto Leila ainda estava de olhos fechados, suando frio e deitada na maca:

– Ficou simplesmente magnífico! MAGNÍFICO! – repetia, dando ênfase a uma das palavras da língua portuguesa que mais adorava.

Desirré e Leon concordaram imediatamente, analisando o quanto havia ficado sensual a imagem do abdome suavemente delineado de Leila, coberto por uma penugem loira que brilhava tanto quanto a jóia discreta cravada no umbigo. Cássio, orgulhoso do próprio bom gosto, abraçou Leila e anunciou-se padrinho da novidade, juntamente com Gunter.

Em seguida, mudaram de stand e foi a vez de Jane e Vanessa colaborarem para a mudança de Leila. Porém, dessa vez, ela mesma escolheu o que gravaria na pele, afinal, seria para sempre e isso fazia toda a diferença. Depois de quase duas horas sentada, folheando revistas e revistas com imagens e desenhos dos mais variados possíveis, ouvindo os comentários e opiniões mais absurdas e hilárias de todos que trabalhavam na loja, Leila, finalmente, decidiu. Tatuaria, no pulso esquerdo, a palavra “liberdade”, em árabe. O local simbolizaria a retirada de uma algema. Sim, era apenas isso o que queria para a vida. Sentir-se livre, de todos e de si mesma. Sabia que teria ainda muitas algemas e respectivas correntes a romper até soltar-se como desejava e começaria agora mesmo, fazendo uma tatuagem, o que desejara durante tantos anos. Todos aprovaram, alguns conscientes de seu pensamento, como Leon e Desirré – que de boba não tinha nada e já estava sacando a farsa estabelecida entre Leila e Catarina –, outros apenas achando aquela ousadia o máximo, vindo de uma pessoa tão politicamente correta, quanto Leila.

Na hora das roupas, foi Juliano quem intercedeu. Nenhum outro estilo cairia tão bem em Leila quanto o fashion-chick!, calculou o mestre, medindo cada palmo dos quadris e busto de Leila apenas com os olhos azul piscina. Saíram pelas lojas do shopping catando peças bonitas e mais baratas do que as que existiam na Diabolic, pelas quais Leila podia pagar. Porém, pelo menos um modelito Juliano fez questão de comprar-lhe e esse seria da Diabolic, não abriria mão! Foi um vestido perfeito – que segundo o rapaz era a cara dela e havia sido pedido por encomenda – com o qual Leila esperou Catarina, ainda naquela tarde, compelida pela equipe inteira que estava empolgadíssima com a revolução, da qual fizeram parte de forma tão ativa. Queriam ver a cara da chefe! Todos estavam impressionados com a mudança de Catarina depois que começou a namorar com Leila e agora a mudança vinha da outra parte.

Leon apenas escutava os comentários calado, mas, no fundo, até ele estava louco para ver a reação de Catarina. Leila estava, realmente, belíssima! Mas já não lembrava a antiga Barbie e esse fato, cogitava, talvez não fosse do agrado da chefe. Veriam logo mais.

Quando Catarina finalmente chegou, todos a estavam esperando com sorrisos misteriosos, visivelmente eufóricos, como se escondessem algo e ela questionou:

– Qual é a surpresa? Hoje, por acaso, é o meu aniversário? – e riu, adorando especular sobre a novidade.

Ninguém respondeu, mas todos olharam para a sala, indicando que a novidade a aguardava lá dentro. E ela caminhou, já nervosa, imaginando que, certamente, haveriam preparado alguma coisa relacionada à Leila, afinal, era a única que não estava ali.

Acertou na mosca. Quando abriu a porta, era Leila quem a esperava, sentada no sofá, fingindo uma pose convidativa. Riu ao ver a expressão de susto nos olhos da “namorada”. Catarina demorou bastante para falar alguma coisa e quando falou, não foi exatamente o que Leila esperava:

– O que houve? O que fizeram com você?

Leila ainda não havia conseguido distinguir se Catarina usava o tom de aprovação e desaprovação e, ansiosa, perguntou:

– Você gostou ou não gostou?

Catarina respirou fundo, depois caminhou na direção de Leila, que já havia se erguido. Próxima, especulou o restante da transformação e descobriu a tatuagem no pulso e o piercing, que se denunciava pela abertura que o vestido possuía, discreta e exatamente à altura do umbigo. Juliano o havia escolhido com esse propósito.

Em seguida, Catarina, ainda calada, segurou o rosto de Leila entre as mãos e observou as alterações trazidas pela maquiagem forte. Os olhos claros haviam sido destacados por uma sombra verde, que lhes emprestavam alguns raios de mesma cor. As expressões, antes angelicais, estavam, agora, fortes, ousadas, a boca parecia mais farta, carnuda, as sobrancelhas arqueadas. Não parecia mais sua Barbie, era uma verdade, mas, dentro daquela mulher talvez não coubesse mais apenas uma boneca... existiria espaço para várias, em muitos estilos e versatilidade. Era próprio da maturidade ter mais de uma face, pensou Catarina, embevecida, admirada.

– Você está... – e sorriu, sabendo da cara que Leila faria – muito gostosa!

Leila, primeiro fez cara de contrariada, pois esperava ouvir algo mais brando, depois sorriu, satisfeita e comentou:

– Você não tem jeito!

– O que você queria que eu dissesse? Que você está lida, sensual, ousada? Está isso tudo sim, mas está, acima de tudo, gostosíssima e me deixando excitada! E Catarina riu alto, dessa vez da cara de reprovação de Leila, que lhe deu um tapinha no ombro e lhe daria outros se não tivesse sido interrompida, naquele instante, pela equipe inteira, que entrou na sala de supetão.

Foi Desirré quem provocou:

– E aí, Catarina, o que achou?

– Eu já disse o que achei – e a chefe riu, desejando que Desirré e os demais não perguntassem mais nada, mas perguntaram e ela foi sincera.

– Achei que ela ficou gostosíssima.

– E você não vai provar nem um beijo dessa boca carnuda tão bem pintada? Não é a senhorita que adora novidades? – dessa vez foi Juliano quem provocou, ingenuamente, é claro.

Leila conteve-se para não demonstrar o nervoso que sentiu. Não sabia o que Catarina diria nem faria em resposta. Catarina, por sua vez, também foi pega de surpresa e não teve muito tempo para pensar. Aproveitou o ensejo e, dessa vez com uma ótima justificativa, fez o que desejava há muitos anos.

Catarina aproximou-se de Leila lentamente enquanto esta apenas fechou os olhos, aflita. A respiração de ambas alterada e em descompasso quase visível. Contendo a ansiedade, Catarina foi capaz de emprestar aos lábios a suavidade que os batimentos de seu coração não tinham e, com lentidão, tomou os lábios de Leila, quentes, macios e deliciosos como sempre imaginara.

Por dentro, Leila sentiu-se estarrecer. Foi diferente de tudo o que já havia provado. A textura dos lábios de Catarina, da pele, a forma do beijo, o sentimento de desejo e prazer que lhe inundou o ventre, a bambeira nas pernas, a língua quente que lhe invadiu com precisão e vontade. E cedeu. E recebeu. E, finalmente, entendeu o que era sentir-se excitada, tocada, sugada, bebida. O corpo palpitava em todas as extremidades, pulsava, vibrava, aquecia-se e soube que, em poucos segundos, poderia se fazer uma eternidade. Lembraria de cada detalhe que sentira para sempre. Foi, realmente, seu primeiro beijo de verdade.

Quando Catarina afastou-se, todos pareciam sem fôlego ao observá-las. Aprovaram, com certeza, a cena e ainda brincaram:

– Vamos que as duas têm muito o que fazer!

E Lola ainda remendou:

– Vamos mesmo que eu já fiquei até molhada. Não posso ter um orgasmo vendo um beijo, seria o cúmulo da seca!

E todos explodiram numa gargalhada, antes de saírem da sala.

Leila e Catarina não riram. Ainda estavam tontas, constrangidas, anestesiadas, excitadas. Catarina desculpou-se e Leila aceitou as desculpas. Em seguida, saiu da sala, pensando a mesmíssima coisa que Lola acabara de expor em voz alta, minutos antes.

Quando Leila saiu e Catarina ficou sozinha, jogou-se no sofá e se permitiu a um ataque quase infantil de alegria! Agradeceu a todos os santos por ter inventado aquela farsa. Finalmente, através dela, havia beijado Leila Prata, provado seu gosto, seus lábios... e o melhor, tinha certeza de que ela também havia gostado. O coração de Leila acelerado, a respiração ofegante, a fraqueza do corpo que cedeu aos seus lábios e os olhos esfogueados que depois lhe fitaram, entre o espanto e o desejo, nada daquilo fora fingimento, disso Catarina tinha certeza! E Leila poderia negar até a morte que não havia gostado... não acreditaria, afinal, uma coisa que havia adquirido com os anos fora experiência.

Naquele dia, Leila voltou para casa mais cedo. Inventou um mal-estar e pediu a chefe para sair com uma hora de antecedência. Catarina ofereceu-se para levá-la, mas ela não aceitou a carona. Sentia-se vulnerável demais, aflita, irresponsável, sem muito senso, sem muita racionalidade e cheia de vontades, cheia de desejo, cheia da vida tediosa, dos medos, impregnada pelo cheiro de Catarina, por seu gosto, queimando pela lembrança daquele beijo... ainda sentia, atônita, sua calcinha molhada a lembrar-lhe de que não resistiria se Catarina, novamente, invadisse seu espaço e a pegasse de jeito, como havia feito naquela tarde.

Miguel aprovou a mudança assim que a viu chegar em casa. Os olhos cresceram, assim como o desejo, que se avolumou sob as calças. Havia bebido e a esperava. Tinha algumas perguntas a fazer. Estava achando estranho o comportamento de Leila ultimamente e havia sondado com alguns amigos que tinha no shopping sobre o novo trabalho.

Sem qualquer jeito, puxou-a pelo braço e rosnou algumas palavras desconexas. Em seguida, sugeriu que já sabia da sujeira toda e que até aprovaria aquele descaramento se ele fizesse parte da festa ativamente.

Como se Leila se mostrasse confusa ele explicitou com toda imundice de que um ser é capaz:

– Qual é, Leila, sei que sua chefe está lhe comendo e não me oponho se eu puder comer vocês duas juntas, na mesma cama. Pode até ser na nossa, embora eu imagine que a tal da mulher tenha outras opções. Quem sabe ela nos leva a uma suíte luxuosa num daqueles puta Motéis de classe! Já que é cheia da grana, talvez não concorde em vir nesse pardieiro! – parecia o mais ordinário e sujo dos homens a cada palavra enrolada que dizia e continuava a dizer – Só não vou admitir saber que outra mulher fode a minha sem a minha presença... isso não, meu amor. E tem mais, quero que você cobre mais caro, afinal, eu também vou prestar um serviço... – e fechou os olhos, tonto, quase caindo para, em seguida, concluir – minha mulher, uma sapatão! Quem diria!

Leila conteve o choro e a vontade de vomitar que sentia. Em seguida, soltou-se das mãos de Miguel e foi a vez de destruí-lo com palavras:

– Você me dá asco, Miguel... verdadeira repulsa! Sim, sapatão, é isso o que eu sou! – esbravejou, consumida pelo ódio – e se já é uma piada tentar deixar de ser sapatão, imagine tentar com um homem feito você! Além de sapatão eu fui estúpida esse tempo todo!

E Miguel deixou-se cair no chão, fulminado pelo efeito do álcool ingerido, aliado à verdade escutada. Arrumou algumas coisas e saiu de casa. Não tinha mais para quem ligar, a não ser Catarina.

Em menos de vinte minutos, com alívio indescritível, Leila viu Catarina chegar ao estacionamento do shopping, onde a esperava, em prantos. No carro, abraçou-se a ela e não conseguiu, nos outros vinte minutos que seguiram, dizer uma palavra sequer.

Catarina esperou que Leila parasse de chorar com aflição, enquanto observava sorrateiramente se não estava machucada. Depois de algum tempo, finalmente acalmou-se e relatou todo o ocorrido.

Catarina levou-a para a própria casa. Era uma cobertura, na zona sul da cidade. Lá, a chefe deu-lhe um copo de água com açúcar e a fez deitar-se no sofá, com a cabeça em seu colo, para que pudesse desabafar e chorar. Leila ainda parecia nervosa demais e Catarina avaliou que ela precisava pôr o resto do que sentia de ruim para fora. Enquanto alisava seus cabelos, escutou-a com toda atenção e zelo de que fora capaz.

Leila estava consternada e Catarina sentiu-se culpada, afinal partira dela aquela invenção. Desculpou-se por ter exigido aquilo de Leila, aproveitando-se de sua necessidade, mas surpreendeu-se com o que escutou:

– A culpa não foi sua, Catarina... eu quis tanto quanto você. Aliás, eu ainda quero tanto quanto você! – e Leila a olhou nos olhos de uma forma que não deixou em Catarina qualquer dúvida quanto ao que referia-se.

Impulsionada pelo que acabara de escutar e pelo desejo que há muito lhe consumia, Catarina quedou-se sobre o corpo de Leila e beijou-a, dessa vez sem tantas luzes, envolvidas pelo silêncio da sala, sem espectadores.

Leila correspondeu ao beijo, sentindo a saliva que recebia misturar-se com o sal das lágrimas que cessaram naquele instante. A lentidão imposta por Catarina, cedeu ao impulso quase selvagem de Leila que, erguendo-se bruscamente, sentou-se sobre a pelves da chefe, envolvendo-a com as pernas longas e quentes.

Catarina suspirou, enquanto solvia os lábios de Leila, ávidos, apressados, sedentos. As línguas misturadas, os seios de Leila quase expostos pelo decote do vestido, à altura do rosto de Catarina, pedindo para serem tomados e, já sem cautela, os tomou.

Soltou os lábios de Leila e a observou, sedenta, enquanto lhe apalpava os seios. Ela gemeu alto, de olhos cerrados, e Catarina entendeu que poderia continuar. Aliás, deveria! Leila foi quem os libertou do decote. Totalmente despudorada, enlouquecida de desejo, baixou o vestido, deixando os mamilos róseos à mostra, arrepiados. Catarina nunca havia se sentindo daquela forma, arrebatada, entorpecida, endoidecida... e tomou um dos bicos rígidos com a boca, quase que de forma grosseira. Leila gemeu novamente e ela maneirou... sugou-o com lentidão, enquanto apalpava o outro seio.

Leila, experimentando um prazer totalmente desconhecido, absurdo, não conseguia se conter e, ainda com as pernas escanchadas na chefe, esfregava o sexo no abdome de Catarina, excitando-a e excitando-se ainda mais. Em seu ouvido, ela pedia, desconhecendo o próprio tom rouco da voz e a audácia das palavras:

– Catarina, você não sabe o quanto eu quero você! O quanto eu quero você dentro de mim... por favor, eu não agüento!

E Catarina, exultante de felicidade e vertigem, tirou a própria blusa e sentiu a quentura do sexo de Leila espalhar-se em seu abdome e em seus próprios seios.

Leila, fazendo jus a tatuagem que ainda nem havia cicatrizado, finalmente libertou-se da última algema. Sem qualquer resquício de pudor, medo ou vergonha, afastou a calcinha e experimentou com os dedos longos a umidade do próprio ventre. Catarina ficou estarrecida, extasiada com a cena, com aquela mulher que se mostrava perfeita, também, na cama... como nunca havia imaginado. Antes que Catarina pudesse tocá-la, Leila a impediu. Segurou as mãos másculas com as próprias e Catarina obedeceu. Em seguida, foi surpreendida com mais um gesto inesperado de Leila, que, vagarosamente umedeceu os próprios dedos no líquido que brotava por entre as pernas e, em seguida, passou a espalhá-lo na barriga, nos seios, no sexo de Catarina, lambuzando-a com seu “sêmen”. A chefe fechou os olhos, contendo as mãos, sentindo a viscosidade quente de Leila em seu corpo, molhando-a, por fora e por dentro. Catarina sentiu-se inundada.

Era impossível conter-se e, quando, finalmente, Leila permitiu, Catarina arrancou o vestido que ainda escondia parte do corpo perfeito. Admirada, ainda deteve-se, apreciando a visão, mas Leila estava preste a gozar e, prevendo, Catarina, com experiência, introduziu-lhe três de seus fortes dedos.

Como uma presa capturada, Leila gemeu forte ao sentir Catarina penetrando-a e seu corpo tornou-se lânguido, trêmulo. Os seios arrepiaram-se ainda mais e os quadris começaram a mover-se de forma mais forte, mais ritmada. Catarina, sabendo como lhe provocar ainda mais, com o outro braço, enlaçou-a pela cintura e a puxou para baixo, fazendo-a sentar sobre suas mãos, enquanto seus dedos se afundavam ainda mais, comendo-a, fodendo-a, com força, mais força, com jeito, com gosto e o gozo veio, com igual força, com igual jeito, com igual gosto e outro gozo, nas mesmas mãos, apertadas e ensopadas pelo desejo de Leila. E gozaria mais, se Catarina não houvesse lhe tirado os dedos de dentro.

Leila entendeu o que a outra queria e, mesmo sem experiência, adivinhou o que fazer. Desabotoou a calça jeans de Catarina, olhando-a com riso ao deparar-se com o próprio líquido nas vestes.

Catarina aguardou, enquanto Leila a despia. Esperava para ver a reação de seu rosto... agiria com naturalidade ou receio? Tranqüilidade ou afobação? Em resposta, como se lesse o pensamento da outra, Leila chegou perto de seu ouvido, enquanto lhe tirava a calcinha, e disse:

– Embora você não saiba, já fiz isso muitas vezes... – e os olhos negros de Catarina a fitaram com espanto para em seguida, descansarem com a explicação que se seguia –...nos diversos sonhos que tive com você, boba!

E Leila tocou o sexo de Catarina, suavemente, externamente. Por alguns segundos, deteve-se, brincando com a extremidade de seu ventre, o clitóris, que já esperava afoito, duro, inchado de desejo. Em seguida, conduzida pelas mãos de Catarina, que já estava excitadíssima, Leila afundou-lhe os dedos longos e ficou extasiada ao sentir o quanto era perfeita a sensação. Era, simplesmente, maravilhoso tocar outra mulher, aquela mulher, mergulhar ali e descobri-la quente, molhada, apertada, à espera. E iniciou o movimento que lhe era indicado pelas mãos de Catarina, como uma aprendiz. Mas logo Catarina percebeu que Leila já não precisava de auxílio, pois sabia muito bem o que deveria e como deveria fazer com as mãos... benditos sonhos que tivera!, pensou Leila, satisfeita com os gemidos que provocava na outra. E, finalmente, foi também consagrada com o gozo de Catarina, que forrou em suas mãos, enquanto soltava um gemido alto, depois um suspiro longo... o corpo da amante tremendo com seus os dedos ainda presos dentro do ventre, era tudo o que Leila esperava e teve.

Exaustas, as duas deitaram-se ali mesmo, no sofá, no meio da sala. E, de repente, os corpos já não eram quentes, eram plástico as duas já não eram móveis, eram inertes e o desejo já não era delas, bonecas, Catarina e Leila, as duas Barbies, mas de suas donas, as adolescentes que, finalmente, aos dezesseis anos de idade, resolveram ousar na brincadeira. Nada de Bobs naquela tarde.

As duas decidiram: viveriam, como de fato viveram, na pele das duas bonecas favoritas, o que tanto desejaram durante todo aquele tempo. Deixaram os Bobs trancafiados no armário e uniram Catarina e Leila, suas bonecas, daquele jeito, com aquela intensidade, com aquela liberdade! A porta do quarto trancada, como não era de costume, as mentes abertas, livres das amarras, como também não costumavam. E a fantasia de que foram capazes era tanta e tão criativa, e a realidade do que sentiam, tão intensa e devastadora, que molharam as próprias vestes, olharam-se com fome, abraçaram-se com desejo e trocaram o chão frio, palco da brincadeira, pela cama quente e macia de solteiro. Com a mesma experiência adquirida na brincadeira, se tocaram, se provaram, se ensinaram. Com a mesma coragem das bonecas, se permitiram e se amaram, da forma mais sincera e real que existia: em carne, osso e desejo... com uma imensa vantagem sobre Leila e Catarina: não perderam tanto tempo... aqueles dezesseis anos ostentados por ambas era o suficiente.


















Um comentário:

Anônimo disse...

Querida e linda Marina, este acabou sendo um dos preferidos.

Eu adoro, adoro a cadência de seus textos. Sem dúvida, vc tem muito talento.

=)

Beijos com carinho e saudades!