Capítulo I
O PRIMEIRO SONHO
Como se buscasse sobreviver,
fechei os olhos. Os dedos trêmulos e gelados, deslizei no couro cabeludo,
tentando reconhecer a textura de meus cabelos. Tive vontade de arrancar cada um
dos fios que prendi, cravando as unhas por onde passava, me machucando na
tentativa de, com uma nova dor, encobrir a outra. Na confortável cadeira de
couro, girei e girei e girei, enquanto as luzes da festa piscavam, misturando
cores e suas ausências. Escuro, escuro, tudo escuro dentro de mim. A música
alta batia, reverberando nas caixas de som que ficavam logo atrás.
Contrariando meus instintos, abri
os olhos para ver se era realmente verdade o que vira. A cena continuava ali. A
aniversariante beijava o jovem que tinha a mesma idade dela. Ambos com dezoito
anos, belos, ávidos, pareados: um par digno de nota para toda a festa. Ele era
meu irmão; ela, minha paixão.
Enquanto observava os dois
dançando, me valendo da momentânea escuridão que acompanhava a música lenta,
senti meu peito doer. Era uma dor profunda, que me fez comprimir os olhos, me
encolhendo como se tivesse levado um soco no estômago. Sentindo o suor frio
brotar de minhas mãos, deslizei-as em minhas pernas, buscando enxugá-las na
calça jeans desbotada que vestia. Vi minha pele branca constatar com o escuro
do tecido, assim como a pele dela contrastava com o escuro da sala. Foi quando
ela abriu os olhos por cima dos ombros dele, me buscando, me fisgando com
aquele olhar azul, como costumava fazer.
Em seus olhos, que se fixaram nos
meus e assim se mantiveram por alguns segundos, pensei ver alguma hesitação e
tristeza. Seria mesmo hesitação e tristeza? Não soube responder. Fechei os
olhos novamente e assim fiquei, girando a cadeira até me por de costas para
aquela visão, enquanto desejava perder os sentidos e sai dali.
Imersa em meus pensamentos, senti
meu corpo adormecer e me perdi no tempo. Não sei quanto me demorei naquele estado.
A vodka talvez tenha ajudado. Não sentia mais vontade de chorar, nem de gritar.
Sentia apenas um peso enorme sob minha cabeça. De repente, mãos leves tocaram meus
cabelos, afagando-os. Instintivamente, me virei e me deparei com ela. Sim, era
tristeza o que cintilava nos olhos azuis.
Olhamos-nos em silêncio. Eu sentada,
ela defronte a mim. Contrariada, me ergui, desejando passar por ela de forma
brusca. Não consegui. As mãos suaves agora me prendiam, pressionando meu braço
e me obrigando a ouvir:
- Você sabe o que eu sinto por
você!
Tive ódio daquela frase, daquela boca
que acabara de beijar outra e que eu tanto desejava, daquela mulher que fazia
meu corpo tremer de tanto querer, de tanta paixão contida. Tive ódio,
sobretudo, daqueles olhos azuis tão lindos que me fizeram amá-la desde o
primeiro instante em que a vi.
Como ela podia ser tão cínica?
Como podia ousar se justificar diante de mim? Como podia ter ficado justamente
com meu irmão na minha cara, quando sabia a dor que me causava? O ódio rompeu
meu peito quando a indaguei:
- Por que não me deixava em paz?
Puxei meu braço,
desvencilhando-me. Mais uma vez ela me segurou, ignorando os olhares dos
convidados. Entre os dentes, com a voz abafada e a cabeça baixa, deixou
escapar:
- É você quem amo.
Em desespero, questionei, mais
para mim e para Deus do que para ela propriamente:
- Então por que não podemos ficar
juntas? Que tipo de maldição carregamos?
Acordei sobressaltada e sem
resposta. Não sabia quem era aquela moça, embora o sentimento que ela me causara
fosse tão real e familiar. Dentro de mim, a revolta por ter acordado. Queria
ter olhado para ela mais uma vez. Era como se pudesse reconhecê-la, caso
tivesse mais alguns segundos em sua companhia.
Com o coração ainda acelerado,
fechei os olhos, querendo retomar o sonho, mas meu corpo estava por demais
acordado. Todos os meus sentidos se faziam à flor da pele. No escuro do quarto,
me senti extremamente só. Um frio estranho se fez presente e eu puxei o
edredom, encobrindo minha cabeça na tentativa de abafar, a bem da verdade, meu
coração. Não sei quanto tempo depois adormeci.
No dia seguinte, a caminho da
faculdade, enquanto dirigia pela BR, o sonho me voltou à lembrança. Os olhos
azuis ainda estavam em minha mente, perfeitamente definidos, detalhe por
detalhe, como se fossem um retrato impingido dentro de mim. O rosto dela,
todavia, já não se fazia tão claro. O esquecimento queria roubá-lo. Com força,
busquei me recordar de seus traços, mas só me vinha com precisão o olhar azul e
o sentimento que aquela criatura me despertou. Uma saudade infinita me
assombrou e me fez querer chorar enquanto aumentava a velocidade. O que estava
acontecendo comigo?
Tentando aliviar o turbilhão de
sentimentos, busquei as estações do rádio. Deparei-me com “Todo Azul do Mar”,
na voz de Flávio Venturine.
Instantaneamente me recordei de
um episódio de minha infância. Havia sido meu aniversário e eu ganhara um LP repetido.
Fui trocá-lo com minha mãe no dia seguinte. Na imensa loja de departamentos,
uma capa me chamou a atenção: 14 Bis. Não sabia do que se tratava. O LP era
preto, as letras vermelhas eram de fôrma. Algumas luzes davam cores à
fotografia. Sem compreender, escolhi imediatamente aquele. Levei o LP
desconhecido para casa e, deitada em minha cama, coloquei na vitrola a primeira
música: Todo Azul do Mar. Com nove anos, ainda desconhecedora do amor e suas
entranhas, senti lágrimas quentes escorrerem de meu rosto. Uma dor estranha me
invadiu o coração infantil sem que eu entendesse o porquê.
Desde então, durante muitos anos,
repeti aquele ritual estranho: no final da tarde, depois de fazer meu dever de
casa e andar de bicicleta com meus amigos até não aguentar mais, ia para meu
quarto, abria a janela, me demorava alguns instantes observando as mangueiras
balançando ao vento. Depois me deitava no tapete em silêncio, ignorando
solenemente minha mãe, que gritava da cozinha para que eu fosse tomar banho.
Enquanto sentia o suor secando em meu corpo franzino sob a brisa das cinco
horas, colocava a primeira faixa na vitrola e fechava os olhos enquanto ouvia
“Todo Azul do Mar”. A emoção sempre me embargava e era com um nó na garganta
que ouvia a musica até o fim. Apenas após os últimos acordes e antes que
começasse a segunda faixa, me erguia e retomava a vida, indo tomar meu banho e
me preparar para o jantar em
família. Era como se eu tivesse vivido aquele amor cantado e
precisasse me recordar disso todos os dias antes de despertar novamente para
minha infância.
Naquele momento, enquanto me
lembrava do sonho e dirigia meu carro, ouvir justamente aquela música foi, no
mínimo, estranho. Mas antes que eu pudesse divagar sobre uma possível conexão
entre os fatos, avistei a faculdade e consultei o relógio. Já estava atrasada.
Cursava o segundo ano e já não me
sentia tão peixe fora d’água quanto no primeiro. Entre os almofadinhas e as patricinhas
do curso de Direito, encontrei alguns que, feito eu, destoavam. Formávamos uma
particular gang: eu, Evandro, Camilo
e Natascha. Evandro e Camilo eram namorados, o que, por si só, chamava bastante
atenção. Natascha era gótica, usava inúmeros piercings e era toda tatuada. Eu era a mais convencional, apesar de
meu cabelo enorme, minhas blusas de banda de rock e minhas calças folgadas.
Além de nós três, Fabiana – minha amiga careta desde a época do colégio –
também nos acompanhava. Era muito querida, companheira, autêntica e não se
intimidava com os olhares dos outros, que a questionavam sempre como ela
conseguia fazer parte daquela tribo estranha. Ela se limitava a sorrir e,
quando muito, repetia as palavras de Caetano, justificando: de perto ninguém é
normal. Nessa categoria, se incluía. E assim, íamos levando o curso, sempre
juntos, fossem nos momentos de galhofa ou de drama.
Na minha casa, a situação não
estava nada fácil. Tinha acabado de me assumir lésbica e, segundo meus pais,
destruíra-lhes todos os seus planos. E, na afirmação egoísta e leviana, pouco
importava que eu quisesse construir os meus. Aos trancos e barrancos,
continuávamos convivendo sob o mesmo teto. Mais do que nunca, tentava me
concentrar nos estudos, objetivando passar num concurso o quanto antes para
sair de casa.
Como sempre, Fabiana me apoiava
em tudo e resolvemos estudar juntas para concorrer a um estágio remunerado.
Natascha, Evandro e Camilo, que estavam em outro momento e mais interessados
nas farras, lamentaram nosso afastamento momentâneo, mas compreenderam. Para
matar a saudade, já que não estávamos saindo sempre nos finais de semana, aproveitávamos
os intervalos entre as aulas para conversarmos e rirmos nos corredores da
faculdade. Naquela manhã não seria diferente.
Assim que estacionei, logo
avistei os três. O professor havia faltado e não teríamos a primeira aula.
Aliviada, caminhei pelo estacionamento, observando que Fabiana também acabara
de chegar e já caminhava em minha direção para um abraço. Como era bom ter
amigos!
Depois de ouvir Evandro e Camilo
contarem sobre o final de semana agitado que tiveram, embalados pela
inauguração da nova boate gay da cidade, foi a vez de ouvirmos Natascha se
lamentado sobre o pai de seu filho que, mais uma vez, deixara de ir buscar o
menino para passar o final de semana. Fabiana, assim como eu, havia passado o
sábado e domingo estudando e não teve nada para contar. Foi quando resolvi
contar de meu sonho.
Todos ouviram calados e apenas
Natascha ousou uma explicação simplória:
- A dona dos olhos azuis só pode
ser um grande amor que você teve em outra encarnação.
Apesar da seriedade usada na
frase, rimos da constatação. Nossa amiga tinha mania de ser emblemática e
adorava buscar respostas no mundo invisível. Mas o assunto morreu sem maiores
divagações.
Um comentário:
Olá! Que 2014 começou bem não tenho dúvidas. Olha o conto novo mostrando isso...
Bom ano, boa saúde e muitas escrivinhações.
Sempre te visitando em busca de belas e adoráveis histórias. Certeza de leitura boa.
Mariana
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