Capítulo II
O SEGUNDO SONHO
Os dias se passaram e nada de
interessante aconteceu. Professores chatos, estudos corriqueiros, discussões em
casa, encontros nos corredores da faculdade entre as aulas. Apenas no final de
mês pude afirmar o contrário: eu e Fabiana fomos aprovadas no estágio do
Ministério Público Federal, um dos mais concorridos entre os estudantes de
Direito. Agora eu ganharia algum dinheiro, causaria algum orgulho a meus pais
e, de quebra, poderia voltar a sair, pelo menos, aos sábados.
Dito e feito. Sábado à noite
saímos para comemorar. Fomos a um dos bares mais alternativos da cidade, que se
chamava Divininha. Rimos bastante das piadas de Evandro, do mau-humor constante
de Natascha, das frescuras de Fabiana, das manias de perseguição de Camilo e de
minha mais nova conquista: a professora de dança da academia, que era para lá
de gostosa e estava me dando toda bola do mundo, apesar de se dizer hetero
convicta. E nessa brincadeira, a noite passou sem pedir licença, enquanto
misturamos pinga com mel – especialidade do bar – com caipifrutas das mais
variadas. Aproveitei que dormiria na casa de Fabiana para me livrar do relógio
e dos limites. Meus pais não estavam me esperando e eu me dei o direito de
amanhecer o dia ao lado de meus amigos à beira do mar.
Chegando à casa de Fabiana, tomei
um banho gelado e cai na cama. Os pais dela haviam viajado e tudo estava em paz. Ela fechou as
cortinas, ligou o ar condicionado no máximo e o dia se transformou em noite. Adormeci
profundamente.
Olhei para meu corpo e eu não era
eu. Defronte a um espelho gigantesco, me observei cautelosamente. Era uma
mulher de aproximadamente quarenta anos, esguia, ruiva, com a pele coberta de
sardas e os olhos esverdeados, maduros, com algumas rugas marcando os cantos.
Vestia uma roupa escura, com um cachecol bordô e botas longas. Ao passo em que
me analisava, senti a temperatura baixíssima. Olhei então ao redor. Estava numa
sala imensa, cujas paredes eram de pedras cinza. Uma lareira fulgurava próxima
aos sofás de veludo vermelho. Tapetes cobriam o piso de mármore. Parecia um
castelo antigo. Janelões de vidro permitiam ver a neve que caía, esbranquiçando
a tarde. Ao me virar, vi atrás de mim um balcão onde um rapaz vestido com
roupas formais atendia os hospedes. Sim, era um hotel antigo onde eu estava.
Uma moça loira, mais jovem do que eu, falava com aquele que parecia ser gerente.
Como se sentisse meu olhar sob suas costas, ela se virou e sorriu. Era minha
esposa. Estávamos na Inglaterra. Lembrei de tudo, como se aquela existência
minha viesse numa rajada de vento. Aquela viagem era nossa lua-de-mel.
Ângela estava tentando conseguir
para nos duas a suíte principal. Era o quarto que havíamos namorado no site, meses atrás, quando nos deparamos
com o anúncio sobre o antigo castelo medieval que agora fazia parte do roteiro
do charme. Quando ela me piscou o olho, tive a certeza de que havia conseguido
convencer o jovem com seu infinito poder de persuasão.
Enquanto caminhávamos para o
quarto de braços dados, eu observava as paredes enormes e de pedras que tomavam
os corredores. Vários quadros disputavam espaço, certamente dos antigos habitantes
do castelo. Gerações passadas se faziam presentes, dependuradas.
No elevador antigo, certamente
adaptado ao espaço, entramos encolhidas, ao lado do funcionário que trazia
nossas malas. Ângela aproveitou e, me segurando carinhosamente, aproximou o
rosto de meu ouvido:
- Não era isso o que você tanto
queria? Finalmente chegamos!
No ultimo andar, as grades
douradas foram aberta. Estávamos numa espécie de torre. Encantadas com cada
detalhe do lugar, caminhamos para a última porta. Ali era a suíte principal.
Estendi uma cédula para o jovem, que pousou as bagagens no quarto e se retirou
educadamente, deixando-nos a sós.
Entrei na frente de Ângela que,
distraída com a vista da janela, não notou meu espanto. Fiquei estática, parada
diante da cama imensa de lençóis carmim. Na parede, sob a cabeceira, dormitava
um quadro. Só podia ser a dona do castelo e, certamente, daquele quarto. Os
olhos azuis e conhecidos me fizeram perdem os sentidos e me senti desfalecer.
Antes de cair no chão, uma fagulha de memória se acendeu em minha mente. Tive a
imagem de uma lança transfixando o peito da mulher do quadro. Vi morrer minha dama
de olhos azuis. Novamente a perdi.
Fabiana me segurava pelos ombros,
enquanto eu chorava convulsivamente. Ao me deparar com o olhar preocupado de
minha amiga, foi que tive consciência de que havia tido mais um sonho. Tomei a
água que ela me oferecia e me sentei na cama. Estava com o corpo febril e os
ouvidos zuniam como se submetidos a um estampido. Não conseguia ouvir direito o
que Fabiana me dizia, nem conseguia falar. Fiquei assim aturdida por alguns
instantes. Minha amiga abriu as janelas do quarto. Já era meio-dia. Respirei
fundo, buscando o ar que me faltava e ousei me erguer. Atravessei o quarto,
pisando em sonho e realidade. Encostei-me na sacada da janela. A piscina
cintilava e o dia estava lindo. Em nada se parecia com o dia de nevasca que
acabara de experimentar nos arredores de Londres.
Fabiana se encostou ao meu lado
e, ali mesmo, enquanto apreciávamos a vista, recuperei os batimentos de meu
coração e lhe contei meu novo encontro com a moça de olhos azuis. E o mais
estranho: apenas os olhos se mantinham iguais ao do outro sonho, não o corpo,
tampouco a face.
Aquele domingo foi mais
melancólico que o de costume. O sonho me perseguiu cada segundo. À tarde, nos
encontramos com Natascha e Vitor, seu filho, para um passeio na feirinha hippie
e uma água de coco. Depois, andamos pelo calçadão e encontramos Evandro e
Camilo, que tomavam um sorvete numa barraquinha em frente ao mar, como de
costume. Ficamos ali jogando conversa fora, nos preparando para segunda, que
começava com a aula chatíssima da bela professora de Direito Internacional. Os
olhos azuis, todavia, não me deixavam nem por instante. Vira e vexe, me via
procurando por ele entre os passantes.
A semana começou e continuei
minha vida tentando dar a ela os mesmos ares de normalidade. Eu e Fabiana
começamos o estágio; as provas da faculdade estavam terminando; Evandro, Camilo
e Natascha programavam nossa noite de ano novo; a professora de dança havia me
convidado para a confraternização da academia e meus pais estavam novamente
amorosos. Apenas um sentimento permanecia me incomodando: era o desejo insano
de reencontrar a moça de olhos azuis que sempre me embalava antes do sono.
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