segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

TODO AZUL DO MAR (Conto)


Capítulo II


O SEGUNDO SONHO


Os dias se passaram e nada de interessante aconteceu. Professores chatos, estudos corriqueiros, discussões em casa, encontros nos corredores da faculdade entre as aulas. Apenas no final de mês pude afirmar o contrário: eu e Fabiana fomos aprovadas no estágio do Ministério Público Federal, um dos mais concorridos entre os estudantes de Direito. Agora eu ganharia algum dinheiro, causaria algum orgulho a meus pais e, de quebra, poderia voltar a sair, pelo menos, aos sábados.

Dito e feito. Sábado à noite saímos para comemorar. Fomos a um dos bares mais alternativos da cidade, que se chamava Divininha. Rimos bastante das piadas de Evandro, do mau-humor constante de Natascha, das frescuras de Fabiana, das manias de perseguição de Camilo e de minha mais nova conquista: a professora de dança da academia, que era para lá de gostosa e estava me dando toda bola do mundo, apesar de se dizer hetero convicta. E nessa brincadeira, a noite passou sem pedir licença, enquanto misturamos pinga com mel – especialidade do bar – com caipifrutas das mais variadas. Aproveitei que dormiria na casa de Fabiana para me livrar do relógio e dos limites. Meus pais não estavam me esperando e eu me dei o direito de amanhecer o dia ao lado de meus amigos à beira do mar.

Chegando à casa de Fabiana, tomei um banho gelado e cai na cama. Os pais dela haviam viajado e tudo estava em paz. Ela fechou as cortinas, ligou o ar condicionado no máximo e o dia se transformou em noite. Adormeci profundamente.

Olhei para meu corpo e eu não era eu. Defronte a um espelho gigantesco, me observei cautelosamente. Era uma mulher de aproximadamente quarenta anos, esguia, ruiva, com a pele coberta de sardas e os olhos esverdeados, maduros, com algumas rugas marcando os cantos. Vestia uma roupa escura, com um cachecol bordô e botas longas. Ao passo em que me analisava, senti a temperatura baixíssima. Olhei então ao redor. Estava numa sala imensa, cujas paredes eram de pedras cinza. Uma lareira fulgurava próxima aos sofás de veludo vermelho. Tapetes cobriam o piso de mármore. Parecia um castelo antigo. Janelões de vidro permitiam ver a neve que caía, esbranquiçando a tarde. Ao me virar, vi atrás de mim um balcão onde um rapaz vestido com roupas formais atendia os hospedes. Sim, era um hotel antigo onde eu estava. Uma moça loira, mais jovem do que eu, falava com aquele que parecia ser gerente. Como se sentisse meu olhar sob suas costas, ela se virou e sorriu. Era minha esposa. Estávamos na Inglaterra. Lembrei de tudo, como se aquela existência minha viesse numa rajada de vento. Aquela viagem era nossa lua-de-mel.

Ângela estava tentando conseguir para nos duas a suíte principal. Era o quarto que havíamos namorado no site, meses atrás, quando nos deparamos com o anúncio sobre o antigo castelo medieval que agora fazia parte do roteiro do charme. Quando ela me piscou o olho, tive a certeza de que havia conseguido convencer o jovem com seu infinito poder de persuasão.

Enquanto caminhávamos para o quarto de braços dados, eu observava as paredes enormes e de pedras que tomavam os corredores. Vários quadros disputavam espaço, certamente dos antigos habitantes do castelo. Gerações passadas se faziam presentes, dependuradas.

No elevador antigo, certamente adaptado ao espaço, entramos encolhidas, ao lado do funcionário que trazia nossas malas. Ângela aproveitou e, me segurando carinhosamente, aproximou o rosto de meu ouvido:

- Não era isso o que você tanto queria? Finalmente chegamos!

No ultimo andar, as grades douradas foram aberta. Estávamos numa espécie de torre. Encantadas com cada detalhe do lugar, caminhamos para a última porta. Ali era a suíte principal. Estendi uma cédula para o jovem, que pousou as bagagens no quarto e se retirou educadamente, deixando-nos a sós.

Entrei na frente de Ângela que, distraída com a vista da janela, não notou meu espanto. Fiquei estática, parada diante da cama imensa de lençóis carmim. Na parede, sob a cabeceira, dormitava um quadro. Só podia ser a dona do castelo e, certamente, daquele quarto. Os olhos azuis e conhecidos me fizeram perdem os sentidos e me senti desfalecer. Antes de cair no chão, uma fagulha de memória se acendeu em minha mente. Tive a imagem de uma lança transfixando o peito da mulher do quadro. Vi morrer minha dama de olhos azuis. Novamente a perdi.

Fabiana me segurava pelos ombros, enquanto eu chorava convulsivamente. Ao me deparar com o olhar preocupado de minha amiga, foi que tive consciência de que havia tido mais um sonho. Tomei a água que ela me oferecia e me sentei na cama. Estava com o corpo febril e os ouvidos zuniam como se submetidos a um estampido. Não conseguia ouvir direito o que Fabiana me dizia, nem conseguia falar. Fiquei assim aturdida por alguns instantes. Minha amiga abriu as janelas do quarto. Já era meio-dia. Respirei fundo, buscando o ar que me faltava e ousei me erguer. Atravessei o quarto, pisando em sonho e realidade. Encostei-me na sacada da janela. A piscina cintilava e o dia estava lindo. Em nada se parecia com o dia de nevasca que acabara de experimentar nos arredores de Londres.

Fabiana se encostou ao meu lado e, ali mesmo, enquanto apreciávamos a vista, recuperei os batimentos de meu coração e lhe contei meu novo encontro com a moça de olhos azuis. E o mais estranho: apenas os olhos se mantinham iguais ao do outro sonho, não o corpo, tampouco a face.

Aquele domingo foi mais melancólico que o de costume. O sonho me perseguiu cada segundo. À tarde, nos encontramos com Natascha e Vitor, seu filho, para um passeio na feirinha hippie e uma água de coco. Depois, andamos pelo calçadão e encontramos Evandro e Camilo, que tomavam um sorvete numa barraquinha em frente ao mar, como de costume. Ficamos ali jogando conversa fora, nos preparando para segunda, que começava com a aula chatíssima da bela professora de Direito Internacional. Os olhos azuis, todavia, não me deixavam nem por instante. Vira e vexe, me via procurando por ele entre os passantes.

A semana começou e continuei minha vida tentando dar a ela os mesmos ares de normalidade. Eu e Fabiana começamos o estágio; as provas da faculdade estavam terminando; Evandro, Camilo e Natascha programavam nossa noite de ano novo; a professora de dança havia me convidado para a confraternização da academia e meus pais estavam novamente amorosos. Apenas um sentimento permanecia me incomodando: era o desejo insano de reencontrar a moça de olhos azuis que sempre me embalava antes do sono.

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