Recuso-me
A esta venda de almas,
A este comércio vulgar,
A transfixar vitrines com o olhar
E as mãos espalmadas
A boca infantilizada
O delírio pelo que é caro e se põe do outro lado
Alheio à fome
Às náuseas
E traz o rótulo de imprescindível
Apesar de absolutamente dispensável
Recuso-me
A celebrar a hipocrisia
A participar dessas orgias praticadas sobre as mesas
A ensaiar o absoluto esquecimento dos males em prol de um “Feliz Natal”
A contaminar-me desta mesma cegueira
A ver o piscar de luzes que oscilam alheias às escuridões internas
Que não se tornam menos negras nas vésperas de qualquer dia trinta e um
Tampouco de qualquer primeiro de janeiro
Recuso-me
A alimentar-me desta ceia
Que abarrota estômagos,
Enquanto esvaziam-se os corações alheios.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
sábado, 6 de dezembro de 2008
PARALELOS (Crônica)
Era bem assim: um vidro separava os dois mundos, tão distintos, tão distantes, tão injustamente justapostos, paralelos.
Do lado de dentro, o mundo rico, fabuloso, desconhecido àqueles olhos infantis, já marcados pela fome, ainda sujos pelos resquícios do sono. No painel, todos aqueles botõezinhos coloridos, misteriosos, maravilhosos! “Um deles deveria ter um dispositivo muito especial que fizesse o automóvel guiar-se sozinho ou, quem sabe, até mesmo dispensar as pistas e voar, voar”, fantasiava a mente do órfão da rua. Nas poltronas, aquela grotesca aparência de trono, de onde se governa o mundo, de onde é possível atravessar mapas, romper telas, muros, entortar postes, causar medo, admiração, sem, sequer, arranhar-se... “Deveria ser blindado”, continuava ele adivinhando. No volante, adornos especiais de algo que parecia borracha, mas que deveria ser material mais caro, mais sofisticado, mais “fixador”, por assim dizer, de mãos-motoristas, afinal não haveria espaço para deslizes, nem mesmo para suores frios, tensão. Tudo parecia perfeito, futilmente perfeito. E finalmente, no rosto feminino, masculino, infantil, velho ou simplesmente “humano” que se escondia atrás do vidro escuro, havia ainda, sob forma concreta e desumana, um categórico “não”, facilmente captado, fosse através de um menear negativo da cabeça, de um dedo muito bem disposto, num vaivém inconfundível, fosse através de uma palavra sussurrada contra o vidro, fosse tão somente dito sem nenhum sinal: a presença da total ausência de qualquer sinal! Um “não” silencioso, fatal, cortante de alguém que, sem se mover, fingia não ver, tampouco, sentir o menino que, de fora, pedia...
Mas ele pedia! Ainda assim, pedia! E, com sua ingenuidade, pedia inclusive coisas que nem mesmo ele sabia. Pedia, com seus olhos famintos e ainda sonhadores, muito mais do que trocados. Pedia mais do que dinheiro para comprar pão, mais do que esmola para o remédio da irmã doente, mais do que dez centavos para inteirar a passagem de volta, mais do que um real para cheirar cola, mais do que “qualquer moedinha serva” para ajudar a mãe igualmente faminta. Ele pedia, mas ninguém via. Pedia, e nem mesmo ele percebia, para mudar de lado. Para deixar aquele lado em que (sobre)vivia. O lado de fora. O lado da margem, o lado da fome matinal que se perpetuava durante todo o dia e se esticava durante toda noite, passando a chamar-se de fome noturna até a manhã seguinte, quando voltava a ser matinal, constante, igual...fome! Queria deixar o lado dos olhos sujos pelos resquícios do sono, sem sonhos, sem lençol, sem cama, dormido numa calçada mais suja ainda, na qual o corpo magro já se amoldava com perfeição, imitando-lhe a sujeira, absorvendo-lhe a rigidez. Queria, ao menos uma vez, trocar suas roupas sujas por algo descente, que lhe desse o direito de sentar naqueles bancos tão bem forrados e guiar aquele volante, nem que fosse rumo ao seu mundo miserável. Aproveitaria, pelo menos, o percurso.
Mas esse pedido, o dono do carro não ouvia. Aliás, o próprio menino não ouvia já que o fazia em silêncio, inconsciente! Será que Deus ouviu? Nunca foi possível saber...
Dos anos, restou-lhe apenas sua infância adulta e velhice precoce, que lhe consumiu as últimas esmolas. Dos sonhos, restou-lhe apenas o vazio de quem, na vida, permaneceu sempre do mesmo lado: o de fora.
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