terça-feira, 14 de janeiro de 2014

TODO AZUL DO MAR (Conto)


Capítulo I

 

 

O PRIMEIRO SONHO

 

 

Como se buscasse sobreviver, fechei os olhos. Os dedos trêmulos e gelados, deslizei no couro cabeludo, tentando reconhecer a textura de meus cabelos. Tive vontade de arrancar cada um dos fios que prendi, cravando as unhas por onde passava, me machucando na tentativa de, com uma nova dor, encobrir a outra. Na confortável cadeira de couro, girei e girei e girei, enquanto as luzes da festa piscavam, misturando cores e suas ausências. Escuro, escuro, tudo escuro dentro de mim. A música alta batia, reverberando nas caixas de som que ficavam logo atrás.

 

Contrariando meus instintos, abri os olhos para ver se era realmente verdade o que vira. A cena continuava ali. A aniversariante beijava o jovem que tinha a mesma idade dela. Ambos com dezoito anos, belos, ávidos, pareados: um par digno de nota para toda a festa. Ele era meu irmão; ela, minha paixão.

 

Enquanto observava os dois dançando, me valendo da momentânea escuridão que acompanhava a música lenta, senti meu peito doer. Era uma dor profunda, que me fez comprimir os olhos, me encolhendo como se tivesse levado um soco no estômago. Sentindo o suor frio brotar de minhas mãos, deslizei-as em minhas pernas, buscando enxugá-las na calça jeans desbotada que vestia. Vi minha pele branca constatar com o escuro do tecido, assim como a pele dela contrastava com o escuro da sala. Foi quando ela abriu os olhos por cima dos ombros dele, me buscando, me fisgando com aquele olhar azul, como costumava fazer.

 

Em seus olhos, que se fixaram nos meus e assim se mantiveram por alguns segundos, pensei ver alguma hesitação e tristeza. Seria mesmo hesitação e tristeza? Não soube responder. Fechei os olhos novamente e assim fiquei, girando a cadeira até me por de costas para aquela visão, enquanto desejava perder os sentidos e sai dali.

 

Imersa em meus pensamentos, senti meu corpo adormecer e me perdi no tempo. Não sei quanto me demorei naquele estado. A vodka talvez tenha ajudado. Não sentia mais vontade de chorar, nem de gritar. Sentia apenas um peso enorme sob minha cabeça. De repente, mãos leves tocaram meus cabelos, afagando-os. Instintivamente, me virei e me deparei com ela. Sim, era tristeza o que cintilava nos olhos azuis.

 

Olhamos-nos em silêncio. Eu sentada, ela defronte a mim. Contrariada, me ergui, desejando passar por ela de forma brusca. Não consegui. As mãos suaves agora me prendiam, pressionando meu braço e me obrigando a ouvir:

 

- Você sabe o que eu sinto por você!

 

Tive ódio daquela frase, daquela boca que acabara de beijar outra e que eu tanto desejava, daquela mulher que fazia meu corpo tremer de tanto querer, de tanta paixão contida. Tive ódio, sobretudo, daqueles olhos azuis tão lindos que me fizeram amá-la desde o primeiro instante em que a vi.

 

Como ela podia ser tão cínica? Como podia ousar se justificar diante de mim? Como podia ter ficado justamente com meu irmão na minha cara, quando sabia a dor que me causava? O ódio rompeu meu peito quando a indaguei:

 

- Por que não me deixava em paz?

 

Puxei meu braço, desvencilhando-me. Mais uma vez ela me segurou, ignorando os olhares dos convidados. Entre os dentes, com a voz abafada e a cabeça baixa, deixou escapar:

 

- É você quem amo.

 

Em desespero, questionei, mais para mim e para Deus do que para ela propriamente:

 

- Então por que não podemos ficar juntas? Que tipo de maldição carregamos?

 

Acordei sobressaltada e sem resposta. Não sabia quem era aquela moça, embora o sentimento que ela me causara fosse tão real e familiar. Dentro de mim, a revolta por ter acordado. Queria ter olhado para ela mais uma vez. Era como se pudesse reconhecê-la, caso tivesse mais alguns segundos em sua companhia.

 

Com o coração ainda acelerado, fechei os olhos, querendo retomar o sonho, mas meu corpo estava por demais acordado. Todos os meus sentidos se faziam à flor da pele. No escuro do quarto, me senti extremamente só. Um frio estranho se fez presente e eu puxei o edredom, encobrindo minha cabeça na tentativa de abafar, a bem da verdade, meu coração. Não sei quanto tempo depois adormeci.

 

No dia seguinte, a caminho da faculdade, enquanto dirigia pela BR, o sonho me voltou à lembrança. Os olhos azuis ainda estavam em minha mente, perfeitamente definidos, detalhe por detalhe, como se fossem um retrato impingido dentro de mim. O rosto dela, todavia, já não se fazia tão claro. O esquecimento queria roubá-lo. Com força, busquei me recordar de seus traços, mas só me vinha com precisão o olhar azul e o sentimento que aquela criatura me despertou. Uma saudade infinita me assombrou e me fez querer chorar enquanto aumentava a velocidade. O que estava acontecendo comigo?

 

Tentando aliviar o turbilhão de sentimentos, busquei as estações do rádio. Deparei-me com “Todo Azul do Mar”, na voz de Flávio Venturine.

 

Instantaneamente me recordei de um episódio de minha infância. Havia sido meu aniversário e eu ganhara um LP repetido. Fui trocá-lo com minha mãe no dia seguinte. Na imensa loja de departamentos, uma capa me chamou a atenção: 14 Bis. Não sabia do que se tratava. O LP era preto, as letras vermelhas eram de fôrma. Algumas luzes davam cores à fotografia. Sem compreender, escolhi imediatamente aquele. Levei o LP desconhecido para casa e, deitada em minha cama, coloquei na vitrola a primeira música: Todo Azul do Mar. Com nove anos, ainda desconhecedora do amor e suas entranhas, senti lágrimas quentes escorrerem de meu rosto. Uma dor estranha me invadiu o coração infantil sem que eu entendesse o porquê.

 

Desde então, durante muitos anos, repeti aquele ritual estranho: no final da tarde, depois de fazer meu dever de casa e andar de bicicleta com meus amigos até não aguentar mais, ia para meu quarto, abria a janela, me demorava alguns instantes observando as mangueiras balançando ao vento. Depois me deitava no tapete em silêncio, ignorando solenemente minha mãe, que gritava da cozinha para que eu fosse tomar banho. Enquanto sentia o suor secando em meu corpo franzino sob a brisa das cinco horas, colocava a primeira faixa na vitrola e fechava os olhos enquanto ouvia “Todo Azul do Mar”. A emoção sempre me embargava e era com um nó na garganta que ouvia a musica até o fim. Apenas após os últimos acordes e antes que começasse a segunda faixa, me erguia e retomava a vida, indo tomar meu banho e me preparar para o jantar em família. Era como se eu tivesse vivido aquele amor cantado e precisasse me recordar disso todos os dias antes de despertar novamente para minha infância.

 

Naquele momento, enquanto me lembrava do sonho e dirigia meu carro, ouvir justamente aquela música foi, no mínimo, estranho. Mas antes que eu pudesse divagar sobre uma possível conexão entre os fatos, avistei a faculdade e consultei o relógio. Já estava atrasada.

 

Cursava o segundo ano e já não me sentia tão peixe fora d’água quanto no primeiro. Entre os almofadinhas e as patricinhas do curso de Direito, encontrei alguns que, feito eu, destoavam. Formávamos uma particular gang: eu, Evandro, Camilo e Natascha. Evandro e Camilo eram namorados, o que, por si só, chamava bastante atenção. Natascha era gótica, usava inúmeros piercings e era toda tatuada. Eu era a mais convencional, apesar de meu cabelo enorme, minhas blusas de banda de rock e minhas calças folgadas. Além de nós três, Fabiana – minha amiga careta desde a época do colégio – também nos acompanhava. Era muito querida, companheira, autêntica e não se intimidava com os olhares dos outros, que a questionavam sempre como ela conseguia fazer parte daquela tribo estranha. Ela se limitava a sorrir e, quando muito, repetia as palavras de Caetano, justificando: de perto ninguém é normal. Nessa categoria, se incluía. E assim, íamos levando o curso, sempre juntos, fossem nos momentos de galhofa ou de drama.

 

Na minha casa, a situação não estava nada fácil. Tinha acabado de me assumir lésbica e, segundo meus pais, destruíra-lhes todos os seus planos. E, na afirmação egoísta e leviana, pouco importava que eu quisesse construir os meus. Aos trancos e barrancos, continuávamos convivendo sob o mesmo teto. Mais do que nunca, tentava me concentrar nos estudos, objetivando passar num concurso o quanto antes para sair de casa.

 

Como sempre, Fabiana me apoiava em tudo e resolvemos estudar juntas para concorrer a um estágio remunerado. Natascha, Evandro e Camilo, que estavam em outro momento e mais interessados nas farras, lamentaram nosso afastamento momentâneo, mas compreenderam. Para matar a saudade, já que não estávamos saindo sempre nos finais de semana, aproveitávamos os intervalos entre as aulas para conversarmos e rirmos nos corredores da faculdade. Naquela manhã não seria diferente.

 

Assim que estacionei, logo avistei os três. O professor havia faltado e não teríamos a primeira aula. Aliviada, caminhei pelo estacionamento, observando que Fabiana também acabara de chegar e já caminhava em minha direção para um abraço. Como era bom ter amigos!

 

Depois de ouvir Evandro e Camilo contarem sobre o final de semana agitado que tiveram, embalados pela inauguração da nova boate gay da cidade, foi a vez de ouvirmos Natascha se lamentado sobre o pai de seu filho que, mais uma vez, deixara de ir buscar o menino para passar o final de semana. Fabiana, assim como eu, havia passado o sábado e domingo estudando e não teve nada para contar. Foi quando resolvi contar de meu sonho.

 

Todos ouviram calados e apenas Natascha ousou uma explicação simplória:

 

- A dona dos olhos azuis só pode ser um grande amor que você teve em outra encarnação.

 

Apesar da seriedade usada na frase, rimos da constatação. Nossa amiga tinha mania de ser emblemática e adorava buscar respostas no mundo invisível. Mas o assunto morreu sem maiores divagações.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá! Que 2014 começou bem não tenho dúvidas. Olha o conto novo mostrando isso...
Bom ano, boa saúde e muitas escrivinhações.
Sempre te visitando em busca de belas e adoráveis histórias. Certeza de leitura boa.
Mariana