CAPÍTULO V
O ENVELOPE
E só então, diante daquela proposta disfarçada de presente, perfeitamente embrulhada por Fernanda, Manuela tomou pé do absurdo vivenciado. Meses haviam se passado; ela e Laura haviam terminado o longo namoro; as fotos de Espelhos D`água tinham lhe rendido vários prêmios; havia comprado um apartamento no Rio de Janeiro e agora morava só naquela grande cidade; mas, apesar de tantas mudanças e do correr do tempo, algo permanecia inabalado: o desejo de rever a mulher, da qual sequer sabia o nome!
Como e onde procurá-la? Esta foi a primeira pergunta lançada pela própria Manuela à amiga, que parecia igualmente entusiasmada.
Nos dias vindouros, nas tardes destinadas às férias de ambas, pelos cafés da Cidade Maravilhosa, as duas articularam vários planos e caminhos. Algum deles haveria de levar a Isabella. Era esta a certeza que Manuela buscava fortalecer, enquanto dissipava a possibilidade de tudo não ter passado de alucinação. Omitiu para Fernanda, inclusive, o fato de sempre ter visto Isabella quando estava a sós, ou seja, a presença da mulher misteriosa não havia tido, sequer, qualquer outro protagonista como testemunha, a não ser o filho, que também poderia, é bem verdade, ter surgido para compor o delírio. Mas tais elucubrações não mereciam ser, naquele momento, erguidas. Que pensassem no concreto e, com base nele, buscassem os vestígios e paradeiro da desconhecida.
Mas a esperança era estreita, afinal, da mulher de olhos de veludo, apenas duas pistas restavam: a profissão do marido; o nome e a doença do filho. E nada mais Isabella havia elucidado. Não havia dito o nome real, tampouco o sobrenome; não mencionara o nome do marido, tampouco da rede de hotéis de que era proprietário; não havia contado em que se formara; não disse, sequer, se estava em Espelhos D`água de férias, se lá morava, se o marido possuía hotel por aquelas partes, se estavam de passagem... Enfim, existiam poucas pontes a serem galgadas.
Foi Fernanda quem sugeriu. Começaria a pesquisa pelos poucos detalhes que circundavam o marido e a rede de hotelaria que lhe pertencia. Com esse intuito, pesquisaram se havia ou não hotel de grande porte pelas mediações de Espelhos D`água, mas nada foi encontrado. Logo deduziram que o casal não estava na cidade a trabalho.
Na seqüência, Manuela entrou em contato telefônico com Dalva, que conhecia praticamente todos os habitantes da cidade. Tentando não dar espaço para maiores questionamentos, depois de disfarçar o real motivo do telefonema e enveredar por uma série de corriqueiros assuntos, lhe interrogou se conhecia algum grande empresário do ramo de hotelaria que costumasse visitar Espelhos D`água, acompanhado da esposa e do filho, que era um jovem de aproximadamente quinze anos, acometido de autismo. E mais uma vez nenhuma informação foi dada. A amiga da mãe não lembrava de nenhuma família que se enquadrasse naquelas características.
Nos mesmos moldes, a fotógrafa ligou ainda para o amigo americano, dono do Recanto das Artes e da pequena pousada, que também não ouvira sequer falar em autismo, nada acrescentando às informações já tão parcas.
Assim, deram por finda a ponte que se originava nas características do marido, seguindo para a outra: a que tinha Lucas e o autismo por norte.
E, naquela direção, numa tarde de chuva, sentadas defronte ao computador, deram então os primeiros passos. Para antever os detalhes da vida de Isabella, certamente deveriam percorrer os da vida do filho, que lhe era tão amado. Pesquisariam, portanto, sobre o autismo. Quem sabe existiria um centro de estudos sobre o tema na Cidade Maravilhosa? Foi o que, acalentado a esperança, questionaram.
Com esse intuito, no Google, sem maiores pretensões, lançaram o nome da doença, seguido do da cidade onde estavam: “autismo” e “Rio de Janeiro”.
No correr das informações listadas em letras azuis, logo se surpreenderam. Com o estômago revirado, Manuela leu em voz alta:
- Fundação Bianor Travassos!
Era o nome do tio, irmão de Júlia, portador de autismo, que estava ali listado. Na seqüência, focava-se o endereço, sendo este prontamente anotado. Manuela não tinha conhecimento da existência daquela fundação e tal notícia, embora não tivesse ligação com sua Isabella, obviamente haveria de ter com a Isabella de Júlia, foi o que pontificou abismada.
Na mesma tarde, as duas, boquiabertas, leram em uníssono as informações contidas na placa que se erguia na entrada da mansão de muros esculpidos em aço e de jardins inigualáveis.
Aquela fundação havia sido inaugurada na década passada por Isabella Montgomery, filha de Vivian e John Montgomery, sendo este embaixador dos Estados Unidos residente no Brasil. O casal habitara a mansão durante anos, na companhia dos dois filhos: a fundadora da instituição e o irmão adotivo, que se chamava Bianor Travassos. O jovem era portador de autismo e, por amor, todos da família haviam se dedicado à causa. Com a morte dos pais e do irmão, Isabella Montgomery havia decidido regressar aos Estados Unidos, mas não sem antes inaugurar a fundação, que deixou sob os comandos da filha, também chamada Isabella, que era quem atualmente a coordenava.
Sem ar, Manuela enquadrou a foto estampada logo abaixo da placa, onde sorriam, lado a lado, mãe e filha: a fundadora da instituição e a atual coordenadora; a Isabella de Júlia e a sua Isabella! Era inacreditável! Finalmente a achara e por caminho inesperado! E ela se chamava, de fato, Isabella. Foi o que Manuela constatou com o coração aos saltos.
Aquele emaranhado de coincidências agitou-lhe o corpo de uma forma inusitada e Manuela, com os olhos semicerrados, levou a mão à fronte, enquanto sentia o sangue fugir-lhe dos braços, das pernas, das faces, das aquarelas externas e internas. Tudo se tornava acinzentado, inclusive a foto à sua frente, que estampava a tão buscada imagem. E antes que sentisse o corpo tombar na calçada, fechou os olhos, à beira do inconsciente. Foi quando lhe veio à mente uma última cena: a de uma secular cerejeira que, ao vento da tarde, despedia-se das sakuras que também tombavam no chão, como se finalmente cedessem após um grande embate.
E foi justamente ao sentir o perfume de sakuras que Manuela, tempo depois, despertou. Com a vista ainda turva, ousou abrir os olhos lentamente, enquanto sentia a cabeça pulsando de dor. Em seu interior, afoitamente, colidiam receios e dúvidas. O corpo pesava sobre uma superfície macia, como se estivesse amoldado em nuvens graúdas, mas de chuva. Era o peso do medo que a fazia ceder sobre a cama, estranhamente coberta por veludo azul.
Ao perceber o tecido, tomada de susto, bruscamente ergueu-se. Foi quando, logo à frente, numa moldura antiga, enquadrou outra fotografia surpreendente: era Júlia, ainda muito jovem, ao lado daquela que, certamente, era Isabella Montgomery, e Bianor.
Aturdida, enquanto piscava repetidamente os olhos, vagueou a vista pelo restante do quarto, notando que os móveis e demais utensílios eram por demais antigos, embora perfeitamente conservados. Sentiu-se em outros tempos. Presente disfarçado de passado ou passado disfarçado de presente? Não soube responder.
Foi quando dentro de si, em meio a uma densa floresta, finalmente se abriu a primeira clareira. Aquele, certamente, fora o quarto habitado pela mãe, quando ainda morava naquela casa, pontuou boquiaberta.
Um frio repentino gelou-lhe o estômago e ela, beirando o pânico, consultou o relógio com pressa. Na parede, ele marcava o meio-dia, embora bem soubesse que desmaiara no final da tarde. Pela janela, viu folhas amarelas despencando das árvores, como se repetissem o outono. Lembrou-se, instintivamente, do Lago das Ilusões, que naquela exata hora, fosse mesmo tal estação do ano, reproduziria de forma misteriosa a cidade. Quem sabe, outra realidade? Quem sabe, outra dimensão? Quem sabe o lago tivesse sido o portal de todas as miragens vistas, de todos os mistérios, de toda a sua perturbação? E ali, pasma, obtinha talvez a explicação.
Em meio ao agitar dos sentidos, Manuela fechou os olhos com força, como se buscasse afastar de si aquela angústia súbita, aquela confusão interna causada pelas imagens presentes, lembranças passadas e expectativas futuras. Foi quando, em meio à escuridão causada pelo cessar da visão, a audição pareceu traí-la. Atônita, pensou ter ouvido ao longe Veludo Azul e, na primeira estrofe da música, o trinco da porta girou.
Ao ser aberta, era a vez de a porta ganhar ares de portal. Como se viabilizasse a comunicação entre dois planos, permitiu o acesso da imagem anteriormente vista na foto que jazia dependurada no quarto. Sem fôlego, Manuela assistiu a entrada de Isabella Montgomery, o grande amor de Júlia.
Com a tez pálida, os olhos de um veludo azul e profundo, a mulher gradativamente se aproximou. Enquanto isto, Manuela permanecia imóvel, incrédula, estática. Lutando contra a insensatez daquela realidade e a impossibilidade daquela aparição, tornou a fechar os olhos fortemente e, respirando fundo, esperou os segundos que pôde, até sentir pousar sobre seus ombros duas mãos.
Era chegada a hora de enfrentar aquele fantasma de uma vez por todas! Foi o que Manuela, já impaciente com tanta covardia, pontuou. Mas, ao abrir os olhos e reacender o amarelo da íris, não foi a mesma Isabella que encontrou.
Não era a mãe, mas a filha que a esperava, segurando-a pelos ombros: era a sua Isabella, e não a de Júlia, que, mais uma vez e de forma inusitada, vinha ao seu encontro.
Sem questionar nada, Manuela pareceu emergir de toda a angústia e, livrando-se das águas turvas da dúvida, encheu-se de certeza quando, com nitidez, escolheu a imagem que simetricamente enquadrou: com as mãos trêmulas, segurou o rosto de Isabella com força, aproximando as bocas. Os desejos já estavam próximos o suficiente. As batidas dos corações de ambas faziam-se quase audíveis, evidentes. E, na sequência do enlace, os lábios fizeram-se resolutos e molhados, quando finalmente se tocaram com saudade e ardor.
Manuela experimentava agora um beijo que não fora roubado, tampouco fruto de desespero ou dor. Isabella a beijava com cuidado, com calma, com certeza, com calor.
Sentindo o corpo ser tomado de estupor e felicidade, como se buscasse comprovar que aquele encontro era fato, Manuela, por sobre os ombros da outra, consultou o espelho que tomava uma das paredes do quarto.
De relance, as viu no reflexo, mas, antes de ser tomada pela tranqüilidade, num piscar de olhos, a imagem das duas mulheres se transformou. E Manuela, com o coração aos saltos, pensou ver no próprio corpo, o corpo da mãe, e no corpo de sua Isabella a outra Isabella!
Interrompendo o beijo, horrorizada, Manuela se desvencilhou, afastando-se da estranha que beijara. Mas, dos poucos metros que distou, logo reviu a Isabella que amava. Os olhos de veludo azul fulguravam, incrédulos diante do afastamento da outra. E Manuela, mais uma vez, se aproximou, vitalmente confusa.
Foi quando a Isabella que parecia ser sua, tomando a frente dos atos, venceu a distância galgada e novamente a beijou. E, naquele beijo, não deixou espaço algum para dúvida. Com pressa, começou a livrar-se das próprias vestes, enquanto Manuela livrava-se das suas.
De pé, os corpos logo se reconheceram. Mais uma vez seios contra seios, rosto contra rosto, lábios contra lábios, ventre contra vente...ambas na ânsia do gozo.
Manuela deitou-se na cama, recebendo Isabella sobre si. No encaixe das pernas, as duas sentiram a umidade que logo as fez deslizar, uma sobre a outra.
O corpo esguio, alvo, sedento de Isabella suava, se movia, subia e descia de forma ritmada, alucinada, enquanto Manuela lhe pressionava as costas, acomodando os quadris, lhe enlaçando a cintura, lhe apertando com força, como se a quisesse mais ajustada, mais sua, mais encaixada em si: ventre com ventre, coxas entre coxas.
Isabella gemeu alto, anunciando o gozo, quando Manuela lhe apalpou um dos seios e começou a sugar o outro. Prevendo que a outra logo verteria todo o desejo em líquido, Manuela, por sobre as ancas que se moviam, buscou o espaço espremido entre as pernas de Isabella e, deslizando os dedos, penetrou-a. A umidade encontrada fez com que o contato imediatamente se aprofundasse e Manuela experimentasse quão dilatada estava a abertura quente que lhe era oferecida sem qualquer pudor. A que era penetrada exigiu mais força e a que penetrava prontamente atuou.
No espelho – que mais uma vez foi consultado naquele instante de sincronia pura –, tudo o que Manuela viu foi a imagem de duas mulheres nuas, misturadas em pernas, poros, líquidos e amor. A que era invadida logo tremeu enquanto engolia os dedos da invasora. E o gozo veio forte para as duas, foi esta a única certeza da expectadora.
Conhecidas ou desconhecidas, elas se amaram e esta era a verdade, foi o que Manuela, retomando a razão, ponderou. O presente de Fernanda fora, realmente, dado: enlaçadas, formavam um belo quadro, ambas despidas e saciadas sobre o veludo azul.
Mas Manuela bem sabia. Precisava recobrar a razão e questionar Isabella sobre uma série de coisas: seria ou não verdade o casamento, o filho, o autismo? Como justificar tantas coincidências: a mesma doença, o reencontro na mesma cidade, a conexão com Júlia, com o tio?
Como se compreendesse as inquietações da outra, Isabella ergueu-se da cama e vestiu-se em silêncio, como se se preparasse para elucidar todas as dúvidas. Manuela fez o mesmo, porém, mesmo depois de vestida, continuou a se sentir despida. É que Isabella, na explicação que logo veio, demonstrou saber muito sobre sua vida e sobre a de Júlia.
No mês de agosto, naquele outono, fazia exatos trinta anos que Júlia e Isabella Montgomery haviam se conhecido. E, assim como Manuela, a filha de Isabella, que possuía o mesmo nome, havia viajado para Espelhos D’água atendendo a um pedido: procurar vestígios de Júlia, por quem a mãe ainda era apaixonada.
Mas a missão era resgatar a história não apenas em imagens, como Manuela havia feito. Isabella Montgomery, a mãe da Isabella que explicava, queria resgatar o paradeiro da mulher que amava. Bem por isto, a filha, atendendo ao pedido, rumou para a cidade onde ambas se conheceram.
Entretanto, a Isabella que procurava não poderia jamais imaginar que a saga de amor proibido continuaria. Mesmo sem esperar ou prever, não encontrou Júlia, mas conheceu sua filha. E, na sequência dos dias, ironicamente, terminou por viver paixão semelhante à de sua mãe, em pele e em sentidos, o que a deixou, de início, absolutamente atordoada e a fez fugir em desatino.
Mas agora, ao rever Manuela, Isabella bem sabia: não se podia fugir do destino. Com os olhos de veludo brilhando, por fim, ela rematou, enquanto olhava dentro dos olhos amarelos: infelizmente Júlia havia morrido e, com ela, a esperança de Isabella Montegomery, sua mãe, viabilizar um reencontro. Mas, se a sorte faltou na primeira história, não faltaria na segunda, que era a delas. Isabella, a filha, estava viva e assim queria continuar a se sentir nos braços de Manuela, caso também fosse a vontade da outra.
Manuela não precisou sequer de um segundo para, internamente, obter a resposta que, na sequência, daria àquela proposta docemente formulada. Ela não tinha dúvida. A certeza era inteira e assim passaria por qualquer porta, mesmo a mais estreita. A vontade de ter Isabella em sua vida era imensa e eterna. Faria de tudo para que aquele amor não sucumbisse aos ventos trazidos pelo preconceito, feito as flores de cerejeira. Devia isso a si, a ambas, às mães, que, ao contrário delas, cederam.
Mas, quando finalmente pronunciou o “sim”, Manuela despertou. Num salto, ergueu-se da cama de solteiro, forrada com uma colcha qualquer, que nem de longe lembrava a de veludo azul. Ao redor, móveis atuais, mas nada conservados, todos sujos. No chão, o mesmo carpete acinzentado. Foi quando constatou: estava em um dos quartos do mesmo hotel barato. Com amargura, imaginou se a altura seria a condizente com o décimo sétimo andar. Ao aproximar-se da janela, viu carros e pessoas que, lá embaixo, pareciam de miniaturas. Sim, nem o andar havia mudado. Ela, aparentemente, não saíra do lugar.
Foi quando, confusa, viu sobre a cômoda um envelope, que já estava aberto. Finalmente lembrou-se: era o conto! Vagamente, sua memória lhe ofereceu algumas lembranças dos derradeiros dias. Fernanda, que novamente visitava o Rio de Janeiro, já o havia escrito e, naquela exata tarde, lhe entregado. Era o prometido e tão esperado presente. Manuela só não se recordava se já o havia lido.
Meses haviam se passado desde o último encontro entre as amigas, foi o que percebeu ao consultar, no envelope, a data. Mas apenas o reencontro entre ela e Fernanda havia sido real, enquanto o com Isabella, ou teria sido fruto de um sonho ou fictício. “A encomenda”, era este mesmo o título.
Com pesar, andou pelo quarto, em busca, talvez, de um único vestígio daquela realidade inventada que, sorrateira e novamente, lhe havia sido furtada.
Foi quando, por baixo da porta, como se o destino lhe atendesse ao pedido, viu um bilhete que, escrito em letras que denunciavam pressa, dizia:
“Estou lhe aguardando do outro lado.”
E mais uma vez o corpo de Manuela tonteou, como se por dentro colidissem todas as dúvidas que julgara haver extirpado. Ali estavam novamente, talvez fortalecidas, sempre inimigas.
A que lado o bilhete se referia? De que lado a que o escrevera se encontrava? Do outro lado da porta, do outro lado do lago ou do outro lado da vida?
Cada interrogação formulada atingia Manuela feito tiro. A resposta, ainda não possuía. Sabia tão somente que em um daqueles lados Isabella haveria de estar. Foi esta a certeza que lhe tomou de súbito, enquanto, com a mesma ênfase, tomou também o trinco da porta, que, já sem medo, abriu num giro.
O ENVELOPE
E só então, diante daquela proposta disfarçada de presente, perfeitamente embrulhada por Fernanda, Manuela tomou pé do absurdo vivenciado. Meses haviam se passado; ela e Laura haviam terminado o longo namoro; as fotos de Espelhos D`água tinham lhe rendido vários prêmios; havia comprado um apartamento no Rio de Janeiro e agora morava só naquela grande cidade; mas, apesar de tantas mudanças e do correr do tempo, algo permanecia inabalado: o desejo de rever a mulher, da qual sequer sabia o nome!
Como e onde procurá-la? Esta foi a primeira pergunta lançada pela própria Manuela à amiga, que parecia igualmente entusiasmada.
Nos dias vindouros, nas tardes destinadas às férias de ambas, pelos cafés da Cidade Maravilhosa, as duas articularam vários planos e caminhos. Algum deles haveria de levar a Isabella. Era esta a certeza que Manuela buscava fortalecer, enquanto dissipava a possibilidade de tudo não ter passado de alucinação. Omitiu para Fernanda, inclusive, o fato de sempre ter visto Isabella quando estava a sós, ou seja, a presença da mulher misteriosa não havia tido, sequer, qualquer outro protagonista como testemunha, a não ser o filho, que também poderia, é bem verdade, ter surgido para compor o delírio. Mas tais elucubrações não mereciam ser, naquele momento, erguidas. Que pensassem no concreto e, com base nele, buscassem os vestígios e paradeiro da desconhecida.
Mas a esperança era estreita, afinal, da mulher de olhos de veludo, apenas duas pistas restavam: a profissão do marido; o nome e a doença do filho. E nada mais Isabella havia elucidado. Não havia dito o nome real, tampouco o sobrenome; não mencionara o nome do marido, tampouco da rede de hotéis de que era proprietário; não havia contado em que se formara; não disse, sequer, se estava em Espelhos D`água de férias, se lá morava, se o marido possuía hotel por aquelas partes, se estavam de passagem... Enfim, existiam poucas pontes a serem galgadas.
Foi Fernanda quem sugeriu. Começaria a pesquisa pelos poucos detalhes que circundavam o marido e a rede de hotelaria que lhe pertencia. Com esse intuito, pesquisaram se havia ou não hotel de grande porte pelas mediações de Espelhos D`água, mas nada foi encontrado. Logo deduziram que o casal não estava na cidade a trabalho.
Na seqüência, Manuela entrou em contato telefônico com Dalva, que conhecia praticamente todos os habitantes da cidade. Tentando não dar espaço para maiores questionamentos, depois de disfarçar o real motivo do telefonema e enveredar por uma série de corriqueiros assuntos, lhe interrogou se conhecia algum grande empresário do ramo de hotelaria que costumasse visitar Espelhos D`água, acompanhado da esposa e do filho, que era um jovem de aproximadamente quinze anos, acometido de autismo. E mais uma vez nenhuma informação foi dada. A amiga da mãe não lembrava de nenhuma família que se enquadrasse naquelas características.
Nos mesmos moldes, a fotógrafa ligou ainda para o amigo americano, dono do Recanto das Artes e da pequena pousada, que também não ouvira sequer falar em autismo, nada acrescentando às informações já tão parcas.
Assim, deram por finda a ponte que se originava nas características do marido, seguindo para a outra: a que tinha Lucas e o autismo por norte.
E, naquela direção, numa tarde de chuva, sentadas defronte ao computador, deram então os primeiros passos. Para antever os detalhes da vida de Isabella, certamente deveriam percorrer os da vida do filho, que lhe era tão amado. Pesquisariam, portanto, sobre o autismo. Quem sabe existiria um centro de estudos sobre o tema na Cidade Maravilhosa? Foi o que, acalentado a esperança, questionaram.
Com esse intuito, no Google, sem maiores pretensões, lançaram o nome da doença, seguido do da cidade onde estavam: “autismo” e “Rio de Janeiro”.
No correr das informações listadas em letras azuis, logo se surpreenderam. Com o estômago revirado, Manuela leu em voz alta:
- Fundação Bianor Travassos!
Era o nome do tio, irmão de Júlia, portador de autismo, que estava ali listado. Na seqüência, focava-se o endereço, sendo este prontamente anotado. Manuela não tinha conhecimento da existência daquela fundação e tal notícia, embora não tivesse ligação com sua Isabella, obviamente haveria de ter com a Isabella de Júlia, foi o que pontificou abismada.
Na mesma tarde, as duas, boquiabertas, leram em uníssono as informações contidas na placa que se erguia na entrada da mansão de muros esculpidos em aço e de jardins inigualáveis.
Aquela fundação havia sido inaugurada na década passada por Isabella Montgomery, filha de Vivian e John Montgomery, sendo este embaixador dos Estados Unidos residente no Brasil. O casal habitara a mansão durante anos, na companhia dos dois filhos: a fundadora da instituição e o irmão adotivo, que se chamava Bianor Travassos. O jovem era portador de autismo e, por amor, todos da família haviam se dedicado à causa. Com a morte dos pais e do irmão, Isabella Montgomery havia decidido regressar aos Estados Unidos, mas não sem antes inaugurar a fundação, que deixou sob os comandos da filha, também chamada Isabella, que era quem atualmente a coordenava.
Sem ar, Manuela enquadrou a foto estampada logo abaixo da placa, onde sorriam, lado a lado, mãe e filha: a fundadora da instituição e a atual coordenadora; a Isabella de Júlia e a sua Isabella! Era inacreditável! Finalmente a achara e por caminho inesperado! E ela se chamava, de fato, Isabella. Foi o que Manuela constatou com o coração aos saltos.
Aquele emaranhado de coincidências agitou-lhe o corpo de uma forma inusitada e Manuela, com os olhos semicerrados, levou a mão à fronte, enquanto sentia o sangue fugir-lhe dos braços, das pernas, das faces, das aquarelas externas e internas. Tudo se tornava acinzentado, inclusive a foto à sua frente, que estampava a tão buscada imagem. E antes que sentisse o corpo tombar na calçada, fechou os olhos, à beira do inconsciente. Foi quando lhe veio à mente uma última cena: a de uma secular cerejeira que, ao vento da tarde, despedia-se das sakuras que também tombavam no chão, como se finalmente cedessem após um grande embate.
E foi justamente ao sentir o perfume de sakuras que Manuela, tempo depois, despertou. Com a vista ainda turva, ousou abrir os olhos lentamente, enquanto sentia a cabeça pulsando de dor. Em seu interior, afoitamente, colidiam receios e dúvidas. O corpo pesava sobre uma superfície macia, como se estivesse amoldado em nuvens graúdas, mas de chuva. Era o peso do medo que a fazia ceder sobre a cama, estranhamente coberta por veludo azul.
Ao perceber o tecido, tomada de susto, bruscamente ergueu-se. Foi quando, logo à frente, numa moldura antiga, enquadrou outra fotografia surpreendente: era Júlia, ainda muito jovem, ao lado daquela que, certamente, era Isabella Montgomery, e Bianor.
Aturdida, enquanto piscava repetidamente os olhos, vagueou a vista pelo restante do quarto, notando que os móveis e demais utensílios eram por demais antigos, embora perfeitamente conservados. Sentiu-se em outros tempos. Presente disfarçado de passado ou passado disfarçado de presente? Não soube responder.
Foi quando dentro de si, em meio a uma densa floresta, finalmente se abriu a primeira clareira. Aquele, certamente, fora o quarto habitado pela mãe, quando ainda morava naquela casa, pontuou boquiaberta.
Um frio repentino gelou-lhe o estômago e ela, beirando o pânico, consultou o relógio com pressa. Na parede, ele marcava o meio-dia, embora bem soubesse que desmaiara no final da tarde. Pela janela, viu folhas amarelas despencando das árvores, como se repetissem o outono. Lembrou-se, instintivamente, do Lago das Ilusões, que naquela exata hora, fosse mesmo tal estação do ano, reproduziria de forma misteriosa a cidade. Quem sabe, outra realidade? Quem sabe, outra dimensão? Quem sabe o lago tivesse sido o portal de todas as miragens vistas, de todos os mistérios, de toda a sua perturbação? E ali, pasma, obtinha talvez a explicação.
Em meio ao agitar dos sentidos, Manuela fechou os olhos com força, como se buscasse afastar de si aquela angústia súbita, aquela confusão interna causada pelas imagens presentes, lembranças passadas e expectativas futuras. Foi quando, em meio à escuridão causada pelo cessar da visão, a audição pareceu traí-la. Atônita, pensou ter ouvido ao longe Veludo Azul e, na primeira estrofe da música, o trinco da porta girou.
Ao ser aberta, era a vez de a porta ganhar ares de portal. Como se viabilizasse a comunicação entre dois planos, permitiu o acesso da imagem anteriormente vista na foto que jazia dependurada no quarto. Sem fôlego, Manuela assistiu a entrada de Isabella Montgomery, o grande amor de Júlia.
Com a tez pálida, os olhos de um veludo azul e profundo, a mulher gradativamente se aproximou. Enquanto isto, Manuela permanecia imóvel, incrédula, estática. Lutando contra a insensatez daquela realidade e a impossibilidade daquela aparição, tornou a fechar os olhos fortemente e, respirando fundo, esperou os segundos que pôde, até sentir pousar sobre seus ombros duas mãos.
Era chegada a hora de enfrentar aquele fantasma de uma vez por todas! Foi o que Manuela, já impaciente com tanta covardia, pontuou. Mas, ao abrir os olhos e reacender o amarelo da íris, não foi a mesma Isabella que encontrou.
Não era a mãe, mas a filha que a esperava, segurando-a pelos ombros: era a sua Isabella, e não a de Júlia, que, mais uma vez e de forma inusitada, vinha ao seu encontro.
Sem questionar nada, Manuela pareceu emergir de toda a angústia e, livrando-se das águas turvas da dúvida, encheu-se de certeza quando, com nitidez, escolheu a imagem que simetricamente enquadrou: com as mãos trêmulas, segurou o rosto de Isabella com força, aproximando as bocas. Os desejos já estavam próximos o suficiente. As batidas dos corações de ambas faziam-se quase audíveis, evidentes. E, na sequência do enlace, os lábios fizeram-se resolutos e molhados, quando finalmente se tocaram com saudade e ardor.
Manuela experimentava agora um beijo que não fora roubado, tampouco fruto de desespero ou dor. Isabella a beijava com cuidado, com calma, com certeza, com calor.
Sentindo o corpo ser tomado de estupor e felicidade, como se buscasse comprovar que aquele encontro era fato, Manuela, por sobre os ombros da outra, consultou o espelho que tomava uma das paredes do quarto.
De relance, as viu no reflexo, mas, antes de ser tomada pela tranqüilidade, num piscar de olhos, a imagem das duas mulheres se transformou. E Manuela, com o coração aos saltos, pensou ver no próprio corpo, o corpo da mãe, e no corpo de sua Isabella a outra Isabella!
Interrompendo o beijo, horrorizada, Manuela se desvencilhou, afastando-se da estranha que beijara. Mas, dos poucos metros que distou, logo reviu a Isabella que amava. Os olhos de veludo azul fulguravam, incrédulos diante do afastamento da outra. E Manuela, mais uma vez, se aproximou, vitalmente confusa.
Foi quando a Isabella que parecia ser sua, tomando a frente dos atos, venceu a distância galgada e novamente a beijou. E, naquele beijo, não deixou espaço algum para dúvida. Com pressa, começou a livrar-se das próprias vestes, enquanto Manuela livrava-se das suas.
De pé, os corpos logo se reconheceram. Mais uma vez seios contra seios, rosto contra rosto, lábios contra lábios, ventre contra vente...ambas na ânsia do gozo.
Manuela deitou-se na cama, recebendo Isabella sobre si. No encaixe das pernas, as duas sentiram a umidade que logo as fez deslizar, uma sobre a outra.
O corpo esguio, alvo, sedento de Isabella suava, se movia, subia e descia de forma ritmada, alucinada, enquanto Manuela lhe pressionava as costas, acomodando os quadris, lhe enlaçando a cintura, lhe apertando com força, como se a quisesse mais ajustada, mais sua, mais encaixada em si: ventre com ventre, coxas entre coxas.
Isabella gemeu alto, anunciando o gozo, quando Manuela lhe apalpou um dos seios e começou a sugar o outro. Prevendo que a outra logo verteria todo o desejo em líquido, Manuela, por sobre as ancas que se moviam, buscou o espaço espremido entre as pernas de Isabella e, deslizando os dedos, penetrou-a. A umidade encontrada fez com que o contato imediatamente se aprofundasse e Manuela experimentasse quão dilatada estava a abertura quente que lhe era oferecida sem qualquer pudor. A que era penetrada exigiu mais força e a que penetrava prontamente atuou.
No espelho – que mais uma vez foi consultado naquele instante de sincronia pura –, tudo o que Manuela viu foi a imagem de duas mulheres nuas, misturadas em pernas, poros, líquidos e amor. A que era invadida logo tremeu enquanto engolia os dedos da invasora. E o gozo veio forte para as duas, foi esta a única certeza da expectadora.
Conhecidas ou desconhecidas, elas se amaram e esta era a verdade, foi o que Manuela, retomando a razão, ponderou. O presente de Fernanda fora, realmente, dado: enlaçadas, formavam um belo quadro, ambas despidas e saciadas sobre o veludo azul.
Mas Manuela bem sabia. Precisava recobrar a razão e questionar Isabella sobre uma série de coisas: seria ou não verdade o casamento, o filho, o autismo? Como justificar tantas coincidências: a mesma doença, o reencontro na mesma cidade, a conexão com Júlia, com o tio?
Como se compreendesse as inquietações da outra, Isabella ergueu-se da cama e vestiu-se em silêncio, como se se preparasse para elucidar todas as dúvidas. Manuela fez o mesmo, porém, mesmo depois de vestida, continuou a se sentir despida. É que Isabella, na explicação que logo veio, demonstrou saber muito sobre sua vida e sobre a de Júlia.
No mês de agosto, naquele outono, fazia exatos trinta anos que Júlia e Isabella Montgomery haviam se conhecido. E, assim como Manuela, a filha de Isabella, que possuía o mesmo nome, havia viajado para Espelhos D’água atendendo a um pedido: procurar vestígios de Júlia, por quem a mãe ainda era apaixonada.
Mas a missão era resgatar a história não apenas em imagens, como Manuela havia feito. Isabella Montgomery, a mãe da Isabella que explicava, queria resgatar o paradeiro da mulher que amava. Bem por isto, a filha, atendendo ao pedido, rumou para a cidade onde ambas se conheceram.
Entretanto, a Isabella que procurava não poderia jamais imaginar que a saga de amor proibido continuaria. Mesmo sem esperar ou prever, não encontrou Júlia, mas conheceu sua filha. E, na sequência dos dias, ironicamente, terminou por viver paixão semelhante à de sua mãe, em pele e em sentidos, o que a deixou, de início, absolutamente atordoada e a fez fugir em desatino.
Mas agora, ao rever Manuela, Isabella bem sabia: não se podia fugir do destino. Com os olhos de veludo brilhando, por fim, ela rematou, enquanto olhava dentro dos olhos amarelos: infelizmente Júlia havia morrido e, com ela, a esperança de Isabella Montegomery, sua mãe, viabilizar um reencontro. Mas, se a sorte faltou na primeira história, não faltaria na segunda, que era a delas. Isabella, a filha, estava viva e assim queria continuar a se sentir nos braços de Manuela, caso também fosse a vontade da outra.
Manuela não precisou sequer de um segundo para, internamente, obter a resposta que, na sequência, daria àquela proposta docemente formulada. Ela não tinha dúvida. A certeza era inteira e assim passaria por qualquer porta, mesmo a mais estreita. A vontade de ter Isabella em sua vida era imensa e eterna. Faria de tudo para que aquele amor não sucumbisse aos ventos trazidos pelo preconceito, feito as flores de cerejeira. Devia isso a si, a ambas, às mães, que, ao contrário delas, cederam.
Mas, quando finalmente pronunciou o “sim”, Manuela despertou. Num salto, ergueu-se da cama de solteiro, forrada com uma colcha qualquer, que nem de longe lembrava a de veludo azul. Ao redor, móveis atuais, mas nada conservados, todos sujos. No chão, o mesmo carpete acinzentado. Foi quando constatou: estava em um dos quartos do mesmo hotel barato. Com amargura, imaginou se a altura seria a condizente com o décimo sétimo andar. Ao aproximar-se da janela, viu carros e pessoas que, lá embaixo, pareciam de miniaturas. Sim, nem o andar havia mudado. Ela, aparentemente, não saíra do lugar.
Foi quando, confusa, viu sobre a cômoda um envelope, que já estava aberto. Finalmente lembrou-se: era o conto! Vagamente, sua memória lhe ofereceu algumas lembranças dos derradeiros dias. Fernanda, que novamente visitava o Rio de Janeiro, já o havia escrito e, naquela exata tarde, lhe entregado. Era o prometido e tão esperado presente. Manuela só não se recordava se já o havia lido.
Meses haviam se passado desde o último encontro entre as amigas, foi o que percebeu ao consultar, no envelope, a data. Mas apenas o reencontro entre ela e Fernanda havia sido real, enquanto o com Isabella, ou teria sido fruto de um sonho ou fictício. “A encomenda”, era este mesmo o título.
Com pesar, andou pelo quarto, em busca, talvez, de um único vestígio daquela realidade inventada que, sorrateira e novamente, lhe havia sido furtada.
Foi quando, por baixo da porta, como se o destino lhe atendesse ao pedido, viu um bilhete que, escrito em letras que denunciavam pressa, dizia:
“Estou lhe aguardando do outro lado.”
E mais uma vez o corpo de Manuela tonteou, como se por dentro colidissem todas as dúvidas que julgara haver extirpado. Ali estavam novamente, talvez fortalecidas, sempre inimigas.
A que lado o bilhete se referia? De que lado a que o escrevera se encontrava? Do outro lado da porta, do outro lado do lago ou do outro lado da vida?
Cada interrogação formulada atingia Manuela feito tiro. A resposta, ainda não possuía. Sabia tão somente que em um daqueles lados Isabella haveria de estar. Foi esta a certeza que lhe tomou de súbito, enquanto, com a mesma ênfase, tomou também o trinco da porta, que, já sem medo, abriu num giro.