segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

LIMIAR

O pai toma banho, enquanto escolhe mentalmente a roupa para o enterro do filho
A moça escolhe a fantasia da segunda de carnaval, enquanto prova a de domingo

Um menino come lixo, enquanto espanta os cachorros
Uma menina vomita o café da manhã, pois engordou mais um pouco

A viúva escolhe a frase que irá registrar na coroa de flores
O moço escolhe o buquê que enviará para um de seus amores

O velho, esquálido, sem camisa, puxa a carroça para sustentar a família
O rapaz, vestindo Adidas, puxa ferro na academia

Uma mulher se lança do décimo andar e explode no chão
Um homem se lança de pára-quedas num rasante do avião

Um jovem ganha a vida fincando o machado na fronte dos bois até ouvir o derradeiro mugido, no matadouro
O outro, enriquece ouvindo Beethoven e sentenciando réus no Tribunal com caneta de ouro

O ministro, tomado de câncer, escreve seu testamento
O pescador, dourado de sol, iça velas ao vento

A mendiga, em silêncio e sangrando, suporta o estupro, estanque
A atriz, encoberta por lençóis de cetim, geme e goza, deslizando sobre seu amante

A bordadeira escolhe o ponto para bordar a última manta do natimorto
A modelo escolhe a letra para tatuar o nome do filho em seu corpo

E assim segue a vida,
Oscilando para a morte

Justamente agora,
Num golpe de caos ou de sorte,
Em que lado você pensa estar?
No B ou no A?

Engana-se:
No limiar.

Um comentário:

Danielle G. disse...

Bom dia Marina,

Lindo texto. Muito tocante. Forte, intenso, sensível e lúcido ao mesmo tempo. Parabéns pelo talento.

Um abraço,
Danielle G.