quarta-feira, 27 de abril de 2016

ÓDIO CONSUMADO


 

 Seus namorados eram amigos

Apenas por isto se encontraram

Não fosse a afinidade entre eles

Elas jamais teriam se afinado

 

Iam a praia todo domingo

Os dois, até tarde, surfavam

Elas ficavam na areia

Sem lamentar a ausência de ambos

Nadavam, isto sim, em seus próprios diálogos

 

Eram muito diferentes

Bruna natural, extrovertida, desinibida

Usava biquines minúsculos,

Segura que era do próprio corpo

Trabalhado tanto quanto seu espírito

 

Carol, cheia de manias

Protetor solar, óculos escuros, maiô clássico

Tinha medo não apenas do sol: da vida

 

À noite, em restaurantes caros,

Os quatro tomavam vinho

As duas, bebiam-se nos olhares

Falavam-se sem palavras

Enquanto o namorado de uma criticava certo carro

E o outro, considerava-o "uma máquina"

 

No cinema, sentavam-se intercaladas

Mas as frases que mais marcavam Bruna

Eram justamente as que, durante o jantar, Carol citava

 

Nunca exageravam nas bebidas

Mantinham a distância necessária

Até que numa sexta inusitada

Decidiram ir a certa boate

 

O show era de uma stripper festejada

Conhecida por suas curvas e audácia em todo o meio masculino

Na impossibilidade de irem só os rapazes

Resignados, mas convictos

Levaram as namoradas

 

A vodka gelada era servida, sorvida

E com exagero por todos

Os corpos quentes, menos pelo calor, mais pelo desassossego

Cada um com seus arroubos

 

Os rapazes haviam se afastado

No bar, pediam outra rodada

Bruna olhava a moça seminua sobre o palco

Carol, captando o momento, valendo-se da embriaguez que libertava

Aproximou-se da outra, sentindo-lhe o perfume

E perguntou, quase roçando-lhe os lábios:

 

"Você já beijou outra garota?"

A resposta veio certeira:

"Não, Carolina"

"Mas lhe beiraria inteira"

"E disso você já sabe"

 

Atônita, mas excitada, Carol continuou:

"Pois eu odeio essa vontade insana"

"De morder esses seus lábios"

"Odeio o fogo que me arde quando você me olha assim "

"Odeio, sobretudo, ver suas mãos e imaginar"

"O  quanto delas cabe em mim"

 

Bruna riu sem disfarce

Por baixo da mesa,

Com a firmeza necessária,

Tocou a perna de Carol,

Já inteiramente arrepiada,

E continuou o passeio,

Sem pressa, só devaneio,

Até a renda molhada

 

Ao constatar o mútuo desejo

Bruna ordenou, sem qualquer recato:

"Pois vamos sair agora"

"Quero sentir todo esse ódio"

"Dentro de um generoso quarto."

 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

ALAMEDA


 

ALAMEDA

 

O rapaz reclamou à amiga:

"Não sou bom com as palavras"

"Apaixonei-me por Amanda"

"Ajude-me a conquistá-la"

 

Cíntia, nem sempre contida

Propôs então ao rapaz:

"Criemos logo um e-mail"

"Um bom título"

"Sem rodeio"

"Será esse o melhor meio"

"Eu escrevo por você"

"Que ao fim há de assinar"

 

O acordo foi selado

E-mail, envio, silêncio

Um, dois, três dias

No quarto, uma resposta

Nada além de uma linha

"É difícil acreditar"

"Que alguém com tantos músculos"

"Possua flores no olhar"

 

O calendário foi virando

Encontros na faculdade

O rapaz sorria de longe

Amanda ensaiava reciprocidade

 

Nas madrugadas, os e-mails eram longos

Sinceros, quase íntimos

Pactuavam sentimentos, sentidos, sonhos

Poeira, escuridão, desabrigo.

 

Era noite, despedida

Mais uma turma findava

No pátio da faculdade

Entre alamedas floridas

Amanda cruzou com Cíntia

E puxou-a pelo braço

 

"As flores que recebo dia a dia"

"Todas em forma de palavras"

"Sei que são suas, não minta"

Cíntia olhou-a, calada

 

Nos olhos de uma a outra se refletia

Vertigem e perfume exalavam

Cíntia afastou-se aturdida

Não sem antes confessar:

"Não fosse por amizade a Renato"

"Mergulhava agora em sua boca "

"Como já mergulho em seu olhar"

 

Amanda ousou, aflita

Convencer a outra jovem:

"Com tuas mãos cultivaste tantas flores"

"A cada palavra escrita"

"Com tuas mãos, colha-as agora"

"Não é Renato quem quero"

"Cada pétala que senti"

"Vejo apenas em seus olhos"

 

Lábios tocaram-se em sincronia

Sorveram-se, provaram-se

Macios feito flor

Da alameda esquecida

Que renascia, colorida

Ao ver brotar mais um amor.

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O PERCURSO



A moça fechou atrás de si a porta
Nos lábios trêmulos um pedido:
"Beije-me agora"
"Basta de tempo perdido"

A outra moça pôs-se assustada
Apesar de ser lésbica assumida
E ter enfrentado hordas de fantasmas
Nos labirintos da vida

Mergulhando nos olhos claros
Só pode dizer num sussurro:
"Você não está preparada"
"Pense bem em seu futuro"
"É noiva, careta, mimada"
"Se te beijo, te assusto"

Em resposta, a moça casta
Despiu-se do vestido de seda
O corpo nu oferecido
Coberto só de certeza
Na ordem, o tom foi seguro:
"Comece beijando meus pés"
"Até alcançar minha boca"
"Garanto que me acostumo."

Abril/2016

MARINA PORTECLIS

quarta-feira, 13 de abril de 2016

PÉTALA POR PÉTALA


Os cabelos ruivos, sob o sol, brilhavam ainda mais

Nos olhos verdes, lagos translúcidos

Maculados por ondas de um passado que não lhe deixava em paz

Ao virar a esquina, frutas vermelhas

Não as da barraca de feira, em meio ao mercado

Eram lábios rubros e fartos

Da moça que, alheia a outra, vendia flores

Entregou uma nota por duas rosas

De troco, recebeu moeda e sorriso

Com delicadeza, pôs uma das flores nos próprios cabelos

Com ousadia, esticou a outra para a vendedora, dona de olhos negros e expressivos

Surpresa e um rosto corado, foi tudo o que a compradora viu

Nenhuma promessa, nenhum recado

Nesgas do passado sombrio

Longos segundos de uma ansiedade louca

A florista pegou a rosa ofertada, mas logo a devolveu:

"Prefiro que volte amanhã − nas entrelinhas, um "sempre" − para buscar outra"
 
E nunca deram adeus.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

CAFÉ


 
 
Líquido quente que nos serve a vida

A lua, da varanda, em seu escuro

refletida

 

O cheiro da infância

A ânsia da escola

Com café e pão

servida

 

A madrugada requentada pré-vestibular

 

O corredor do hospital vazio

Passos e copos plásticos trocados e substituídos

Café e alta e casa

Café e cura e par

 

Café com livro

Café contigo

Café comigo

 

Café

Líquido contido que nos serve o mar.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

ETERNIDADE RELATIVA



Prefiro ser vinho tinto,
Servido,
Sorvido,
Esquecido então
A ser taça eternamente fria,
Sujeita ao vazio
E ao chão.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

(RE)CICLO



Sou a água que escorre em minha face,
A boca que a captura.

Sou o vento que açoita meus cabelos,
As mãos que os coadunam.

Sou a terra que me suja as vestes,
A vontade que as despe.

Sou o fogo que queima minha alma,
E novamente a água.