sábado, 31 de maio de 2008

BANDEIRAS AO VENTO (Poesia)

Bandeiras ao vento
Quem não tiver a sua
Que permaneça imóvel

Quanto mais vivo,
Mais percebo
Que todos nós
Verdadeiramente,
As temos
Do mais bélico,
Ao mais dócil

Uns as erguem porque choram
Porque se sentem segregados
E assim, aprisionados, as encravam
Em locais tão mais distantes,
Quanto inóspitos
E o vento que as agitam
Parece ser o da injustiça
Que busca seu cessar,
Ainda que alegórico

Outros as impunham porque,
Autoritários,
Desejam o domínio
E assim as fincam
Em terras alheias,
Por vezes, as dos segregados
E é desta forma que nascem os chamados territórios

E assim, na seqüência lamentável
De tudo quanto é fato e não se nega
Bandeiras de cores diversas
Se contrapõem às cinzas
E tantas vezes, com pesar
Se vê ambas à míngua
De pilar que verdadeiramente as sustentem
É que, mais contundente que a bandeira que se pinta,
É a mão que a projeta

Portanto e por encanto,
As cores, todas elas
Se dissipam
Quando o punho que as erguem não quer trégua

E é então que, de arremate, se aprende
Que a luta que se galga só se vence
Quando, finalmente desperto
Aquele que hasteia a bandeira deseja
Mais que guerra:
Seu inverso.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O AVESSO DA TELA (Capítulo I)

CAPÍTULO I
O PRIMEIRO LUGAR
Meia-noite, avisou-lhe, num tilintar quase inaudível, o relógio da cabeceira. Camila estava inquieta, com todos os sentidos apuradíssimos. Deitada na cama, rolava de um lado para o outro sem sono. Começou, então, a observar a chuva descendo pelo vidro da janela. Aquela cena lhe lembrava seus quinze anos, logo após a morte de sua mãe. Foi com aquela idade que aprendera a observar a chuva e fugir da realidade. Fingia que as gotas escorriam por dentro de seu corpo, lavando sua alma, esfriando-a por dentro, carregando a saudade e inundando o vazio que a mãe deixou.

Ela havia morrido acometida de leucemia. Camila e o pai, atordoados e incrédulos, assistiram seus últimos dias de pé, ladeando-a na cama, fincados feito muralha, fingindo fortaleza. Por dentro, só os dois sabiam o quanto lhes faltavam pernas e pés naquele momento e o quanto, futuramente, lhes faltariam chão e percurso. Mas, nos anos vindouros, o caminho, outrora perdido, foi retomado e, atualmente, caminhavam de mãos dadas.

O amor entre ambos se fortaleceu e, em nome deste mesmo amor, Camila havia aberto mão de muitos de seus desejos e planos, aceitando, inclusive, trabalhar, literalmente, ao lado do pai, que era um grande empresário do ramo da construção civil. Ela se formou em arquitetura e não pôde dizer não ao engenheiro quando ele lhe presenteou com um escritório que, por óbvio, se avizinhava ao seu, ocupando o andar inteiro do prédio empresarial luxuoso que o próprio construiu.

Sempre que Camila observava o preparo da argamassa de uma das construções por si arquitetada e acompanhada, perguntava-se como algo tão líquido e sem substância podia, em tão pouco tempo, transformar-se tanto e, adulterando sua natureza, sustentar um prédio inteiro? Ela ainda não possuía uma resposta, mas o fato é que se sentia da mesma forma e o pai, no contexto e em analogia, representava para si a estrutura de concreto que ela precisava manter erguida, sendo ela a argamassa, agora já firme e rígida. Exatamente por isto, furtava-se a um relacionamento aprofundado com qualquer pessoa. Em sua vida, assim como entre os tijolos da construção que soerguera, não havia espaço para mais nada além do cimento, dizia ela para si mesma sempre que descartava mais uma de suas amantes furtivas. Era sua forma de evitar o remorso e, ao mesmo tempo, o desmoronar de sua estrutura, a qual, entretanto, embora não percebesse, continuava frágil por outros ardis da vida. Os vãos existiam em seu arcabouço, mas ela não os via.

Quando a chuva arrefeceu, Camila finalmente havia adormecido. Seus sentidos se entorpeceram e ela sequer ouviu o anunciar das duas horas. Seu vazio, entretanto, mantinha-se desperto e presente, como sempre, em que pese à ausência dos sentidos.

O dia seguinte foi tão longo quanto a noite. E ela o começou dando cores e formas a uma decisão, a mesma que, até ser tomada, lhe fez perder o sono. Depois de muito adiar, finalmente Camila resolveu retomar, ainda que minimamente, uma das poucas coisas que fazia com prazer: escrever. Ela daria um jeito de conciliar sua produção literária com o trabalho, mesmo que, para isso, fosse preciso perder os horários de almoço – exatamente como fazia naquele instante, em meio a um restaurante – corrigindo, um a um, seus contos. E ela se deu um prazo: em uma semana os selecionados deveriam estar registrados.

Absorta que estava, entre o silêncio interno e o burburinho externo, ela foi interrompida pelo celular. Era Débora, com uma notícia que classificou como imperdível: haveria um concurso nacional de contos eróticos femininos e Camila, ressaltou a outra, empolgada, tinha a obrigação de participar! Advertiu, por fim, que desta vez não a deixaria fugir.

Sim, fugir, era a palavra certa, concluiu Camila, enquanto meditava sobre a imposição da amiga. E foi exatamente o que ela teve vontade de fazer mais uma vez: fugir, fingir que possuía outras prioridades. Mas bem sabia ela que estas “prioridades” não eram de fato suas e sim de seu pai. Tal constatação tinha sido uma das mais duras dentre as trazidas pela insônia. Aquela história de deixar de lado o que realmente a impulsionava estava chegado ao limite. Ela andava extremamente infeliz, isto era um fato. Outro fato: ela não fugiria, nem fingiria mais. Era absolutamente incongruente estar ali, sentada, corrigindo seus textos para registrá-los, numa tentativa de dar algum prazer à sua vida, e dizer um “não” diante de uma grande chance. Ela participaria sim! E começaria naquele exato instante a escrever o tal conto.

Determinada que era, deixou de lado aquela correção, abriu uma nova tela e estipulou outro prazo, este mais curto: só ergueria a cabeça quando quedasse à sua frente o texto que enviaria. Dentro do envelope caberia – e ela remeteria! – muito mais do que a quantidade de páginas e caracteres estipulados. Disto ela sabia e esta foi a certeza que a fez digitar a primeira linha...

"Tarde de chuva. Mais uma vez, a chuva. Desta feita foi o relógio da parede que lembrou a Camila de seu atraso. Já passava das cinco horas da tarde e ela ainda estava ali, naquela sala de espera! Impaciente, ela ergueu-se. Em passos rápidos, atravessou o saguão da clínica e foi tomar um pouco de ar do lado de fora. Acomodou-se na varanda, respirou alguns segundos e ligou para Débora.

Com o resto de calma que possuía, explicou que não iria estar no restaurante às sete horas, como haviam combinado, pois até àquela hora ainda não tinha sido atendida. Como o esperado, Débora resmungou, relembrando-a de que não havia sido uma boa idéia marcar a ginecologista exatamente no dia de seu aniversário. Inconcebível começar a festa sem a aniversariante, justificou a interlocutora contrariada.

De volta ao sofá, mais irritada ainda, Camila começou a folhear pela décima vez a mesma revista, enquanto continha a vontade de rasgar página por página. Naquele instante, abreviando a contenção de seu impulso, a atendente a chamou. Era, finalmente, a sua vez. E só podia, afinal todos já haviam ido embora, constatou Camila antes de abrir a porta.

A médica a esperava e quando Camila a viu, instantaneamente, parte de sua raiva se dissipou. A Dra. Ângela Krauss era uma mulher muitíssimo atraente, foi essa a primeira constatação. Sentada, de cabeça baixa enquanto rabiscava alguma coisa numa agenda, ela lhe pareceu tão fria quanto bonita e esta foi a segunda impressão da expectadora. Quando o olhar verde se ergueu e as mãos firmes ocuparam-se com a retirada dos óculos de grau que o encobria, uma voz envolvente cumprimentou Camila de forma polida:

- Boa noite. Desculpe o atraso.

O pedido de desculpas logo foi aceito, seguido de muitas outras constatações: os olhos daquela mulher eram intensos, apesar da clareza da íris. Sua tez era avermelhada e sua postura, forte, quase austera. Ela era alta, muito mais do que a maioria das mulheres e suas mãos eram grandes, de unhas curtas. Os cabelos também não eram longos e deixavam à mostra um pescoço alvo, que chamava ao toque, fosse pela textura imaginada, fosse pela beleza real e exposta. Uma combinação que beirava o exótico e o másculo, a mesma que fez Camila, já desejosa, cogitar a hipótese de ela ser, também, lésbica. Mas o anel dourado, adornando-lhe o dedo anular da mão esquerda, logo a fez sopesar, ao menos, a última de suas impressões.

Naquele exato instante, diante daquela criatura que, num erguer de olhos tão verdes e singulares, havia preenchido tanto de seus espaços, reduzindo parte de seu vazio, Camila decidiu: iria colher daquela sala, daquela consulta e, sobretudo, daquela mulher, sua inspiração. A mesma que andava lhe faltando ultimamente. A médica lhe daria o conto. E o plano era por demais simples: Camila assumiria, em ousadia e ficção, um olhar diverso, uma personagem. E a doutora lhe serviria de par, ainda que sem conhecimento prévio da trama e das falas, naquela história que ela inventaria, ao passo que viveria, nos minutos vindouros.

A doutora, alheia ao turbilhão de pensamentos e sensações que já fervilhava a mente e o corpo da escritora, logo pegou uma ficha e começou a preenchê-la, anotando o nome e alguns dados da nova paciente. Em seguida, questionou o porquê de ela estar ali e Camila respondeu, sem qualquer embaraço, já interpretando:

- Hoje faço 30 anos e achei que estava na hora de um check-up! – disse sorrindo. Mas a médica manteve-se séria e não retribuiu, permanecendo concentrada na ficha, alheia à trama da qual já fazia parte, longe de ser apenas coadjuvante.

Sem erguer a vista, repondo os óculos de grau, a doutora passou às perguntas correlatas à sua vida íntima, às quais Camila também respondeu, sem qualquer desconforto:

- Você é virgem?
- Não, ainda existe alguém virgem aos 30 anos?
- Mais do que você imagina. – e finalmente a médica a encarou, demonstrando que não estava achando graça e que gostaria de continuar com seriedade. Camila logo entendeu o recado e acomodou-se de forma mais ereta na cadeira.

A médica continuou:

- É casada?
- Não...quer dizer, não formalmente falando – e Camila, naquele momento, já dava à sua personagem uma parceira, com a qual dividia a vida.
- Entendo. Mas tem um relacionamento sexual estável?
- Sim. Tenho – respondeu concisa, deixando a ficção avolumar-se a cada instante.
- Usa algum método anticoncepcional?
- Não precisamos – e Camila logo se preparou para a cara de interrogação que certamente viria, seguida da pergunta da médica.
- Algum de vocês é estéril ou fez alguma cirurgia?
- Não. Simplesmente não nos foi dado o poder de reproduzirmos em conjunto... – e Camila riu, decidindo que realmente brincaria com aquela criatura tão sisuda. Seria um prazer desconcertá-la.

A doutora fez cara de quem não estava entendendo e pediu:

- Pode ser mais clara?
- Sim. Sou lésbica e transo com mulheres. Aliás, mais específica e ultimamente, com a minha mulher – e dessa vez Camila respondeu séria, contendo a vontade enorme de rir da cara de espanto da doutora.
- Entendi... – e a médica suspirou, constrangida. Camila logo percebeu e começou a por em prática a parte da trama onde o objetivo era deixá-la ainda mais sem graça.
- Não sei por que vocês, ginecologistas, sempre emperram nessa pergunta e fingem não ficar assustadas, quando, de fato, ficam! Não precisa ficar constrangida. Não por mim.
- Não fico constrangida, nem assustada com o fato de você ser lésbica. Apenas me surpreende o de você admitir desta forma, tão abertamente. A maioria não age assim!
- Nossa! Pelo menos minha declaração arrancou da senhora mais do que três palavras! – e Camila riu, dessa vez vendo seu sorriso ser retribuído. Logo a paciente apreciou os dentes brancos e perfeitamente dispostos no sorriso franco que lhe fora lançado, acompanhando de um olhar menos gélido, quase cálido. Gostou também dos lábios que lhe sorriram. Eram lábios bonitos, rubros, que dispensavam o uso de batom e pareciam sempre acometidos pelo frio intensificando-lhes a tonalidade.
- Desculpe... – falou a médica, demonstrando, também, o rubor em sua face, fazendo com que Camila adorasse aquela reação súbita, aquele ar infantil que invadia, sem permissão, as expressões daquela mulher, antes tão dura e arredia. E Ângela continuou, tentando driblar o desconforto – não queria parecer rude, sou de poucas palavras. Nada pessoal.
- Imagino – respondeu Camila, consciente de que já exercia algum poder sobre sua personagem, principalmente pelo olhar diferenciado que ela, naquele instante, lhe lançava.

O restante da entrevista transcorreu de forma menos formal. A médica parecia apreciar, ainda que discretamente, cada detalhe que captava de Camila e esta, por sua vez, apreciava o jeito quase másculo da mulher que, aos poucos, assumia o papel – em olhar e palavras – que ela desejava.

No meio da conversa, Ângela admitiu que havia se surpreendido não apenas com a sinceridade de Camila, ao confessar-se gay, mas, sobretudo, com o fato de ela não ter qualquer jeito masculino, ao contrário, “ser tão feminina, delicada”. Foi assim que a médica a classificou, com os olhos verdes fulgurando a cada palavra.

Camila, pelo tom usado e pelo olhar que se intensificava a cada fala, tomou o comentário mais como um elogiou do que como uma constatação. E, em sua mente, já absolutamente corrompida pela personagem interpretada, uma observação surgiu, que ela, naquele instante, silenciou. Entretanto, antes de partirem para os exames, Camila não resistiu e ousou:

- Depois de tantas perguntas que me foram feitas, será que tenho o direito a, pelo menos, uma?
- Claro – e a médica pôs-se em pose de espera e curiosidade.
- A senhora me disse, agora a pouco, que nem suspeitou que eu fosse lésbica, não foi?
- Sim. Você foge aos padrões.
- E você, Ângela?
- Não entendi...eu o quê? – e a médica pareceu perturbar-se.
- Você é lésbica?
- Claro que não! Porque a pergunta?
E Camila, dessa vez rindo abertamente do rubor que novamente tomava conta do rosto da médica, explicou sem pudor:

- Porque, desculpe a sinceridade, mas você se encaixa perfeitamente no estereótipo criado, sabia?
- Continuo sem entender – mentiu a médica, que já compreendia perfeitamente o que Camila queria dizer. Desejou, porém, escutar a explicação que sairia daquela boca, mesmo que fosse tão devastadora quanto os lábios fartos que sensualmente se moviam.
- Ângela...você é máscula! Tem um rosto muito bonito, de traços perfeitos, mas é um rosto angular, não muito feminino. Além disso, olhe as suas mãos! Sei que a sua profissão exige, mas as unhas curtas não são apenas unhas curtas! São unhas sem esmalte, sem anéis delicados, de dedos fortes, de palmas avantajadas, também não muito femininas. Além disso, seus lábios estão sem batom, você está sem brinco e eu diria mais...aposto que ficará extremamente constrangida, agora que sabe que sou lésbica, ao me tocar, ao apalpar meus seios e vê-los intumescidos... e vai ficar imaginando se eu estou te desejando, se estou gostando de se tocada por você. E vou mais longe! Aposto também que ficaria toda sem jeito se eu dissesse que você me atrai sim, que me excita a idéia de ver suas mãos aí, onde elas estão, e imaginá-las em mim. E se isso que eu estou dizendo não fosse a mais pura verdade e você fosse uma hetero, caretíssima como as outras, com certeza já teria me colocado para fora de sua sala e se recusaria a me atender novamente, o que não fez e nem fará!

Ângela já estava suando e Camila apenas sorriu, quando concluiu sua maldade. Ela já não sabia o quão era má ou se má era apenas sua personagem! A médica, depois daquelas frases, só teve uma alternativa:

- Você está esquecendo que sou profissional e, como tal, lhe atenderei, independentemente de sua opção sexual e de sua opinião sobre a minha pessoa.

Dizendo isso, Ângela ergueu-se e caminhou até a maca, que ficava do outro lado de uma parece de gesso. Camila a seguiu e ela estendeu-lhe uma bata, indicando o banheiro para que a vestisse. A paciente obedeceu, imaginando que passara – ela ou a personagem? – dos limites. Mas agora era tarde demais. O conto já tinha um início e precisava urgentemente de um fim.

Ângela vestiu as luvas e tentou recompor-se enquanto esperava Camila. Lembrou de cada palavra escutada e rezou para que conseguisse agir naturalmente depois do vendaval de verdades proferidas por aquela criatura tão desconcertante e envolvente.

Ela sentia-se sim atraída por mulheres desde sua adolescência, mas nunca havia admitido nem para si mesma, tampouco concretizado os desejos que povoavam seus sonhos insistentemente, mesmo depois de casada. E agora, de repente, naquela altura da vida, em meio a uma crise matrimonial, lhe aparecia uma mulher daquelas, totalmente compatível com suas fantasias e demonstrando que cederia, caso ela a quisesse. Ela simplesmente não sabia o que fazer. Poderia, finalmente, permitir-se e, pelo menos, beijá-la. Fora exatamente isso que Ângela desejou assim que Camila entrou em sua sala, com aquela boca farta e descabida, tão bem disposta no rosto mosto moreno de traços marcantes e pele lisa.

Poderia ir além, despindo-a e despindo-se, principalmente, de sua hipocrisia, cogitou tentada. Mas a personagem interpretada por Ângela, ao contrário da de Camila, não se limitava a um conto. Ela a encenara durante toda a vida! Sua máscara já parecia haver se incrustado na carne e suas vestes, assumido o lugar de sua pele. Ela simplesmente não sabia como se sustentaria depois de tirá-las, como seu casamento se manteria, como ela se manteria sem seu casamento e, sobretudo, como faria para não sucumbir ao desejo de abandonar o palco onde sua vida, tão pateticamente, se encenava. Para não sucumbir às suas tentações, ela havia retirado de seus olhos o poder ver os outros como de fato eram e, bem por isto, naquele instante, sentiu-se incapaz de lançar para dentro de si um olhar diverso. Preferiu, mais uma vez, fingir e fugir de Camila e de si mesma...e lá ia ela conjugando em pensamento os mesmos verbos de sua parceira de trama. Ambas se fazendo represas.

Camila voltou e já não parecia tão disposta a provocá-la, concluiu Ângela, pelo silêncio da outra. A paciente sentou-se na maca, sem olhar a médica nos olhos e disse, em voz baixa:

- Desculpe-me. Sinto ter me excedido. – E neste instante ouviu-se mais a voz de Camila do que a de sua criação.
- Tudo bem – respondeu Ângela, triste por perceber que a moça havia desistido e, o pior, se arrependido!

Sob os comandos da médica, Camila abriu a bata e expôs os seios firmes aos olhos translúcidos de Ângela, que tentava conter o tremor das mãos. Com cautela e simulando uma frieza que não sentia, a médica tomou os seios de Camila e os apalpou lentamente, fingindo examinar algo além da textura daquela pele macia, da consistência perfeita daqueles montes volumosos que eram, definitivamente, o alvo exclusivo de sua atenção. Tentava também, a duras penas, ignorar que, realmente, os mamilos estavam arrepiados. Tentava, acima de tudo, não supor que a reação adviesse de seu toque. Mas como Camila permanecia inerte, a médica logo se julgou pretensiosa.

A paciente, dando continuidade ao conto, não encarou Ângela uma só vez. Percebeu o embaraço da médica, a vermelhidão de seu rosto, sua respiração quase ofegante, mas se conteve. Tinha certeza de que a doutora estava sim, excitada. Na verdade a juraria molhada, com aquela aproximação, com suas provocações, com sua pele, com seu cheiro. Mas permaneceria quieta, aguardando. Queria observar a reação de Ângela ao percebê-la também molhada, graças ao seu toque, e isso seria inevitável.

Quando Ângela, finalmente, mandou que Camila se deitasse, a paciente obedeceu. A médica tocou-lhe as pernas num pedido mudo para que as abrisse um pouco mais e Camila o fez. Porém, quando a doutora fez menção de lubrificar com o gel os dedos, já encobertos pelas luvas, para tocá-la, Camila não resistiu e intercedeu:

- Vamos, Ângela, não seja tola! Já não preciso disso e você sabe muito bem!

A médica desconcertou-se e ficou sem reação. Foi então que a paciente, já impaciente, se ergue, sentou-se na maca e puxou-a pelas mãos. Entorpecida de desejo, Ângela cedeu e aproximou-se. Camila ajeitou-se de forma que a doutora ficasse parada, de pé, entre suas pernas. De súbito, livrou-se totalmente da bata enquanto conduzia a cabeça loira pela nuca, até encostar a boca em seu ouvido, onde sussurrou:

- Eu sei que você vai saber me tocar como ninguém. Não perca tempo. Meta os dedos em mim...eu estou molhada desde o momento em imaginei exatamente o que agora te peço.

Em seguida, a boca de Camila escorregou pelo pescoço alvo da médica, que cerrou os olhos num gemido, tentando evitar que Camila lhe tomasse a boca, mas já era tarde. Os lábios voluptuosos já lhe sugavam a saliva, quentes, ardentes, parecendo querer comer-lhe por inteiro. E Camila realmente sabia como devia agir para arrastá-la para o desfecho daquele conto. Percebendo que ela excitava-se com as palavras, afastou a boca da sua, falando-lhe novamente ao ouvido, enquanto conduzia as mãos da médica por entre suas pernas:

- Ângela, por favor...eu preciso... – e a língua de Camila já tocava descaradamente o lóbulo da orelha da médica – eu quero você dentro de mim...quero ser a primeira mulher a gozar com você.

E Ângela cedeu. Livrou-se das luvas e, sobretudo, da máscara. Excitada, deliciada com a voz rouca e as palavras de Camila, meteu-lhe dois dedos de forma vigorosa e ritmada. E Camila aprovou, abrindo-se mais para senti-la lá dentro, mais forte.

- É assim que se faz, Ângela! E eu sempre soube o quanto você o faria com perfeição! – e Camila gemia alto, enquanto intercalava as palavras já nada ensaiadas, tampouco fictícias. E o conto lhe escapava, feito o gozo, por seus vãos...

Ângela estava enlouquecendo só de tocá-la e de ouvi-la falar daquele jeito, mas não era assim que a escritora queria findar aquelas últimas páginas que lhes restavam. Logo puxou a mão da médica, retirando os dedos trêmulos de dentro de si, ordenando que ela parasse. E ela parou, surpresa, com os olhos esfogueados de desejo, as mãos ensopadas pela umidade. Diante do susto da parceira, Camila sorriu e explicou o que queria, despindo rapidamente a médica e conduzindo-a para o chão.

Sobre o tapete, Camila deixou Ângela deitar-se e postou-se ajoelhada sobre seu ventre, de pernas abertas, indicando que os dedos da médica deveriam continuar ali, apoiados em sua pélvis, para que ela os engolisse novamente. E assim fizeram: Ângela postou os dedos longos como se fossem um membro rijo e Camila encaixou-se sobre eles, num movimento de sobe e desce que enlouqueceu a doutora. Em seguida, a personagem de Camila, ou o que restava dela, buscou entre as pernas de Ângela o espaço que pôde e foi a sua vez de penetrá-la.

Ajeitou-se sobre as mãos de Ângela e continuou a subir e descer, enquanto afundava também os dedos na médica, que se sentia entorpecer, com as pernas anestesiadas, os olhos fechados, os líquidos escorrendo, o ventre recebendo a agilidade daqueles dedos maravilhosos.

E o ritmo foi aumentando, tornando-se intenso, firme, seguro, forte...as mãos de ambas estocando com força, as gargantas ficando secas, na medida em que os ventres inundavam-se mais e mais. E quando o som do entrar e sair dos dedos tornou-se audível e, na seqüência, o silêncio se fez, após muitos gemidos, nada mais havia de ficção. A realidade escorria das duas. Foi então que, de olhos abertos, em todos os sentidos, elas se viram como realmente eram e os olhares que ambas se lançaram foram inteiramente diversos, além de límpidos.

Confusa, Camila quedou o corpo suado sobre o de Ângela e beijou-lhe a boca. A médica, por sua vez, abraçou-a, desejando que ela ficasse ali para sempre, sem saber que, nos planos daquela que tão perfeitamente cabia em seus braços, este seria o último parágrafo da história, onde aquele abraço, definitivamente, não cabia. Afinal, o conto, na concepção originária da autora, não deveria ostentar romance, apenas sexo. E assim ela o findaria.

Camila desvencilhou-se do abraço com outro beijo, este frio. Silenciosa, caminhou até o banheiro, onde trocou de roupa, enquanto Ângela permanecia inerte, ainda no chão, despida de tudo, assustada consigo e, mormente, com aquela mulher capaz de lhe dar em tão pouco tempo tudo o lhe faltou durante toda a vida.

Quando Camila voltou, Ângela havia se vestido do que ainda lhe cabia. Seu manto era de expectativas. Reconhecendo a esperança nos olhos verdes, ela aproximou-se e, rematando o conto, disse-lhe:

- Paramos por aqui – e esta frase foi o ponto final."

Mas o destino seria menos cruel com Camila do que ela foi ou fingiu ser. E, antes que ela continuasse manipulando as falas, os gestos e sentimentos – em sua vida e em seus escritos, que eram, em verdade, meros resumos inacabados de suas expectativas –, a bateria do laptop acabou, a tela escureceu e ela, assustada – mais com a descoberta de sua própria escuridão do que com a da tela –, foi então perceber que não havia como escrever um conto daquela forma, despida de envolvimento e, ainda assim, ganhar qualquer concurso. E mais: não havia como dar continuidade à sua vida evitando um enlace, tampouco poderia iniciar uma carreira de escritora sentindo-se pela metade, falando sobre sexo, simplesmente, porque desconhecia o amor. Só então, ela finalmente despertou, ao passo que constatou: queria mais do que qualquer coisa na vida voltar se a sentir inteira! Queria deixar de observar a chuva com o intuito infantil de preencher um vazio que simplesmente não se recheia com águas, com mágoas, com medos, com paredes, com tijolos, com muralhas. E esta certeza foi o prêmio que ela, naquele momento, ganhou, mesmo antes de participar do certame. O primeiro lugar tornou-se seu e ficava logo ali, exatamente onde ela estava, sentada naquela cadeira tosca, inanimada, com um laptop pousado sobre o seu colo sem qualquer vestígio de vida. O importante é que ela já se sentia cheia.

Munida desta nova sensação, laçou um olhar diverso sobre aquela tela, o mesmo que lançaria, doravante, sobre sua vida e, retirando mentalmente o ponto final, decidiu que permitiria uma continuação:

"- Paramos por aqui... por hoje. Mas queria te ver amanhã... "

sábado, 24 de maio de 2008

CORTE (Poesia)

Não
Não me falaram daquilo que quebra,
Daquilo que choca,
Daquilo que mata, ainda quando vivo nos preserva
Apenas para sentirmos a dor da queda
A dor do corte
A dor da faca
Que sequer exige pele
Que sequer exige corpo
Que dissipa e fere alma
Que frustra e retalha a calma
Tecendo apenas o que desespera

Não
Não me falaram daquilo que sangra
Daquilo que transborda
Daquilo que transporta cada gota de nossos mais sagrados líquidos
Ainda quando não se derrama sangue
Ainda quando se prescinde de veia
Ainda quando se prescinde de pulso
Ainda quando se prescinde de curso
E nos faz jorrar para fora de nós mesmos
E nos faz vazios, ainda quando cheios
E nos faz esteio do peso do mundo inteiro

Mas, mesmo sem aviso, descobri
E me expulsei de ti e de mim
E te expulsei de mim e por fim
Vejo que nos perdemos, antes mesmo de nos achar
Eu, em forma de poça, estanque
Tu, em forma de rio, passante
Nós em forma de líquido
Que o sol forte, naquela tarde, fez evaporar.

domingo, 18 de maio de 2008

A TRILHA (Conto Erótico Feminino)


Era quase meia-noite quando Letícia chegou em seu apartamento. Tinha ido a uma festa com duas amigas e estava cansada. Nada tinha saído como ela esperava. Fábio, amigo seu de longas datas, passara a noite colado ao seu lado, o que fez com que não pudesse aproveitar a festa, tampouco conhecer alguém interessante.

Assim que chegou, tirou seu vestido, removeu a maquiagem discreta que usava, indo logo em seguida tomar uma ducha rápida. Quando saiu do banho, parou diante do espelho e fitou-se por um tempo, em análise à imagem que via. Tinha a pele morena clara, com textura delicada, olhos pequenos e puxados...na seqüência, forçou um sorriso sem graça para, logo em seguida, rir de si mesma e de sua falta do que fazer, aliada à falta de sono. Sentia-se bela, apesar do tédio que insistia em lhe atormentar.

Quando resolvera sair de casa, há quase dois anos, acreditava que sua vida seria totalmente diferente, interessante e movimentada. Não teria mais seus pais controlando seus os horários, as saídas, os amigos...mas agora percebia que, na medida que havia conquistado sua liberdade, havia também perdido a graça em fazer muitas coisas que antes considerava essenciais, como chegar tarde, sair diariamente, ir a festas badaladas, essas coisas todas que atualmente classificava como “ monótonas”. Tinha até uma certa preguiça em conhecer novas pessoas. Quando pensava em se aproximar de alguém, já levava em consideração um início, cheio de emoções e encantamento digno de novelas, um meio um tanto quanto desbotado pelas primeiras brigas, pelas primeiras descobertas desagradáveis e um fim, sem qualquer emoção, tristeza ou saudade. Tinha sido sempre assim.

Ela precisava urgentemente quebrar esse ciclo tedioso. E dormiu pensando como fazê-lo. Acordou e caminhou firme como quem dá passos decisivos em sua vida, rumo ao inesperado. Mas andava apenas em direção à lista telefônica. Lá localizou o número de umas das agências de viagem mais populares da cidade, especializada em passeios ecológicos e trilhas pouco conhecidas. Por instantes se imaginou em meio a uma grande selva, com um guia irritante e politicamente correto falando sobre a preservação do mico-leão dourado ou qualquer coisa do gênero. Decidiu que preferiria trilhas desconhecidas. E foi isso que respondeu a voz feminina que lhe perguntou do outro lado da linha:

- O que deseja, senhorita? Por que tipo de passeios se interessa?

Letícia respondeu categórica:

- Nada básico, por favor! Depois que percebeu o tom ríspido de sua própria voz desculpou-se.

Escolheu uma viagem de uma semana, pela região montanhosa e quase totalmente desabitada da Chapada do Ouvidor, conhecida pelas fendas profundas e infinitas cravada entre as rochas tanto no plano horizontal, formando enormes corredores de pedras, quanto no vertical, criando despenhadeiros estreitos e profundos, como enormes funis rumo ao inferno, como diziam os ditos populares. Dali, ecoavam vozes, canções e até mesmo gritos assustadores, conforme relatavam os mais exagerados depoimentos que Letícia encontrou na internet sobre o lugar. Desses barulhos misteriosos vinha o nome do lugar, era óbvio concluir.

Nada disso lhe deu medo. Seu maior desafio seria viajar sozinha e isso sim a amedrontava. Estava acostumada a sentir-se sempre segura e cercada de “amigos” que sempre cuidavam para que ela se sentisse, se não cuidada, mas ao menos, desejada e menos solitária.

Faltavam apenas três dias e a espera a deixava cada vez mais ansiosa. Realmente parecia uma boa idéia para fugir do tédio, pensava Letícia, pois antes mesmo de viajar, ela já se sentia mais feliz e animada. Comprou roupas leves e sapatos confortáveis, apropriados para esse tipo de caminhada, para o frio e para os galhos e lascas de pedras que, com certeza, tentariam lhe atrapalhar o caminho. Sua mochila também era nova e igualmente equipada, com cantil, bolsos espalhados com todas as finalidades, canivetes, cordas...e tudo mais que a fizesse se sentir mais segura. Apesar do intuito, sentia-se como uma criança inexperiente, rica e mimada, querendo parecer profissional, sem ao menos saber usar o que tinha. Mas não deixou abater-se. Sua fantasia serviria, pelo menos, para enganar aos outros, pensava, esboçando um sorriso de satisfação.

Os dias arrastaram-se até que, finalmente, estava ela na van, juntamente com mais oito pessoas, que lhe eram totalmente desconhecidas e formavam um grupo bem heterogêneo. Havia um casal aparentemente simpático, com aspecto de turistas de meia-idade, felizes e desocupados. Ambos muito brancos, de tez avermelhada e, claro, a peculiar máquina fotográfica pendurada no pescoço, em perfeita sincronia com as vestes coloridas. Ao seu lado estava sentado um rapaz com cara de intelectual, que se escondia timidamente atrás de seus óculos de aro escuro, que lhe tiravam a jovialidade. “Esse parece mais deslocado do que eu”,calculou em silêncio Letícia ao observar o nervosismo com que o jovem apertava o apoio da cadeira. Suas mãos aparentavam suar frio. Mais à frente, uma senhora de cabelos grisalhos muito bem presos num coque, usando uma roupa caqui, feito aquelas de filmes de Safári, ostentando olhar determinado na estrada, era a única que parecia realmente preparada. Por fim, pôde perceber um homem moreno, de aproximadamente trinta e cinco anos, que, com cara de descolado, a observava incomodamente. “Do tipo que me daria trabalho, caso tivesse espaço”, pensou Letícia, desviando rapidamente o olhar. Nos bancos da frente iam o motorista e uma moça. Destes Letícia não pôde tecer nenhuma conclusão, afinal estavam calados, de costas e quietos, concentrados no caminho.

A viagem transcorreu lentamente. Foram seis horas de solavancos, poeira, e muita lama. Por momentos, Letícia arrependeu-se. Não havia se identificado com nada: nem com a estrada, nem com a falta de conforto da van, muito menos com os passageiros. Mas...era tarde demais.

Finalmente chegaram à pequena cidade de Lua Nova, de onde iniciariam a trilha. Havia sido avisada de que levasse tudo o quanto precisasse de casa, afinal tratava-se apenas de um pequeno vilarejo, sem qualquer vestígio de progresso, muito menos, qualquer espécie de luxo, como cremes hidratantes, repelentes, ou qualquer outro artigo do tipo, que se abarrotavam dentro da bolsa de Letícia. As poucas pessoas que ali moravam eram como uma civilização perdida no tempo e no nada, que aprendera a viver isolada, sem as facilidades e futilidades do chamado “progresso”. “Jamais seria uma delas”, pensava Letícia.

Eram 14h quando finalmente desceram da van com suas mochilas e expectativas. Apenas neste momento Letícia “conheceu” os outros dois passageiros:

- Meu nome é Edson e sou o motorista da equipe. De agora em diante, serão guiados por Mandara, nossa guia. Espero que aproveitem bem o passeio e voltem inteiros, brincou o negro sorrindo de forma cálida e generosa. Aposto que, depois de sete dias no meio do mato e andando a pé, acharão a volta muito mais confortável. E Edson despediu-se.

Ao ouvir a van dar partida, Letícia sentiu um leve desespero gelar-lhe o estômago. Era como se o último elo que conectava à “civilização” houvesse se rompido. Agora se sentia totalmente insegura e ansiosa pelo que estava por vir, apesar de todo medo. Foi quando escutou a voz feminina que pedia a atenção de todos. Provavelmente Letícia era a única desatenta naquele momento.Saindo de seu devaneio, voltou os olhos para a moça que lhes falava:

- Bem, como Edson já disse, eu sou Mandara, a guia dessa peculiar excursão. Sou nativa desta cidade, por isso sou sempre a responsável por este passeio. Como vocês já devem ter sido alertados, esta região é um tanto quanto “especial”, digamos assim, tanto que não faz parte de nenhum outro roteiro oferecido pelas demais agencias de turismo... – Mandara parecia escolher bem as palavras para não assustá-los –... guarda certos segredos, certas particularidades que somente quem nasceu e criou-se aqui pode conhecer. Meu trabalho não é apenas conduzi-los no caminho, mas, sobretudo, velar pela segurança de vocês, por isso, escutem-me atentamente sempre, concluiu Mandara olhando na direção de Letícia, que percebeu o sutil recado.

Instantaneamente Letícia pôde traçar o perfil de Mandara, como já havia feito com as demais pessoas do grupo. Pelo porte atlético e voz altiva, sem dúvida era uma pessoa forte, destemida e determinada. Pelo modo que seus olhos rasos e franjados a haviam observado, quase a queimando de repressão pela desatenção, parecia não gostar de ser contrariada. Era, sem dúvidas, mandona. Pelas roupas simples e gastas e pelas mãos longas, de unhas curtas, parecia ser rude, apesar de muito inteligente. Por fim, pelos cabelos de fios claros pelo sol, longos e presos num rabo de cavalo que lhe acentuavam o rosto de formas angulares e a tez dourada, Letícia pôde perceber que, apesar de rústica, a beleza de Mandara era tão peculiar quanto o lugar que tão bem conhecia.

Após as breves instruções, de mochilas nas costas, deram os primeiros passos rumo à Chapada do Ouvidor.

As primeiras horas transcorreram sem muita conversa. Apenas alguns comentários explicativos de Mandara e algumas perguntas básicas dos demais. Letícia conservava-se em silêncio. No final da tarde, chegaram a uma pequena queda d’água, que vertia timidamente por entre as primeiras árvores que começavam a se agrupar, indicando o início da floresta que enfrentariam pela manhã. Ali pararam sob os comandos de Mandara que, deitando sua mochila no chão, falou:

- Bem, temos apenas três barracas e somos sete. Ou seja, duas barracas ficam com duas pessoas e a terceira com três. Sugestões?

- Não me importo em dividir uma das barracas com meu marido, disse Eva, num tom de brincadeira que não escondeu em nenhum momento a clara intenção, para não dizer, imposição, de que ela e Heitor ficariam sozinhos em uma das barracas. O casal de “turistas profissionais” parecia exigente e não tão simpático quanto pensara Letícia à primeira vista.

Percebendo o rumo das coisas, Mandara cuidou de organizar as demais instalações:

- Bom, se os demais não se opuserem, sugiro então que César fique com Israel em uma das barracas e eu ficarei com Helena e Letícia na outra...concluiu Mandara, afinal tal arrumação pareceu-lhe realmente a mais sensata desde o começo.

Ninguém se opôs e assim foi feito. Mandara habilmente coordenava a montagem das barracas e aos poucos elas tomavam forma. Duas eram do mesmo tamanho e a terceira maior que as demais, com uma divisória separando o “quarto” da “sala”. Instintivamente Letícia direcionou-se para a maior. Já estava escurecendo e ela decidira trocar de roupa. Sentia-se empoeirada e a noite prometia ser fria. Colocaria algo que melhor lhe protegesse do frio e, sobretudo, dos mosquitos, que começavam a deixar marcas vermelhas em sua pele clara. Estava quase despida quando Mandara entrou na barraca, para seu constrangimento.

-Desculpe-me, não vi que você tinha vindo pra cá, deveria ter pedido licença antes de entrar, falou Mandara rapidamente, tentando desviar os olhos do corpo esguio e muito sensual que se despia à sua frente.

Segurando as vestes de encontro ao corpo, com os pêlos eriçados pelo frio, Letícia tentava proteger-se, agora não mais dos mosquitos, mas dos olhos escuros de Mandara que, vermelha, dava-lhe as costas, saindo da barraca imediatamente.

Depois do fato, Letícia se questionava sobre o mal-estar estabelecido entre ambas há minutos. Não se recordava de haver tido problemas com sua nudez, nem mesmo na adolescência, quando as curvas dos seios rosados despontava, acentuando-lhe levemente os decotes das blusas ainda infantis que vestia. Por que então se sentira tão envergonhada diante de Mandara? Afinal, ela era outra mulher... bem, na verdade, ela não era em nada parecida com suas amigas, mas...era outra mulher, apenas isso.

Já fora da barraca, Mandara ainda sentia o rosto queimar. Ainda via com nitidez o corpo bonito de Letícia, entrecoberto por suas vestes, com os seios rosados, arrepiados assim como todos seus poros, e, acima de tudo, podia visualizar o rosto de traços perfeitos, harmoniosos, com os olhos de expressão surpresa e envergonhada que a observaram de maneira forte, quase cortante, expulsando-a silenciosamente do quarto. Conteve seu pensamento. Em seguida, saiu na direção de Heitor, César e Israel a fim de que pudessem providenciar alguns gravetos suficientes para acender uma fogueira.

Dois grupos foram formados: Heitor e Israel, César e Mandara. Durante o percurso, César contava vantagens tentando impressionar Mandara que, por sua vez, o escutava calada e impaciente, ao mesmo tempo em que pensava no quanto gostaria de achar logo um amontoado de gravetos só pra não ter que aturar a companhia dele por muito tempo. Teve sorte, pois em poucos minutos ouvira as vozes de Heitor e Israel que já carregados de madeira os chamavam para retornar ao acampamento.

Todos já estavam em torno da fogueira descontraídos quando Mandara, saindo de fininho, foi até a barraca. Neste momento, César resolveu aproximar-se de Letícia.

- Graças a Deus você está aqui!

Letícia não entendeu o comentário.

- Não tem nada interessante por aqui, além de você, é claro! Já estou acostumado a fazer trilhas, sabe? Aliás, essa é a mais light que já participei, gosto de aventuras, de perigo...

Letícia, enquanto escutava César, se perguntava como faria pra se livrar daquele conquistador, foi quando disse:

- Acho que a Mandara deve estar precisando de ajuda, vou dar um pulinho na barraca, volto já, ok?

Levantou-se rapidamente enquanto César acenava com a cabeça, sem entender direito o motivo da esquiva.

Mandara estava deitada, com o olhar perdido em direção ao teto da barraca. Letícia aproximou-se, pedindo licença, para em seguida sentar ao seu lado.

- Está preocupada com algo? Perguntou Letícia mostrando evidente interesse.

Mandara não podia dizer o que estava realmente lhe afligindo, resumiu-se a responder:

- É que... queria fazer algo diferente amanhã... estou imaginando o que poderia ser, mas e você? Por que não está lá fora se divertindo com os outros?

Mesmo sem qualquer intenção de soar grosseiramente, Mandara falou de maneira um tanto brusca...a presença de Letícia a deixava nervosa, sem jeito...sentia uma certa necessidade de manter-se distante...logo em seguida arrependeu-se ao ouvir Letícia falar:

- Desculpe-me...não percebi que você queria ficar sozinha...às vezes sou meio distraída, falou Letícia de maneira suave, mas com certa mágoa na voz...

- Não é isso, eu que peço desculpas. Não quis parecer rude...se você é distraída, às vezes sou meio grossa – emendou Mandara – e isso é bem pior do que ser distraída, concluiu sorrindo.

- Tudo bem...estou aqui porque lá fora não estava tão divertido. Tentava fugir das cantadas do César...quero só ver como farei o resto dos dias...nem sempre terei uma barraca para me esconder...além do mais, aqui está bem melhor...

Nesse instante, Mandara a olhou de forma interrogativa e Letícia percebeu que deveria concluir a frase, desfazendo qualquer mal-entendido:

- É que os mosquitos também incomodam e eu estava com frio...falou rapidamente, sem encará-la novamente.

O comentário final de Letícia incomodara Mandara. Ela preferia ter escutado algo do tipo: “estou aqui porque queria ficar próxima e a sós com você...” Ora, ela já estava viajando demais!

Letícia, por sua vez, gostaria de ter dito que havia se encaminhado para a barraca porque queria uma chance de ficar a sós com Mandara, para tentar se aproximar, quem sabe soltar os cabelos de Mandara e ver como ela ficava, sentir o cheiro de sua pele...Ao perceber o rumo de sua imaginação, reprimiu-se. Não antes de ter a certeza de que jamais faria um comentário daquele tipo.

Tentando disfarçar a decepção, Mandara contornou:

- Então fique aqui, pelo menos não tem César. Quanto aos mosquitos, o máximo que posso fazer é te oferecer um repelente...disse Mandara já com o tubo na mão, fazendo menção de espalhá-lo...

Imaginando que seria em seu corpo, Letícia sequer mencionou que já tinha o tal repelente...Aliás, fez questão de “esquecer” que fora exatamente ele a primeiríssima coisa a ser comprada para a viagem.

Em resposta, Letícia resumiu-se a arregaçar as mangas do moletom que vestia, bem como a barra das calças compridas...bem, se não era isso que Mandara havia pensado em fazer, agora não teria mais saída, pensava.

Meio constrangida com a atitude de Letícia, Mandara iniciou a tarefa. Em verdade, não tinha pensado em atrever-se desse modo. Apenas ofereceria o creme, mas, com certeza, a idéia de massageá-la lhe agradou muito mais...

No começo as duas estavam um pouco tensas pela proximidade e pela falta de intimidade... aos poucos Mandara começava a espalhar o creme pelos braços delicados e longos de Letícia, que evitava olhá-la diretamente. As mãos de Mandara lhe percorriam a pele, em princípio, de maneira suave e despretensiosa... após alguns minutos, o clima estava menos tenso... as mãos de Mandara já deslizavam de maneira sensual, descendo até suas mãos, massageando seus dedos...

- Letícia!! Mandara!! – bradou César, quebrando o clima – Estamos esperando vocês pra animar a festa....

As duas se entreolharam com cumplicidade... com certeza ambas sabiam o quanto aquele chamado havia atrapalhado. Sorriram e, à contra-gosto, foram em direção aos demais...antes de sair, no entanto, Letícia pediu:

- Mandara, por favor, não me deixe a sós com César, nem agora, nem amanhã, nem depois... concluiu rindo.

- Pode deixar que eu te protejo, falou sem pensar muito.

Em volta da fogueira todas as conversas pareciam chatas...nenhuma das duas conseguiu se integrar num diálogo. Helena contava sobre suas viagens; César continuava inventado algumas outras; Heitor, a maior parte do tempo calado, apenas escutava a mulher falar e Israel observava intrigado Letícia e Mandara... percebendo seus olhares sorrateiros e cúmplices.

Por volta das 10h o frio e o sono já estavam insuportáveis e Mandara, como sempre, tomou a frente do grupo:

- Vamos dormir? Amanhã o dia vai ser longo e cansativo...além do mais, o sol aparece às cinco... encerrou a fala com um sorriso que deu a certeza a todos de que aquela seria a hora do início da caminhada.

Na barraca elas tentavam se acomodar. Helena dormiria no quarto e as duas tentariam caber na “sala”, que tinha um pouco mais do que três metros quadrados. Mas não seria tão difícil assim...

A centímetros de distancia, Letícia deitara-se em seu saco de dormir de costas para Mandara. Poderia sentir e ouvir a sua respiração esquentando-lhe a nuca, bem como seus braços, roçando de leve em suas costas.

Mandara, de olhos abertos, observava Letícia. Podia sentir o cheiro de seus cabelos. Devagar, como quem tenta se acomodar melhor, cuidou de, aos poucos, aproximar seu corpo do dela. Somente nesse instante fechou os olhos e tentou sentir o calor de seus contornos. Imaginou a textura de sua pele, de suas costas, seus ombros, suas curvas... Aproximou seu sexo dos quadris de Letícia quase tocando-os e parou imediatamente, já sentindo a umidade evadir-se por entre as coxas... gostaria mesmo de encaixar-se nela e mover-se até senti-la por inteiro, mas não teria coragem, não naquelas circunstâncias.

Letícia, por sua vez, sentia a respiração de Mandara mudando... a sua já estava quase ofegante e ela tentava conter-se, disfarçar a excitação que lhe tomava. Sentia seu ventre queimando, molhado, ardente... sabia que Mandara a queria... ela também desejou insuportavelmente virar-se bruscamente e beijá-la, despindo-se depressa e fazendo amor de maneira incontida e descarada como jamais havia feito, mas não suportaria a tudo em silêncio e Helena, com certeza a escutaria gemendo de gozo... somente ao findar seu devaneio percebeu a insensatez de seus desejos e afastou-se de Mandara, cobrindo-se quase até a cabeça, quem sabe para sufocar seus pensamentos descabidos.

Mandara, já agoniada, levantou-se e foi caminhar um pouco, numa tentativa de esfriar o corpo... Letícia sentiu sua falta e somente adormeceu quando ela retornou. Sentia-se segura ao seu lado.

O dia não tardou a amanhecer e Mandara já estava de pé.Como sempre todos ainda dormiam quando ela cuidou de reacender a fogueira para esquentar um pouco de café. O clima estava menos frio devido ao sol que já começava a esquentar às cinco horas da manhã. O dia prometia. Depois de tomar uma boa xícara de café forte, resolveu que iria nadar um pouco. Só depois chamaria os outros... Dar-lhes-ia uma trégua ao menos no primeiro dia.

Quando voltou à barraca para trocar de roupa Letícia ainda dormia... ela era muito bonita, muito mesmo, pensava Mandara observando-a com muito cuidado para não despertá-la. Cuidadosamente despiu-se e vestiu seu biquíni preto.

As águas estavam congelando. Mandara começou a nadar vigorosamente para esquentar-se um pouco, enquanto pensava o que era exatamente aquilo que Letícia lhe despertava. Ela sabia muito bem o nome e era muito bom sentir. Apesar de estranhar o que estava acontecendo, não planejou evitar. Tentaria manter a proximidade, mesmo que fosse só para sentir sua atenção e seu jeito meigo de tratá-la.

Enquanto nadava alheia a tudo, à beira do rio Letícia a observava admirando-a. Não queria apenas sua amizade, concluiu, e mesmo que parecesse absurdo, daria um jeito de ter o que queria.

- Bom dia, Letícia, já de pé? – Falou Mandara saindo do rio coberta de gotas ainda iluminadas de água que lhe realçavam o corpo rígido e bonito.

- Bom dia, Mandara, mais uma vez gostaria de estar sozinha e eu atrapalho? – Perguntou Letícia, dessa vez em tom de brincadeira, certa de que não atrapalhava pelo sorriso com o qual foi recebida.

- Não, claro que não, mais uma vez soei grossa? – Perguntou Mandara já preocupada...Será possível que tivesse se desacostumado a falar com gente? Teria virado um bicho do mato, sempre rude mesmo quando não gostaria de sê-lo? Pensava...

- Não sua boba, estou brincando com você...percebi que era bem vinda por seu belo sorriso- concluiu Letícia deixando Mandara um pouco desconcertada.

Os outros, aos poucos iam se levantado sem a necessidade de serem chamados. Estavam realmente empolgados... mas era apenas o primeiro dia, pensava Mandara em silêncio, o primeiro dia...

Heitor e Eva, já a beira da fogueia bebiam café e comiam sanduíches, conversando amigavelmente com Helena. Eva, sem dúvidas, a tratava bem melhor do que a Letícia e a Mandara, pois não lhe causava ciúme do marido.

César ensaiava um pulo atlético nas águas do rio, enquanto Israel o observava da beira. Ele havia subido em uma formação de pedras, de aproximadamente 2 metros e fazia menção de pular quando Mandara intercedeu e gritou, correndo rapidamente em sua direção para evitá-lo.

Percebendo a voz nervosa da guia, explicou, orgulhoso, certo de que dessa vez havia atingido seu objetivo de impressioná-las e o melhor, sequer tivera trabalho em vencer seu medo e pular:

- Fique calma, minha querida, tenho experiência com esse tipo de pulo e de águas também!

Mandara limitou-se a dizer:

- Se tivesse, “meu querido”, não pularia em cima da formação de rochas que continua a se prolongar abaixo de você, submersa... sugiro que não o faça.

Totalmente desconcertado, César sequer teve o que dizer e desceu das pedras todo descabriado e com os pêlos eriçados pelo frio... sentia-se ridículo.

Todos riram muito da peripécia do Sr. Sabe Tudo, mas ninguém com tanto prazer quanto Letícia... Mandara era incrível. E ela continuou a falar:

- Pessoal, peço que não se aventurem de maneira ousada a fazer o que não conhecem... Lembrem-se que estamos a 20 km da cidade e lá não tem sequer hospital. Se acontecer qualquer coisa com vocês tudo que temos é uma mini bolsa de pequenos-socorros que, acreditem, não remendaria a cabeça de César. Concluiu séria... dessa vez ninguém sorriu... ela tinha razão, pensava César arrependido.

Os demais também se banharam rapidamente, trocaram de roupas e iniciaram a caminhada. Entraram na mata que se iniciava no local onde haviam acampado e seguiram por duas horas, até perceberem que já era mata fechada. Os galhos se enganchavam e feriam aqueles que tinham exposta a pele. Letícia caminhava sempre ao lado de Mandara e aceitava com prazer a mão que esta lhe estendia, sempre que a passagem tornava-se difícil. Apesar do cuidado, um galho de espinhos enganchou-se nas pernas de Letícia. Mandara imediatamente parou e ajoelhada, tentava desenganchá-lo e conseguiu, mas não sem antes furar um de seus dedos. Ao ver um pouco de sangue nas mãos de Mandara, Letícia pegou-a entre as suas apressadamente, olhando-a com preocupação e Mandara sorriu, dizendo:

- Isso é bobagem, daqui para o final da trilha você terá uma coleção de arranhões e furos como eu, disse rindo e puxando um pouco a camiseta, desnudando os ombros para que Letícia pudesse vez algumas cicatrizes pequenas que possuía.

Cuidadosamente e com um carinho especial, Letícia tocou-lhe o ombro com a ponta dos dedos e contornou a marca de um arranhão maior que se estendia pelas costas. As duas se olharam e Mandara sentiu-se arrepiada. Antes que faltasse o fôlego, interrompeu dizendo:

- Mas vamos lá... tem ainda muito caminho pela frente...

Foi quando Letícia percebeu como já estava agindo... as coisas estavam acontecendo rápido e ela já não se controlava tanto como sempre fez. Apenas agia conforme suas vontades...

Mais duas horas e finalmente podia-se ver a claridade do que parecia o fim da mata fechada. E era exatamente isso. Há quinze metros, estava o que pareceu aos olhos de todos um enorme deserto de pedras, interrompido apenas por pequenos arbustos e as fendas que cortavam o caminho com profundidade. Mandara cuidou de alertá-los:

- Aqui começa a Chapada do Ouvidor... daqui pra frente, cuidado redobrado. Prestem atenção nos passos, pois o calor nas rochas causa uma certa erosão e, por vezes, a própria vista engana. Podemos ver miragens devido à quentura que reflete do solo...é comum tropeçar, cair e se machucar. Não se afastem uns dos outros, nem de mim...

Letícia pensava que agora é que não se afastaria mesmo. Pela primeira vez teve um pouquinho de medo. As fendas pareciam ser profundas, sem fim mesmo... o vento estava um pouco forte e apesar do sol, fazia um pouco de frio.

Meia hora depois pararam para comer e beber alguma coisa. Israel parecia amedrontado e muito vermelho. Mandara perguntou:

- Você está se sentindo bem, Israel? Precisa de alguma coisa especial?

- Estou um pouco cansado e minha cabeça parece que vai explodir com o sol...

- Tudo bem, vamos procurar um pouco de sombra e descansar um pouco, certo?

Todos concordaram imediatamente. As bolhas já se formavam nos pés de Eva e ela pensava que aquela, sem dúvidas, não era uma trilha nem de perto parecida com as que havia feito. Heitor a amparava enquanto os dois, trôpegos, tentavam desviar das pedras. César também parecia cansado e estava muito calado, nem parecia o mesmo. Helena caminhava mais lentamente que os demais, mas não parecia mal... ela já havia feito aquele “passeio” uma vez, há alguns anos atrás, e o que vira ali a impressionara demais. Os outros ainda veriam, pensava ela...

Letícia já se sentia fraca e Mandara se preocupou. Pararam embaixo de alguns arvoredos e beberam muita água. As mochilas pareciam pesar toneladas e foi com alivio que Letícia colocou a dela no chão, deitando-se em seguida com a cabeça apoiada nela. Os outros também fizeram o mesmo... cada um a seu canto e Mandara continuou de pé, olhando ao longe, as rochas que se estendiam à frente...

- Você não cansa não é? Perguntou Letícia, desejando que ela se aproximasse... parecia distante, pensativa...

- Também estou cansada – falou Mandara se aproximando e sentando ao lado dela. Seu rosto estava corado pelo esforço e os olhos brilhavam ao observá-la... deitada ao seu lado...

Letícia sentia-se cada vez mais envolvida por aquela mulher incomum. Queria sempre sentir sua atenção e seus cuidados e Mandara, por sua vez, sentia uma vontade enorme de cuidar de Letícia... ela parecia sensível, frágil, desprotegida no meio daquele deserto de pedras brutas, que já estavam machucando-a. As duas conversaram um pouco, mas nada pessoal... não falaram sobre nada do que lhes passavam pela cabeça. Ainda era muito cedo.

Continuaram a caminhada até o sol esfriar e quando pararam estavam na primeira fenda erguida na vertical entre dois montes enormes de pedras. O vento estava ficando mais forte e já começava a zunir por entre os rochedos, como se fossem realmente fozes... Mandara explicou que aquela fenda conhecia-se por Garganta do Diabo e todos se arrepiaram de olhos arregalados...ela riu e pediu um pouco de silêncio para escutarem...

O som que saia dali parecia uma melodia estranha, entre-cortada por assovios ora graves, ora agudos. Às vezes tinham a sensação de ouvirem palavras inteiras, desconhecidas, melodiosas, que se desfaziam em forma de eco...outras vezes eram como urros assustadores, profundos, como se realmente viessem de um lugar muito distante e incerto.

Tiveram que montar as barracas ali. Todos se recolheram cedo, mas apesar do cansaço, não conseguiram dormir logo... A Chapada do Ouvidor era realmente assustadora e agora os ouvidores eram eles...

Mais do que nunca Letícia desejou que Mandara a abraçasse e a protegesse. Deitadas lado a lado, dessa vez uma de frente para a outra, conversaram um pouco em voz baixa e muito em silêncio. Mandara a olhava de forma intensa e Letícia sentia-se queimar por dentro. Alguns relâmpagos clarearam o céu e o interior da barraca enquanto trovões se misturaram com os ruídos entrecortados das fendas. Num ímpeto de susto, Letícia abraçou Mandara, que, mesmo sem jeito, a segurou forte contra si, enlaçando-a com os braços. Seus rostos ficaram a centímetros de distância. Mandara podia sentir a respiração de Letícia em seu rosto, seus olhos estavam assustados, mas desviaram-se dos de Mandara rapidamente, para sua boca. Letícia sentia o rosto queimar, num misto de vergonha e desejo. Mandara, por sua vez, não sabia o que fazer. As duas fecharam os olhos, sem uma palavra e ficaram abraçadas por algum tempo, até Letícia quebrar o silêncio:

- Desculpe, Mandara... tive medo. Sei que proteger meninas medrosas não faz parte de seu trabalho – falou, mas não fez menção de se afastar. Os olhos de ambas continuavam fechados.

- Não se preocupe, Letícia – falava Mandara baixinho e próximo ao seu ouvido, fazendo-a quase não resistir ao sentir o cheiro de seu hálito, de seus cabelos, agora soltos e lindos – posso fazer isso também... por você.

E o silenciou voltou a pairar entre as duas, até que o cansaço venceu e elas adormeceram abraçadas, queimando de desejo e evitando tocarem-se da maneira como realmente queriam.

Havia chovido muito durante a noite e, entre as rochas, formaram-se crateras que mais pareciam verdadeiras lagoas de lama, algumas mais rasas, outras profundas e perigosas. As coisas estavam ficando mais complicadas, pensava Mandara já preocupada com o chuvisco incessante que lhe embaçava a vista. Andaram três horas e tiveram de se abrigar numa loca de pedras, pois a chuva caia forte e o chão estava derrapando demais... Tanto que Israel escorregou e por pouco não caiu em uma enorme fenda que sorrateiramente estendia-se próxima a seus pés. Todos estavam preocupados e se durante a noite continuasse a chover, nem mesmo as barracas resistiriam. Mandara sabia que nenhum dos membros do grupo estava preparado para aquilo. Eva já nem falava de tão assustada, fosse pelos trovões, fosse pelos sons estranhos que, cada vez mais fortes, soavam por entre as fendas. Helena também estava quieta e prestava atenção nos ruídos como se os entendesse. César era outra pessoa. Agora já deixava transparecer claramente sua inexperiência e aflição.

Letícia, ensopada, dava seus primeiros espirros enquanto falava:

- Mandara, acho que não vamos conseguir terminar a trilha, não é?

- Se continuar chovendo assim, não vamos, Letícia... preocupo-me por vocês.

- O que faremos? Como voltaremos desse jeito, onde ficaremos? – Sua voz começava a demonstrar medo e Mandara odiava vê-la assim.

- Não voltaremos – disse em tom enigmático para Letícia, concluindo em seguida – daqui a aproximadamente 06 km existem alguns chalés antigos, construídos há muito tempo por um senhor europeu muito rico no intuito de formar algo como uma colônia de férias ou coisa do tipo...

- Graças a Deus! Quer dizer que ficaremos num hotel? Nem consigo imaginar! Que coisa boa! Uma bela ducha quente, roupas limpas e quentinhas... – falava Letícia com uma linda expressão de sonhadora.

Mandara não queria desfazer sua felicidade, nem o sorriso encantador que nascia em seus lábios, mas era preciso:

- Infelizmente não é bem assim... – falou Mandara, vendo imediatamente o semblante de Letícia se transformar – depois de construídos, apenas duas excursões estiveram nos chalés e eles foram abandonado.

- Mas por que? O que houve? Parecia perfeito um lugar destes aqui...

- Bem, atualmente apenas eu e outro guia nativo temos a chave dos chalés...eles são oito ao todo. São usados apenas em casos de emergência feito este. Estive lá há aproximadamente um ano... – e continuou a explicação – Eles ficam exatamente no centro da Chapada do Ouvidor. Relataram os habitantes de Lua Nova que os membros que formaram as duas excursões que lá estiveram em 1987, por volta da meia-noite, começaram a “entender” os ruídos que vinham das fendas, até então ininteligíveis. O que antes não passava do soçobrar do vento tomou significado, de modo que começaram a ouvir claramente palavras inteiras, gritos, enfim, mensagens no intuito de deixar claro que não eram bem-vindos ali... portanto, no meio da noite, apavorados, todos abandonaram os chalés e saíram dispersos e desesperados pela noite... um jovem foi encontrado morto em uma das fendas e outro desapareceu. Por certo caiu em uma fenda mais profunda e jamais foi encontrado. Desde então, espalhou-se em Lua Nova a lenda de que no coração da Chapada do Ouvidor as vozes das fendas se encontram e adquirem significado, expulsando todos os que não são daqui.

- Nossa, Mandara, que história horrível! Diga que é apenas uma brincadeira sua, pelo amor de Deus – pedia Letícia apavorada.

- Bem, Letícia, o que posso dizer é que já estive lá algumas vezes, em casos como este, com pessoas que não são nativas e nunca ouvi nada... quer dizer, nada que desse para entender. Além do mais você sabe como são as histórias de interior. Na verdade, acho que os habitantes de Lua Nova jamais concordaram com a construção de tais chalés, pois o movimento e o turismo acabariam transformando este lugar. Para evitar isso eles inventaram essa lenda. Eu nunca conheci ninguém que houvesse participado dessas excursões e me contasse pessoalmente o ocorrido. Independente de qualquer coisa, não temos saída melhor... não se assuste tanto, qualquer coisa tapo seus ouvidos – concluiu Mandara tentando sorrir e afastar o medo dos olhos de Letícia.

- E quanto aos outros, vai expor os “detalhes” do lugar?

- Acho melhor não, só iria causar mais mal-estar e quem sabe, de tanto medo, terminariam mesmo escutando coisas. A imaginação, aliada ao medo, é capaz de muitas coisas. Esse será o nosso segredo... combinado?

- O nosso segredo... – repetiu Letícia, dando maior ênfase à palavra “segredo”, já que possuíam outro bem maior.

A chuva continuava forte, quando Mandara falou:

- Bem, pessoal, infelizmente já está anoitecendo e não temos condições de continuar expostos. As barracas não agüentarão mais uma noite de chuva e suponho que tampouco vocês. Perto daqui existem uns chalés que servem de apoio às excursões em situações como estas. Não estão em muito bom estado, pois tivemos lá da última vez há um ano. Quebrarão o galho, no entanto. Ok?

- Ok!!! Todos responderam em uníssono, muito satisfeitos, exceto Helena, que continuou calada, com uma expressão estranha nos olhos.

Já estava escuro quando finalmente chegaram. Foram 06 km de dificuldades. A chuva continuava forte e as lanternas eram insuficientes. Caminhavam lentamente e muito próximos. O frio era intenso e a luminosidade era pouca. Aqui e acolá alguém tropeçava... todo cuidado era pouco e Mandara estava tensa e preocupada, assim como os demais. Só que sua atenção tinha de ser redobrada, pois era a responsável pelo grupo. Letícia segurava o braço de Mandara com força durante todo o caminho, sem disfarçar seu medo e o quanto confiava nela. Até que avistaram, finalmente, entre o espesso véu que formavam os pingos de chuva, os oito chalés estilo colonial, dipostos lado a lado. De longe, até que pareciam conservados, comentaram todos.

Entraram em um chalé que parecia a pequena recepção e Mandara logo se encaminhou ao gerador, antes de acender a luz. Graças a Deus que funcionava, pensou. Todos estavam ensopados e tremendo. Rapidamente ela deu as coordenadas:

- Bem, temos oito chalés. Com certeza sobrará espaço. Quem deseja ficar aonde, perguntou?

Israel e César se dispuseram a ficarem juntos, bem como Eva e Heitor. Apenas Helena insistiu em ficar sozinha, com uma voz enigmática, sem explicar o porquê. Também não foi contestada, nem por Letícia, nem por Mandara. As chaves foram distribuídas após a última instrução:

- Aconteça o que acontecer, não saiam dos chalés. Neles estarão protegidos. Nos armários têm cobertores, que devem estar um pouco empoeirados, mas darão pro gasto. Talvez ainda haja um pouco de lenha para a lareira. Parece-me que o dono manda alguém limpá-los de vez em quando. Afinal, outras pessoas já precisaram como nós... a propósito, vocês serão reembolsados pelo restante da viagem.

Todos se encaminharam para os respectivos chalés em silêncio. Letícia seguiu ao lado de Mandara. Foram para o de número 7, enquanto Helena se instalou sozinha no número 8.

Dentro do chalé as coisas pareciam velhas, mas não estavam tão empoeiradas quanto Letícia esperava. Ela comentou a surpresa e Mandara explicou:

- Esse é o reservado para o dono dos chalés. Ele ainda vem aqui, mesmo sozinho, por isso o mantém um pouco melhor.

- Até que o lugar é aconchegante – comentou Letícia, com um sorriso de alívio.

Enquanto Mandara acendia a lareira, Letícia sentada no tapete tentava tirar as botas enlameadas. O interior do chalé era todo de madeira escura, que lhe davam um ar rústico. As cortinas eram pequenas, cobrindo apenas as duas janelas de vidro que eram mantidas hermeticamente fechadas devido ao frio e à chuva que caia. Não havia muitos móveis, apenas um pequeno sofá e duas poltronas confortáveis, em tons pastéis como as cortinas. A cama parecia muito macia e convidativa. A colcha era de retalhos e havia almofadas espalhadas pelo chão e em cima da cama.

Quando a lareira estava devidamente acesa, Mandara caminhou até Letícia, que continuava sentada no tapete, toda molhada, e comentou:

- Você vai acabar gripada, menina. Dê-me suas roupas que as colocarei para secar. Amanhã estarão até passadas! – disse esboçando um sorriso.

Letícia prontamente obedeceu. Lentamente ergueu-se e tirou o casaco de moletom que já estava pesado de tanta água. Por baixo, havia uma leve camiseta de malha branca, já totalmente transparente, evidenciado os bicos dos seios arrepiados pelo frio. Mandara não pôde evitar direcionar o olhar. Mas cuidou de desviar rapidamente. Letícia percebeu e sorriu, deixando-a sem graça. Depois tirou a calça, também de moletom, que cobria suas pernas bem feitas, expondo-as aos olhos de Mandara, que já não desviou muito a vista. O ambiente estava na penumbra, iluminado apenas pelas chamas da lareira, que as aquecia, mas não mais do que o desejo explícito nos olhos de ambas. Por fim, Letícia estava despida, ostentando apenas uma calcinha fininha, branca, que se segurava apenas por uma tira lateral disposta com perfeição nos quadris bem feitos. Ela era deliciosa, pensava Mandara.

De tão absorta, Mandara sequer havia feito menção de tirar as próprias roupas. Continuava inteiramente vestida e igualmente ensopada. Letícia riu, pois estava clara a distração da outra por assisti-la.

- Agora é a sua vez, falou Letícia como quem anuncia um strip-tease em tom de brincadeira.

- Até faria se levasse jeito pra essas coisas e não estivesse tão cansada – falou Mandara sorrindo e demonstrando haver entendido perfeitamente o pensamento de Letícia... elas estavam em sintonia.

Dando as costas para Letícia, Mandara cuidou de afastar-se da luminosidade e aos poucos ia se despindo, enquanto Letícia pensava: “você não imagina o quanto leva jeito para essas coisas... não imagina o quanto me excita com esse seu jeito sem graça e alheia à sua própria beleza e sensualidade!”. Ela era muito bonita. As costas largas, desenhadas, assim como as pernas e os braços, que levemente evidenciavam sua musculatura rígida. A pele dourada, perfeita para o toque. Letícia não conseguia parar de imaginar como seria sentir aquele corpo nu junto ao seu e seu desejo foi parcialmente atendido em minutos.

Embaixo das cobertas, Letícia esperava. Mandara não tardou a estender as roupas próximo à lareira e encaminhar-se para a cama. Pela primeira vez as duas estavam realmente sozinhas. O mesmo ritual foi iniciado. De costas, Letícia deitou-se, enquanto Mandara deitou-se próxima. Os corpos nus quase se tocando. Letícia podia sentir o calor do ventre de Mandara e em mais alguns centímetros poderia sentir os pêlos de seu ventre em seus quadris. Não ousou aproximar-se, no entanto. Ao mesmo tempo em que estava tonta de desejo, se controlava. Tinha medo de não saber direito como Mandara iria reagir.

Mandara, por sua vez, já se sentia úmida apenas por imaginar colar seus seios nas costas de Letícia e seu ventre em seu quadril maravilhosamente próximo a seu corpo, lhe provocando todos os sentidos. Foi, aos poucos, se aproximando, até sentir a textura da pele de Letícia, que imediatamente se retesou um pouco pelo contato, sem, no entanto, afastar-se. A respiração das duas já estava quente e ofegante. Letícia não podia mais resistir. Queria que Mandara tomasse a iniciativa e faria por onde. Lentamente, de maneira muito delicada e discreta, com os dedos quase imersos em sua umidade, começou a se tocar. Mandara pensou, por instantes, que estava imaginando coisas, mas ao perceber os movimentos dos ombros e braços de Letícia soube com certeza o que ela estava fazendo. Aproximando os lábios da nuca de Letícia, Mandara fez menção de beijá-la e recuou. Percebendo o receio da outra, Letícia, virando-se, olhou-a nos olhos sem deixar qualquer dúvida quanto a seu desejo. Em seguida, tirou a mão já molhada de seu ventre e pegou uma das mãos de Mandara conduzindo-a por entre suas coxas. Mandara jamais houvera sentido tanto prazer. Colou o corpo ao de Letícia e, com os dedos enterrados em sua umidade, fazia-a gemer descompassadamente enquanto se movia, esfregando seu sexo nos quadris de Letícia.

Letícia também queria tocá-la e, abruptamente, virou-se para que Mandara se deitasse por cima dela, as duas se moviam de maneira quase selvagem. Os sexos se tocando, os dedos aprofundando o toque, as bocas coladas, com as salivas e umidades misturadas, gozaram forte.

Ainda sedenta, Letícia conduziu a cabeça de Mandara por seu corpo, deixando-a deter-se apenas em seus seios. Mandara os sugou avidamente. Letícia estava quase gozando novamente, mas queria que Mandara sentisse seu gosto. Por isso, empurrou-a para entre suas pernas e Mandara começou a sugá-la ritmadamente, enquanto seus dedos a penetravam mais uma vez. Os cabelos soltos de Mandara se perdiam nos dedos de Letícia, que conduzia sua cabeça para seu sexo, gozando mais uma vez.

No coração da Chapada do Ouvidor, os únicos gemidos que ouviram naquela noite foram os próprios.

No outro dia, ainda de pernas bambas, as duas se levantaram cedo. Seus rostos ainda estavam impregnados por seus cheiros, assim como o quarto. As roupas secas as esperavam e elas. Depois de um banho longo, pois o tomaram juntas, finalmente, se vestiram. Tinham a certeza de que, mesmo longe dali, teriam muitas outras noites feito aquela.

Ao encontrar os outros, Mandara perguntou se haviam dormido bem e, em resposta, Helena respondeu em tom sarcástico:

- Desde 1987 não durmo tão bem, apesar de todo os ruídos da noite, seja lá de onde vieram... – concluiu com um sorriso.

Naquele exato dia, Letícia sentiu que havia iniciado mais um novo e desconhecido percurso em sua vida. Entretanto, para ele, não contaria com mapas ou bagagens... Contaria tão somente com uma linda e apaixonante guia e isto, naquele instante, lhe pareceu o suficiente para que ela seguisse construindo sua própria trilha.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

ACASO (Poesia)

O acaso não é senão um jorrar de águas,
Cuja fonte se faz desconhecida
E quando elas – às vezes turvas, outras límpidas – nos encharcam,
Perplexos,
Denominamos de acaso o umectar súbito
Que nos toca os pés ou as faces lívidas

Eu,
Curiosa por natureza,
Pesquisadora de fontes que sou,
Busco sempre,
Após todo efeito que me abate,
Sua causa
E, bem por isto,
De há muito não chamo de acaso a descoberta vindoura,
O mapa da fonte que me abala,
Mesmo que ela continue a molhar,
Repentinamente,
Meus pés ou minha alma.

MOSAICO (Poesia)

Hoje,
Mais do que quadro,
Pronto, harmônico e acabado,
Sinto-me mosaico
Imperfeito e impreciso
Verdadeira junção de pedaços
Justapostos e coloridos,
Cujo preto e branco apenas eu,
Em meu anverso,
Capto

Longe do fim e do começo
Sou o meio deste espectro
Que construo quando mato
Se fico ou se passo?
Não sei
Sei que me sinto exposta
Qual vitral posto em igreja
Tão banal, quanto insólita
E todos têm pedras nas mãos a atirar
Se quebro ou permaneço intacta?
Verdadeiramente tanto faz
Afinal sou mosaico,
Como firmo no começo,
E, de pedaços,
Sejam dispersos ou fixos,
Faço-me sempre, novamente e mais.

FOTOGRAFIA (Poesia)

Fotografia
É passado estampado em papel
É segundo roubado do tempo
É sorriso suspenso
Nuvem que não passa
Vôo que não pousa
Bandeira que não oscila

Fotografia
É ruga que não se propaga
É certeza mapeada
É vida ancorada
Compilada,
Emoldurada,
Presa para ser liberta
E ganhar o infinito

O infinito?
Não sei se tanto
Afinal, o papel também esmaece
Mas sei que agora
Enquanto o tempo devora o mundo
Tenho um pedaço dele – e bem bonito – em minhas mãos
E de lá você me sorri
E daqui te sorrio então
E, de repente,
Todo o tempo roubado nos é devolvido
E o espaço que se estende ao passado
Ao presente é fortemente cingido
E o mundo,
Ao menos por um segundo,
Volta a me parecer são.

CONTAMINAÇÃO (Poesia)

Minhas palavras andam vazias de mim
O que, ultimamente, as preenche?
Desconheço
Talvez seja a ausência de mim mesma
Daquilo que não me pertence
Feito quando, sem fé, se profere prece
Que, quase involuntariamente, se sabe de cor

Minhas palavras andam vazias de mim
Quem sabe, a presença do outro as tenha impregnado
A cadência dos desejos, dos clichês, da rima e pensar alheios
De tudo que, de tanto habitar o mundo,
A mim também contaminou
A mim também maculou e corrompeu
E eu, ao passo que adoeço,
Com febre e susto, descubro
Que nem sempre caibo
Em meus próprios textos

Serei eu também espelho
Refletindo em mim o anseio alheio?
Serei e também mutável,
Banal,
Hopócrita,
Influenciável,
Engolindo os rótulos e lugares comuns que tanto odeio?

Eis uma possibilidade real
A mesma que me esmaga,
Ao passo que me traga,
Para dentro do meu – do nosso – meio

E é assim que, boquiaberta e relutante, passo a fazer parte
De tudo aquilo que não me cabia e hoje cabe
E com a mesma precisão
De uma contaminação que toma um corpo inteiro.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

BONECAS (Conto Erótico Feminino)


O shopping estava totalmente lotado quando Catarina chegou. Eis a explicação: final de ano. No estacionamento, um caos. Carro para todos os lados, em cima dos meio-fios, das calçadas, um inferno natalino. E ela tinha pressa! Isso era um péssimo sinal, pois a pressa já havia lhe compelido a fazer inúmeras e imperdoáveis besteiras no correr de seus trinta e dois anos muito bem vividos, diga-se de passagem. Odiava sentir-se pressionada, fosse pelas pessoas, fosse pelos ponteiros do relógio que lhe apertavam o pulso, fosse por seus próprios impulsos, por vezes até irracionais. Antes que largasse o carro ali mesmo, no meio de um dos pavimentos do estacionamento, ligou para Leon, seu fidelíssimo escudeiro:

– Alô, Leon, pelo amor de Deus, venha para o terceiro andar do estacionamento agora!
– Credo, Nina, o que houve?
– Corra!

Depois de desligar o celular sem responder à pergunta desesperada do amigo, riu do que havia feito. Sabia de seu exagero inato. Tinha a certeza de que Leon deveria estar, naquele exato instante, atravessando a porta de vidro que guardava a Diabolic feito um louco, esfogueado, arfante – pois sempre ficava assim quando fazia qualquer movimento mais brusco, devido ao desleixado excesso de peso – e ganhando os corredores do shopping com sua discrição tão característica: alguma sandália bem fashion, daquelas que sempre fazem um barulhinho irritante quando encontram o piso, calças pantalonas em cores tão fluorescentes quanto as que contornavam o letreiro da loja de Catarina, uma blusinha daquelas por ele denominada de básica, com estampas extravagantes, quase sempre com motivos alternativos – para não dizer gay –, geralmente mais apertadas do que o moralmente permitido e óculos de cores que serviam mais como diademas, prendendo os cabelos lisos. E adivinhou!

Lá se ia ele, exatamente como Catarina imaginara, suando, correndo, parando, respirando, recompondo-se, ajeitando os cabelos e correndo novamente, tentando não deslizar no piso liso que cobria o shopping, com todo o exagero e fidelidade de que um ser é capaz, para salvar a chefe, amiga e musa, pela qual dizia fazer tudo o que fosse preciso, desde que isso não incluísse transar com uma de suas amantes enquanto ela conquistava outras.

“Você que dê conta das múltiplas escolhas, Nina”, era o que rosnava sempre que ela lhe pedia para despistar uma das namoradas, ora entretendo-as com seu humor irresistível, ora mentindo com seu cinismo devassador, ora distraindo-as com seus artifícios, enquanto ela conquistava mais uma. “Você é a criatura mais bela, mais cruel, mais terrível e mais sem escrúpulos que eu conheço, falta muito pouco para ser um daqueles cafajestes malditos e sedutores que eu tanto amo... acho até que por isso sou apaixonado por você”. Era isso o que Leon comentava, sempre com um risinho sarcástico, cada vez que a chefe lhe confidenciava alguma das intermináveis aventuras amorosas.

Apesar de reprimi-la, sabia que, no fundo, o amigo a admirava e a queria bem... um bem infinito, que incluía preocupação, cuidados e conselhos, algumas vezes seguidos, outras totalmente ignorados.

Quando Leon finalmente avistou o carro de Catarina, seu coração descompassou-se de vez. A pajero estava atrapalhando o trânsito, pois a motorista havia, simplesmente, parado no meio da via. Alguma coisa grave deveria ter acontecido, foi o que pensou antes de reunir as últimas forças que tinha para correr na direção.

Ao vê-lo pelo retrovisor, Catarina abriu a porta e desceu calmamente. Após estender-lhe a chave, sob o olhar incrédulo do amigo, pediu:

– Ache uma vaga para mim, Leon, que eu já to me estressando.

Sem acreditar no que ouvia, ele apertou os olhos, fez cara de ódio mortal e tomou abruptamente a chave das mãos irritantemente bonitas da chefe, dizendo:

– Você é mesmo uma vadia sem coração! Vá! Xô!

E expulsou-a, cumprindo a ordem com raiva e, ao mesmo tempo, alívio. Pelo menos essa maldita está inteira, pensou Leon, ao observar a amiga se afastando, com o andar lânguido, quadris bem feitos, costas largas e altivas.

Catarina não pôde deixar de rir da expressão de preocupação do amigo, reprimindo-se, logo em seguida, por abusar tanto de sua amizade. Parte da pressa já havia se dissipado e caminhou calmamente pelo shopping, observando algumas vitrines, até chegar à Diabolic.

Porém, assim que avistou a loja e a quantidade de pessoas que a aguardavam, o estresse quis apressar novamente os passos.

Seria a manhã de entrevistas. Deveria contratar, pelo menos, mais três funcionários para cobrirem a demanda de final de ano. E todo ano era aquele inferno! Contratos temporários, aborrecimentos corriqueiros.

A Diabolic era uma loja bem alternativa, que só vendia grifes badaladas, cujas roupas traziam sempre estilos diferenciados. Para incrementar ainda mais, Catarina havia colocado dois stands lá mesmo, um para a aplicação de piercings, outro para tatuagens. Os freqüentadores eram bem fieis. Um público diversificado, entre adolescentes fazendo gênero rebeldes sem causas, adultos estilosos, criaturas cults do mundo artístico e, principalmente, gays. Todos ricos, afinal nada dali era barato, e mimados, exigentes, alguns até teatrais e dramáticos, que exigiam um tratamento mais do que vip. Exatamente por estes motivos, Catarina não contratava qualquer pessoa, mesmo que fosse para ficar temporariamente.

Existia um verdadeiro paradigma a ser observado para ser funcionário da Diabolic. E as exigências eram tantas que trabalhar ali virara sinônimo de status no mundo mix, por assim dizer.

Em primeiro lugar, o requisito extrínseco: a figura deveria ser interessante. Nada de criaturas comuns, nem em estilo, nem em beleza. O padrão era ser fora dos padrões. Essa era a exigência número um.

O segundo requisito, esse intrínseco: a criatura deveria ser inteligente, culta, envolvente, carismática. Catarina odiava as pessoas sem sal e medíocres, era o que repetia sempre para a equipe de funcionários permanentes. “Os clientes não querem apenas um rostinho bonito para lhes paparicar, querem alguém inteligente, envolvente e culto para seduzirem... e serem seduzidos. Seduzam os clientes para que comprem, depois vocês se façam de inocentes e mandem eles pastarem. Assim sempre voltarão. Afinal, o ser humano adora ser enganado e rejeitado... é assim que fica de quatro e gasta bastante!”, ensinava a chefe.

Em terceiro lugar – e talvez, aos olhos da chefe, esse fosse o atributo mais importante – para trabalhar ali era preciso ser gay. Sim, porque a maioria, se já não possuísse os demais requisitos, facilmente os desenvolveria, ao contrário dos heteros que, segundo Catarina, insistiam em ser chatos, caretas, desinteressantes, comuns e sem estilo.

Sempre que Leon ouvia a terceira e última regra da casa olhava para Catarina fingindo-se incrédulo diante do cinismo. Um dia não resistiu e, cutucando a chefe, questionou baixinho e sorrateiramente, lembrando-a de sua contradição:

– É, mas bem que a senhora tem uma quedinha pelas mulheres caretinhas que aparecem na sua frente e termina traçando todas... elas também são chatas, desinteressantes, comuns e sem estilo?

E Catarina retrucou com a mesma ironia, respondendo sem qualquer culpa ou pudor:

– Na cama não, meu amor, mas isso você nunca vai saber, suponho eu!

Era uma verdade: Catarina tinha lá uma quedinha especial por iniciantes. Era assim que chamava as mulheres “desentendidas” que conhecia e com as quais se envolvia até conseguir trazê-las para a irmandade. Enquanto Leon a chateava, chamando-a de lésbica fria e calculista, ela se defendia dizendo que estava era fazendo uma boa ação, afinal, segundo a própria, nenhuma mulher que ficasse com outra já não teria um pezinho, nem que fosse bem discreto, no mundo homo, nem que fosse nas mais secretas fantasias e ela, como boa moça que era, apenas tratava de libertá-las – as fantasias e as lésbicas que existiam por trás das mulheres caretas que ela, tão astuciosamente, envolvia.

Apesar de tudo ser dito em tom de brincadeira, tanto Leon quanto Catarina sabiam lá do verdadeiro motivo dessa preferência quase cruel da empresária. Como grande parte dos traumas, este também vinha da infância e tivera até um nome, um nome bem bonito, assim como a dona: Leila.

Tudo havia começado com uma amizade ingênua, como ingênua é toda amizade que se faz aos seis anos de idade, despidos que são os seres humanos, pelo menos nessa época da vida, das malícias e artifícios tão próprios da idade adulta.
Assim, despidas de medos, de zelos, de maquiagens, Catarina e Leila cresceram juntas, não apenas como quase vizinhas de porta – a mansão da família de Catarina ficava no final da rua, ocupando quase todo o lado esquerdo, enquanto a casa modesta dos pais de Leila era a terceira, do lado direito – mas também como colegas de escola. E na mesma sala de aula faziam questão de ser, também, vizinhas, pois sentavam o mais próximo que podiam diariamente, ano após ano.

Os pais de ambas também eram amigos e incentivavam, achando até certa graça, o companheirismo e cumplicidade das duas que, feito encaixe, se completavam com perfeição, totalmente alheias à disparidade financeira que havia entre as famílias, totalmente indiferentes às diferenças físicas que possuíam. Fato era que se entendiam, se preenchiam.

Catarina sempre fora do gênero atleta e moleque. Adorava jogar bola, sujar-se de lama, travar as maiores e mais extravagantes disputas com os meninos do tipo “quem sobe na árvore mais alta, quem ganha na quebra de braço, quem junta mais bolinhas de gude?”, nos intermináveis duelos que ocorriam na areia do campinho de futebol, que ficava no final da rua, logo ao lado da casa de Catarina. Ali alcançara – e isso só viera a descobrir mais tarde – as melhores conquistas, dentre elas a admiração da mais fiel expectadora: Leila.

Enquanto Catarina crescia como a protagonista das maiores aventuras da rua, Leila era apenas a coadjuvante. Cuidava de assisti-la, acompanhando-a de longe, sempre sem se esforçar muito para ser a mais veloz ou a mais forte. Contentava-se com o fato de ter o título de melhor amiga da mais veloz e mais forte de todos: Catarina.

O forte de Leila sempre fora os estudos. Nisto, sim, era boa e deixava Catarina abismada. Leila era a maior cdf do colégio e Catarina, para descontar a falta de esforços da outra nos esportes e nas outras peripécias de rua, sempre se justificava diante das notas baixas, dizendo que ela, por sua vez, se contentava em possuir o título de melhor amiga da mais inteligente do colégio. E, muito embora Catarina também a considerasse a mais bonita, a mais delicada, a mais educada, a mais cuidadosa, a perfeição em figura de gente, essa opinião, pelo menos naquela idade, Catarina nunca chegou a revelar-lhe e nem tinha consciência do verdadeiro motivo. Preferia xingá-la de cdf de uma figa, sempre que Leila vinha com um dez enquanto ela ficava nos seis ou sete.

Os únicos momentos em que as duas se dedicavam com o mesmo afinco eram os dependidos nas brincadeiras de Barbie e Bob. E nem precisa dizer quem era o quê naquelas tardes infinitas de prazer, apesar de ingênuo, por ambas partilhado.

Os papéis sempre estiveram tão definidos! Era através da figura masculina do Bob, aquele boneco bonito, musculoso e loiro, que Catarina investia todo seu charme, todo seu poder inato de conquistadora, todo seu desejo, ainda infantil e tosco, de paixão e conseguia demonstrar, sem consciência plena do que se passava, todo seu encantamento e devoção pela sua eterna Barbie: Leila.

Enquanto isso, a Barbie se permitia ao luxo de ser galanteada, conquistada, seduzida e acariciada pelas mãos daquele tão querido e estimado Bob, mãos de plástico, é bem verdade, mas que traduziam o desejo nada artificial da criança que as manipulava. Leila se sentia, também, enternecida, apaixonada, envolvida, tocada, naquelas tardes onde, através dos bonecos, interpretavam os verdadeiros sentimentos, as inconfidenciáveis vontades.

O envolvimento pela brincadeira – e pela realidade, na verdade, – era tanto e tão intenso, que, as duas, mesmo sem perceber, na medida em que o tempo passava, se tornavam as réplicas, quase fieis, dos queridos bonecos de infância.

Catarina tornou-se uma adolescente de porte atlético, jeito meio moleque, musculatura aparente e invejável, cabelos curtos, loiros e mãos quase másculas, contrastando com a perfeição feminina do rosto que ostentava os únicos traços que lhe diferenciavam bastante do Bob. Até as roupas eram parecidas. Apesar das opiniões nada favoráveis dos pais, utilizava modelos despojados, abusava das calças jeans e das camisetas que deixavam os ombros aparentes e os braços mais torneados.

Enquanto isso, Leila aderiu ao estilo Barbie. Os cabelos longos e castanhos claros emoldurando o rosto bonito de nariz afilado, de lábios bem feitos e de olhos amarelados, amendoados, destacados por cílios longos e escuros e por sobrancelhas impecavelmente talhadas. O corpo, então, nem se fala. Logo adquiriu formas muito femininas, até precoces para a idade. Os seios perfeitos em tamanho e formato, a cintura fina, mais acentuada ainda pelos quadris largos, as pernas longas e torneadas, o porte delicado, a pele de tonalidade ímpar, coberta por uma penugem dourada que a fazia reluzir quando se bronzeava. Essa era a réplica mais perfeita da Barbie, de sua Barbie, pensava Catarina já menos inocente, aos dezesseis anos de idade.

Naquela época os bonecos foram guardados, enquanto os sentimentos despertados e demonstrados através deles, foram, por sua vez, escondidos, trancafiados. Nunca tocaram no assunto.

Substituíram as brincadeiras por intermináveis conversas, confidências, saídas para cinemas, sorvetes, praia, reclamações pela falta de liberdade que tinham, pelas broncas que levavam dos pais; trocaram os dias de infância, quase sempre curtos demais para as brincadeiras e vividos com pressa extrema, por dias outros, esses longos e saborosos, vividos com mais maturidade, dias que passavam juntas estudando ou simplesmente se curtindo e que, quase sem perceber, se transformavam em noites quentes, em que dormiam juntas, na mesma cama, com as desculpas mais esfarrapadas do mundo, dentre a de que assistiriam Tela Quente juntas, pois passaria um filme de terror e ambas tinham medo de assisti-lo sozinhas. Era esse o modo de se sentirem próximas, até onde o mundo as permitia.

E tudo isso viveram e sentiram em silêncio, silêncio compartilhado. Era como se tivessem um segredo que nem para si mesmas podiam revelar: era esse o trato, silenciosamente travado.

E tudo ia muito bem até chegar o primeiro namorado de Leila. E, é claro, foi a Catarina que confidenciou o primeiro beijo. Mas a amiga, de súbito, sentiu-se roubada. Era essa – e nenhuma outra! – a palavra que lhe secou a garganta. Sim, pois o primeiro beijo de Leila era para ser com ela, era pra ser dela!

E só então Catarina deu-se conta do verdadeiro sentimento que lhe povoava, e deu-se conta com espanto, com desespero, com pavor, sem muito jeito, sem muito disfarce.

Leila, por sua vez, a percebeu contrariada e também se deu conta do frio nas próprias mãos, da cara de culpada ao contar para Catarina toda aquela enrascada na qual havia se metido. Sim, porque nem gostava tanto do rapaz, mas sentiu-se, mesmo sem consciência exata do porquê, na obrigação de namorá-lo. As outras amigas já lhe cobravam isso, os pais também. Aquela amizade com Catarina já estava ficando estranha, era o que vinha ouvindo ultimamente e ela, fraca, simplesmente, cedeu. Beijou e foi beijada, com certo asco, sem qualquer vontade ou jeito.

Mas agora – e Leila continuava a contar, meio sem graça, constrangida – já passeavam de mãos dadas e aprendiam a beijar juntos. E Catarina, diante daquela confessada traição, sentiu-se enjoada, revoltada, contrariada, mais roubada, roubada e roubada. Era essa a questão!

Os dias se passaram e Catarina afastava-se de Leila. Mal suportava encará-la, quanto mais vê-la ao lado daquele almofadinha babaca, como rapidamente o denominara, e isso estava se tornando uma constante pelos pátios do colégio!

Nem ela conseguia compreender a dimensão do ciúme que sentia. A amiga fora sempre tão sua e ela dela que não compreendia como outro poderia ocupar o seu lugar! Era inadmissível ser trocada, era inadmissível ser roubada, mas, acima de tudo, era inadmissível descobrir-se apaixonada por Leila!

E custou a entender e aceitar o amor que já existia ali, há tantos anos! Custou a perceber que amava sua Barbie desde que tinham apenas seis anos de idade! Custou a admitir que nascera para ser sempre o Bob, mesmo que aquela Barbie não a quisesse! Mas antes deveria saber se Leila realmente não a queria. Decidiu: perguntaria a ela, contaria sobre o que sentia, proporia tirarem os bonecos do armário, libertá-los daquela prisão e vivenciar os papéis em carne. Ela a queria tanto e não acreditava que Leila também não a quisesse.

Foi numa sexta-feira que Catarina explodiu. Haviam combinado de estudarem para a prova de segunda, na casa de Leila, durante o final de semana. Naqueles dois dias acharia coragem para dizer à amiga tudo o que sentia, numa tentativa de resgatá-la. Mas Leila, no final da última aula, lhe passou um bilhetinho dizendo: “Acho que não vai dar para estudarmos juntas nesse final de semana. Miguel vai almoçar lá em casa no sábado. Meus pais querem conhecê-lo. Se der, domingo a gente revisa. Não fique chateada, um dia você vai me entender. Beijo, Leila.”

Não, ela não ia entender! Aquilo era um absurdo! Definitivamente Catarina jamais trocaria a companhia de Leila pela de nenhum outro ser humano na face da terra e perceber que ela não faria o mesmo doía demais. Leila era quem precisava entender de uma vez por todas que o que tinham, isso sim era especial!

Odiou a amiga durante os exatos cinco segundos em que leu o bilhete, depois a olhou, ainda com olhos contaminados pela raiva, e, em seguida, levantou-se e arrastou-a para fora da sala de aula, onde lhe disse o que não conseguia mais calar:

– Olhe, Leila, eu odeio seu namorado, odeio seu namoro, odeio o fato de você trocar minha companhia pela dele, odeio o fato de seus pais quererem conhecê-lo e prestigiá-lo com um almoço, odeio estar me afastando de você, odeio estar te perdendo, odeio esse colégio, essas pessoas que nos olham pelo canto dos olhos e que fizeram você querer andar de mãos dadas por aí com o primeiro babaca que te apareceu e eu odeio, acima de tudo, o fato de ter que te dizer o que você já deveria saber: eu amo você! Pronto.

Os olhos de Leila restaram incrédulos, a boca infantilizada pelo choro, o rosto vermelho pela vergonha, pelo receio de que outras pessoas tivessem ouvido aquela declaração tão passional e impulsiva quanto a dona das palavras proferidas. Teve vontade de sumir. Desejou que Catarina jamais tivesse dito aquilo. Definitivamente não queria ouvir! Agora não saberia o que fazer, dali para frente.

Sem intenção alguma de magoar Catarina, mas simplesmente compelida pela necessidade quase vital de sair dali, deu as costas e correu. Desapareceu pelo pátio do colégio, entre as plantas e a grama verdes, entre as pessoas alheias e estúpidas, e chorou, chorou e chorou, enquanto continuava a correr feito louca.

Essa foi a última vez em que se viram. Os pais de Leila logo ficaram sabendo do ocorrido e proibiram a filha de freqüentar a rua, mudaram-na de escola e, meses depois, mudaram-se de casa. Cortaram até as relações de amizade com os pais de Catarina, que ficaram mais horrorizados com a atitude dos pais de Leila do que com a atitude da própria filha. Afinal, conheciam Catarina e não ficaram muito surpresos com a audácia e paixão da filha. Aliás, foram os únicos que deram sustentáculo àquela adolescente que se descobria apaixonada e rejeitada pela melhor amiga.

Os anos passaram e Catarina nunca se recuperou do ocorrido. Leon chegara a essa conclusão. Era, há muitos anos, seu melhor amigo e conselheiro. O único para quem contara aquela história boba de adolescente, como classificara a personagem principal. Segundo ele, vinha daquele episódio o gostinho especial que Catarina tinha pelas mulheres “reprimidas”. Ela queria era vingança, embora negasse sempre. Queria, ainda que inconscientemente, provar que era capaz de arrancar os sentimentos e desejos mais escondidos de qualquer hetero que se pusesse a sua frente. Na verdade, tentava resgatar, em cada uma delas, a eterna Barbie. Era essa a análise do amigo.

“Você se tornou um Bob cafajeste, irracional e nada ingênuo, Catarina. A Barbie original não apreciaria em nada sua conduta, meu bem, pode apostar”, era a realidade que Leon lhe mostrava, tentando convencê-la a mudar, mas Catarina apenas escutava calada, enquanto desejava em silêncio: “Ela que se dane! Aliás, elas que se danem! São todas um bando mulheres fracas, frustradas e covardes que só têm o que merecem.”
Quando Catarina finalmente entrou na loja, o burburinho provocado pelos pretensos empregados temporários que aguardavam uma entrevista tornou-se mais do que audível; inconveniente. Todos a olharam, alguns sabendo exatamente de quem se tratava, outros admirando a beleza, apesar de desconhecê-la, e ainda havia aqueles que se encarregavam de questionar, de forma nada discreta, quem era aquela, se era, finalmente, a tal dona da Diabolic, Catarina Monteiro de Bragança.

Fato era que se tornara uma empresária muito bem sucedida não apenas por seu talento inato para a administração de empresas, aliado ao estilo próprio e audacioso, mas também – e isso não se pode negar! – pelo prestígio da família, pelo peso do sobrenome. Afinal, os Monteiro de Bragança tinham tradição e muito dinheiro. O pai e os tios eram donos de todos os shoppings da cidade, inclusive daqueles, onde Catarina tinha várias lojas. A Diabolic, entretanto, fazia questão de gerenciar pessoalmente. Era a favorita.

Passou feito um raio e logo se trancou em sua sala, tentando ignorar aquela confusão que se instaurara na loja. Em seguida, ligou para o balcão em busca de Leon. Ele havia acabado de chegar e ainda estava esbaforido.

– Leon, por favor, organize esse pessoal aí fora, criatura! Os clientes devem estar incomodados com esse barulho. Quantas vezes vou ter que dizer: receberei um a um, desde que marquem hora... e que cheguem exatamente na hora! Não quero esse alvoroço aqui!

– Pode deixar, Sua Alteza! – e Leon colocou o telefone no gancho, puto da vida!

Ele já havia tido o cuidado de selecionar alguns currículos e chamado para a entrevista apenas aqueles que tivessem alguma probabilidade de ser contratado. Conhecia os requisitos impostos por Catarina. Havia analisado foto por foto, as atividades desenvolvidas anteriormente, o perfil de cada um e, ainda assim, aquele monte de gente havia chegado ali, mesmo sem ser chamado! Um inferno! E ainda saía, aos olhos da chefe, como incompetente.

E todo ano era a mesmíssima coisa! Todos queriam trabalhar ali, afinal, além de ser sinônimo de prestígio dentro do mundo gay, o salário pago pela Diabolic era, simplesmente, o melhor que se recebia em termos de loja. Catarina justificava a diferença dizendo que exigia muito mais do que o trabalho de seus funcionários. Exigia o charme, a ousadia, a sensualidade, a personalidade... a amizade. E conseguia.

A equipe oficial era formada por dez pessoas: Leon, o sub-gerente; Desirré, a encarregada de receber e paparicar os clientes, direcionando-os, segundo os estilos, a um determinado vendedor – pois era assim que a loja funcionava –; Priscila, Lola, Pablo e Juliano, o quarteto de vendedores especializado em moda punk, clubber, gótico e fashion-chick, respectivamente; Vanessa, a tatuadora; Jane, sua assistente – e vitrine ambulante de suas tatuagens – e, finalmente, Cássio e Gunter, os encarregados dos piercings. E todos eram singulares, cada um à sua forma.

Leon, que já fora devidamente descrito, dispensava qualquer comentário. Era o mascote de todos, inclusive da dona.
Desirré era uma ruiva voluptuosa e com ar arrogante, desconcertante, sedutora por natureza e, por isso mesmo, contratada exclusivamente para atrair os clientes, convidá-los a provarem tanto quanto quisessem da Diabolic até fartarem-se ou encontrarem exatamente o que procuravam.

Priscila era a mais jovem, uma adolescente bem undergound, punk legítima, que usava todos os acessórios de couro e aço que podia nos braços alvos e delicados que possuía. O escuro das vestes e dos cabelos contrastando com a palidez do rosto jovem, quase infantil.

Lola era uma porra-louca. A legítima patricinha aloprada, rebelde sem causa, filha única, rica e revolucionária de uma família extremamente convencional, à qual afrontava com sandálias pink, com pulseiras fluorescentes, inúmeras fivelinhas coloridas que prendiam os cabelos lisinhos e ralos, e, principalmente, com os piercing e tatuagens de motivos infantis. Só para exemplificar, tinha as superpoderosas tatuadas nas costas e as três ficavam à mostra, logo acima da barra das saias brilhosas que usava, e isso, por si só, já diz um bocado da figura.

Pablo era, talvez, o mais esquisito de todos. Um ser muito tímido e quieto, de cabelos muito lisos e compridos. Vestia-se sempre de preto, pintava fortemente os olhos, não ficava exposto a qualquer raio de sol – e por isso conservava-se quase fluorescente –, usava aqueles anéis enormes, de prata, com caveiras, cruzes e outros adereços que lembravam a morte, pois era gótico e, como os demais, cultuava mais o final da vida do que a própria vida. Porém, era extremamente culto, conhecedor profundo de muitas coisas, apesar de a maioria não ter muita utilidade ou sentido. Para arrancar dele um sorriso era preciso muito, mas quando conseguiam, ele era um doce.

Juliano era a legítima bicha afetada. Tinha um rosto perfeito, de traços extremamente femininos e delicados, assim como os gestos. Era uma verdadeira lady. Com certeza – dizia Catarina - tinha alma e porte de madame. Aquelas de antigamente, bem clássicas, frescas e mimadas, que usariam com o maior gosto roupas esvoaçantes, espartilhos bem apertados, anáguas e, principalmente, chapéus enormes, femininíssimos, de abas mais do que largas. Era o preferido das senhoras que freqüentavam a loja e procuravam um estilo fashion-chick e não por outro motivo, era quem ocupava justamente o posto de vendedor deste tipo de linha. Era também o preferido dos machões musculosos, os populares bofes que freqüentavam academias durante os dias e boates gays durante as noites. Fazia sucesso com seus trejeitos e belos olhos azuis piscina – era essa a cor que dizia trazer na íris, nada mais, nada menos do que um singelo azul piscina e ai de quem dissesse que eram apenas azuis.

Vanessa e Jane eram namoradas há anos e traziam nos corpos, em forma de tatuagens idênticas e multicoloridas, a semelhança que lhes faltava em formas concretas. Vanessa fazia o estilo despojado, meio menino, meio homem mesmo. Era muito alta e isso favorecia a imponência. Usava os cabelos bem curtos e as roupas bem folgadas. As mãos eram grossas, assim como o resto do corpo robusto. Tinha um rosto até bonito, mas o forte eram os músculos. Era a favorita das patricinhas enrustidas que freqüentavam a Diabolic, para o completo ciúme de Jane.

Esta, por sua vez, fazia o estilo mignonzinha. Era sensível, frágil, delicada. Usava quase sempre vestidinhos leves, de alcinhas, que davam uma feminilidade impar ao corpo pequeno, apesar das inúmeras tatuagens que o ornamentavam. Era delicadíssima. Até a voz era suave e discreta. Um anjo, classificava Vanessa, que era alucinada pela namorada. As duas se entendiam muito bem, apesar de serem extremos em formas e gestos. E essa mistura que se completava lembrava um pouco a Catarina sua antiga amiga de colégio: o par tão ímpar que formavam.

Cássio era o único homem da loja que não dava pinta. Era um típico moreno alto, bonito e sensual, digno da música dos anos oitenta que tocou de enjoar. Ainda em conformidade com a letra, fora a solução do problema de muitas mulheres carentes, jovens e de meia-idade, que procuravam um cara carinhoso e discreto. Fora, durante muito tempo, um perfeito amante profissional. Até que, um belo dia, pela primeira vez, topou um programa com outro homem. Um cara muito carismático e envolvente, de cabelos quase brancos de tão loiros, pele avermelhada, corpo quente, um verdadeiro gentleman, recém chegado ao Brasil, importado da Alemanha. Depois, a transa – que foi muito boa, para a surpresa de Cássio – virou amizade, companheirismo, carinho, cuidados e, finalmente, amor. Coisas que nunca havia experimentado. Logo se apaixonaram. Cássio se permitiu envolver além do esperado e abandonou a vida injustamente considerada fácil, sendo muito bem-vindo ao mundo gay. O nome de seu salvador era Gunter e todos da loja demoraram bastante a aprender a pronunciar.

Era essa a equipe permanente da Diabolic. E todos agradeciam àquela permanência. Adoravam seus trabalhos, seus salários, adoravam-se entre si e adoravam a chefe mor, Catarina. Ela era, além de chefe, amiga e eles sabiam disso. Sentiam isso. Contavam com isso sempre.

Leon, ainda irritadíssimo, cuidou de despistar os candidato às vagas com o máximo de polidez que pôde. Organizou uma fila, anotou nome por nome e marcou uma entrevista a cada meia hora, dizendo, já sem muita classe:

– Agora dêem o fora daqui, vão passear no bosque, vulgo shopping, e só me apareçam na hora exata!

Todos obedeceram e saíram, exceto a bola da vez, que era uma moça, de origem oriental, com certeza, que fora a primeira a chegar e que acabara de entrar na sala de Catarina.

Leon estava se recompondo. Desirré havia lhe trazido um copo d’água e Juliano o abanava com um leque imenso, seu companheiro de traje. Enquanto isso, Lola e Priscila riam de sua cara vermelha e suada, lembrando de que, qualquer dia destes, enfartaria.

– Deixe de agonia, criatura! Catarina não vive sem você e você não vive sem levar uns esporros dela! Tranqüiliza, meu. – era Lola quem apaziguava, com linguagem mais do que coloquial.

– É isso mesmo, Leon. Você está parecendo um louco, eufórico. Sua maquiagem já ta toda borrada – era a vez de Priscila, rindo da cara de contrariado que o amigo fez ao ouvir a palavra “maquiagem”.

– Eu não estou maquiado, meu amor... essa é a tonalidade original e perfeita da minha cútis. Nada de base, nem pó. Logo, não pode estar nada borrado e você não me chateie, fedelha sem coração. Não está vendo o meu estado?

Foi quando as atenções voltaram-se para uma mulher que entrou na Diabolic. Era uma criatura bonita, de formas longilíneas e delicadas. Os olhos de um castanho claro translúcido, muito bem pintados, chamaram a atenção de todos, mesmo do único que não chegou a desejá-la: Leon. Enquanto isso, as outras três – que não apenas admiravam, mas curtiam aquela espécie – permaneceram inertes, nada discretas diante da visão. Foi Leon quem pigarreou e interpelou-a, pensando-a cliente:

– Podemos ajudar?
– Sim, procuro por Catarina.
– Algum assunto pessoal?
– Não, apenas sobre as contratações.

Nesse momento, o silêncio se fez. Não era uma compradora, era mais uma tentando tornar-se vendedora. Lola e Priscila instintivamente direcionaram os olhares para Leon, numa tentativa de frear um novo ataque do amigo, repreendendo-o. Dessiré, por sua vez, não participou da tentativa, pois quedou-se absorta, apreciando a bela mulher a frente, medindo-a com os olhos verdes de tigresa. Depois de alguns segundos de desconforto, ele questionou, fingindo calma:

– A senhorita, por acaso, teve currículo selecionado?

– Não, na verdade não cheguei a deixar currículo por aqui, apenas soube que hoje seria o dia das entrevistas e...

Ela ia continuar, alheia a toda a repercussão de suas palavras, revestida apenas de ingenuidade, mas Leon perdeu toda a paciência. A vontade que tinha era apenas uma: a de esbravejar um “o que é que a senhorita está pensando que isso aqui é, uma pocilga? Existe ordem nesse pardieiro, meu bem! Não é assim que a banda toca não!”, mas Desirré – que se não lia o pensamento do amigo, o conhecia a ponto de supor o que estava por vir – intercedeu a tempo e, ensaiando uma explicação mais solícita à bela mulher, questionou:

– Como é seu nome? – e a ruiva sorriu, com a polidez e sensualidade tão próprias de suas recepções.

– Leila... Leila Prata – e o nome pareceu brilhar nos lábios cheios e bonitos, assim como as argolas, ironicamente de prata, perdidas entre os cabelos castanhos e compridos. Lola e Priscila não perderam nenhum detalhe daquela anunciação quase divina.

Leon segurou a fronte alguns segundos, fechando os olhos. Perplexo, raciocinou o pouco que pôde. Leila Prata... não, não poderiam existir duas criaturas com aquele mesmo nome e o pior, com aquela mesma pose de Barbie, tão capaz de enfeitiçar todos os Bobs – agora Kens – daquela loja, inclusive a mais exigente de todas, Catarina!.

Concluindo em silêncio, abriu os olhos, deu as costas e rumou para a parte administrativa da loja, esbaforido. As três ficaram sem entender nada, e Leila, intimamente, desejou não ter entendido também. Porém, por mais que não quisesse lembrar, havia sim motivos para aquele estardalhaço: “Será que ele sabia da história? Aliás, será que todos dali sabiam?” E quase se arrependeu de ter ido procurar Catarina. Ainda mais numa situação humilhante daquelas: pedindo-lhe emprego! Porém, o orgulho que se calasse. Não tinha muita escolha. Esperaria com toda a humildade de que fosse capaz para ser recebida por sua antiga amiga e esperaria mais ainda: que ela a perdoasse e a ajudasse.

Mas o receio de ser mal tratada, quem sabe enxotada dali fazia com que o estômago se contorcesse. A vontade e curiosidade de rever Catarina, por sua vez, faziam com que as mãos suassem frio, o coração descompassasse, os olhos brilhassem. Afinal, dezesseis anos haviam se passado e o tempo muda muita coisa, muita mesmo. O fato dela estar ali era a maior prova disso.

A vida havia dado muitas voltas desde que Catarina ousara contar, em voz alta, o segredo que partilhavam, dando-lhe nome e som: amor. Aquela declaração, aquele sentimento transformado em palavras, fora tão forte, tão assustador, tão inconcebível, ao menos, aos ouvidos e ao coração de uma adolescente de dezesseis anos que não teve como não correr, fugir, esconder-se!

Nada daquilo deveria ter acontecido. Catarina e sua impulsividade... Catarina e sua sinceridade! Leila a culpou durante anos pelo desenlace. Tentou despejar na amiga o peso da própria consciência pelo que havia feito. Afinal, será que Catarina não sabia que era proibido? Será que não sabia que ela já sabia de tudo, sempre soubera, mas não queria... não podia ouvir, nem sentir? Por que tinha que jogar na sua cara aquela verdade tão vergonhosa, tão incabível! Se não o tivesse feito, talvez as duas fossem amigas até hoje.

Era essa a conclusão covarde de Leila, a que tirou de sua vida grande parte da alegria, a que a fez permitir que os pais a afastassem da amiga, a que lhe impulsionou a jamais procurá-la para pedir desculpas, para revê-la, para abraçá-la como desejava todas as noites, a que a compeliu a casar-se com Miguel, mesmo contra a vontade dos pais que, desde aquele fatídico primeiro almoço, foram capazes de perceber o quanto aquele “sujeitinho medíocre e sem caráter” era desmerecedor da filha. Logo assim o reconheceram e o classificaram.

Agora ali estava. A percepção dos pais sobre Miguel fora perfeita: era, realmente, medíocre e cafajeste! E Leila sentia o peso da decisão precipitada, da saída descabida, da fuga desarrazoada.

O marido não conseguia passar mais do que três meses num emprego. Bebia demais, falava demais, era mulherengo e sem qualquer ambição. Por isso, ela teve que trancar a faculdade e começar a trabalhar os dois horários. Não sobrava tempo nem dinheiro para os estudos e sua vida estava um caos completo. Sentia-se frustrada em todos os aspectos humanamente possíveis.

Os pais lhe negaram apoio, pois alegaram ter avisado e ela quase berra na cara deles “a culpa desse casamento maldito é exclusivamente de vocês!”. Mas calou-se. No fundo não era. A culpa era apenas dela, de sua fraqueza e covardia... de sua eterna fuga.

Um belo dia abriu o jornal e deparou-se com Catarina. Era a manchete. “A belíssima Catarina Monteiro de Bragança, empresária do ano”. O coração apertou-se e não foi por inveja, despeito, ou pela ironia da vida, foi por saudade. Saudade daqueles olhos tão fortes, tão escuros, que sempre procurava para captar alguma segurança, fosse nas horas de prova, fosse nas brincadeiras de rua, fosse nos desafios da adolescência; saudade daqueles cabelos loiros, curtos, desalinhados, que tantas vezes prendeu entre os dedos, ora em forma de afagos, ora em forma de puxões repressores; daquele rosto tão familiar, tão querido, enfim, saudade enorme daquela criatura que nunca saiu de sua cabeça, nem de seu coração.

E por que não procurá-la? A desculpa para revê-la e aproximar-se seria perfeita: estava realmente precisando de emprego e lá pagavam muito bem, sabia. Poderia voltar para a faculdade, terminar de cursar Direito, realizar-se, pelo menos, profissionalmente. Era isso o que queria, pelo menos isso!

Leila sabia que sua aparição, aos olhos de Catarina, seria uma quase imperdoável tentativa de tirar vantagem. E não deixava de ser isso também, admitia. Era até mais fácil para si mesma pensar assim. Mas, ao lado dessa certeza, Leila sabia também do imenso poder da amiga de perdoar. Quem sabe a perdoaria, tanto por seus atos de dezesseis anos atrás, quanto pelo fato de apenas procurá-la agora, diante das dificuldades que enfrentava. Forçar-se-ia a ser o que, normalmente, não era: humilde. Trataria de engolir o orgulho e pediria perdão. Na verdade, seria até cômodo unir o útil ao agradável: ganharia bem e trabalharia ao lado de alguém que simplesmente adorava. Resgataria a faculdade e a amiga, e porque não? Que mal haveria nisso? E ela mesma tentava se convencer de que a atitude não era digna de reprovação, fingindo uma ingenuidade que já não tinha, aos trinta e dois anos de idade.

Quando Leon entrou no escritório de Catarina, esbaforido, interrompendo sem qualquer pedido de licença a entrevista com aquela mulher tão interessante – o que era simplesmente inadmissível, pensou a chefe! – ela já esperava uma bomba, mas não tamanha:

– Nina, Leila esta aí ... Leila Prata, a Barbie! – Esse foi o modo mais preciso que Leon encontrou para definir com pressa extrema a mulher que esperava para vê-la.

Catarina quase se engasgou. A moça oriental comprimiu ainda mais os olhinhos já tão puxados, sem entender absolutamente nada. A chefe pediu licença à jovem, dizendo-lhe que estava contratada. Leon ficou boquiaberto, pois era a primeira a ser recebida! Porém, entendeu o motivo da pressa e da contratação. Catarina deveria estar mais aturdida do que ele, claro, e queria que a sala estivesse vazia para que ela pudesse pensar, respirar, se preparar para receber Leila. Parecia precisar de ar!

A moça saiu feliz da vida e quando a porta fechou Catarina esbravejou:

– Leon, espero que você não tenha se enganado!

– Impossível, minha cara... além do nome, a cintura de Barbie e o jeito manso de olhar a denunciaram. É ela sim! Pode retocar a maquiagem... tentou brincar Leon, ainda que sem esperança de trazer qualquer descontração àquele momento.

Catarina sequer fez menção de rir da piada. Mandou que ele saísse e pedisse a Leila para entrar. A receberia. Quase não conseguia suportar os segundos que a separava da explicação: afinal, para que Leila a havia procurado depois de tantos anos? A faria responder assim que entrasse.

E Leila não tardou a entrar. Bateu à porta suavemente, antes de abri-la. Pediu licença, diante dos olhos impávidos de Catarina e sentou-se. A falta de intimidade entre duas pessoas que foram tão íntimas denunciava o passar do tempo. Ele tinha esse poder quase intransponível.

– Ora, ora, se não é a minha mais do que querida amiga, Leila... que bons ventos a trazem? – foi Catarina quem interrompeu o silêncio com um tom tão sarcástico do qual nem mesmo se sabia capaz.

Leila, pela primeira vez, duvidou da capacidade da amiga de perdoar. Ela havia mudado sim e muito! Estupidez não contar com a intensidade da mudança. Catarina já não tinha dezesseis anos, onde tudo era perdoável, justificável. Agora era uma mulher, plenamente capaz de nutrir rancor, ódio e tantos outros sentimentos desconhecidos a uma criança. E Leila, temerosa, preferiu os olhos infantis de Catarina, os mesmos que conhecera profundamente e que ficavam em festa cada vez que chegava, preferiu a meiguice deles à mágoa e raiva que via, tão nitidamente agora, nos olhos negros que a fitavam. Definitivamente não eram os mesmos, apesar de continuarem imensamente bonitos. Aliás, Catarina, definitivamente não era a mesma, apesar de ter se tornado mais bonita ainda.

Sem a certeza de que deveria mesmo declarar que procurava emprego, Leila titubeou. Considerou a hipótese de mentir, dizer que tinha passado por ali simplesmente para revê-la, matar as saudades – e isso não seria, de todo, uma mentira – mas logo se lembrou de que não poderia sair-se com essa. Havia comentado lá fora sua intenção e, querendo ou não, agora teria de enfrentar a fúria de sua já não tão amiga. Com a pressa que pôde, falou:

– Eu estou precisando de emprego e achei que talvez você pudesse me ajudar!

Esse foi o modo mais brando e simples que Leila achou para justificar sua presença ali. Mas, diante das próprias palavras, até ela assustou-se. O que havia acabado de dizer era algo totalmente distante da realidade, uma frase fria, desprezível, um absurdo, uma mentira! Mais uma! Só então entendeu que não era nada daquilo o que realmente queria, não era a falta de emprego, as dificuldades financeiras, a faculdade, nada disso! Nenhuma dessas desculpas – sim, porque haviam acabado de virar meras desculpas! – seria capaz de compeli-la daquele jeito, se por trás de toda a história não houvesse a saudade. Sim, era esse e só esse o motivo: a saudade, imensa, dolorida, cheia de culpa, impregnada de remorso... sua saudade. Sincera e quente.

Os olhos de Catarina não tiveram como disfarçar a surpresa, seguida de decepção. Então era isso! Necessidade!, pensou. Preferia ter morrido sem rever Leila a sabê-la procurando-a por mera necessidade e o pior, de cunho financeiro. Era o fim! O cúmulo! Mas daria o que ela precisava, calculou cruelmente a empresária.

Leila percebeu a decepção nos olhos negros de Catarina e, por segundos, os reconheceu com alívio. Talvez ainda lhe quisesse algum bem, senão, por que teria se decepcionado? Mas logo em seguida, os olhos retomaram a expressão cínica e desconhecida.

Catarina a olhou de forma penetrante, parando mais do que o necessário no busto, no decote, depois deslizou a vista descarada pelo pescoço de Leila, passando pela boca, pelos lábios desconcertados e Leila sentiu-se estranhamente invadida, conturbada. Por fim, Catarina olhou-a nos olhos e só então Leila entendeu o motivo daquela cena. E queria afrontá-la, desprezá-la, humilhá-la. As palavras que se seguiram só comprovaram a tese:

– Eu até lhe daria o emprego, Leila, em nome dos velhos tempos, afinal você já me fez tantos favores, não é mesmo? – e Leila soube exatamente ao que Catarina se referia – mas... – fez uma pausa, fingindo suspense, deixando os lábios sorrirem sorrateiramente e de forma quase perversa – mas, meu amor, esta casa tem algumas regras das quais eu não posso me esquivar, inclusive por pregá-las, diariamente, entre os meus funcionários, exigindo isso deles, me entende?

Leila apenas escutava, incrédula. Fez que “sim” com a cabeça aguardando mais ironia da parte de Catarina. E ela continuou, ainda insultando Leila com o olhar:

– Regra número um: meus funcionários, aliás, principalmente minhas funcionárias – e frisou demasiadamente o pronome possessivo, provocando Leila – têm de ser criaturas bonitas, gostosas, comestíveis, enfim, pessoas que os clientes olhem e desejem possuir mais do que às próprias roupas que procuram comprar aqui. Nesse aspecto, você faz o estilo... e Catarina deixou-se soar vulgar, olhando Leila como se quisesse devorá-la.

E Leila, por óbvio, percebeu e entendeu perfeitamente a necessidade de Catarina de magoá-la. Talvez fizesse o mesmo, caso a situação fosse inversa. Em seguida, Catarina respirou fundo, já se sentindo mal por fazer aquilo, contendo a vontade de proteger Leila, abraçá-la, saudá-la com todo o amor que ainda sentia. Mas o ódio, pelo menos naquele instante, foi maior e mais merecido do que o amor e continuou:

– Regra número dois: têm de ser interessantes, envolventes, excitantes, apaixonantes, sedutores... e nisso, Leila, você também se sairia muito bem, afinal não é toda criatura que consegue seduzir outra com apenas seis anos de idade...

E, nesse momento, Leila sentiu-se o pior de todos os seres por causar tanta tristeza em Catarina. Sim, porque era tristeza o que os olhos negros demonstravam naquele instante. Eles estavam brilhando, beirando, talvez, um choro reprimido há tantos anos.
E Catarina realmente esforçou-se para não chorar. A tristeza, apesar de julgá-la e jurá-la consumida, ainda existia e estava ali, bem ali. Sentiu-se novamente a adolescente de dezesseis anos que assistiu a amiga correndo pelo pátio, feito uma louca, fugindo de um monstro. E o monstro era ela, que se disse, naquele instante, apaixonada! Isso ainda doía bastante e Catarina respirou fundo para continuar.

– Agora a terceira regra e a única que é totalmente inflexível: meus funcionários têm de ser gays, assumidos, despudorados, pervertidos, mundanos, felizes, sinceros, realizados... é que odeio criaturas recalcadas, reprimidas, fracas, caretas, covardes, cheias de pudores, infelizes e fracassadas. Infelizmente a maioria dos heteros é assim. Não sei se é o seu caso, Leila, não me interprete mal – e nesse instante, Catarina retomou todo o ar de crueldade e superioridade, aquela seria a oportunidade de ofendê-la, de dar-lhe o troco e o faria, custasse o que custasse! – mas... ainda que não o seja, enfim, ainda que você seja uma hetero bem feliz e satisfeita, você não é lésbica e eu não posso abrir uma exceção dessas. É uma pena! Aliás, sempre foi uma pena. Eu lamento, como sempre lamentei, o fato de você não apenas não ser, mas, sobretudo, fugir dos gays. Eis o impasse, nosso eterno impasse, novamente, entre nós.

Leila entendeu perfeitamente o recado e, dessa vez, foi quem sentiu ódio. Não apenas de Catarina, por jogar na sua cara aquelas coisas todas, mas, principalmente por considerar-se recalcada, reprimida, fraca, careta, covarde, cheia de pudores, infeliz e fracassada. Ela havia sim se tornado aquilo. Tudo aquilo, exceto hetero, foi esta a conclusão repentina que a tomou naquele instante de humilhação e raiva.

Se sentia gay, como sempre se sentira e nada, nem mesmo o casamento, a fuga, o tempo, nada havia a transformado, como gostaria. Mas isso Catarina não saberia jamais.

Sentindo o pulso acelerado, o rosto vermelho, engoliu em seco e questionou, compelida simplesmente pela necessidade de conseguir o que queria: reaproximar-se de Catarina:

– E quem precisaria saber que eu não sou gay? Se é esse o problema...

– Leila, as pessoas daqui não são estúpidas. Aliás, já ouviu dizer que um bicho conhece o outro? Da primeira vez em que você levasse alguma cantada de uma das nossas clientes e fizesse aquela cara de pânico tão inesquecível para mim, todos perceberiam!

Agora Catarina parecia ter baixado um pouco a guarda e tentava realmente justificar a negativa em conceder-lhe o emprego. Aproveitando a brecha, Leila ousou:

– Eu sei disso, Catarina, e poderia muito bem me controlar... sei lá, fingir que acho isso normal!

E, mesmo sem querer, Leila terminou irritando novamente Catarina com o comentário. Quando percebeu a besteira que havia dito já era tarde, Catarina já estava novamente ríspida, munida dos olhos desconhecidos e contrariados.

Leila quis corrigir-se e terminou enrascando-se ainda mais:
– Catarina, eu não quis dizer isso. Eu... – Leila gaguejava diante da mulher que, parecendo adquirir a consistência do mármore, permanecia inerte, dura, fria, branca, linda, esperando que findasse o comentário e continuou – ...você pode dizer a eles que sou gay e eu tentarei me comportar como tal.

Catarina não resistiu e caiu na gargalhada, questionando logo em seguida.

– Sei, sei... isso ta começando a ficar interessante. E o que você faria para convencê-los, Leila? Imitaria o jeito másculo de seu marido ou o meu? Não creio que você iria conseguir... – e ela começava a soar rude novamente.

– Não seja ridícula, Catarina, eu apenas tentaria não me assustar com as cantadas baratas de suas clientes, nem com as de suas funcionárias... – e Leila, ao concluir, pensou ter visto uma pontinha de ciúme nos olhos de Catarina, que realmente já começava a imaginar que alguma das meninas já deveria ter olhado para Leila com visível interesse, senão todas.

A empresária limitou-se a dizer, com objetividade e sinceridade:

– Eu não lhe exporia a isso, Leila. Não acho que você deva se submeter a esse tipo de coisa a essa altura da vida e depois de tudo...

Leila logo percebeu o que se escondia por trás daquela frase, daquele tom de voz e concordou com Catarina. Era tarde demais e simplesmente ridículo ter aberto mão do que tinham por medo dos comentários para agora se expor e o pior, sem estar realmente vivendo um relacionamento daquele tipo... deveria estar ficando louca ao propor uma coisa daquelas justamente para Catarina! Era, simplesmente, inconcebível!, pontificou em anuência.

Mas os olhos negros, de repente, adquiriram um brilho estranho de entusiasmo. Uma nova idéia fervilhando-lhe na cabeça e no coração. Um modo de proteger Leila, ajudando-a, resguardando-a e, ao mesmo tempo, permitindo uma reaproximação entre elas invadiu Catarina, feito um insight e propôs:

– A menos que eu diga... – e Catarina fez uma pausa para observar a reação de Leila diante do que viria em seguida. Não poderia perder nem um detalhe de sua expressão! – ... que eu estou me relacionando com você... esse é o único meio de todos se afastarem e até protegerem sua integridade física do ataque das clientes.

Catarina havia exagerado e sabia disso! Ninguém ali, nem clientes, nem os funcionários, atacariam Leila se ela não se permitisse a intimidades. “Mas... até que seria bem interessante fazê-la passar por aquilo. Ela merecia.” E Catarina, intimamente, também sentiu-se merecedora de receber o título de “amante” de Leila, ainda que fosse fictícia a rotulação.

Leila, surpresa consigo mesma, aceitou a proposta. Esforçou-se para não admitir para si um certo agrado em receber o título de protegida da toda poderosa... Como o mundo dava voltas! Foi impossível não lembrar do último título: o de melhor amiga. De há muito ambas sabiam que este nunca fora o verdadeiro – afinal, não era apenas a amizade que as unia – e, ainda assim, o sustentaram por anos... que mal haveria em inventar um novo e igualmente falso rótulo agora? Ambas tinham motivos. Ambas lucrariam com isso. Foi esse o pensamento, motivo da aceitação mútua.

Mas, antes que Leila pudesse ergue-se para sair, Catarina impôs mais uma regra e esta sem qualquer flexibilidade. Anunciou:

– Só mais uma coisa, Leila... os maridos de minhas amantes são terminantemente proibidos de passarem, sequer, diante dessa loja – Catarina frisou, com a intenção de provocá-la e continuou – disso eu não abro mão.

Leila quis afrontá-la por sua prepotência, por sua arrogância, por seu cinismo, e... principalmente por Catarina ter deixado tão claro que tinha amantes – esse plural foi, simplesmente, o fim!, pensou – e o pior, casadas! Isso era um absurdo! Um escândalo! Um abuso dizer-lhe aquilo e daquela forma! Pensou irritada, possessa... enciumada. Era isso o que sentia sim: ciúme! Ela mesma percebeu e deu o nome àquele sentimento. Em seguida, desejou por tudo na vida que Catarina não tivesse percebido ele, bem ali, estampado em sua cara de raiva. A contra-gosto, ficou calada e não cedeu ao impulso de mandá-la por inferno com sua loja, suas amantes, os respectivos maridos e seu dinheiro!

Se Catarina percebeu ou não todo aquele acesso silencioso de Leila, esta não soube dizer. Fato é que, depois de tudo o que fora dito e esclarecido, Catarina ergueu-se, aproximou-se e, em voz branda, finalmente fez-se conhecida de Leila, em olhos, boca, sorriso e mãos.

Aquelas mesmas mãos tão lindas e que há tanto tempo não tocava se estenderam no ar à espera das suas e Leila, mesmo sem jeito, as tomou. Catarina segurou as mãos finas e delicadas de Leila entre as suas com carinho extremo e disse:

– Desculpe... eu senti muito sua falta.

E Leila retribuiu o sorriso franco com outro, cheio de felicidade e alívio. O tempo passara sim e trouxera muitas mudanças. As marcas que já apareciam nos olhos de ambas quando sorriam, apesar de discretas, já diziam bastante sobre os anos. Mas, Leila concluiu, Catarina ainda possuía aquele imenso coração que, um dia, só teve espaço para ela, lembrou com pesar.

Catarina, por sua vez, limitou-se apenas a sentir novamente a suavidade daquele toque, a quentura daquela pele que ainda povoava o corpo daquela mulher tão bela que agora, finalmente, estava a seu alcance. Leila não era mais uma adolescente e Catarina percebia isso com certo encanto, com certa surpresa, apesar de ser tão obvio que não o seria depois de passados tatos anos. E havia se transformado numa mulher magnífica, como nem mesmo Catarina fora capaz de prever, apesar de todas conjecturas e projeções que fez durante todo aquele tempo.

Com uma saudade enorme, se envolveram num abraço e foi estranho captarem nos braços as diferenças trazidas pelo tempo. Era incrível perceber que todas as mudanças vividas por ambas ainda cabiam ali, entre elas, e que as duas ainda se encaixavam com a perfeição de sempre!

Catarina apertou Leila nos braços, sentindo o cheiro dos cabelos e provando-lhe a textura, afagando-os, como sempre fazia. E, ao menos eles, não haviam mudado, constatou com um sorriso. Continuavam longos, sedosos e cheirosos... o mesmo cheiro da infância. Foi inevitável lembrar-se de quantas vezes dormiu sentindo aquele perfume, enquanto abraçava a amiga na estreita cama de solteiro do quarto. Naquela época, o fogo que sentia em seu corpo tão jovem e ingênuo tinha como desculpa a temperatura da noite que insistia em continuar absurdamente quente, apesar do ar condicionado. E agora? Naquele instante? O que as aquecia? Catarina bem sabia que era o desejo.

Leila, por sua vez, de olhos fechados, contornou as costas de Catarina com as palmas das mãos. Percebeu que a musculatura que tanto admirava continuava ali, ainda mais trabalhada. As costas haviam se tornado mais largas e, ao toque, instantaneamente Leila aprovou a mudança. Sentiu-se guardada e protegida como há tantos anos não se sentia. Em seguida, como era de praxe, deslizou os dedos longos pelos cabelos loiros e desalinhados de Catarina, puxando-os para que se afastasse. Antes o fazia por brincadeira, castigo, pirraça... aqueles puxões eram tão conhecidos de Catarina, principalmente quando aprontava. Mas agora, somente Leila sabia o verdadeiro motivo do gesto de desenlace, que veio como uma forma de afastar do próprio corpo o desejo que já se expandia além do permitido. A saudade convertendo-se em umidade pelo prazer do toque de Catarina... e Leila, mais uma vez, fugiu. Concluiu o abraço, fingindo apenas brincar, como quando eram crianças.

Catarina obedeceu e cedeu ao puxão de Leila, que sorriu, agora meio sem jeito, tentando esconder o desejo que deveria estar tão explícito em seus olhos quanto estava nos olhos negros que a fitavam.

Leila recebeu com satisfação aquele olhar de desejo que Catarina lhe lançava. Estava feliz que ainda fosse querida por ela. E Catarina sorriu de forma marota, consciente de que a mulher que Leila se tornara era menos imune ao seu toque do que a adolescente que sempre fugia. Talvez até pela ingenuidade que naquela época povoava os corpos de ambas. Fato era que, agora, os corpos já não eram tão ingênuos, os toques, tão amenos, os olhares, tão desprovidos do desejo.

– Começa hoje? – Catarina questionou, retomando a pose de chefe, sem, entretanto, tirar o riso dos lábios cheios.

– Sim. Hoje – foi a resposta de Leila, meio embaraçada.

Catarina, apesar de um tanto quanto contrariada, teve que terminar as entrevistas e, pela primeira vez, não demorou muito em nenhuma delas. Até as mulheres mais bonitas foram entrevistadas com pressa e terminou contratando um rapaz que, ao lado de Leila e da moça oriental cujo nome Catarina nem lembrava, formariam o trio de empregados temporários da Diabolic.
Assim que as entrevistas foram encerradas, a empresária saiu da sala e cuidou de apresentar Leila ao restante da equipe. Era a única que começaria a trabalhar ainda naquele dia e Leon soube muito bem o motivo.

– O senhor Bob não tem jeito mesmo, né? Tantos anos de fúria e já está aí se derretendo de novo pela eterna Barbie! – dizia Leon ao ouvido de Catarina, em sussurro, enquanto ela fazia as apresentações – Olhe bem o que vai fazer com a moça, hein? E com você mesma!

Catarina nem lhe deu ouvidos. Sabia muito bem o que faria. Só precisava de tempo.

Todos receberam Leila com muita simpatia e respeito, pois já supunham, pela velocidade da contratação e, principalmente, da prestação do serviço, que deveria ser a mais nova queridinha da chefe. Isso havia se tornado quase um código entre eles.

Leila, alheia a esses detalhes, apenas impressionava-se com a educação de todos, a polidez, o empenho em mostrar-lhe como a loja funcionava, os tipos de roupa, as dicas para vender e tantas outras coisas que lhe seriam bem úteis.

Catarina a observou durante os primeiros minutos, achando graça, e Leila, buscando a aprovação de seu olhar, pouco concentrou-se enquanto ela estava ali.

Depois de algum tempo, Catarina voltou à sala e lá permaneceu o resto do dia, fingindo ocupar-se com alguns pedidos e compras. Na verdade, não parava de pensar em Leila e imaginar como seria bom tê-la novamente dentro, ao menos, de seu ângulo de visão e proteção. Policiava-se para não lembrar da decepção que tivera... não queria nutrir o ódio de que ainda sabia-se capaz. Deixaria o tempo passar e, quem sabe, levar o resto da mágoa que guardava. Daria a Leila a chance de se redimir.

Quando Leila chegou em casa, depois daquele primeiro dia de trabalho, a cabeça parecia que ia explodir. Definitivamente, não estava preparada para tantas mudanças num só dia. Rever Catarina e reavivar aquilo tudo que ainda sentia lhe causava pânico. Mas, na mesma intensidade, uma felicidade incrível! Tinha a certeza de que poderia reconquistar, ao menos, a amizade daquela criatura tão linda, tão impulsiva, tão querida. E era isso o que mais queria.

Quando Miguel chegou em casa nunca o achou tão irritante na vida. Nunca a incomodou tanto dormir ao lado. Até a respiração passou a irritá-la. Sabia muito bem quem desejava que estivesse em sua cama e isso a fez perder o sono.

Os dias passavam e, a cada um deles, Catarina estava mais exultante. Todos percebiam. Até Leon nunca mais havia sido submetido as torturas diárias da chefe, que era como o próprio denominava os acessos de raiva e mal-humor de Catarina que, quase sempre, voltavam-se contra ele.

Desirré havia se tornado a mais próxima de Leila. Priscila e Lola a endeusavam demais para fingirem apenas amizade. “Essa criatura é divina! Não consigo soar simpática e extrovertida estando próxima, fico querendo sempre rezar ao pé do seu altar... e me desconcerto toda!”, era a explicação de Priscila, diante da pergunta de Leon, quanto ao fato de a menina falar tão pouco quando Leila estava por perto.

Já Lola, a mais desbocada, confessava ao sub-gerente:

– Ah, Leon, o que é da chefe ninguém tasca, eu sei, mas... fico me segurando para que cada palavra minha não soe como uma cantada e isso me incomoda. Prefiro me aproximar dela quando a chefe já estiver em outra.

Leon não fez nenhum comentário, porém, intimamente, bem que pensou: se prepare para esperar um bocado, Lola... dessa a chefe não vai enjoar nem tão cedo! Já se passaram dezesseis anos e nada...

Um mês se passou e tudo estava correndo em perfeita ordem.

Leila e Catarina, a cada dia, se reconheciam mais e mais. A intimidade voltando, aos poucos, assim como os risos e implicâncias tão típicas da infância e da adolescência.

A pretexto de que seria necessário fazer algo para simular o caso que não tinham, passaram a almoçar juntas todos os dias, algumas vezes no shopping mesmo, outras em alguns restaurantes escolhidos pela chefe, onde saboreavam comidas das mais requintadas às mais populares. Catarina tinha pressa em mostrar a Leila tudo o que adorava, todos os lugares que costumava freqüentar naqueles anos em que estiveram longe, todas as novas manias, em termos gastronômicos, musicais, cinematográficos... era como se tivesse pressa em inteirá-la de sua vida novamente, pois já haviam perdido muito tempo.

As duas, muitas vezes, esticavam o almoço e iam ao cinema, ou passavam horas e horas em lojas de Cds, ou em livrarias, em galerias de arte. Também não recusaram as sorveterias, lojas de brinquedos e tudo o mais o que lhes desse na telha. Qualquer bobagem que servisse de pretexto para estarem juntas e rindo era bem-vinda. Testavam se ainda se conheciam, tentando adivinhar os novos estilos e gostos e, quase sempre, acertavam. Ainda estavam em sintonia, era essa a conclusão a qual sempre chegavam.

Todos na Diabolic achavam o máximo o fato de a chefe, finalmente, estar namorando com alguém, sim, porque aquilo, nem de longe, lembrava um simples caso. Elas, aos olhos de todos, estavam visivelmente envolvidas, apaixonadas e essa certeza era tão intensa que ninguém questionava o porquê de nunca terem presenciado um beijo. Talvez Leila simplesmente não gostasse de se expor. Aliás, ela era realmente muito discreta, era o que todos concluíam quando confabulavam juntos.

Leon evitava pronunciar-se sobre o romance vivido por ambas com tamanha discrição. Apenas arriscava uma justificativa: talvez Catarina tenha, finalmente, amadurecido e esteja amando de verdade. Era esse seu modo de falar algo que realmente pensava e que era verdadeiro, diante de tantas coisas que tinha de omitir.

Catarina havia contado apenas a ele o trato estabelecido e Leon, no início, achara aquilo um verdadeiro absurdo! Porém, depois de ver a alegria que aquela farsa estava proporcionando a ambas, terminou concordando que, talvez, fosse aquela uma idéia brilhante e excitante. Pelo menos Catarina havia “baixado o fogo” e nunca mais tinha se metido – nem lhe metido! E isso era muito importante! – em nenhuma enrascada.

Com o primeiro salário, Leila voltou para a faculdade e ainda sobrou algum dinheiro para comprar algumas roupas, coisa que não fazia há um bom tempo. Aproveitou o ensejo e, sob a orientação de Lola e Priscila, que já estavam mais chegadas, resolveu ousar ainda mais: colocou um piercing no umbigo e uma tatuagem no punho.

O piercing do umbigo foi presente de Cássio e Gunter, que fizeram questão de pagarem pela jóia, escolhida por Cássio dentre as da loja. Modéstias à parte, entendiam do assunto e Leila vibrou com a idéia. Optaram por um piercing bem delicado, de tamanho pequeno, nada que afrontasse, nada que destoasse da beleza feminina de Leila, eleita a musa da Diabolic. Gunter, com inconfundível sotaque, foi quem deu a primeira opinião, enquanto Leila ainda estava de olhos fechados, suando frio e deitada na maca:

– Ficou simplesmente magnífico! MAGNÍFICO! – repetia, dando ênfase a uma das palavras da língua portuguesa que mais adorava.

Desirré e Leon concordaram imediatamente, analisando o quanto havia ficado sensual a imagem do abdome suavemente delineado de Leila, coberto por uma penugem loira que brilhava tanto quanto a jóia discreta cravada no umbigo. Cássio, orgulhoso do próprio bom gosto, abraçou Leila e anunciou-se padrinho da novidade, juntamente com Gunter.

Em seguida, mudaram de stand e foi a vez de Jane e Vanessa colaborarem para a mudança de Leila. Porém, dessa vez, ela mesma escolheu o que gravaria na pele, afinal, seria para sempre e isso fazia toda a diferença. Depois de quase duas horas sentada, folheando revistas e revistas com imagens e desenhos dos mais variados possíveis, ouvindo os comentários e opiniões mais absurdas e hilárias de todos que trabalhavam na loja, Leila, finalmente, decidiu. Tatuaria, no pulso esquerdo, a palavra “liberdade”, em árabe. O local simbolizaria a retirada de uma algema. Sim, era apenas isso o que queria para a vida. Sentir-se livre, de todos e de si mesma. Sabia que teria ainda muitas algemas e respectivas correntes a romper até soltar-se como desejava e começaria agora mesmo, fazendo uma tatuagem, o que desejara durante tantos anos. Todos aprovaram, alguns conscientes de seu pensamento, como Leon e Desirré – que de boba não tinha nada e já estava sacando a farsa estabelecida entre Leila e Catarina –, outros apenas achando aquela ousadia o máximo, vindo de uma pessoa tão politicamente correta, quanto Leila.

Na hora das roupas, foi Juliano quem intercedeu. Nenhum outro estilo cairia tão bem em Leila quanto o fashion-chick!, calculou o mestre, medindo cada palmo dos quadris e busto de Leila apenas com os olhos azul piscina. Saíram pelas lojas do shopping catando peças bonitas e mais baratas do que as que existiam na Diabolic, pelas quais Leila podia pagar. Porém, pelo menos um modelito Juliano fez questão de comprar-lhe e esse seria da Diabolic, não abriria mão! Foi um vestido perfeito – que segundo o rapaz era a cara dela e havia sido pedido por encomenda – com o qual Leila esperou Catarina, ainda naquela tarde, compelida pela equipe inteira que estava empolgadíssima com a revolução, da qual fizeram parte de forma tão ativa. Queriam ver a cara da chefe! Todos estavam impressionados com a mudança de Catarina depois que começou a namorar com Leila e agora a mudança vinha da outra parte.

Leon apenas escutava os comentários calado, mas, no fundo, até ele estava louco para ver a reação de Catarina. Leila estava, realmente, belíssima! Mas já não lembrava a antiga Barbie e esse fato, cogitava, talvez não fosse do agrado da chefe. Veriam logo mais.

Quando Catarina finalmente chegou, todos a estavam esperando com sorrisos misteriosos, visivelmente eufóricos, como se escondessem algo e ela questionou:

– Qual é a surpresa? Hoje, por acaso, é o meu aniversário? – e riu, adorando especular sobre a novidade.

Ninguém respondeu, mas todos olharam para a sala, indicando que a novidade a aguardava lá dentro. E ela caminhou, já nervosa, imaginando que, certamente, haveriam preparado alguma coisa relacionada à Leila, afinal, era a única que não estava ali.

Acertou na mosca. Quando abriu a porta, era Leila quem a esperava, sentada no sofá, fingindo uma pose convidativa. Riu ao ver a expressão de susto nos olhos da “namorada”. Catarina demorou bastante para falar alguma coisa e quando falou, não foi exatamente o que Leila esperava:

– O que houve? O que fizeram com você?

Leila ainda não havia conseguido distinguir se Catarina usava o tom de aprovação e desaprovação e, ansiosa, perguntou:

– Você gostou ou não gostou?

Catarina respirou fundo, depois caminhou na direção de Leila, que já havia se erguido. Próxima, especulou o restante da transformação e descobriu a tatuagem no pulso e o piercing, que se denunciava pela abertura que o vestido possuía, discreta e exatamente à altura do umbigo. Juliano o havia escolhido com esse propósito.

Em seguida, Catarina, ainda calada, segurou o rosto de Leila entre as mãos e observou as alterações trazidas pela maquiagem forte. Os olhos claros haviam sido destacados por uma sombra verde, que lhes emprestavam alguns raios de mesma cor. As expressões, antes angelicais, estavam, agora, fortes, ousadas, a boca parecia mais farta, carnuda, as sobrancelhas arqueadas. Não parecia mais sua Barbie, era uma verdade, mas, dentro daquela mulher talvez não coubesse mais apenas uma boneca... existiria espaço para várias, em muitos estilos e versatilidade. Era próprio da maturidade ter mais de uma face, pensou Catarina, embevecida, admirada.

– Você está... – e sorriu, sabendo da cara que Leila faria – muito gostosa!

Leila, primeiro fez cara de contrariada, pois esperava ouvir algo mais brando, depois sorriu, satisfeita e comentou:

– Você não tem jeito!

– O que você queria que eu dissesse? Que você está lida, sensual, ousada? Está isso tudo sim, mas está, acima de tudo, gostosíssima e me deixando excitada! E Catarina riu alto, dessa vez da cara de reprovação de Leila, que lhe deu um tapinha no ombro e lhe daria outros se não tivesse sido interrompida, naquele instante, pela equipe inteira, que entrou na sala de supetão.

Foi Desirré quem provocou:

– E aí, Catarina, o que achou?

– Eu já disse o que achei – e a chefe riu, desejando que Desirré e os demais não perguntassem mais nada, mas perguntaram e ela foi sincera.

– Achei que ela ficou gostosíssima.

– E você não vai provar nem um beijo dessa boca carnuda tão bem pintada? Não é a senhorita que adora novidades? – dessa vez foi Juliano quem provocou, ingenuamente, é claro.

Leila conteve-se para não demonstrar o nervoso que sentiu. Não sabia o que Catarina diria nem faria em resposta. Catarina, por sua vez, também foi pega de surpresa e não teve muito tempo para pensar. Aproveitou o ensejo e, dessa vez com uma ótima justificativa, fez o que desejava há muitos anos.

Catarina aproximou-se de Leila lentamente enquanto esta apenas fechou os olhos, aflita. A respiração de ambas alterada e em descompasso quase visível. Contendo a ansiedade, Catarina foi capaz de emprestar aos lábios a suavidade que os batimentos de seu coração não tinham e, com lentidão, tomou os lábios de Leila, quentes, macios e deliciosos como sempre imaginara.

Por dentro, Leila sentiu-se estarrecer. Foi diferente de tudo o que já havia provado. A textura dos lábios de Catarina, da pele, a forma do beijo, o sentimento de desejo e prazer que lhe inundou o ventre, a bambeira nas pernas, a língua quente que lhe invadiu com precisão e vontade. E cedeu. E recebeu. E, finalmente, entendeu o que era sentir-se excitada, tocada, sugada, bebida. O corpo palpitava em todas as extremidades, pulsava, vibrava, aquecia-se e soube que, em poucos segundos, poderia se fazer uma eternidade. Lembraria de cada detalhe que sentira para sempre. Foi, realmente, seu primeiro beijo de verdade.

Quando Catarina afastou-se, todos pareciam sem fôlego ao observá-las. Aprovaram, com certeza, a cena e ainda brincaram:

– Vamos que as duas têm muito o que fazer!

E Lola ainda remendou:

– Vamos mesmo que eu já fiquei até molhada. Não posso ter um orgasmo vendo um beijo, seria o cúmulo da seca!

E todos explodiram numa gargalhada, antes de saírem da sala.

Leila e Catarina não riram. Ainda estavam tontas, constrangidas, anestesiadas, excitadas. Catarina desculpou-se e Leila aceitou as desculpas. Em seguida, saiu da sala, pensando a mesmíssima coisa que Lola acabara de expor em voz alta, minutos antes.

Quando Leila saiu e Catarina ficou sozinha, jogou-se no sofá e se permitiu a um ataque quase infantil de alegria! Agradeceu a todos os santos por ter inventado aquela farsa. Finalmente, através dela, havia beijado Leila Prata, provado seu gosto, seus lábios... e o melhor, tinha certeza de que ela também havia gostado. O coração de Leila acelerado, a respiração ofegante, a fraqueza do corpo que cedeu aos seus lábios e os olhos esfogueados que depois lhe fitaram, entre o espanto e o desejo, nada daquilo fora fingimento, disso Catarina tinha certeza! E Leila poderia negar até a morte que não havia gostado... não acreditaria, afinal, uma coisa que havia adquirido com os anos fora experiência.

Naquele dia, Leila voltou para casa mais cedo. Inventou um mal-estar e pediu a chefe para sair com uma hora de antecedência. Catarina ofereceu-se para levá-la, mas ela não aceitou a carona. Sentia-se vulnerável demais, aflita, irresponsável, sem muito senso, sem muita racionalidade e cheia de vontades, cheia de desejo, cheia da vida tediosa, dos medos, impregnada pelo cheiro de Catarina, por seu gosto, queimando pela lembrança daquele beijo... ainda sentia, atônita, sua calcinha molhada a lembrar-lhe de que não resistiria se Catarina, novamente, invadisse seu espaço e a pegasse de jeito, como havia feito naquela tarde.

Miguel aprovou a mudança assim que a viu chegar em casa. Os olhos cresceram, assim como o desejo, que se avolumou sob as calças. Havia bebido e a esperava. Tinha algumas perguntas a fazer. Estava achando estranho o comportamento de Leila ultimamente e havia sondado com alguns amigos que tinha no shopping sobre o novo trabalho.

Sem qualquer jeito, puxou-a pelo braço e rosnou algumas palavras desconexas. Em seguida, sugeriu que já sabia da sujeira toda e que até aprovaria aquele descaramento se ele fizesse parte da festa ativamente.

Como se Leila se mostrasse confusa ele explicitou com toda imundice de que um ser é capaz:

– Qual é, Leila, sei que sua chefe está lhe comendo e não me oponho se eu puder comer vocês duas juntas, na mesma cama. Pode até ser na nossa, embora eu imagine que a tal da mulher tenha outras opções. Quem sabe ela nos leva a uma suíte luxuosa num daqueles puta Motéis de classe! Já que é cheia da grana, talvez não concorde em vir nesse pardieiro! – parecia o mais ordinário e sujo dos homens a cada palavra enrolada que dizia e continuava a dizer – Só não vou admitir saber que outra mulher fode a minha sem a minha presença... isso não, meu amor. E tem mais, quero que você cobre mais caro, afinal, eu também vou prestar um serviço... – e fechou os olhos, tonto, quase caindo para, em seguida, concluir – minha mulher, uma sapatão! Quem diria!

Leila conteve o choro e a vontade de vomitar que sentia. Em seguida, soltou-se das mãos de Miguel e foi a vez de destruí-lo com palavras:

– Você me dá asco, Miguel... verdadeira repulsa! Sim, sapatão, é isso o que eu sou! – esbravejou, consumida pelo ódio – e se já é uma piada tentar deixar de ser sapatão, imagine tentar com um homem feito você! Além de sapatão eu fui estúpida esse tempo todo!

E Miguel deixou-se cair no chão, fulminado pelo efeito do álcool ingerido, aliado à verdade escutada. Arrumou algumas coisas e saiu de casa. Não tinha mais para quem ligar, a não ser Catarina.

Em menos de vinte minutos, com alívio indescritível, Leila viu Catarina chegar ao estacionamento do shopping, onde a esperava, em prantos. No carro, abraçou-se a ela e não conseguiu, nos outros vinte minutos que seguiram, dizer uma palavra sequer.

Catarina esperou que Leila parasse de chorar com aflição, enquanto observava sorrateiramente se não estava machucada. Depois de algum tempo, finalmente acalmou-se e relatou todo o ocorrido.

Catarina levou-a para a própria casa. Era uma cobertura, na zona sul da cidade. Lá, a chefe deu-lhe um copo de água com açúcar e a fez deitar-se no sofá, com a cabeça em seu colo, para que pudesse desabafar e chorar. Leila ainda parecia nervosa demais e Catarina avaliou que ela precisava pôr o resto do que sentia de ruim para fora. Enquanto alisava seus cabelos, escutou-a com toda atenção e zelo de que fora capaz.

Leila estava consternada e Catarina sentiu-se culpada, afinal partira dela aquela invenção. Desculpou-se por ter exigido aquilo de Leila, aproveitando-se de sua necessidade, mas surpreendeu-se com o que escutou:

– A culpa não foi sua, Catarina... eu quis tanto quanto você. Aliás, eu ainda quero tanto quanto você! – e Leila a olhou nos olhos de uma forma que não deixou em Catarina qualquer dúvida quanto ao que referia-se.

Impulsionada pelo que acabara de escutar e pelo desejo que há muito lhe consumia, Catarina quedou-se sobre o corpo de Leila e beijou-a, dessa vez sem tantas luzes, envolvidas pelo silêncio da sala, sem espectadores.

Leila correspondeu ao beijo, sentindo a saliva que recebia misturar-se com o sal das lágrimas que cessaram naquele instante. A lentidão imposta por Catarina, cedeu ao impulso quase selvagem de Leila que, erguendo-se bruscamente, sentou-se sobre a pelves da chefe, envolvendo-a com as pernas longas e quentes.

Catarina suspirou, enquanto solvia os lábios de Leila, ávidos, apressados, sedentos. As línguas misturadas, os seios de Leila quase expostos pelo decote do vestido, à altura do rosto de Catarina, pedindo para serem tomados e, já sem cautela, os tomou.

Soltou os lábios de Leila e a observou, sedenta, enquanto lhe apalpava os seios. Ela gemeu alto, de olhos cerrados, e Catarina entendeu que poderia continuar. Aliás, deveria! Leila foi quem os libertou do decote. Totalmente despudorada, enlouquecida de desejo, baixou o vestido, deixando os mamilos róseos à mostra, arrepiados. Catarina nunca havia se sentindo daquela forma, arrebatada, entorpecida, endoidecida... e tomou um dos bicos rígidos com a boca, quase que de forma grosseira. Leila gemeu novamente e ela maneirou... sugou-o com lentidão, enquanto apalpava o outro seio.

Leila, experimentando um prazer totalmente desconhecido, absurdo, não conseguia se conter e, ainda com as pernas escanchadas na chefe, esfregava o sexo no abdome de Catarina, excitando-a e excitando-se ainda mais. Em seu ouvido, ela pedia, desconhecendo o próprio tom rouco da voz e a audácia das palavras:

– Catarina, você não sabe o quanto eu quero você! O quanto eu quero você dentro de mim... por favor, eu não agüento!

E Catarina, exultante de felicidade e vertigem, tirou a própria blusa e sentiu a quentura do sexo de Leila espalhar-se em seu abdome e em seus próprios seios.

Leila, fazendo jus a tatuagem que ainda nem havia cicatrizado, finalmente libertou-se da última algema. Sem qualquer resquício de pudor, medo ou vergonha, afastou a calcinha e experimentou com os dedos longos a umidade do próprio ventre. Catarina ficou estarrecida, extasiada com a cena, com aquela mulher que se mostrava perfeita, também, na cama... como nunca havia imaginado. Antes que Catarina pudesse tocá-la, Leila a impediu. Segurou as mãos másculas com as próprias e Catarina obedeceu. Em seguida, foi surpreendida com mais um gesto inesperado de Leila, que, vagarosamente umedeceu os próprios dedos no líquido que brotava por entre as pernas e, em seguida, passou a espalhá-lo na barriga, nos seios, no sexo de Catarina, lambuzando-a com seu “sêmen”. A chefe fechou os olhos, contendo as mãos, sentindo a viscosidade quente de Leila em seu corpo, molhando-a, por fora e por dentro. Catarina sentiu-se inundada.

Era impossível conter-se e, quando, finalmente, Leila permitiu, Catarina arrancou o vestido que ainda escondia parte do corpo perfeito. Admirada, ainda deteve-se, apreciando a visão, mas Leila estava preste a gozar e, prevendo, Catarina, com experiência, introduziu-lhe três de seus fortes dedos.

Como uma presa capturada, Leila gemeu forte ao sentir Catarina penetrando-a e seu corpo tornou-se lânguido, trêmulo. Os seios arrepiaram-se ainda mais e os quadris começaram a mover-se de forma mais forte, mais ritmada. Catarina, sabendo como lhe provocar ainda mais, com o outro braço, enlaçou-a pela cintura e a puxou para baixo, fazendo-a sentar sobre suas mãos, enquanto seus dedos se afundavam ainda mais, comendo-a, fodendo-a, com força, mais força, com jeito, com gosto e o gozo veio, com igual força, com igual jeito, com igual gosto e outro gozo, nas mesmas mãos, apertadas e ensopadas pelo desejo de Leila. E gozaria mais, se Catarina não houvesse lhe tirado os dedos de dentro.

Leila entendeu o que a outra queria e, mesmo sem experiência, adivinhou o que fazer. Desabotoou a calça jeans de Catarina, olhando-a com riso ao deparar-se com o próprio líquido nas vestes.

Catarina aguardou, enquanto Leila a despia. Esperava para ver a reação de seu rosto... agiria com naturalidade ou receio? Tranqüilidade ou afobação? Em resposta, como se lesse o pensamento da outra, Leila chegou perto de seu ouvido, enquanto lhe tirava a calcinha, e disse:

– Embora você não saiba, já fiz isso muitas vezes... – e os olhos negros de Catarina a fitaram com espanto para em seguida, descansarem com a explicação que se seguia –...nos diversos sonhos que tive com você, boba!

E Leila tocou o sexo de Catarina, suavemente, externamente. Por alguns segundos, deteve-se, brincando com a extremidade de seu ventre, o clitóris, que já esperava afoito, duro, inchado de desejo. Em seguida, conduzida pelas mãos de Catarina, que já estava excitadíssima, Leila afundou-lhe os dedos longos e ficou extasiada ao sentir o quanto era perfeita a sensação. Era, simplesmente, maravilhoso tocar outra mulher, aquela mulher, mergulhar ali e descobri-la quente, molhada, apertada, à espera. E iniciou o movimento que lhe era indicado pelas mãos de Catarina, como uma aprendiz. Mas logo Catarina percebeu que Leila já não precisava de auxílio, pois sabia muito bem o que deveria e como deveria fazer com as mãos... benditos sonhos que tivera!, pensou Leila, satisfeita com os gemidos que provocava na outra. E, finalmente, foi também consagrada com o gozo de Catarina, que forrou em suas mãos, enquanto soltava um gemido alto, depois um suspiro longo... o corpo da amante tremendo com seus os dedos ainda presos dentro do ventre, era tudo o que Leila esperava e teve.

Exaustas, as duas deitaram-se ali mesmo, no sofá, no meio da sala. E, de repente, os corpos já não eram quentes, eram plástico as duas já não eram móveis, eram inertes e o desejo já não era delas, bonecas, Catarina e Leila, as duas Barbies, mas de suas donas, as adolescentes que, finalmente, aos dezesseis anos de idade, resolveram ousar na brincadeira. Nada de Bobs naquela tarde.

As duas decidiram: viveriam, como de fato viveram, na pele das duas bonecas favoritas, o que tanto desejaram durante todo aquele tempo. Deixaram os Bobs trancafiados no armário e uniram Catarina e Leila, suas bonecas, daquele jeito, com aquela intensidade, com aquela liberdade! A porta do quarto trancada, como não era de costume, as mentes abertas, livres das amarras, como também não costumavam. E a fantasia de que foram capazes era tanta e tão criativa, e a realidade do que sentiam, tão intensa e devastadora, que molharam as próprias vestes, olharam-se com fome, abraçaram-se com desejo e trocaram o chão frio, palco da brincadeira, pela cama quente e macia de solteiro. Com a mesma experiência adquirida na brincadeira, se tocaram, se provaram, se ensinaram. Com a mesma coragem das bonecas, se permitiram e se amaram, da forma mais sincera e real que existia: em carne, osso e desejo... com uma imensa vantagem sobre Leila e Catarina: não perderam tanto tempo... aqueles dezesseis anos ostentados por ambas era o suficiente.