Às vezes é preciso ser livre
Livrar-se da própria liberdade simétrica
Que se guarda casta para o final de semana
Livrar-se da rima que consola o texto, mas represa a fala
As asas do verso
Livrar-se na segunda-feira
Sem se importar se é segunda-feira
E viver um sábado
Às vezes é preciso ser leve
E andar lentamente, mesmo quando atrasado
Não se contorcer diante do erro, apenas aceitá-lo
Perder um prazo sem perder a paz
Dormir até mais tarde
Deitar mais cedo sem ver o jornal
Assistir os cabelos brancos sem medo
Rever fotos antigas sem peso
Se despedir da juventude sem choro
Sem se comparar
Às vezes é preciso ser forte
E rasgar a carta amada sem se lamentar
Arremessar a prova do crime nas águas escuras do tempo
Esquecer da vingança
Não exigir o perdão
Deixar de mergulhar e velejar
Mas para ser direito
É preciso ter sido avesso
E se avessar sangra
Sangue que só o escoar inteiro estanca
Sangue vermelho-carne
Carne viva, aberta, pulsante
Enquanto isso
Ser preso, pesado, covarde faz parte
Pois, Como diria Lispector,
"O que é vivo, por ser vivo, se contrai"
Contraio-me enfim
Às vezes
E, às vezes, de meu parto finalmente nasço em paz.
sexta-feira, 25 de abril de 2014
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
SUPERLATIVAMENTE
Amar é superlativo
É verbo de constante infinitivo
Já dizia Nelson Rodrigues:
Pouco Amor Não é Amor
Ame seja quem for
Não leia rótulo
Ignore nome
Não veja cor
Não conte idades
Não limite o sexo
Faça um protesto
A quem quiser lhe impor
Moldura de amor
O amor é mar
Que se espalha amplo
Sem represa e sem espanto
O amor é canto
Que ecoa alto
É pranto sem dor
É o mais alto dos saltos
E da queda não se morre
Se renasce em festa
Pois amor é trégua
Depois de séculos de guerra
É chuva sem inverno
É canteiro em flor.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
TODO AZUL DO MAR (Conto)
Capítulo IV
A REALIDADE
As aulas voltaram e, com elas,
Maria Amélia pelos corredores. Pela primeira vez em minha vida, tive medo.
Sempre que nossos olhares se cruzavam, ela sorria e acenava simpática, apesar
dos olhares avessos das amigas. Eu retribuía, mas tentava me mostrar
indiferente. Não queria que ela percebesse o que me causava. Aliás, eu mesma
não queria ver.
Na primeira semana depois do
retomada das aulas, cedi à Cristiana e na academia mesmo, numa das cabines do
vestiário, transamos. Foi muito bom, como sempre. Era indiscutível o prazer que
ela me dava. Resolvi então que me prenderia a isto e bastaria. Passamos então a
ensaiar um namoro.
Não éramos apenas boas parceiras
de cama. Entediamos-nos bem em várias coisas e, sobretudo, ríamos muito quando
juntas. Cristiana era inteligente, envolvente e parecia cada dia mais disposta
a assumir nosso romance, o que me surpreendia e causava admiração.
Sempre imaginei que ela seria
mais uma daquelas enrustidas, que me usaria e a quem eu usaria, inclusive
quando arrumasse um namorado para fazer de trouxa. Mais uma vez me enganei.
Definitivamente ela não era assim. Na academia, demonstrava todo o carinho que
sentia por mim aos olhos do público, sempre arrumando um espaço para pegar
minha mão e me dar um beijo no rosto. As pessoas pareciam não acreditar no que
viam. Algumas mulheres fingiam não ver, enquanto os homens vacilavam entre
lamento e excitação. O fato era que nosso namoro estava se tornando explícito.
Eu estava me sentindo feliz e já
não tinha medo de ver Maria Amélia pelos corredores. Havia me curado da loucura
e nunca mais tivera aqueles sonhos estranhos. Não sei por que, meu Deus,
resolvi ir à biblioteca naquela tarde. Ela estava lá estudando e, quando me
viu, veio em minha direção. Perguntou, com a voz baixa em respeito aos
leitores, se Dra. Ágata estaria na Procuradoria no final da tarde. Eu respondi
que sim, recuando o rosto para não sentir seu perfume enquanto ela se
aproximava.
Maria Amélia agradeceu e antes de
retornar para a banca de estudos, me questionou de forma direta e segura:
- Por onde você anda quando não
está no gabinete da Procuradora ou nos corredores da faculdade?
-Na biblioteca – respondi, com um
riso que logo foi retribuído. Ela insistiu:
- Falo sério. Sempre saio com o
pessoal da faculdade, vejo Fabiana e Ulisses pelos bares, mas nunca te vejo.
- Certamente não andamos pelo
mesmo mundo.
- O que não quer dizer que não
vamos andar.
Aquela frase acabou comigo. Toda
minha alegria em
encontrar Cristiana no final da noite foi por água a baixo.
Da faculdade fui para o estágio e não me concentrei em nada, atordoada com
expectativa de ouvir Maria Amélia bater à porta em qualquer instante. Mas ela
não foi.
Fui direto para casa. Não tinha
condições de ir para a academia, muito menos de encontrar com Cristiana. Só
pensava na criatura de olhos azuis. Precisava ser franca comigo e com minha
recém namorada.
No dia seguinte, conversei com
Cristiana e lhe contei sobre o que estava sentindo pela aluna do quinto ano.
Ela me escutou calada e pensativa. No final, como sempre, me surpreendeu
positivamente:
- Vá atrás do que quer, Jornada!
Não é assim que você funciona?
Uma pontada de mágoa dormitava na
derradeira frase. Ainda assim, ela me abraçou e senti sinceridade no desejo de
que eu ficasse bem.
Cheguei à Procuradoria correndo e
mais uma vez desorientada. Dra. Ágata perguntou se eu tinha visto um passarinho
verde. Prontamente respondi:
- Azul!
Peguei o bilhete que havia
guardado na gaveta e disquei o número. Chamou algumas vezes antes de Maria
Amélia atender. A voz, quando anunciei meu nome, se fez surpresa, mas logo se
recompôs. Definitivamente ela sabia manter o controle. Iniciei ensaiando um
assunto, dizendo que tinha lido um artigo sobre o tema da monografia dela e
havia me lembrado. Enfim, eu estava indo bem com as palavras. Convidei-a para
um cinema, quem sabe uma conversa à beira mar. Talvez o mar fosse um ponto em comum
entre nossos mundos, encerrei tentando dar leveza à frase.
Ela não foi tão simpática como de
costume. Pediu desculpas e, falando em voz baixa, disse que estava um pouco
tumultuada com a apresentação da dissertação, que já havia agendado. Quando
tivesse mais tranqüila, me ligaria. Anotaria meu número. Uma voz masculina se
fez ao fundo quando ela desligou.
Sentindo a aspereza do tapete sob
meus pés descalços, fiquei ali, em meio às estantes empilhadas de livros de meu
pai, com o telefone nas mãos, estática, fingindo que a poeira não me incomodava
e que não me sentia morta por dentro. Fixei o olhar em um desenho preto e
branco pendurado na parede e me senti igual a ele: disforme, sem graça e cor.
No reflexo viabilizado pela moldura de vidro, me vi. Não passava de uma garota
de vinte e um anos, alta e magra, metida a forte, com as sobrancelhas grossas e
bem feitas, indefinida entre ser masculina e altiva, os olhos escuros e firmes,
as roupas maiores do que meu corpo, numa tentativa estúpida de não me sentir
pequena e indefesa, como me sentia agora diante da vida.
Contive a vontade de ligar
imediatamente para Cristiana. Queria pedir desculpas, dizer que estava
arrependida e que fizera uma péssima escolha; queria seu colo, queria seu olhar
carinhoso sobre meu rosto; queria deitar a cabeça entre seus seios e adormecer
sentido suas mãos quentes alisando meus cabelos. Mas não fui tão cretina.
Coloquei o telefone no gancho com mais força do que o necessário e, enquanto
atravessava a sala sob o olhar intrigado de minha mãe, arquitetei minha
vingança.
Então Maria Amélia queria brincar
comigo? Pensava que poderia jogar com entrelinhas, me envolver feito uma idiota
para depois me descartar? Se eu havia aprendido alguma coisa em minha vida
medíocre até aquele momento era como seduzir alguém até conseguir o que eu
queria. Aquele papel era o meu e ela não iria me tomar.
Fui para a casa de Fabiana.
Natascha chegou em menos de uma hora. Sentamos na varanda do quarto, tomamos um
café forte, como geralmente fazíamos no final dos sábados antes de sairmos para
balada, e ficamos conversando bobagens. Não quis contar o que aconteceu. Fiquei
apenas escutando Fabiana falar sobre Ulisses e Natascha contar as últimas
manias de Victor. Fizeram alguns planos para mais tarde, dos quais não
participei. Minha cabeça não pararia enquanto eu não colocasse em prática meu
mais recente projeto. Por volta das nove horas, quando iam começar a ser
arrumar para sair, fui para casa. Não era longe e preferi ir a pé. Precisava de
ar fresco. Enquanto caminhava sentindo o vento do Bosque do Planalto no rosto,
escrevi em meu imaginário o primeiro e-mail.
Descobrir o endereço eletrônico
de Maria Amélia foi fácil. Existia uma lista dos e-mails de todos os alunos na
barraquinha de xérox do bloco de Direito. Eu já havia anotado o que me
interessava. Criar um endereço eletrônico foi ainda menos complexo: 14bis@hotmail.com. Esse seria meu pseudônimo.
Nem masculino, nem feminino. Nada de gêneros. Não queria rótulos nem limites.
Sentei na frente do computador exatamente à meia-noite, com um cálice de vinho
do porto roubado de meu pai. Olhei novamente para o desenho preto e branco na
parede e já não me identifiquei com ele. Sentia-me viva e colorida quando
comecei a escrever no teclado o que já habitava dentro de mim.
Maria Amélia,
Tudo ia e a vida vinha, como sempre vem. Mar calmo, calmaria. Nada
estranho, tudo comum. Até que, por ironia ou acaso, te encontrei. Você não saiu
de mim, nem eu de teus olhos. Sou apenas alguém que queria te conhecer.
Não assinei. Jamais assinaria até
que ela estivesse tão envolvida quanto me deixou. Agora a moça de olhos azuis iria
ver.
Não dormi até me sentir anestesiada
pelo vinho do porto, inebriada pelo líquido bordô e pelo o desejo de ser lida.
Imaginei se ela estaria em algum restaurante caro com o namorado, num cinema
cujo filme logo viraria sessão da tarde, num motel transando alucinadamente ou
simplesmente em casa. O
tempo foi passando e só desliguei o computador quando se tornou indiferente
onde Maria Amélia estava. Queria apenas que, entre um dia e outro, ela
estivesse defronte à tela lendo aquele e-mail e imaginando quem era seu
criador.
Dois dias se passaram e nenhum
sinal de vida. Fui para a faculdade e também não a avistei. Já estava ficando
agoniada. À noite, depois da academia e de me sentir tentada a ir falar com
Cristiana, cedi a um convite de Evandro e Camilo. Saímos em plena terça-feira
para conhecer um novo bar: o Laboratório.
O lugar era bem diferente. Todo
claro, paredes brancas, luzes pálidas, mesas e cadeiras transparentes. Cenário
frio, como eu estava ficando. Enquanto tomava uma dose pura de vodka, resolvi
comentar com os meninos sobre meu telefonema para Maria Amélia. Eles ficaram bobos,
mais com a reação dela do que propriamente com minha ousadia. Juravam que a
criatura estava me dando a maior bola e não entenderam o porquê daquele fora.
Eu, ao contrário, havia entendido perfeitamente. Ela deveria estar com o
namorado e percebeu que a brincadeira de seduzir uma lésbica poderia ter
consequências mais sérias. De fato, teria.
Sai do bar depois da terceira
dose. Revi no Laboratório uma menina que eu já havia ficado um tempo e que
sutilmente me convidou para levá-la em seu carro. Sem qualquer esforço,
deixamos os vidros absolutamente embaçados, enquanto trocávamos salivas, suores
e gozos.
Cheguei em casa de madrugada,
cansada e tonta. Já estava no meio das escadas rumo ao meu quarto, em passos
bem leves para não acordar meus pais, quando resolvi descer e ir até o
computador. On apertado, luz vermelha
se transformando em verde, www.hotmail.com,
14bis@hotmail.com, mariaamelia como senha, “você tem uma nova mensagem”:
Não costumo falar com estranho, nem mesmo com os falsos-poetas.
Quero um nome, ainda que falso.
Espero.
Maria Amélia.
Vacilei entre gritar de raiva e
de alegria. Mantive o silêncio, embora por dentro fosse toda euforia. Aquela
foi a primeira resposta de muitas que viriam. Ela queria um nome, queria uma
mentira. Eu seria especialista. Dei-lhe “Venturine”, em homenagem ao Flávio,
autor de Todo Azul do Mar. E sob tal disfarce, passei a escrever-lhe quase que
diariamente, fugindo dos pronomes masculinos e femininos, mas me aproximando
dos verbos e substantivos mais sinceros.
Aos poucos, minha amiga virtual
também ia se aproximando. Nas entrelinhas, me deixava entrever alguém sem muito
amigos, cercada por livros, desejosa de romances. Isso eu poderia lhe dar e não
seria de todo falsidade. A cada e-mail, parte de nós era despida. Contei-lhe
algumas bobagens de minha vida, deixando transparecer minha forma de ser,
apesar de ocultar minha face. Eu era uma mulher, mas essa carta seria a última
que eu lhe daria. Mostraria quão indiferente seria tal “detalhe” quando
estivéssemos realmente envolvidas. As barreiras que encontrei no início foram
cedendo à minha falsa-poesia. No fundo, creio que ela começou a gostar de ser
galanteada, fonte de inspiração de alguém que ora se mostrava bobo, ora
displicente, ora apaixonado, ora indiferente. Sim, eu tinha muitas caras e
daria a ela quase todas até prendê-la ou me perder de vez.
Fabiana não aprovava nem um pouco
meu plano. Dizia que eu estava brincando com sentimentos. A menina era hetero,
tinha namorado, ia surtar quando soubesse da verdade e nunca me perdoaria por
tamanha cretinice. Já Natascha vibrava a cada e-mail, tendo a plena certeza de
que a tal mocinha de boba não tinha nada. Já deveria saber há muito tempo que
era eu quem lhe escrevia e estava adorando ser cantada por uma mulher. Aliás,
essa deveria ser sua grande tara. Minha amiga inflava meu ego, repetindo que eu
sempre soubera seduzir. E sorte de quem fosse meu alvo! Em meio a opiniões tão
diversas, eu oscilava, ora crendo em uma, ora em outra, conforme me fosse mais
conveniente.
Cada vez que Maria Amélia se
mostrada distante e reticente em corresponder às minhas investidas emocionais,
pensava: a moça supõe que sou qualquer idiota do bloco de Direito, o qual, a
qualquer momento, diante de um fora, poderá mostrar seus e-mails a outros,
chegando inclusive ao seu namorado. Por outro lado, quando minha destinatária
me respondia com curiosidade e até doçura, tentando soar distante, mas, ainda
assim, envolvente, eu vibrava: é claro que ela sabe que sou eu! Deve confiar em
mim e logo me tratará com total cumplicidade.
E assim, os dias iam passando, os
e-mails iam crescendo: frases, sentimentos, verdades substanciais, mentiras
irrelevantes, tudo ia sendo trocado. No mesmo compasso, nós duas íamos nos
misturando, nos conhecendo e, ao mesmo tempo, desconhecendo. Eu já não sabia quem
era: se um pseudo-apaixonado ou real-apaixonada. Ela, não sei como agia: acho
que de maneira genuína e não falsa.
Numa noite de sexta-feira, não
quis sair de casa. As ruas me pareciam vazias ultimamente. A sala do computador
me bastava. Sem pressa, sorvi o vinho do porto e escrevi:
Todo meu desejo se represa agora em saber: por onde anda você?
Imediatamente veio a resposta:
Ando pensando em você.
No dia seguinte, resolvi tomar
uma providencia concreta. Naquela época não era tão simples gravar um CD como
atualmente. Tive, portanto, que partilhar minha idéia com Natascha, que mandava
bem nessa história de computador, gravador, internet.
Empolgadíssima, minha amiga me
ajudou a selecionar e baixar todas as músicas que eu queria. Que as letras
falassem para Maria Amélia o que eu ainda não podia dizer pessoalmente. A
primeira delas foi O Rio, de Ana Carolina. Em seguida, Adriana Calcanhotto com
Medo de Amar e Segundos. Não poderia faltar Madonna com Take a Bow, nem Marisa
Monte, com Pale Blue Eyes, versão que considerava melhor do que a original de
Lou Reed. Na derradeira, como não poderia ser diferente, veio Todo Azul do Mar,
na voz de Flávio Venturine. Talvez agora a destinatária do CD soubesse não
apenas a origem do pseudônimo, mas também o que me prendeu a ela inicialmente:
a cor azul e impar de seu olhar.
Fabiana descobrira que Maria
Amélia dava aulas de inglês na Cultura Inglesa nas tardes de quinta. Evandro e
Camilo não hesitaram em ir lá deixar discretamente na secretaria minha
encomenda. Junto ao CD, uma frase num papel com minha própria letra:
Agora você pode me escutar.
Meu coração quase saiu pela boca
quando Evandro me ligou dizendo que a sorte já estava lançada. O CD havia sido
devidamente entregue à recepcionista. Naquela hora, por certo, poderia estar
ecoando no quarto da destinatária. Estranhamente, me senti mais próxima de Maria
Amélia.
Naquela noite, não consegui
dormir. Inquieta, rolei pela cama de um lado para o outro. Os latidos dos
cachorros do vizinho também não ajudavam. Eu, que não conseguia adormecer
ouvindo música, resolvi recorrer ao som. Se ia passar a noite acordada que, ao
menos, ouvisse Todo Azul do Mar. Liguei o CD baixinho. Havia feito uma cópia
idêntica ao que entreguei a Maria Amélia e me pus a escutar.
A noite se agigantava e, por
cansaço, estava quase adormecendo quando meu celular vibrou sob os lençóis. Levei
um susto, mas não maior do que quando li no visor: Maria Amélia.
Estremeci, sem saber se deveria
ou não atender. Depois de chamar por três vezes, me decidi e aceitei a ligação.
Ela havia desligado. Pulei da cama, andei pelo quarto escuro. As mãos na cabeça,
aperto no coração. Deveria retornar? Retornei. Caixa postal. Aí é que não dormi
nem naquele nem nos próximos dias.
Na manhã seguinte, criei coragem
e resolvi tentar remediar a situação. Convencida de que era o melhor caminho,
mandei para o celular de Maria Amélia uma mensagem:
Você me ligou ontem? Posso ajudar em algo?
A tarde começou e findou sem
resposta. Fui para a faculdade, para o estágio, para a academia e nada! Perdi
as contas de quantas vezes olhei para o celular desejando ver “nova mensagem”
no visor. Apenas por volta das sete horas, enquanto jantava com meus pais
conversando amenidades como todos os dias, um bip quase me fez cuspir a sopa:
Desculpe. Devo ter encostado em alguma tecla e o celular discou seu
número. Não tive a intenção.
Difícil acreditar naquela
desculpa. Meu nome, graças à letra J, estava longe de começar qualquer lista de
contatos! Tive ódio de Maria Amélia por ser tão cínica e mentirosa! Mas será
mesmo que havia sido cínica e mentira? Não queria acusá-la simplesmente. Aliás,
quem era eu para falar em mentiras? Por outro lado, apesar da raiva pela
suposta desculpa esfarrapada, para mim era bem mais agradável imaginar que, de
fato, ela havia ligado para mim na madrugada, embora desconhecesse o motivo.
E mais uma vez me vinha a
inquietação. Será que havia me ligado por não conseguir mais se conter, tomada
pela vontade de falar comigo? Ou seria para me mandar desaparecer e tomar
vergonha na cara? As possibilidades eram muitas e me arremessavam ora para um
lado amargo, ora para um lado querido. Ergui-me da mesa e deixei a sopa esfriar
diante dos olhares reprovadores de meus pais.
Estávamos a menos de uma semana
do Natal. Mais uma vez um ano findava e eu me sentia vazia. Depois do
telefonema esquisito, deixei de mandar e-mails para minha amiga virtual. Quem
sabe assim ela sentia minha falta e ligava novamente? Enganei-me na previsão. O
silêncio também se fez absoluto do outro lado. Não recebi qualquer palavra
durante dias. Parecia haver rompido nosso único vínculo.
Chegou o dia da confraternização
com o pessoal da academia em um barzinho localizado na parte antiga da cidade.
Chamava-se Engenho e era um sobrado de esquina, com o piso de madeira, poucas
mesas e agradáveis sacadas que ampliavam a vista. Fazia tempo que não ia ali.
Tinha o melhor caldinho de feijão da cidade e era frequentado pelo pessoal
ligado a arte, bastante alternativo. A escolha partiu de Evandro e Camilo, que
convenceram mesmo os mais caretas a comparecerem. Afinal, todo ano íamos a
restaurantes tediosos e cheios de frescura. Agora era a vez de a “galera do
mal” escolher o destino. Foi essa a justificativa que, sem maiores encrencas,
foi aceita por todos.
Além de Fabiana, Ulisses,
Natascha, eu e os meninos, foram também Letícia com o marido, Bruno com a namorada,
os gêmeos do halterofilismo, Gustavo, que era professor de musculação, e
Cristiana.
Como já imaginava, a professora
de dança sentou ao meu lado, com uma minissaia jeans e justa, que deixava as
belas pernas à mostra. Os bancos eram compridos e de madeira, o que fazia com
que nossas pernas se encostassem. Vez por outra, a criatura passava as mãos nas
minhas coxas, enquanto contava alguma história ou simplesmente sorria das que
contavam. Não perdia a mania de me provocar, nem eu deixava de me sentir provocada.
Nossos desejos sempre foram bastante recíprocos, esse era o fato.
Depois do amigo secreto e de
várias caipiroskas, todos já estavam por demais leves e descontraídos. Nossos
colegas caretas e os respectivos companheiros estavam bastante à vontade e até
deixaram claro voltariam ao Engenho em outra oportunidade.
Já passava da uma hora da manhã
quando Cristiana se ergueu rumo ao banheiro. Antes de se levantar, todavia,
pegou minha mão e a conduziu por entre as coxas discretamente e por baixo da
mesa. Eu respirei fundo e contive o deslizar de meus dedos, que tão bem
conheciam aquele caminho. Ao sentir que recuei, ela ergueu-se de vez e me olhou
com ar feroz, contrariada pela recusa.
Eu me arrependeria amargamente,
não fosse uma luz que se acendeu no visor de meu celular, que estava sobre a
mesa. Mensagem recebida:
Cansei de fingir não saber. Quero te ver. Você pode vir até a mim?
Então, finalmente, Maria Amélia
admitira! Sabia o tempo todo que era eu! E mais: me queria com tanta ênfase que
não hesitou em dizer, mesmo por mensagem de texto. Aquela explosão de palavras
certamente refletia uma explosão de sentimentos e desejos. Ela havia sentido
minha falta e não recuaria mais. Naquela dança, o primeiro passo no mundo real
havia sido dado. Agora já não havia como nem porque eu me conter.
Com os dedos trêmulos, escrevi
simplesmente sim e, em menos de um
minuto, Maria Amélia me mandou seu endereço.
Desci as escadas de madeira com
pressa, enquanto procurava a chave do carro dentro da bolsa, pulando de dois em
dois degraus. Atravessei a rua sem olhar para os lados e dei a primeira cédula
que encontrei na carteira ao flanelinha, sem consultar sequer de quanto se
tratava.
Sempre fui bastante perdida com
rotas e endereços, ainda mais depois de beber. Não sei por que, nem como, mas,
naquele dia, fugi à regra e não errei o caminho, nem me perdi uma vez sequer.
Em menos de dez minutos estava defronte ao prédio de poucos andares onde Maria
Amélia morava com o irmão, que certamente havia viajado. O porteiro já esperava
e me mandou subir, sem avisar à dona da casa.
Ao abrir a porta, Maria Amélia me
olhou fixamente, um tanto quanto pálida. Os olhos azuis brilhavam de forma
intensa. Com a voz trêmula, me disse que entrasse. Obedeci. Na sala de poucos
móveis, me acomodei no sofá de dois lugares. Ela sentou na outra extremidade.
Sem rodeios, começou o diálogo:
- Você está brincando comigo ou
seu sentimento é real?
- É real.
Não tive tempo de dizer mais
nada. Ela venceu a distância e logo se pôs ao meu lado. Olhando-me de frente com
aqueles olhos absurdamente lindos, me beijou. O contato foi inicialmente
desajeitado. Eu tentei domar a boca, que avidamente buscava a minha. Sentia
nossos corações desesperados, as respirações entrecortadas de desejo e susto.
Segurei-a pela nunca e tentei acalma-la, sem, entretanto, desvencilhar-me do
beijo. Aos poucos, íamos tomando o jeito e o ar, desacelerando as línguas e
lábios, encaixando nossos desejos.
Eu não acreditava no que estava
acontecendo. Acho que ela menos ainda. Sentia Maria Amélia tremendo, não sei se
de nervosismo ou de desejo ou de ambos. Apostei na última opção.
O celular dela nos interrompeu ao
chamar em cima da mesa. Maria Amélia me soltou bruscamente e correu para
atender. Deu as costas e foi à varanda. Eu não ouvi nada. Em menos de um
minuto, ela retornou e me pegou pela mão, puxando-me para o quarto.
No ambiente escuro, com a cama
parcialmente desforrada, ela deitou-se e eu me deitei por cima. Busquei seus
olhos e eles estavam marejados. Com calma e doçura, alisei-lhe os cabelos e
beijei-lhe suavemente os lábios. Senti o gosto salgado das lágrimas. Olhei-a e
perguntei se queria que parasse. Foi quando entendi o porquê daquela comoção:
- Nunca fui para cama com
ninguém.
Tentei não demonstrar a surpresa
que me invadiu. Por segundos, ponderei se era justo tê-la daquele jeito. Será
que eu merecia ser a primeira? Meu sentimento era digno o suficiente? Havia
mentido, ocultado minha identidade, me valido de truques para envolvê-la e
agora? Teria o direito de consumar o que tanto desejara?
As mãos bem feitas me responderam
quando, sutilmente, começaram a se livrar das vestes. Os seios macios, com os
bicos rijos, também me convidavam. Os olhos azuis, que me olharam num misto de
desejo e pressa, me convenceram.
Tomei-lhe os seios com as mãos. Desenhei
flores com a língua ao redor dos mamilos rosados até, finalmente, sugá-los.
Maria Amélia estremeceu e gemeu baixinho. Com precisão e carinho, deslizei as
mãos pela barriga, que instintivamente se contraiu. Dali rumei para o ventre,
apreciando com o dorso da mão a penugem fina e clara. Passeei os dedos por suas
coxas, sentido que ela as abria delicadamente, sutilmente, tentando manter a
calma. Apertei com firmeza a parte interna das pernas, depois ergui seu ventre,
apoiando suas nádegas com força. Ela se arqueou, como eu insinuava. Ofegante,
eu deixei minha boca pousar sobre o que me era oferecido: o líquido quente, o
nervo rígido. Maria Amélia era minha.
Seria eu dela? Essa dúvida me assolou
e devassou. Eu estava excitada e envolvida, mas, definitivamente, não sentia
que estava prestes a possuir o grande amor de minha vida. Seria canalha a ponto
de fazê-la gozar e gozar sobre ela para depois sumir? Seria inescrupulosa a
ponto de sair dali e deixá-la entregue sem o gozo que em silencio me pedia? Tive
vontade de chorar com as possibilidades. Qualquer decisão que eu tomasse não
seria bela, nem digna. Eu passada dos limites com a brincadeira de encontrar na
realidade a personagem de meu sonho.
Atônica, optei por me despir e, sem
machucá-la, dar-lhe todo o prazer que ela merecia. Com candura e suavidade,
beijei-lhe os lábios inferiores, experimentando seu líquido com gosto. Ela já
estremecia quando resolvi mergulhar a língua em seu ventre até sentir que
estava preparado, dilatado, apetitoso. Depois, sem pressa, deslizei os dedos,
experimentando primeiro um, depois dois, de forma precisa, mas confortável.
Intensifiquei quando ela mesma, agarrando-se em meus cabelos, me puxou para
dentro de si, deixando claro que queria mais. Sem demora, Maria Amélia tremeu
inteira, enquanto ainda mantinha minha boca pousada e meus dedos imersos. Dei-lhe
um longo gozo. Depois, escalei seu corpo e a beijei com suavidade, afagando
seus cabelos.
Meu ventre estava quente,
pulsando de desejo, mas me contive. Preferi abrir mão de meu prazer para não me
sentir pior ainda quando fosse embora. E assim, sem qualquer diálogo ou
promessa, eu fiz.
Maria Amélia não me procurou no
dia seguinte, nem eu a ela. Não nos escrevemos mais, nem trocamos mensagens
pelo telefone. Fingimos não nos enxergar na faculdade quando cruzávamos pelos
corredores. E assim, gradativamente, nos perdemos. Certamente seria melhor para
mim e para ela.
No dia da formatura de Ulisses, Maria
Amélia também se formou e estava linda, ao lado do namorado. Eu estava com
Angélica, com quem passei alguns anos. Ao longe, acenei-lhe com a cabeça e lhe
disse “parabéns”. Ela leu os meus lábios e sorriu. A melancolia escurecendo-lhe
o azul dos olhos.
Agora estou eu aqui, falando mais
para mim mesma do que para estrangeira que me acompanha no avião. A moça, que
se apresentou como Beatrice, sentou-se ao meu lado, dizendo-me em português
parco ter pânico de voar. Eu, que já havia devidamente me sedado, tomando um
Rivotril seguido de uma dose de uísque caro, perguntei se podia lhe ajudar de
alguma maneira.
Estranhamente, a moça pediu que a
distraísse contando uma história qualquer. Contou-me que era diplomata da Inglaterra,
atualmente lotada na missão diplomática do Brasil, onde estava apenas há alguns
meses. Queria treinar a compreensão da língua com a qual iria trabalhar nos
próximos anos. Talvez meu relato em português a mantivesse distraída e a
fizesse esquecer do medo.
Sorri da idéia esdrúxula, mas
aceitei. Comecei indagando:
- Acredita em outras vidas?
Diante do incisivo não, resolvi interceder. Dentre as
histórias que vivi, a da estranha dama de olhos azuis que invadira meus sonhos
era a que considerava a mais desvairada e insana. Por conta de tal loucura, que
ainda pendia sem explicação, havia magoado várias pessoas que passaram em minha
vida, sempre em busca do tal “grande amor” que jamais encontrei.
Depois de Maria Amélia, tive
vários relacionamentos, me apaixonei várias vezes, mas nunca senti o que
sentira nos sonhos pela tal desconhecida de olhos azuis claros. E o pior: se
não a encontrei em vida, também não a encontrei mais enquanto dormia. Nunca
mais sonhei com a criatura ao longo daqueles tantos anos. Deve ter sido um
castigo divino pelo mal de causei a tantas.
Enfim, apesar de ter desistido de
procurar, vez por outra ainda me lembro da sensação que aquela imagem me
causava e, sobretudo, do sentimento que nunca experimentei na realidade. Talvez
por isso tenha escolhido exatamente essa história para segredar à minha
companheira de viagem.
Logo atrás de nossas poltronas –
e isso eu também contei a Beatrice – estavam Fabiana e Ulisses, que haviam se
casado e, na atualidade, eram sócios de um grande escritório de advocacia;
Evandro e Camilo, ambos professores da universidade e pais de um menininho de
oito anos que haviam adotado; Natascha, que havia terminado a faculdade de
Direito e ido para São Paulo com Victor, onde cursava moda; e eu, meu Deus, que
havia me tornado Procuradora da República, como planejado.
Aquela era nossa viagem comemorativa
de dez anos de formatura. Natascha, que fora a responsável pelo roteiro,
continuava sem perder a chance de dar a tudo o tom da misticidade: havia
escolhido um castelo britânico, atualmente hotel, como nosso paradeiro e ainda
disse, em tom de graça, que fora em minha homenagem. Nem ela havia esquecido de
meus sonhos.
Com um riso suave, minha
companheira de viagem olhou para trás tentando visualizar os personagens
daquela história estranha que acabara de escutar. Em seguida, olhou-me com a
mesma atenção e cuidado. Percebi certa emoção em sua face, talvez pelo fato de
ter visto de perto pessoas das quais já havia lhe falado com tanta propriedade.
Será que lhe pareceram familiares?
Enfim, mesmo correndo o risco de
parecer uma lunática, o fato é que, na inglesa, já não habitava o medo de voar
quando encerrei meu relato. Disso eu tive ainda mais certeza quando ela, com
polidez, me agradeceu. Em seguida, vencendo os tão britânicos protocolos, tocou
minha mão, que repousava sobre a cadeira. A pele dela, de repente, pareceu me
queimar. Quase puxei a mão em fuga, mas seu olhar me fez deixar.
As luzes estavam parcialmente
apagadas. Viramos-nos sem pressa, uma defronte à outra. Ela então me indagou:
- Seu grande amor precisava mesmo
ter olhos azuis?
Não, não precisava. Por que eu
não havia percebido antes? Eu sei que, naquele instante, me pareceu tarde.
Trovões e relâmpagos cortaram o céu, clareando o interior do avião. Em nossos
olhos, o encontro foi substituído pelo medo, dessa vez mútuo. Medo da vida ou
da morte? Eu não soube responder.
Fechei os olhos e creio que ela
também. Mantivemos-nos de mãos dadas, enquanto tudo parecia desabar dentro e
fora de nós. O barulho infernal dos objetos tombando em confronto com a mudez
dos passageiros. O prenúncio da morte causava silêncio, foi o que constatei.
Dali em diante, não vi nem ouvi
mais nada. Também não me lembro de nada. Apenas de ter aberto os olhos e
pensar: sobrevivi.
Meu corpo repousava sobre uma
cama imensa e antiga. Os lençóis eram azuis e de cetim. Ao redor, paredes altas
e de pedra; móveis e objetos rebuscados; uma lareira. Ergui-me com certa
dificuldade. Observei prontamente meu corpo. Estava inteira. Caminhei até os
janelões de vidro e um jardim de beleza inacreditável se estendia até onde
minha vista alcançava. Cores e formas particulares, como eu nunca havia visto
antes. As flores me diziam que era primavera.
Com euforia, abri a porta e desci
pelas escadas, pulando de dois em dois degraus, como fazia sempre que tinha
pressa. Reconheci prontamente o castelo, o mesmo de meu antigo sonho. A sala
imensa coberta por tapetes e sofás bordô; a lareira gigantesca apagada; os
quadros com os ancestrais da família real dependurados pelas paredes de pedra.
Invadia-me um misto de medo e curiosidade.
Só precisava averiguar um detalhe
para ter a certeza que queria. Será que Natascha havia descoberto que o castelo
com o qual sonhara existia de verdade? Corri até aquele que parecia ser o
gerente e, me aproximando da bancada, gentilmente lhe pedi:
- O senhor poderia me levar à
suíte principal?
- Infelizmente ela já está
ocupada, senhora.
- Mas eu não queria me hospedar
lá. Gostaria apenas de visitá-la.
- Só se a proprietária autorizar
– e o rapaz olhou em direção àquela que chamou de Srta. Hanover, certamente uma
das ultimas descendentes da dinastia inglesa de mesmo nome.
Apenas nesse instante avistei a
mesa imensa onde descansava um farto café da manhã para todos os hospedes. Meus
amigos já me esperavam devidamente sentados, com a felicidade estampada nas faces
que me eram tão familiares. Passeei a vista por todos e, na cabeceira, parei,
enlevada. Nem foi preciso esperar que Beatrice Hanover erguesse a vista,
tampouco investigar a cor de seus olhos, para que a reconhecesse. Autorização
alguma seria necessária. Eu finalmente havia chegado em casa.
FIM
Marcadores:
conto erótico feminino,
gls. gay,
lésbica,
literatura lésbica,
todo azul do mar
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
TODO AZUL DO MAR (Conto)
Capítulo III
O TERCEIRO SONHO
Era uma sexta-feira e eu, para
variar, estava atrasada para a faculdade. Na garagem de casa, praguejei contra
todos os santos quando percebi que meu carro havia quebrado. Liguei para
Fabiana que, por sorte, ainda estava saindo de casa. Em cinco minutos, chegou
minha carona. Em menos de uma hora estaríamos fazendo a última prova do ano.
Fabiana tentava relaxar ouvindo Enya, enquanto eu reclamava. Não estava a fim
de ouvir aquele tipo de música, o que me deixava ainda mais irritada. Como
minhas reclamações não surtiam efeito, me resignei e decidi que iria o resto do
percurso calada. Um estado de estupor logo me domou.
Eu era um homem belo, alto e vigoroso.
Com prazer, sentia meus cabelos negros dançando ao vento, enquanto conduzia a
carruagem. O caminho era de terra batida, cortando uma imensa floresta de
árvores agigantadas. A umidade do ar era pesada, assim como as roupas que eu trajava.
Ao olhar para trás, senti uma imensa alegria. Lembrei que, dentro da carruagem
eu conduzia a mulher que amava. Mesmo às escondidas, ousávamos viver aquele
amor proibido. Ela era uma duquesa e eu apenas um dos guardas do reinado,
responsável por sua segurança.
Enquanto os cavalos arrefeciam o
passo, antes de atravessarmos a ponte que dividia as propriedades vizinhas,
olhei para a janela. As mãos delicadas que eu tanto conhecia e que costumavam
percorrer meu corpo com sofreguidão, vestindo luvas brancas, abriram as
cortinas. Com o coração cheio de paixão, busquei aquele olhar que tanto me
fascinava. O par de olhos azuis estava lá novamente a me devorar. Estanquei os
cavalos e desviei o rumo. Com pressa, entrei pela floresta e desci da
carruagem, encobrindo-a por entre as árvores.
Vi minhas mãos rudes abrindo a
porta, puxando minha dama para meu corpo, que já ansiava ereto. O perfume
daqueles cabelos sempre me inebriava. A duquesa me beijou com força, indiferente
à barba áspera que lhe maculava a pele. A boca doce e ávida mordia meus lábios
grossos. Ergui suas saias, as anáguas, enquanto ela desabotoava minha calça,
enfiando as mãos com pressa, em busca de meu membro rijo. Ergui-a, encostando-a
em uma das árvores. As pernas alvas se enlaçaram em minha cintura. Senti-me
afundar inteiro dentro dela, que estremeceu, me arranhando a nuca. A duquesa passou
a me cavalgar, enquanto eu lhe prendia pela cintura. Minhas pernas, apesar de firmes,
estremeciam cada vez que ela me engolia. Jorrei forte, sentindo nossos líquidos
se misturando. Ela desfaleceu em meus braços e me olhou nos olhos, me deixando
perdido naquele azul. A face estava rosada pelo esforço, o busco voluptuoso
descompassado. Cansados, tombamos no chão seminus.
Não vi quando os homens se
aproximaram encapuzados. Sobressaltado, me ergui e busquei protegê-la, mas já
era tarde. Senti uma pancada forte em minha cabeça e o gosto de sangue logo chegou
à minha boca. Antes de perder os sentidos, percebi o brasão do reino por entre
as vestes negras de um dos soldados. Era a vingança que temíamos enviada pelo noivo
da duquesa, príncipe do reinado. A última cena que vi foi uma lança
transfixando os seios belos e amados que, minutos antes, eu sugava.
Despertei no estacionamento da
faculdade e desci do carro de Fabiana sem dizer nada. Caminhei pelo pátio ignorando
minha amiga, que me chamava preocupada. Entrei no primeiro ônibus que vi e voltei
para casa. A prova que fosse para o espaço. Aquele sonho eu não era capaz, sequer,
de contar.
O ano letivo terminou e vieram as
férias. Logo depois do ano novo, eu e meus pais viajamos para a fazenda de meus
avós. De certa forma, me fez bem respirar novos ares. Adorava aquele lugar, que
frequentava desde pequena. Levei vários livros que queria ler há bastante tempo
e não vinha conseguindo; escrevi algumas poesias na sombra das árvores, como
costumava fazer desde criança; joguei cartas com meus avós, que eu tanto amava,
até tarde da noite, enquanto tomávamos café e ouvíamos o coaxar dos sapos e o
som do rio de corria por detrás da casa grande; caminhei com meu pai de manhã cedinho
com os pés descalços, sentindo o orvalho que ainda repousava sob a grama; andei
a cavalo com minha mãe até a cachoeira, aproveitando o calor das tardes para tomar
um refrescante banho. Enfim, me renovei para o novo ano.
Retomei a faculdade cheia de
força. Os sonhos não se repetiram e eu, mesmo com esforço, não conseguia mais
me lembrar dos olhos azuis com a mesma precisão de outrora. Uma parte de mim
lamentava, sentindo uma saudade absurda daquela desconhecida; outra parte,
talvez a mais sensata, se sentia aliviada.
Rapidamente me vi no meio do ano
letivo. Evandro e Camilo haviam assumido o relacionamento para as famílias que,
para a felicidade e surpresa geral, tinham aprovado a união dos dois rapazes
que visivelmente se amavam e respeitavam. Eu e as meninas recebemos a notícia
com euforia e Natascha fez mais uma de suas premonições: era o sinal dos novos
tempos.
Coincidência ou não, todos nós
passamos a viver uma boa fase. Natascha havia reatado com o pai de Vitor, que
implorara uma chance e vinha se mostrando bastante mudado; Fabiana estava
começando a namorar um rapaz do quinto ano, que parecia bem bacana e
desencanado; eu estava em paz comigo mesma e com meus pais.
Afetivamente, todavia, para mim,
nada tinha mudado. Não me envolvia por ninguém, apesar de ter alguns casos. A
única que continuava prendendo minha atenção era Cristiana, a professora de
dança que, porém, era casada. Segundo Fabiana, aquilo era chave de cadeia.
Minha amiga tinha razão e, também por isso, eu me mantinha distante.
Numa tarde, enquanto chegava à
academia com Fabiana, avistei Cristiana cercada por outras alunas que pareciam
entretidas com algo. Ao todo, eram umas cinco mulheres, todas disputando espaço
na arquibancada que ficava à beira da piscina. Como aquele caminho seria
necessariamente nossa passagem, nos aproximamos.
Percebi que Cristiana e as outras
olhavam uma revista. Logo constatei que se tratava da playboy mais polêmica do
ano, que tinha ido às bancas exatamente naquela semana. Na capa, duas famosas
dançarinas de uma banda baiana estavam nuas e literalmente “se pegavam”. Quando
eu passei, olhei para Fabiana com cumplicidade e sorri. Foi quando ouvi o
comentário de Cristiana, que, embora falasse para as outras, olhava em minha
direção:
- Que nojo! Eu jamais ficaria com
uma mulher! Morreria intacta, se fosse minha única opção!
Aquela frase, tenha ou não sido
dita de propósito, me causou um impacto enorme. Ódio e tesão se misturaram em
mim, quando olhei para a professora. Ela vestia uma malha que deixava entrever
totalmente as curvas do corpo bem feito e suado. Um decote denunciava os seios
fartos, cujos bicos se fizeram visivelmente rijos sob meus olhos. Encarei-a de
forma tão cínica quanto fria, e, sem qualquer pudor, observei cada centímetro
do corpo que instintivamente se inquietou.
Fabiana me puxou e, entre os
dentes, perguntou o que havia sido aquilo! Eu disse que estava apenas comendo
com os olhos aquela que, em breve, comeria inteira, custasse o que custasse.
Minha amiga me reprovou, beliscando meu braço. Mas, intimamente eu sabia: até
Fabiana tinha se chateado com o comentário. Agora até ela, apesar de careta,
deveria estar torcendo para ver a professora mordendo a língua.
Dali em diante, minhas tardes na
musculação passaram a ser mais interessantes. Cristiana repentinamente mudou de
horário e passou a malhar pontualmente às cinco da tarde, justo quando eu e
Fabiana chegávamos. Minha amiga, que de boba não tinha nada, bem sabia o motivo
daquela mudança. A professora estava realmente doida para mudar de lado. Só
continuava me pedindo que tivesse cuidado.
Na faculdade, nada novo. A
correria de sempre, a pressão dos professores e os encontros furtivos nos
corredores, às vezes gazeando aula. Evandro, Camilo e Natascha já haviam se
inteirado da história da professora e fizeram questão de ir assistir a uma
apresentação de dança da academia só para conhecê-la. Todos aprovaram.
Cada dia Cristiana se fazia mais
solícita comigo e, depois de faltar uma semana à musculação, apareceu com as
curvas menos acentuadas e sem aliança. Eu não sabia se ficava feliz ou se temia
pela novidade. Embora me sentisse extremamente atraída por ela, não queria uma
namorada.
Um dia, no banheiro, enquanto eu lavava
as mãos defronte ao espelho, ela entrou e, parando atrás de mim, disparou,
enquanto olhava fixamente em meus olhos pelo reflexo:
- Eu menti quando disse que tinha
nojo.
Antes que eu pudesse dizer do
quanto eu já sabia daquela mentira, ela deu as costas e se retirou. Eu só tive
tempo de apreciar a bunda bem feita sob a malha que, sem dúvida, escondia uma
calcinha fio dental das mais ousadas. Naquele instante tive a certeza de que
ela também não queria exatamente um namoro e relaxei. Que a vida seguisse seu rumo.
Eu tomaria para mim o que estavam me oferecendo.
Sábado pela manhã eu nem
costumava ir à academia. Geralmente íamos à Praia do Francês. Eu e Natascha
levávamos o bodyboard para surfar,
enquanto Fabiana e os meninos ficaram na areia tomando conta de Victor e
jogando conversa fora. Naquela manhã, todavia, convenci Fabiana que poderíamos
dar uma passadinha na academia, afinal, estávamos nas vésperas do São João e
teria um café da manhã junino organizado pela dona, que adorava esse tipo de
evento. Era óbvio que eu queria ver Cristiana. Estava estampado em meu sorriso
cínico quando propus. Um tanto quanto contrariada, Fabiana topou.
Ao entrar na sala de musculação,
um banho de água fria: Cristiana estava ajudando na organização da mesa com
canjicas, pamonhas, milho verde, bolos dos mais sortidos, mas, como auxiliar,
contava com Rodrigo, seu filhinho de oito anos que, animadíssimo, vestia calça
jeans, camisa xadrez e botas, além de ter na face um bigodinho de matuto. Ambos
lindos. Aquela cena me encheu primeiro de frustração, mas logo veio o remorso.
Que tipo de criatura eu tinha me tornado que, querendo pegar a mãe da criança,
praguejava contra a presença do filho, ainda mais uma criança tão doce e
cativante?
Fabiana não se conteve e,
sorrindo, me consolou:
- Se não pode vencê-los, junte-se
a eles!
Ela tinha razão. Fui ajudar na
seleção das músicas, enquanto Fabiana ajustava as bandeirinhas e balões. Aos
poucos, outros alunos foram chegando, todos conhecidos companheiros de malhação.
A turma da academia era legal e descontraída, muito diferente do pessoal da
faculdade. Resolvemos então trocar em definitivo a praia pela festa junina.
Liguei para Natascha, que morava pertinho, e a convidei, dizendo que trouxesse
Victor. Fabiana, por sua vez, chamou Ulisses, o namorado legal do quinto ano. Camilo
e Evandro, também alunos, já haviam dito que chegariam em instantes. Enfim,
em poucos minutos, nossa mesa estava preenchida por nossa gang. E ali ficamos nós, sem noção do tempo. O café da manhã se
estendeu pela tarde.
Depois que a maioria dos alunos
foi embora e a própria dona da academia relaxou, Cristiana se aproximou e pediu
licença para, finalmente, sentar à nossa mesa. Natascha, como sempre, ergueu-se
e saiu do meu lado, cedendo a cadeira de forma nada disfarçada.
Visivelmente cansada, a
professora sentou-se ao meu lado, apoiando-se na cadeira em busca que algum
conforto. A mulher provocativa e sensual trocara as malhas por um vestido
junino que, para minha surpresa, lhe emprestava um ar angelical e até pueril.
Vez por outra, Rodrigo também passava pela mesa, sendo fisgado pela mãe que,
carinhosamente, lhe ajeitava os cabelos e lhe fazia beber alguma coisa. Na
presença da criança, vi também sua face materna e a achei ainda mais linda. Rodrigo
e ela eram bastante parecidos. Mesmo sem querer, imaginei como deveria ser o
pai. Logo repreendi meu pensamento, pois não tinha nada a ver com aquilo.
Pela primeira vez, eu e ela
tivemos uma conversa decente, sem entrelinhas e tom provocativo. Cristiana me
contou porque resolvera ser professora de dança e a paixão que carregava pela
música desde pequena. Disse que engravidou ainda muito cedo e, mais por isso,
casou com o pai de seu filho. Teve que deixar de dançar durante algum tempo em
virtude de intercorrências relacionadas à saúde e ao ciúme do ex-marido. Depois
de ter Rodrigo e enfrentar a gravidez de risco, restou-lhe enfrentar as constantes
crises de Marcos. Só então tive o desprazer de ouvir, pela primeira vez, o nome
do pai de seu filho.
Limitei-me a escutá-la a maior
parte do tempo. Eu não era mesmo de falar muito. Segundo Fabiana, eu tinha um
quê de introspecção que, no início, até intimidava, mas, ao mesmo tempo, trazia
confiança e fazia com que a maioria das pessoas se sentisse bastante à vontade
comigo, sobretudo as pseudo-héteros, como bem lembrava minha amiga. Era
justamente o caso.
No final da festa, quando o salão
estava praticamente vazio, Cristiana chamou Rodrigo que corria sem parar com
Victor, ambos já livres das camisas xadrez e botas. Sutilmente, pediu licença a
mim, dizendo que precisava dar um jeito no filho, quem sabe até um banho no
chuveirão da piscina, pois o pai estava chegando.
Eu, mesmo sem querer, arregalei
os olhos, em
estranhamento. Ela então me sorriu e, pousando a mão sobre meu
ombro, me trouxe a explicação:
- Ele vai passar o resto do final
de semana com Marcos.
Ao retirar a mão de mim, deslizou
as unhas sutilmente por meus ombros e eu entendi perfeitamente o recado. Minha
noite de São João contou, literalmente, com fogos de artifício.
Dali, seguimos para o motel mais
próximo, ela mesma conduzindo o carro e pedindo uma suíte que, sem dúvida,
estava além de minhas posses. Assim que estacionamos, ela não esperou nem o
fechamento da porta da garagem. Atacou-me ali mesmo, se colocando em meu colo e
abrindo minha camisa. Perdeu a paciência com os botões e arrancou a metade,
enquanto me devorava com os olhos e se livrava do próprio vestido. Era a minha
vez de fazer alguma coisa. Contendo os impulsos da moça, segurei-a pelos
pulsos, pedindo-lhe mais calma. Eu não iria fugir nem a deixaria fazer isto.
Ela me sorriu e, com o ar entrecortado, me pediu desculpas.
Não havia o que desculpar, eu lhe
disse, olhando-a firme. Como ela se mantinha em meu colo, recuperando a respiração
e me olhando de forma ainda lasciva, eu tomei a frente. Tocando seu rosto,
deslizei os dedos pelos lábios, que se entreabriram, buscando meus dedos. Com tato,
desfiz o rabo de cavalo e a encontrei ainda mais bonita, de cabelos soltos.
Segurei-a pela nuca e a puxei para mim, encontrando-a finalmente em um beijo.
Ela respondeu por inteiro. Senti que nossos desejos eram tão intensos e
recíprocos que não precisaríamos de muita coisa para gozar ali mesmo. Mas eu
não queria assim. Daria a ela uma primeira transa digna de quem esperou tanto
tempo para tocar outra mulher. Não queria que depois houvesse qualquer
resquício de arrependimento. Sai do carro e a levei comigo. Subimos as escadas
com pressa, abrindo a porta para um quarto suntuoso e confortável, à meia-luz.
Na cama, a despi sem pressa,
enquanto ela arqueava o corpo, livrando-se da última peça: uma calcinha de
renda branca já inteiramente molhada. Erguendo a perna torneada, livrou-se da lingerie
e manteve-se arqueada. Antes de fazer o que ela já esperava, olhei-a por entre
as pernas que já se dispunham abertas. Nos olhos negros, além de desejo, vi
súplica e agonia. Eu não a torturaria mais. Encostei a boca quente nos lábios
que me eram oferecidos. Ela abriu-se ainda mais, ansiando por minha língua, mas
eu resisti. Mantive a boca colada ali algum tempo, brincando com a língua sem
penetra-la, saboreando o gosto e a quentura daquela chama tão acesa: a pele
fina e vermelha que encobria o botão da sensibilidade.
Cristiana se inquietou, puxando
minha cabeça, fazendo pressão e se mexendo sob minha boca, como se dançasse.
Gemia alto e eu já não conseguia mais me conter. Ela não merecia, nem eu
precisava. Deslizei a língua para dentro dela e a enrijeci, metendo lá dentro,
com a boca entreaberta. Meus lábios roçavam os lábios externos dela, enquanto
eu a invadia. A língua já não bastava e eu cedi ao que ela queria, mergulhando
meus dois dedos. Segurei-a pelas ancas arqueadas quando as pernas torneadas já
perdiam as forças. A senti tremer em minha boca, enquanto soltava um gemido de
prazer infinito que ocoou pelo quarto. De forma sincera, quase doce, ela me
confessou:
- Foi o melhor gozo de minha
vida!
Mais uma vez ela me dizia o que,
para mim, não era segredo. Deixei-me cair sobre ela e, ajeitando-me entre suas
pernas, a provoquei e a penetrei novamente. Dentro em pouco, era eu quem gemia
alto, enquanto Cristiana me arranhava inteira, abraçando-me com as pernas
firmes e tão bem esculpidas que desde sempre me chamaram a atenção. Aquela
seria a primeira de muitas noites, tivemos a certeza.
Sem detalhes, fui obrigada a
inteirar meus quatro amigos do restante da noite que tive com Cristiana logo na
segunda-feira. Deitada no colo de Natascha, que adorava alisar meus cabelos, e
cercada por Fabiana, Evandro e Camilo, fizemos uma roda no chão do corredor da
faculdade. Enquanto riamos, todos ávidos pela minha última conquista, as
patricinhas do bloco de Direito passavam horrorizadas com aquela cena. Sabiam
que eu e os meninos éramos gays e, sem qualquer critério, toda e qualquer
mulher que me tocasse deveria ser também. Natascha, que não se importava nem um
pouco com a fama, continuava me alisando.
Aliás, para o desespero das
meninas caretas e metidas, quanto mais elas nos olhavam, mais minha amiga
provocadora “tocava o terror”, fingindo me seduzir em pleno corredor da
faculdade. Evandro e Camilo se divertiam com os olhares chocados das que
passavam, enquanto Fabiana ficava vermelha, envergonhada, mas também gostando
da revanche propiciada por Natascha. Foi quando uma criatura em particular me
chamou a atenção.
Ela caminhava cercada pelas
meninas mais populares do quinto ano. Os cabelos acobreados contrastavam com a
pele branca, encobrindo-lhe parcialmente o rosto. Não era alta nem baixa; não tinha
o corpo escultural, mas absolutamente normal. Talvez nunca me chamasse a
atenção não fossem aqueles inacreditáveis e familiares olhos azuis. Ela não
pareceu se chocar com o que viu e, de modo firme, pousou o olhar em meus olhos
e assim se manteve por alguns segundos que desafiaram o passar do tempo. Fui eu
quem interrompeu o olhar, já sem aguentar o efeito daquele encontro. Tudo
dentro de mim em
ebulição. Por impulso, ergui a cabeça do colo de Natascha e
me encostei à parede. A moça então baixou a vista e continuou seu caminho.
Como eu nunca a vira antes, meu
Deus? Foi o que me indaguei o dia inteiro e os seguintes. Depois daquilo, ir a
faculdade passou a ser um momento extremamente esperado e mais ainda a chegada
dos intervalos. Procurava por ela pelos corredores, sem conseguir me conter.
Fabiana, que me conhecia como ninguém, havia notado o olhar que lancei para a
criatura desde o primeiro instante. Facilmente conectou minha atração pelos
olhos azuis que a moça possuía e que, de fato, eram muito particulares. Claro
que eu deveria ter associado-os aos sonhos.
Em uma das conversas que tivemos,
confessei a Fabiana que vinha pensando constantemente na moça que eu nem
conhecia, contrariando toda a minha racionalidade. Estava quase conversando com
Natascha, que certamente teria uma explicação para aquela minha insanidade
súbita. Eu só poderia estar enlouquecendo. Fabiana sorriu e, como sempre,
aliviou minha agonia dizendo que eu estava, simplesmente, apaixonada, coisa
que, até então, eu não conhecia.
Aquelas palavras serviram a mim
como um bálsamo. Sim, era apenas isso: paixão. Quem mandou tirar tanta onda
quando meus amigos se diziam nesse estado? Naquele momento, foi o diagnóstico
de minha normalidade. Não havia porque me preocupar. Não tinha nada a ver com
meu sonho ou vidas passadas. Que doidice a minha! E não havia mal algum em me
sentir feliz com a simples perspectiva de avistar ao longe a dona dos olhos
azuis, resumiu minha amiga.
Natascha nos surpreendeu em meio
a tal conversa e, curiosa como sempre, me convenceu a contar o que estava me
tirando do sério. Ouviu a tudo muito atenta e em silêncio. Resolveu
falar apenas enquanto discutíamos uma forma de descobrir mais sobre a aluna do
quinto ano.
- Vocês são bobas, viu? Não tem
nada mais fácil. Basta Fabiana perguntar ao namorado, afinal, eles não estudam
na mesma sala?
- Isso, Natascha! Ideia perfeita!
Eu chamo Ulisses e digo: amor, me conta o que você sabe sobre sua colega de
olhos azuis! É que Jordana já sonhou com a moça algumas vezes e agora quer convertê-la
ao mundo gay devidamente acordada! Simples assim! – encerrou a frase com
ironia.
As duas, vez por outra,
discutiam, sempre disputando espaço. Eu intercedi por Fabiana, que já fazia
menção de se irritar com a mania que Natascha tinha de sempre se achar a
sabichona e resolvedora de casos.
- Opa! Não precisam se estranhar,
crianças! Mais cedo ou mais tarde eu mesma descobrirei pelo menos o nome da
moça sem que Ulisses tome conhecimento da causa.
- Por falar em Ulisses... –
avisou Fabiana sobre a aproximação do namorado, olhando-nos aquela cara de
“calem a boca”.
Mas é claro que Natascha não ia
perder a oportunidade:
- Ulisses! Veja só! Estávamos
falando agorinha de você!
O rapaz olhou para mim e para
Fabiana, que nos mantivemos incrédulas e consternadas. Natascha emendou:
- Fabiana não admite, só quer ser
a durona, mas tá morrendo de ciúmes!
Eu olhei para Natascha contendo
minha vontade de rir, enquanto Fabiana continha a vontade de pegá-la pelo
pescoço. Queria só ver aonde ela iria chegar e a doida continuou:
- Cismou que tem uma coleguinha
sua que sempre passa te encarando! Uma bem bonitinha, patricinha de olhos
azuis...
Ulisses sorriu, nitidamente
lisonjeado pelo ciúme da namorada, que, realmente, não era lá de demonstrar o
que sentia. Olhando para Fabiana com cara de apaixonado, logo explicou:
- Meu amor, imagina! Aquela é
Maria Amélia, namorada de Gustavo.
Eu, que já estava me animando com
o método investigativo de Natascha, deixei o sorriso morrer em meus lábios. A
dama de olhos azuis tinha um nome lindo, mas também tinha um namorado. Ulisses
continuou:
- Não sei nada sobre ela, apenas
que tem uma família bastante tradicional, que dá a Gustavo bastante trabalho.
Parece que os pais moram no interior, enquanto ela e o irmão dividem um
apartamento por causa da faculdade. O cara é um saco de ciumento e dá uma de
guardião. No mais, nunca trocamos nem meia dúzia de palavras. Além disso, nem
preciso dizer o quanto só tenho olhos para você! Até parece que não sabe!
A raiva de Fabiana se dissipou
parcialmente diante da declaração do namorado. Ainda assim, encarou Natascha
fuzilando-a, como quem diz “você me paga”. Mas não havia tempo para maiores divergências.
Eu estava precisando de apoio. Num
diálogo mundo, ambas desviaram os olhos e me consolaram, ainda que em silêncio. Eu tava
realmente arrumada!
Não sonhei mais com a moça de
olhos azuis, tampouco avistei Maria Amélia no correr daquela semana. No sábado,
resolvi ir com os meninos para a boate e levar Cristiana junto. Ela queria de
todo jeito conhecer um lugar gay e eu precisava de alguma distração. Pensei que
a “novata” ficaria menos à vontade, mas logo vi que estava errada.
No salão escuro, inebriada menos
pela vodka e mais pelas batidas da música alta, Cristiana logo me puxou para um
beijo sem qualquer pudor. A professora de dança parecia se excitar ao ver as
outras mulheres nos observando. E aí era que me beijava e dançava daquela forma
que só ela sabia fazer.
Minha companhia era, de fato, uma
mulher e tanto! Além de tudo, “carne nova no pedaço”, o que fazia com que as
outras a cobiçassem ainda mais. Já eu, conhecida de todos, apenas me deliciava,
sem nunca deixar de, também, me saber desejada por minhas iguais.
Ao meu redor, vários rostos
conhecidos se misturavam em meio às luzes e à escuridão. Mãos, pernas, cabelos,
perfumes, olhares, tudo se alternava e se fundia, virando um todo. Eu e
Cristiana, nós e as demais. Corpos suados e colados. Música e tesão. Muita
adrenalina para conter. Ainda assim, mesmo envolvida pela volúpia e pela
vaidade daquele instante, a cada foco de luz que povoava os cantos boate, eu
buscava pelos olhos que tanto queria esquecer.
Os dias iam se passando e eu
cheguei a ver Maria Amélia algumas vezes nos corredores. Ela, porém, parecia
sequer me perceber. Nossos olhares não mais se encontraram. Mesmo quando
Natascha tentava chamar a atenção, provocando-me, a criatura passava por mim
incólume, enquanto suas amigas metidas viravam o nariz para não nos ver.
Nunca fui dada à postura de
vítima. Aliás, sempre fui por demais segura e até mesmo convencida para me
deixar abalar por qualquer pessoa que me ignorasse. Dali em diante não seria
diferente. Logo me forcei a parar de procurar por Maria Amélia e, em pouco
tempo, já acompanhava os quadris bem feitos das demais. Aquela história de amor
platônico, definitivamente, não combinava comigo. Além disso, vinha me
divertindo bastante com Cristiana, que a cada dia estava melhor fora e na cama.
Assim o tempo ia passando.
Graças a Evandro e a Camilo, meus
amigos entusiastas dos Direitos Humanos, a professora de Constitucional teve
uma idéia brilhante: visitar o presídio recém-inaugurado e que ficava logo atrás
do Campus. Que ódio que eu tive dos
dois! Estávamos cheios de trabalhos na faculdade e, como se não bastasse, no
estágio eu também estava acumulando processos! Agora ia perder minha manhã de
sábado para ganhar um ponto na disciplina que eu menos precisava! Pensei em não
ir, mas, a consciência pesou. Natascha tinha razão: eu sempre tive lá um “q” de
CDF.
Existia apenas um ônibus do
sistema penitenciário e, justamente por isso, como se não bastasse a ressaca
pela noite de sexta, me vi em pleno sábado no pátio da faculdade, sob o sol das
nove horas, esperando a tal condução.
Natascha, que estava logo atrás
de mim na fila, mascava chiclete alto. Com os óculos escuros, tentava ocultar a
ressaca que também sentia. Havíamos saído no dia anterior para um desfile da
Triton e o que iria ser uma noite de moda se transformou em uma noite de farra.
Resultado. Nos duas estávamos deploráveis, cada uma com mais mau-humor.
Enquanto isso, Evandro e Camilo passeavam ávidos pelo pátio, animadíssimos por
serem os coordenadores do tal passeio.
- Ah, bichas safadas! Não fosse
minha necessidade, eu os matava! – era Natascha praguejando, pois, ao contrário
de mim, precisava mais do que tudo daquele ponto.
Eu sorri, enquanto avistei
Fabiana do outro lado do pátio, bem feliz e leve, ao lado do namorado na fila
do quinto ano. Somente depois de algum tempo, notei que Maria Amélia conversava
animadamente com suas companheiras de turma. Com os olhos azuis encobertos
pelos óculos escuros, a moça, para mim, já se confundia na multidão.
No ônibus, eu e Natascha
estávamos mais mortas do que vivas. Encostei a cabeça em seu ombro, contendo o
enjôo e o sono, enquanto minha amiga praguejava por não ter feito faculdade de
moda. Que merda era aquela de Direitos Humanos? Indagava entre os dentes.
O presídio inaugurado era
destinado apenas aos réus que possuíam nível superior. Para complementar a
visita e mesmo dar-lhe mais sentido, Evandro sugeriu à professora que
visitássemos antes o presídio antigo, que ficava a alguns metros do novo e que
era destinado aos que não tinham nenhuma escolaridade. A comparação entre os
dois estabelecimentos, mais do que tudo, seria importante, justificou o aluno que
agora era quase meu ex-amigo. A professora, que adorava Evandro, prontamente
aceitou. Natascha jurou que mataria nosso colega assim que estivéssemos longe
daqueles presídios.
Caminhávamos pelos corredores
escoltadas pelos agentes penitenciários, mas nem a adrenalina me despertou. As
grades me eram conhecidas. Eu mesma já havia lutado bastante para romper as
minhas, as quais me pareciam bem mais injustas e despropositais. Aqueles homens
haviam procurado a cela que habitavam, eu não. Sei que não senti compaixão, nem
piedade. Sentia apenas tédio e sono. Estava mesmo me transformando.
Finalmente deixamos o presídio
antigo e fomos para o novo, o que significava que metade da tortura estava
acabando. Lá sim uma cena me chamou a atenção: os mesmos estudantes que
passaram pelos presos pobres, analfabetos e enjaulados no estabelecimento
prisional anterior, fazendo cara de nojo e horror, agora apertavam as mãos de
alguns presos ricos e conhecidos, a maioria políticos de renome. Meu enjôo se
intensificou. Talvez eu não tivesse mudado tanto.
Natascha havia dado um jeito de
ganhar seu ponto em Constitucional assinando a ata e, literalmente, fugindo na
metade do caminho. Fiquei sozinha, assistindo meus colegas naquela cena
deplorável de hipocrisia. Graças a Deus, logo depois o passeio terminou.
No ônibus, sentei de cabeça
baixa. Tinha vergonha de meus companheiros de curso. Que tipo de juizes,
promotores, advogado seríamos? Tive um pouco de vergonha também de mim, que
havia aprendido pouco com aquelas prisões, julgando mais severas as minhas.
Meus colegas eram hipócritas e eu egoísta. Um pedido de licença me tirou de
meus devaneios. Minha sentença ficaria para depois.
- Posso sentar aqui?
Era Maria Amélia que questionava,
já se sentando ao meu lado. Assenti com a cabeça, sem forças para responder o
que nem era necessário. Fomos todo o percurso caladas. Meu coração me pegou uma
peça, mostrando-se descompassado. Eu não havia me tornado indiferente a ela,
como pensava. Confusa, sentia seu perfume com a certeza de que jamais iria
esquecê-lo, reconhecendo-o em qualquer lugar que eu estivesse dali por diante.
As mãos alvas, de unhas bem feitas e cuidadas, estavam pousadas sobre o assento
da frente. Lembraram-me as de uma pianista. Não pude deixar de observar de
soslaio seus braços delicados, seu colo, notando sua respiração e algumas
sardas que lembravam estrelas. Com medo de ser notada em minha indiscrição,
fechei os olhos e assim fiquei até chegarmos, tentando me tornar indiferente ao
calor que ela emanava e ao quase roçar de nossas pernas a cada solavanco da
estrada. Poderia ter me aproveitado daquele instante para sentir sua pele, a
penugem loira de seus braços, mas preferi ficar quieta. Não queria trincar o
cristal.
Quando o ônibus finalmente parou,
me ergui antes dela e dei as costas sem um cumprimento. Preferi parecer mal-educada
a soar insegura. Foi quando ela tocou meu ombro, me fazendo retroceder:
- Você me lembra tanto uma
pessoa.
Eu me senti corar e me odiei.
Respirando fundo, olhei-a de frente, pensando “Calma, Jordana! Ela é apenas uma
daquelas menininhas mimadas que você só gosta de ter na cama! Vai dizer, como
outros tantos, que você é a cara da Lúcia Veríssimo e blá, blá blá...”
Mas antes que eu encerrasse meu
monólogo interno, Maria Amélia, me fazendo mergulhar em sua íris, confessou:
- É a cara de um ex-namorado. A
versão feminina dele, poderia dizer.
Se eu havia corado antes, não sei
que cor me estampou naquele momento. Não tive o que lhe, nem me dizer. Sorri
sem graça, não sabendo se me sentia lisonjeada ou atingida com o comentário.
Percebendo minha dúvida, Maria Amélia me aliviou:
- Não costumo me lembrar do que
não me marcou.
Apesar da ambiguidade da frase,
tive a certeza de que havia sido um elogio. Ela sorriu e saiu antes que eu
pudesse me recompor.
Fabiana, que havia assistido a
cena ao longe, me interpelou no pátio da faculdade, ávida para saber o que
havíamos conversado. Dali rumamos para a praia e a conversa durou uma longa
caminhada. Ao final, minha amiga, como sempre, me consolou:
- Pode soar preconceituoso, Jordana.
Mas não imagino uma hetero sem o mínimo de interesse que aborde uma mulher sabidamente
lésbica para lhe dizer que ela parece com um ex que muito amou.
- Ela não disse que o amou,
Fabiana.
- Existem coisas que não se precisa
dizer – minha amiga tinha razão.
Vieram as férias do meio do ano e
com elas o desencontro. Não veria Maria Amélia por bons dias, o que, de certa
forma, talvez me fizesse bem. Aproveitando o ensejo, dei um tempo nas saídas
com Cristiana e tentei me concentrar nos estudos. Sabia que teria um concurso
em breve para nível técnico no Ministério Público Federal onde eu estagiava e
queria passar. Isso já me garantiria um excelente salário e uma vida estável
para continuar estudando. Tinha por meta me tornar Procuradora da República e
esse deveria ser meu foco desde já.
Dra. Ágata, a Procuradora-chefe à
qual eu era subordinada no estágio, desde o início me apoiava. Eu tinha por ela
o maior respeito e admiração, o que, talvez, tivesse influenciado em minha escolha.
Ela era, em termos profissionais, minha inspiração. Nos primeiros meses já me
confiara a minuta de alguns pareceres e se disse empolgada com o resultado.
Elogiara minha escrita e meu esforço. Disse que poderia ser minha mentora, caso
eu decidisse dar continuidade em minha carreira como membro da instituição. Eu
não perderia aquela chance.
Aos poucos, ela ia me indicando
livros, me ajudando a fazer planos de estudos, sempre atentando para o
calendário das provas e dos concursos. Além de mentora, foi se tornando uma
amiga. Deveria ter em torno de quarenta anos, era mais inteligente do que
bonita, extremamente alinhada e polida. Vestia-se e se portava de maneira
impecável em qualquer circunstância, inclusive em uma das tardes em que cheguei
desorientada no estágio.
Eu havia discutido ferozmente com
minha mãe por questões ligadas à minha homossexualidade e chegara à
Procuradoria visivelmente consternada. Havia até chorado, o que me era muito
doloroso, posto que nada comum. Dra. Ágata estava sozinha na sala quando eu
entrei, pensando que minha chefe ainda não havia chegado. Levei um susto e me
desculpei imediatamente, virando-me para sair, mas fui impedida. A voz firme se
fez cálida, me convidando para ficar e conversar.
Foi nesse dia em que lhe falei um
pouco sobre minha vida e as intempéries que vinha enfrentando em casa por conta
de minha sexualidade. Ela não demonstrou nenhuma surpresa, ao contrário.
Parecia saber bem sobre o assunto, o que me fez supor que certamente era em
virtude de sua profissão. Como membro do Ministério Público, ela lidava
diretamente com minorias, laborado em sua defesa. Comigo não seria diferente,
pensei eu, sentindo apoio e segurança.
Dali em diante, além de chefe,
Dra. Ágata passou a ser em minha vida uma mulher mais velha, forte e experiente,
que se punha a escutar aquilo que minha mãe não conseguia. Nossas afinidades, a
cada dia, transpareciam e eu não sabia como agradecer a ela e ao Divino por
aquele encontro.
Sentia-me tão bem naquele
ambiente que tomei uma resolução: nas minhas férias passaria os dois
expedientes na Procuradoria. Um estudando, outro trabalhando. No início, foi
bastante cansativo, mas logo peguei o ritmo. Saia de casa cedinho, com meus
livros e a roupa da academia. Estudava a manhã inteira, depois almoçava um
sanduíche natural com suco na cantina e só então ia para o gabinete da
Procuradora, onde a assessorava durante toda a tarde.
Como Dra. Ágata só chegava por
volta das quatorze horas, aproveitava para, depois do almoço, baixar a cabeça
em minha mesa e dar um cochilo de quinze minutos para renovar as energias. O
ar-condicionado gelado e o silêncio sempre me ajudavam. Sem esforço, numa tarde
de sexta, com o cansaço da semana acumulado, adormeci.
Acordei com batidas na porta, o
que me fez erguer a cabeça com susto. Não era Dra. Ágata, que, por razões
óbvias, não batia. Fui à porta e a abri. Sem saber se era sonho ou realidade,
vi Maria Amélia em minha frente. Fiquei sem ação e sem palavras. Ela olhou-me
com ar de riso e logo desviou os olhos azuis para minha testa, comentando:
- Tem uma marca vermelha bem ai!
Cedendo ao riso, me descontrai e
justifiquei:
- Quem manda dormir no estágio
quando se tem a cabeça pesada?
Convidei-a para entrar e sentar.
Logo soube o motivo da visita. Dra. Ágata era a orientadora de Maria Amélia na
monografia de final de curso, o que ouvi quase sem acreditar. Ela escreveria
sobre o princípio da afetividade como caracterizador das uniões homoafetivas
como entidades familiares. Ai sim, quase cai para trás.
Timidamente, foi me falando um
pouco sobre o tema que eu tanto conhecia, diga-se de passagem. E assim fomos
passando o tempo, enquanto minha chefe não chegava. Eu tomei um café forte, ela
aceitou uma água. Os olhos dela fulguravam enquanto conversávamos. “Nem parecem
reais de tão bonitos”, pensei em voz alta. Só percebi quando ela me perguntou:
- O que?
- O quê o que? - Repeti, confusa.
- O que nem parecem reais de tão
bonitos?
Não tinha como fugir, nem queria:
- Seus olhos.
Nesse instante, Dra. Ágata entrou
e passou por nós, levando a orientanda e me deixando suspensa no ar.
Não vi quanto tempo levou até que
a Procuradora abrisse a porta, em sinal de que havia terminado a reunião com
sua aluna do quinto ano. Maria Amélia ainda conversava com Dra. Ágata quando
passou por mim na ante-sala. Despediram-se com um beijo no rosto, ainda falando
sobre os últimos detalhes da tese, enquanto eu observava calada. Minha chefe
deu as costas e Maria Amélia fez menção de sair, acenando para mim com a
cabeça, se despedindo. Antes de atravessar a porta, no entanto, parou e
retrocedeu com um pedaço de papel na mão. Sob minha mesa, pousou o número:
- É meu telefone, caso você
queira ouvir mais sobre minha dissertação.
Hesite alguns instantes diante do
papel que me oferecia. Como ela continuava com a mão pousada sobre ele, resolvi
pegá-lo para mim. Nossos dedos se tocaram de leve, o que a fez retirar a mão
bruscamente e partir. Será que ela me queria ou será que eu seria apenas um
objeto de pesquisa?
Repeti minhas indagações para
Fabiana e Natascha assim que nos encontramos a noite na academia. A primeira
respondeu que Maria Amélia me queria; a segunda, que eu tava tendo alucinações
enquanto cochilava no trabalho.
Marcadores:
conto erótico feminino,
gay,
homoerótico,
lésbica,
literatura lésbica,
todo azul do mar
Assinar:
Postagens (Atom)