Capítulo III
O TERCEIRO SONHO
Era uma sexta-feira e eu, para
variar, estava atrasada para a faculdade. Na garagem de casa, praguejei contra
todos os santos quando percebi que meu carro havia quebrado. Liguei para
Fabiana que, por sorte, ainda estava saindo de casa. Em cinco minutos, chegou
minha carona. Em menos de uma hora estaríamos fazendo a última prova do ano.
Fabiana tentava relaxar ouvindo Enya, enquanto eu reclamava. Não estava a fim
de ouvir aquele tipo de música, o que me deixava ainda mais irritada. Como
minhas reclamações não surtiam efeito, me resignei e decidi que iria o resto do
percurso calada. Um estado de estupor logo me domou.
Eu era um homem belo, alto e vigoroso.
Com prazer, sentia meus cabelos negros dançando ao vento, enquanto conduzia a
carruagem. O caminho era de terra batida, cortando uma imensa floresta de
árvores agigantadas. A umidade do ar era pesada, assim como as roupas que eu trajava.
Ao olhar para trás, senti uma imensa alegria. Lembrei que, dentro da carruagem
eu conduzia a mulher que amava. Mesmo às escondidas, ousávamos viver aquele
amor proibido. Ela era uma duquesa e eu apenas um dos guardas do reinado,
responsável por sua segurança.
Enquanto os cavalos arrefeciam o
passo, antes de atravessarmos a ponte que dividia as propriedades vizinhas,
olhei para a janela. As mãos delicadas que eu tanto conhecia e que costumavam
percorrer meu corpo com sofreguidão, vestindo luvas brancas, abriram as
cortinas. Com o coração cheio de paixão, busquei aquele olhar que tanto me
fascinava. O par de olhos azuis estava lá novamente a me devorar. Estanquei os
cavalos e desviei o rumo. Com pressa, entrei pela floresta e desci da
carruagem, encobrindo-a por entre as árvores.
Vi minhas mãos rudes abrindo a
porta, puxando minha dama para meu corpo, que já ansiava ereto. O perfume
daqueles cabelos sempre me inebriava. A duquesa me beijou com força, indiferente
à barba áspera que lhe maculava a pele. A boca doce e ávida mordia meus lábios
grossos. Ergui suas saias, as anáguas, enquanto ela desabotoava minha calça,
enfiando as mãos com pressa, em busca de meu membro rijo. Ergui-a, encostando-a
em uma das árvores. As pernas alvas se enlaçaram em minha cintura. Senti-me
afundar inteiro dentro dela, que estremeceu, me arranhando a nuca. A duquesa passou
a me cavalgar, enquanto eu lhe prendia pela cintura. Minhas pernas, apesar de firmes,
estremeciam cada vez que ela me engolia. Jorrei forte, sentindo nossos líquidos
se misturando. Ela desfaleceu em meus braços e me olhou nos olhos, me deixando
perdido naquele azul. A face estava rosada pelo esforço, o busco voluptuoso
descompassado. Cansados, tombamos no chão seminus.
Não vi quando os homens se
aproximaram encapuzados. Sobressaltado, me ergui e busquei protegê-la, mas já
era tarde. Senti uma pancada forte em minha cabeça e o gosto de sangue logo chegou
à minha boca. Antes de perder os sentidos, percebi o brasão do reino por entre
as vestes negras de um dos soldados. Era a vingança que temíamos enviada pelo noivo
da duquesa, príncipe do reinado. A última cena que vi foi uma lança
transfixando os seios belos e amados que, minutos antes, eu sugava.
Despertei no estacionamento da
faculdade e desci do carro de Fabiana sem dizer nada. Caminhei pelo pátio ignorando
minha amiga, que me chamava preocupada. Entrei no primeiro ônibus que vi e voltei
para casa. A prova que fosse para o espaço. Aquele sonho eu não era capaz, sequer,
de contar.
O ano letivo terminou e vieram as
férias. Logo depois do ano novo, eu e meus pais viajamos para a fazenda de meus
avós. De certa forma, me fez bem respirar novos ares. Adorava aquele lugar, que
frequentava desde pequena. Levei vários livros que queria ler há bastante tempo
e não vinha conseguindo; escrevi algumas poesias na sombra das árvores, como
costumava fazer desde criança; joguei cartas com meus avós, que eu tanto amava,
até tarde da noite, enquanto tomávamos café e ouvíamos o coaxar dos sapos e o
som do rio de corria por detrás da casa grande; caminhei com meu pai de manhã cedinho
com os pés descalços, sentindo o orvalho que ainda repousava sob a grama; andei
a cavalo com minha mãe até a cachoeira, aproveitando o calor das tardes para tomar
um refrescante banho. Enfim, me renovei para o novo ano.
Retomei a faculdade cheia de
força. Os sonhos não se repetiram e eu, mesmo com esforço, não conseguia mais
me lembrar dos olhos azuis com a mesma precisão de outrora. Uma parte de mim
lamentava, sentindo uma saudade absurda daquela desconhecida; outra parte,
talvez a mais sensata, se sentia aliviada.
Rapidamente me vi no meio do ano
letivo. Evandro e Camilo haviam assumido o relacionamento para as famílias que,
para a felicidade e surpresa geral, tinham aprovado a união dos dois rapazes
que visivelmente se amavam e respeitavam. Eu e as meninas recebemos a notícia
com euforia e Natascha fez mais uma de suas premonições: era o sinal dos novos
tempos.
Coincidência ou não, todos nós
passamos a viver uma boa fase. Natascha havia reatado com o pai de Vitor, que
implorara uma chance e vinha se mostrando bastante mudado; Fabiana estava
começando a namorar um rapaz do quinto ano, que parecia bem bacana e
desencanado; eu estava em paz comigo mesma e com meus pais.
Afetivamente, todavia, para mim,
nada tinha mudado. Não me envolvia por ninguém, apesar de ter alguns casos. A
única que continuava prendendo minha atenção era Cristiana, a professora de
dança que, porém, era casada. Segundo Fabiana, aquilo era chave de cadeia.
Minha amiga tinha razão e, também por isso, eu me mantinha distante.
Numa tarde, enquanto chegava à
academia com Fabiana, avistei Cristiana cercada por outras alunas que pareciam
entretidas com algo. Ao todo, eram umas cinco mulheres, todas disputando espaço
na arquibancada que ficava à beira da piscina. Como aquele caminho seria
necessariamente nossa passagem, nos aproximamos.
Percebi que Cristiana e as outras
olhavam uma revista. Logo constatei que se tratava da playboy mais polêmica do
ano, que tinha ido às bancas exatamente naquela semana. Na capa, duas famosas
dançarinas de uma banda baiana estavam nuas e literalmente “se pegavam”. Quando
eu passei, olhei para Fabiana com cumplicidade e sorri. Foi quando ouvi o
comentário de Cristiana, que, embora falasse para as outras, olhava em minha
direção:
- Que nojo! Eu jamais ficaria com
uma mulher! Morreria intacta, se fosse minha única opção!
Aquela frase, tenha ou não sido
dita de propósito, me causou um impacto enorme. Ódio e tesão se misturaram em
mim, quando olhei para a professora. Ela vestia uma malha que deixava entrever
totalmente as curvas do corpo bem feito e suado. Um decote denunciava os seios
fartos, cujos bicos se fizeram visivelmente rijos sob meus olhos. Encarei-a de
forma tão cínica quanto fria, e, sem qualquer pudor, observei cada centímetro
do corpo que instintivamente se inquietou.
Fabiana me puxou e, entre os
dentes, perguntou o que havia sido aquilo! Eu disse que estava apenas comendo
com os olhos aquela que, em breve, comeria inteira, custasse o que custasse.
Minha amiga me reprovou, beliscando meu braço. Mas, intimamente eu sabia: até
Fabiana tinha se chateado com o comentário. Agora até ela, apesar de careta,
deveria estar torcendo para ver a professora mordendo a língua.
Dali em diante, minhas tardes na
musculação passaram a ser mais interessantes. Cristiana repentinamente mudou de
horário e passou a malhar pontualmente às cinco da tarde, justo quando eu e
Fabiana chegávamos. Minha amiga, que de boba não tinha nada, bem sabia o motivo
daquela mudança. A professora estava realmente doida para mudar de lado. Só
continuava me pedindo que tivesse cuidado.
Na faculdade, nada novo. A
correria de sempre, a pressão dos professores e os encontros furtivos nos
corredores, às vezes gazeando aula. Evandro, Camilo e Natascha já haviam se
inteirado da história da professora e fizeram questão de ir assistir a uma
apresentação de dança da academia só para conhecê-la. Todos aprovaram.
Cada dia Cristiana se fazia mais
solícita comigo e, depois de faltar uma semana à musculação, apareceu com as
curvas menos acentuadas e sem aliança. Eu não sabia se ficava feliz ou se temia
pela novidade. Embora me sentisse extremamente atraída por ela, não queria uma
namorada.
Um dia, no banheiro, enquanto eu lavava
as mãos defronte ao espelho, ela entrou e, parando atrás de mim, disparou,
enquanto olhava fixamente em meus olhos pelo reflexo:
- Eu menti quando disse que tinha
nojo.
Antes que eu pudesse dizer do
quanto eu já sabia daquela mentira, ela deu as costas e se retirou. Eu só tive
tempo de apreciar a bunda bem feita sob a malha que, sem dúvida, escondia uma
calcinha fio dental das mais ousadas. Naquele instante tive a certeza de que
ela também não queria exatamente um namoro e relaxei. Que a vida seguisse seu rumo.
Eu tomaria para mim o que estavam me oferecendo.
Sábado pela manhã eu nem
costumava ir à academia. Geralmente íamos à Praia do Francês. Eu e Natascha
levávamos o bodyboard para surfar,
enquanto Fabiana e os meninos ficaram na areia tomando conta de Victor e
jogando conversa fora. Naquela manhã, todavia, convenci Fabiana que poderíamos
dar uma passadinha na academia, afinal, estávamos nas vésperas do São João e
teria um café da manhã junino organizado pela dona, que adorava esse tipo de
evento. Era óbvio que eu queria ver Cristiana. Estava estampado em meu sorriso
cínico quando propus. Um tanto quanto contrariada, Fabiana topou.
Ao entrar na sala de musculação,
um banho de água fria: Cristiana estava ajudando na organização da mesa com
canjicas, pamonhas, milho verde, bolos dos mais sortidos, mas, como auxiliar,
contava com Rodrigo, seu filhinho de oito anos que, animadíssimo, vestia calça
jeans, camisa xadrez e botas, além de ter na face um bigodinho de matuto. Ambos
lindos. Aquela cena me encheu primeiro de frustração, mas logo veio o remorso.
Que tipo de criatura eu tinha me tornado que, querendo pegar a mãe da criança,
praguejava contra a presença do filho, ainda mais uma criança tão doce e
cativante?
Fabiana não se conteve e,
sorrindo, me consolou:
- Se não pode vencê-los, junte-se
a eles!
Ela tinha razão. Fui ajudar na
seleção das músicas, enquanto Fabiana ajustava as bandeirinhas e balões. Aos
poucos, outros alunos foram chegando, todos conhecidos companheiros de malhação.
A turma da academia era legal e descontraída, muito diferente do pessoal da
faculdade. Resolvemos então trocar em definitivo a praia pela festa junina.
Liguei para Natascha, que morava pertinho, e a convidei, dizendo que trouxesse
Victor. Fabiana, por sua vez, chamou Ulisses, o namorado legal do quinto ano. Camilo
e Evandro, também alunos, já haviam dito que chegariam em instantes. Enfim,
em poucos minutos, nossa mesa estava preenchida por nossa gang. E ali ficamos nós, sem noção do tempo. O café da manhã se
estendeu pela tarde.
Depois que a maioria dos alunos
foi embora e a própria dona da academia relaxou, Cristiana se aproximou e pediu
licença para, finalmente, sentar à nossa mesa. Natascha, como sempre, ergueu-se
e saiu do meu lado, cedendo a cadeira de forma nada disfarçada.
Visivelmente cansada, a
professora sentou-se ao meu lado, apoiando-se na cadeira em busca que algum
conforto. A mulher provocativa e sensual trocara as malhas por um vestido
junino que, para minha surpresa, lhe emprestava um ar angelical e até pueril.
Vez por outra, Rodrigo também passava pela mesa, sendo fisgado pela mãe que,
carinhosamente, lhe ajeitava os cabelos e lhe fazia beber alguma coisa. Na
presença da criança, vi também sua face materna e a achei ainda mais linda. Rodrigo
e ela eram bastante parecidos. Mesmo sem querer, imaginei como deveria ser o
pai. Logo repreendi meu pensamento, pois não tinha nada a ver com aquilo.
Pela primeira vez, eu e ela
tivemos uma conversa decente, sem entrelinhas e tom provocativo. Cristiana me
contou porque resolvera ser professora de dança e a paixão que carregava pela
música desde pequena. Disse que engravidou ainda muito cedo e, mais por isso,
casou com o pai de seu filho. Teve que deixar de dançar durante algum tempo em
virtude de intercorrências relacionadas à saúde e ao ciúme do ex-marido. Depois
de ter Rodrigo e enfrentar a gravidez de risco, restou-lhe enfrentar as constantes
crises de Marcos. Só então tive o desprazer de ouvir, pela primeira vez, o nome
do pai de seu filho.
Limitei-me a escutá-la a maior
parte do tempo. Eu não era mesmo de falar muito. Segundo Fabiana, eu tinha um
quê de introspecção que, no início, até intimidava, mas, ao mesmo tempo, trazia
confiança e fazia com que a maioria das pessoas se sentisse bastante à vontade
comigo, sobretudo as pseudo-héteros, como bem lembrava minha amiga. Era
justamente o caso.
No final da festa, quando o salão
estava praticamente vazio, Cristiana chamou Rodrigo que corria sem parar com
Victor, ambos já livres das camisas xadrez e botas. Sutilmente, pediu licença a
mim, dizendo que precisava dar um jeito no filho, quem sabe até um banho no
chuveirão da piscina, pois o pai estava chegando.
Eu, mesmo sem querer, arregalei
os olhos, em
estranhamento. Ela então me sorriu e, pousando a mão sobre meu
ombro, me trouxe a explicação:
- Ele vai passar o resto do final
de semana com Marcos.
Ao retirar a mão de mim, deslizou
as unhas sutilmente por meus ombros e eu entendi perfeitamente o recado. Minha
noite de São João contou, literalmente, com fogos de artifício.
Dali, seguimos para o motel mais
próximo, ela mesma conduzindo o carro e pedindo uma suíte que, sem dúvida,
estava além de minhas posses. Assim que estacionamos, ela não esperou nem o
fechamento da porta da garagem. Atacou-me ali mesmo, se colocando em meu colo e
abrindo minha camisa. Perdeu a paciência com os botões e arrancou a metade,
enquanto me devorava com os olhos e se livrava do próprio vestido. Era a minha
vez de fazer alguma coisa. Contendo os impulsos da moça, segurei-a pelos
pulsos, pedindo-lhe mais calma. Eu não iria fugir nem a deixaria fazer isto.
Ela me sorriu e, com o ar entrecortado, me pediu desculpas.
Não havia o que desculpar, eu lhe
disse, olhando-a firme. Como ela se mantinha em meu colo, recuperando a respiração
e me olhando de forma ainda lasciva, eu tomei a frente. Tocando seu rosto,
deslizei os dedos pelos lábios, que se entreabriram, buscando meus dedos. Com tato,
desfiz o rabo de cavalo e a encontrei ainda mais bonita, de cabelos soltos.
Segurei-a pela nuca e a puxei para mim, encontrando-a finalmente em um beijo.
Ela respondeu por inteiro. Senti que nossos desejos eram tão intensos e
recíprocos que não precisaríamos de muita coisa para gozar ali mesmo. Mas eu
não queria assim. Daria a ela uma primeira transa digna de quem esperou tanto
tempo para tocar outra mulher. Não queria que depois houvesse qualquer
resquício de arrependimento. Sai do carro e a levei comigo. Subimos as escadas
com pressa, abrindo a porta para um quarto suntuoso e confortável, à meia-luz.
Na cama, a despi sem pressa,
enquanto ela arqueava o corpo, livrando-se da última peça: uma calcinha de
renda branca já inteiramente molhada. Erguendo a perna torneada, livrou-se da lingerie
e manteve-se arqueada. Antes de fazer o que ela já esperava, olhei-a por entre
as pernas que já se dispunham abertas. Nos olhos negros, além de desejo, vi
súplica e agonia. Eu não a torturaria mais. Encostei a boca quente nos lábios
que me eram oferecidos. Ela abriu-se ainda mais, ansiando por minha língua, mas
eu resisti. Mantive a boca colada ali algum tempo, brincando com a língua sem
penetra-la, saboreando o gosto e a quentura daquela chama tão acesa: a pele
fina e vermelha que encobria o botão da sensibilidade.
Cristiana se inquietou, puxando
minha cabeça, fazendo pressão e se mexendo sob minha boca, como se dançasse.
Gemia alto e eu já não conseguia mais me conter. Ela não merecia, nem eu
precisava. Deslizei a língua para dentro dela e a enrijeci, metendo lá dentro,
com a boca entreaberta. Meus lábios roçavam os lábios externos dela, enquanto
eu a invadia. A língua já não bastava e eu cedi ao que ela queria, mergulhando
meus dois dedos. Segurei-a pelas ancas arqueadas quando as pernas torneadas já
perdiam as forças. A senti tremer em minha boca, enquanto soltava um gemido de
prazer infinito que ocoou pelo quarto. De forma sincera, quase doce, ela me
confessou:
- Foi o melhor gozo de minha
vida!
Mais uma vez ela me dizia o que,
para mim, não era segredo. Deixei-me cair sobre ela e, ajeitando-me entre suas
pernas, a provoquei e a penetrei novamente. Dentro em pouco, era eu quem gemia
alto, enquanto Cristiana me arranhava inteira, abraçando-me com as pernas
firmes e tão bem esculpidas que desde sempre me chamaram a atenção. Aquela
seria a primeira de muitas noites, tivemos a certeza.
Sem detalhes, fui obrigada a
inteirar meus quatro amigos do restante da noite que tive com Cristiana logo na
segunda-feira. Deitada no colo de Natascha, que adorava alisar meus cabelos, e
cercada por Fabiana, Evandro e Camilo, fizemos uma roda no chão do corredor da
faculdade. Enquanto riamos, todos ávidos pela minha última conquista, as
patricinhas do bloco de Direito passavam horrorizadas com aquela cena. Sabiam
que eu e os meninos éramos gays e, sem qualquer critério, toda e qualquer
mulher que me tocasse deveria ser também. Natascha, que não se importava nem um
pouco com a fama, continuava me alisando.
Aliás, para o desespero das
meninas caretas e metidas, quanto mais elas nos olhavam, mais minha amiga
provocadora “tocava o terror”, fingindo me seduzir em pleno corredor da
faculdade. Evandro e Camilo se divertiam com os olhares chocados das que
passavam, enquanto Fabiana ficava vermelha, envergonhada, mas também gostando
da revanche propiciada por Natascha. Foi quando uma criatura em particular me
chamou a atenção.
Ela caminhava cercada pelas
meninas mais populares do quinto ano. Os cabelos acobreados contrastavam com a
pele branca, encobrindo-lhe parcialmente o rosto. Não era alta nem baixa; não tinha
o corpo escultural, mas absolutamente normal. Talvez nunca me chamasse a
atenção não fossem aqueles inacreditáveis e familiares olhos azuis. Ela não
pareceu se chocar com o que viu e, de modo firme, pousou o olhar em meus olhos
e assim se manteve por alguns segundos que desafiaram o passar do tempo. Fui eu
quem interrompeu o olhar, já sem aguentar o efeito daquele encontro. Tudo
dentro de mim em
ebulição. Por impulso, ergui a cabeça do colo de Natascha e
me encostei à parede. A moça então baixou a vista e continuou seu caminho.
Como eu nunca a vira antes, meu
Deus? Foi o que me indaguei o dia inteiro e os seguintes. Depois daquilo, ir a
faculdade passou a ser um momento extremamente esperado e mais ainda a chegada
dos intervalos. Procurava por ela pelos corredores, sem conseguir me conter.
Fabiana, que me conhecia como ninguém, havia notado o olhar que lancei para a
criatura desde o primeiro instante. Facilmente conectou minha atração pelos
olhos azuis que a moça possuía e que, de fato, eram muito particulares. Claro
que eu deveria ter associado-os aos sonhos.
Em uma das conversas que tivemos,
confessei a Fabiana que vinha pensando constantemente na moça que eu nem
conhecia, contrariando toda a minha racionalidade. Estava quase conversando com
Natascha, que certamente teria uma explicação para aquela minha insanidade
súbita. Eu só poderia estar enlouquecendo. Fabiana sorriu e, como sempre,
aliviou minha agonia dizendo que eu estava, simplesmente, apaixonada, coisa
que, até então, eu não conhecia.
Aquelas palavras serviram a mim
como um bálsamo. Sim, era apenas isso: paixão. Quem mandou tirar tanta onda
quando meus amigos se diziam nesse estado? Naquele momento, foi o diagnóstico
de minha normalidade. Não havia porque me preocupar. Não tinha nada a ver com
meu sonho ou vidas passadas. Que doidice a minha! E não havia mal algum em me
sentir feliz com a simples perspectiva de avistar ao longe a dona dos olhos
azuis, resumiu minha amiga.
Natascha nos surpreendeu em meio
a tal conversa e, curiosa como sempre, me convenceu a contar o que estava me
tirando do sério. Ouviu a tudo muito atenta e em silêncio. Resolveu
falar apenas enquanto discutíamos uma forma de descobrir mais sobre a aluna do
quinto ano.
- Vocês são bobas, viu? Não tem
nada mais fácil. Basta Fabiana perguntar ao namorado, afinal, eles não estudam
na mesma sala?
- Isso, Natascha! Ideia perfeita!
Eu chamo Ulisses e digo: amor, me conta o que você sabe sobre sua colega de
olhos azuis! É que Jordana já sonhou com a moça algumas vezes e agora quer convertê-la
ao mundo gay devidamente acordada! Simples assim! – encerrou a frase com
ironia.
As duas, vez por outra,
discutiam, sempre disputando espaço. Eu intercedi por Fabiana, que já fazia
menção de se irritar com a mania que Natascha tinha de sempre se achar a
sabichona e resolvedora de casos.
- Opa! Não precisam se estranhar,
crianças! Mais cedo ou mais tarde eu mesma descobrirei pelo menos o nome da
moça sem que Ulisses tome conhecimento da causa.
- Por falar em Ulisses... –
avisou Fabiana sobre a aproximação do namorado, olhando-nos aquela cara de
“calem a boca”.
Mas é claro que Natascha não ia
perder a oportunidade:
- Ulisses! Veja só! Estávamos
falando agorinha de você!
O rapaz olhou para mim e para
Fabiana, que nos mantivemos incrédulas e consternadas. Natascha emendou:
- Fabiana não admite, só quer ser
a durona, mas tá morrendo de ciúmes!
Eu olhei para Natascha contendo
minha vontade de rir, enquanto Fabiana continha a vontade de pegá-la pelo
pescoço. Queria só ver aonde ela iria chegar e a doida continuou:
- Cismou que tem uma coleguinha
sua que sempre passa te encarando! Uma bem bonitinha, patricinha de olhos
azuis...
Ulisses sorriu, nitidamente
lisonjeado pelo ciúme da namorada, que, realmente, não era lá de demonstrar o
que sentia. Olhando para Fabiana com cara de apaixonado, logo explicou:
- Meu amor, imagina! Aquela é
Maria Amélia, namorada de Gustavo.
Eu, que já estava me animando com
o método investigativo de Natascha, deixei o sorriso morrer em meus lábios. A
dama de olhos azuis tinha um nome lindo, mas também tinha um namorado. Ulisses
continuou:
- Não sei nada sobre ela, apenas
que tem uma família bastante tradicional, que dá a Gustavo bastante trabalho.
Parece que os pais moram no interior, enquanto ela e o irmão dividem um
apartamento por causa da faculdade. O cara é um saco de ciumento e dá uma de
guardião. No mais, nunca trocamos nem meia dúzia de palavras. Além disso, nem
preciso dizer o quanto só tenho olhos para você! Até parece que não sabe!
A raiva de Fabiana se dissipou
parcialmente diante da declaração do namorado. Ainda assim, encarou Natascha
fuzilando-a, como quem diz “você me paga”. Mas não havia tempo para maiores divergências.
Eu estava precisando de apoio. Num
diálogo mundo, ambas desviaram os olhos e me consolaram, ainda que em silêncio. Eu tava
realmente arrumada!
Não sonhei mais com a moça de
olhos azuis, tampouco avistei Maria Amélia no correr daquela semana. No sábado,
resolvi ir com os meninos para a boate e levar Cristiana junto. Ela queria de
todo jeito conhecer um lugar gay e eu precisava de alguma distração. Pensei que
a “novata” ficaria menos à vontade, mas logo vi que estava errada.
No salão escuro, inebriada menos
pela vodka e mais pelas batidas da música alta, Cristiana logo me puxou para um
beijo sem qualquer pudor. A professora de dança parecia se excitar ao ver as
outras mulheres nos observando. E aí era que me beijava e dançava daquela forma
que só ela sabia fazer.
Minha companhia era, de fato, uma
mulher e tanto! Além de tudo, “carne nova no pedaço”, o que fazia com que as
outras a cobiçassem ainda mais. Já eu, conhecida de todos, apenas me deliciava,
sem nunca deixar de, também, me saber desejada por minhas iguais.
Ao meu redor, vários rostos
conhecidos se misturavam em meio às luzes e à escuridão. Mãos, pernas, cabelos,
perfumes, olhares, tudo se alternava e se fundia, virando um todo. Eu e
Cristiana, nós e as demais. Corpos suados e colados. Música e tesão. Muita
adrenalina para conter. Ainda assim, mesmo envolvida pela volúpia e pela
vaidade daquele instante, a cada foco de luz que povoava os cantos boate, eu
buscava pelos olhos que tanto queria esquecer.
Os dias iam se passando e eu
cheguei a ver Maria Amélia algumas vezes nos corredores. Ela, porém, parecia
sequer me perceber. Nossos olhares não mais se encontraram. Mesmo quando
Natascha tentava chamar a atenção, provocando-me, a criatura passava por mim
incólume, enquanto suas amigas metidas viravam o nariz para não nos ver.
Nunca fui dada à postura de
vítima. Aliás, sempre fui por demais segura e até mesmo convencida para me
deixar abalar por qualquer pessoa que me ignorasse. Dali em diante não seria
diferente. Logo me forcei a parar de procurar por Maria Amélia e, em pouco
tempo, já acompanhava os quadris bem feitos das demais. Aquela história de amor
platônico, definitivamente, não combinava comigo. Além disso, vinha me
divertindo bastante com Cristiana, que a cada dia estava melhor fora e na cama.
Assim o tempo ia passando.
Graças a Evandro e a Camilo, meus
amigos entusiastas dos Direitos Humanos, a professora de Constitucional teve
uma idéia brilhante: visitar o presídio recém-inaugurado e que ficava logo atrás
do Campus. Que ódio que eu tive dos
dois! Estávamos cheios de trabalhos na faculdade e, como se não bastasse, no
estágio eu também estava acumulando processos! Agora ia perder minha manhã de
sábado para ganhar um ponto na disciplina que eu menos precisava! Pensei em não
ir, mas, a consciência pesou. Natascha tinha razão: eu sempre tive lá um “q” de
CDF.
Existia apenas um ônibus do
sistema penitenciário e, justamente por isso, como se não bastasse a ressaca
pela noite de sexta, me vi em pleno sábado no pátio da faculdade, sob o sol das
nove horas, esperando a tal condução.
Natascha, que estava logo atrás
de mim na fila, mascava chiclete alto. Com os óculos escuros, tentava ocultar a
ressaca que também sentia. Havíamos saído no dia anterior para um desfile da
Triton e o que iria ser uma noite de moda se transformou em uma noite de farra.
Resultado. Nos duas estávamos deploráveis, cada uma com mais mau-humor.
Enquanto isso, Evandro e Camilo passeavam ávidos pelo pátio, animadíssimos por
serem os coordenadores do tal passeio.
- Ah, bichas safadas! Não fosse
minha necessidade, eu os matava! – era Natascha praguejando, pois, ao contrário
de mim, precisava mais do que tudo daquele ponto.
Eu sorri, enquanto avistei
Fabiana do outro lado do pátio, bem feliz e leve, ao lado do namorado na fila
do quinto ano. Somente depois de algum tempo, notei que Maria Amélia conversava
animadamente com suas companheiras de turma. Com os olhos azuis encobertos
pelos óculos escuros, a moça, para mim, já se confundia na multidão.
No ônibus, eu e Natascha
estávamos mais mortas do que vivas. Encostei a cabeça em seu ombro, contendo o
enjôo e o sono, enquanto minha amiga praguejava por não ter feito faculdade de
moda. Que merda era aquela de Direitos Humanos? Indagava entre os dentes.
O presídio inaugurado era
destinado apenas aos réus que possuíam nível superior. Para complementar a
visita e mesmo dar-lhe mais sentido, Evandro sugeriu à professora que
visitássemos antes o presídio antigo, que ficava a alguns metros do novo e que
era destinado aos que não tinham nenhuma escolaridade. A comparação entre os
dois estabelecimentos, mais do que tudo, seria importante, justificou o aluno que
agora era quase meu ex-amigo. A professora, que adorava Evandro, prontamente
aceitou. Natascha jurou que mataria nosso colega assim que estivéssemos longe
daqueles presídios.
Caminhávamos pelos corredores
escoltadas pelos agentes penitenciários, mas nem a adrenalina me despertou. As
grades me eram conhecidas. Eu mesma já havia lutado bastante para romper as
minhas, as quais me pareciam bem mais injustas e despropositais. Aqueles homens
haviam procurado a cela que habitavam, eu não. Sei que não senti compaixão, nem
piedade. Sentia apenas tédio e sono. Estava mesmo me transformando.
Finalmente deixamos o presídio
antigo e fomos para o novo, o que significava que metade da tortura estava
acabando. Lá sim uma cena me chamou a atenção: os mesmos estudantes que
passaram pelos presos pobres, analfabetos e enjaulados no estabelecimento
prisional anterior, fazendo cara de nojo e horror, agora apertavam as mãos de
alguns presos ricos e conhecidos, a maioria políticos de renome. Meu enjôo se
intensificou. Talvez eu não tivesse mudado tanto.
Natascha havia dado um jeito de
ganhar seu ponto em Constitucional assinando a ata e, literalmente, fugindo na
metade do caminho. Fiquei sozinha, assistindo meus colegas naquela cena
deplorável de hipocrisia. Graças a Deus, logo depois o passeio terminou.
No ônibus, sentei de cabeça
baixa. Tinha vergonha de meus companheiros de curso. Que tipo de juizes,
promotores, advogado seríamos? Tive um pouco de vergonha também de mim, que
havia aprendido pouco com aquelas prisões, julgando mais severas as minhas.
Meus colegas eram hipócritas e eu egoísta. Um pedido de licença me tirou de
meus devaneios. Minha sentença ficaria para depois.
- Posso sentar aqui?
Era Maria Amélia que questionava,
já se sentando ao meu lado. Assenti com a cabeça, sem forças para responder o
que nem era necessário. Fomos todo o percurso caladas. Meu coração me pegou uma
peça, mostrando-se descompassado. Eu não havia me tornado indiferente a ela,
como pensava. Confusa, sentia seu perfume com a certeza de que jamais iria
esquecê-lo, reconhecendo-o em qualquer lugar que eu estivesse dali por diante.
As mãos alvas, de unhas bem feitas e cuidadas, estavam pousadas sobre o assento
da frente. Lembraram-me as de uma pianista. Não pude deixar de observar de
soslaio seus braços delicados, seu colo, notando sua respiração e algumas
sardas que lembravam estrelas. Com medo de ser notada em minha indiscrição,
fechei os olhos e assim fiquei até chegarmos, tentando me tornar indiferente ao
calor que ela emanava e ao quase roçar de nossas pernas a cada solavanco da
estrada. Poderia ter me aproveitado daquele instante para sentir sua pele, a
penugem loira de seus braços, mas preferi ficar quieta. Não queria trincar o
cristal.
Quando o ônibus finalmente parou,
me ergui antes dela e dei as costas sem um cumprimento. Preferi parecer mal-educada
a soar insegura. Foi quando ela tocou meu ombro, me fazendo retroceder:
- Você me lembra tanto uma
pessoa.
Eu me senti corar e me odiei.
Respirando fundo, olhei-a de frente, pensando “Calma, Jordana! Ela é apenas uma
daquelas menininhas mimadas que você só gosta de ter na cama! Vai dizer, como
outros tantos, que você é a cara da Lúcia Veríssimo e blá, blá blá...”
Mas antes que eu encerrasse meu
monólogo interno, Maria Amélia, me fazendo mergulhar em sua íris, confessou:
- É a cara de um ex-namorado. A
versão feminina dele, poderia dizer.
Se eu havia corado antes, não sei
que cor me estampou naquele momento. Não tive o que lhe, nem me dizer. Sorri
sem graça, não sabendo se me sentia lisonjeada ou atingida com o comentário.
Percebendo minha dúvida, Maria Amélia me aliviou:
- Não costumo me lembrar do que
não me marcou.
Apesar da ambiguidade da frase,
tive a certeza de que havia sido um elogio. Ela sorriu e saiu antes que eu
pudesse me recompor.
Fabiana, que havia assistido a
cena ao longe, me interpelou no pátio da faculdade, ávida para saber o que
havíamos conversado. Dali rumamos para a praia e a conversa durou uma longa
caminhada. Ao final, minha amiga, como sempre, me consolou:
- Pode soar preconceituoso, Jordana.
Mas não imagino uma hetero sem o mínimo de interesse que aborde uma mulher sabidamente
lésbica para lhe dizer que ela parece com um ex que muito amou.
- Ela não disse que o amou,
Fabiana.
- Existem coisas que não se precisa
dizer – minha amiga tinha razão.
Vieram as férias do meio do ano e
com elas o desencontro. Não veria Maria Amélia por bons dias, o que, de certa
forma, talvez me fizesse bem. Aproveitando o ensejo, dei um tempo nas saídas
com Cristiana e tentei me concentrar nos estudos. Sabia que teria um concurso
em breve para nível técnico no Ministério Público Federal onde eu estagiava e
queria passar. Isso já me garantiria um excelente salário e uma vida estável
para continuar estudando. Tinha por meta me tornar Procuradora da República e
esse deveria ser meu foco desde já.
Dra. Ágata, a Procuradora-chefe à
qual eu era subordinada no estágio, desde o início me apoiava. Eu tinha por ela
o maior respeito e admiração, o que, talvez, tivesse influenciado em minha escolha.
Ela era, em termos profissionais, minha inspiração. Nos primeiros meses já me
confiara a minuta de alguns pareceres e se disse empolgada com o resultado.
Elogiara minha escrita e meu esforço. Disse que poderia ser minha mentora, caso
eu decidisse dar continuidade em minha carreira como membro da instituição. Eu
não perderia aquela chance.
Aos poucos, ela ia me indicando
livros, me ajudando a fazer planos de estudos, sempre atentando para o
calendário das provas e dos concursos. Além de mentora, foi se tornando uma
amiga. Deveria ter em torno de quarenta anos, era mais inteligente do que
bonita, extremamente alinhada e polida. Vestia-se e se portava de maneira
impecável em qualquer circunstância, inclusive em uma das tardes em que cheguei
desorientada no estágio.
Eu havia discutido ferozmente com
minha mãe por questões ligadas à minha homossexualidade e chegara à
Procuradoria visivelmente consternada. Havia até chorado, o que me era muito
doloroso, posto que nada comum. Dra. Ágata estava sozinha na sala quando eu
entrei, pensando que minha chefe ainda não havia chegado. Levei um susto e me
desculpei imediatamente, virando-me para sair, mas fui impedida. A voz firme se
fez cálida, me convidando para ficar e conversar.
Foi nesse dia em que lhe falei um
pouco sobre minha vida e as intempéries que vinha enfrentando em casa por conta
de minha sexualidade. Ela não demonstrou nenhuma surpresa, ao contrário.
Parecia saber bem sobre o assunto, o que me fez supor que certamente era em
virtude de sua profissão. Como membro do Ministério Público, ela lidava
diretamente com minorias, laborado em sua defesa. Comigo não seria diferente,
pensei eu, sentindo apoio e segurança.
Dali em diante, além de chefe,
Dra. Ágata passou a ser em minha vida uma mulher mais velha, forte e experiente,
que se punha a escutar aquilo que minha mãe não conseguia. Nossas afinidades, a
cada dia, transpareciam e eu não sabia como agradecer a ela e ao Divino por
aquele encontro.
Sentia-me tão bem naquele
ambiente que tomei uma resolução: nas minhas férias passaria os dois
expedientes na Procuradoria. Um estudando, outro trabalhando. No início, foi
bastante cansativo, mas logo peguei o ritmo. Saia de casa cedinho, com meus
livros e a roupa da academia. Estudava a manhã inteira, depois almoçava um
sanduíche natural com suco na cantina e só então ia para o gabinete da
Procuradora, onde a assessorava durante toda a tarde.
Como Dra. Ágata só chegava por
volta das quatorze horas, aproveitava para, depois do almoço, baixar a cabeça
em minha mesa e dar um cochilo de quinze minutos para renovar as energias. O
ar-condicionado gelado e o silêncio sempre me ajudavam. Sem esforço, numa tarde
de sexta, com o cansaço da semana acumulado, adormeci.
Acordei com batidas na porta, o
que me fez erguer a cabeça com susto. Não era Dra. Ágata, que, por razões
óbvias, não batia. Fui à porta e a abri. Sem saber se era sonho ou realidade,
vi Maria Amélia em minha frente. Fiquei sem ação e sem palavras. Ela olhou-me
com ar de riso e logo desviou os olhos azuis para minha testa, comentando:
- Tem uma marca vermelha bem ai!
Cedendo ao riso, me descontrai e
justifiquei:
- Quem manda dormir no estágio
quando se tem a cabeça pesada?
Convidei-a para entrar e sentar.
Logo soube o motivo da visita. Dra. Ágata era a orientadora de Maria Amélia na
monografia de final de curso, o que ouvi quase sem acreditar. Ela escreveria
sobre o princípio da afetividade como caracterizador das uniões homoafetivas
como entidades familiares. Ai sim, quase cai para trás.
Timidamente, foi me falando um
pouco sobre o tema que eu tanto conhecia, diga-se de passagem. E assim fomos
passando o tempo, enquanto minha chefe não chegava. Eu tomei um café forte, ela
aceitou uma água. Os olhos dela fulguravam enquanto conversávamos. “Nem parecem
reais de tão bonitos”, pensei em voz alta. Só percebi quando ela me perguntou:
- O que?
- O quê o que? - Repeti, confusa.
- O que nem parecem reais de tão
bonitos?
Não tinha como fugir, nem queria:
- Seus olhos.
Nesse instante, Dra. Ágata entrou
e passou por nós, levando a orientanda e me deixando suspensa no ar.
Não vi quanto tempo levou até que
a Procuradora abrisse a porta, em sinal de que havia terminado a reunião com
sua aluna do quinto ano. Maria Amélia ainda conversava com Dra. Ágata quando
passou por mim na ante-sala. Despediram-se com um beijo no rosto, ainda falando
sobre os últimos detalhes da tese, enquanto eu observava calada. Minha chefe
deu as costas e Maria Amélia fez menção de sair, acenando para mim com a
cabeça, se despedindo. Antes de atravessar a porta, no entanto, parou e
retrocedeu com um pedaço de papel na mão. Sob minha mesa, pousou o número:
- É meu telefone, caso você
queira ouvir mais sobre minha dissertação.
Hesite alguns instantes diante do
papel que me oferecia. Como ela continuava com a mão pousada sobre ele, resolvi
pegá-lo para mim. Nossos dedos se tocaram de leve, o que a fez retirar a mão
bruscamente e partir. Será que ela me queria ou será que eu seria apenas um
objeto de pesquisa?
Repeti minhas indagações para
Fabiana e Natascha assim que nos encontramos a noite na academia. A primeira
respondeu que Maria Amélia me queria; a segunda, que eu tava tendo alucinações
enquanto cochilava no trabalho.
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