Amar é superlativo
É verbo de constante infinitivo
Já dizia Nelson Rodrigues:
Pouco Amor Não é Amor
Ame seja quem for
Não leia rótulo
Ignore nome
Não veja cor
Não conte idades
Não limite o sexo
Faça um protesto
A quem quiser lhe impor
Moldura de amor
O amor é mar
Que se espalha amplo
Sem represa e sem espanto
O amor é canto
Que ecoa alto
É pranto sem dor
É o mais alto dos saltos
E da queda não se morre
Se renasce em festa
Pois amor é trégua
Depois de séculos de guerra
É chuva sem inverno
É canteiro em flor.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
SUPERLATIVAMENTE
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
TODO AZUL DO MAR (Conto)
Capítulo IV
A REALIDADE
As aulas voltaram e, com elas,
Maria Amélia pelos corredores. Pela primeira vez em minha vida, tive medo.
Sempre que nossos olhares se cruzavam, ela sorria e acenava simpática, apesar
dos olhares avessos das amigas. Eu retribuía, mas tentava me mostrar
indiferente. Não queria que ela percebesse o que me causava. Aliás, eu mesma
não queria ver.
Na primeira semana depois do
retomada das aulas, cedi à Cristiana e na academia mesmo, numa das cabines do
vestiário, transamos. Foi muito bom, como sempre. Era indiscutível o prazer que
ela me dava. Resolvi então que me prenderia a isto e bastaria. Passamos então a
ensaiar um namoro.
Não éramos apenas boas parceiras
de cama. Entediamos-nos bem em várias coisas e, sobretudo, ríamos muito quando
juntas. Cristiana era inteligente, envolvente e parecia cada dia mais disposta
a assumir nosso romance, o que me surpreendia e causava admiração.
Sempre imaginei que ela seria
mais uma daquelas enrustidas, que me usaria e a quem eu usaria, inclusive
quando arrumasse um namorado para fazer de trouxa. Mais uma vez me enganei.
Definitivamente ela não era assim. Na academia, demonstrava todo o carinho que
sentia por mim aos olhos do público, sempre arrumando um espaço para pegar
minha mão e me dar um beijo no rosto. As pessoas pareciam não acreditar no que
viam. Algumas mulheres fingiam não ver, enquanto os homens vacilavam entre
lamento e excitação. O fato era que nosso namoro estava se tornando explícito.
Eu estava me sentindo feliz e já
não tinha medo de ver Maria Amélia pelos corredores. Havia me curado da loucura
e nunca mais tivera aqueles sonhos estranhos. Não sei por que, meu Deus,
resolvi ir à biblioteca naquela tarde. Ela estava lá estudando e, quando me
viu, veio em minha direção. Perguntou, com a voz baixa em respeito aos
leitores, se Dra. Ágata estaria na Procuradoria no final da tarde. Eu respondi
que sim, recuando o rosto para não sentir seu perfume enquanto ela se
aproximava.
Maria Amélia agradeceu e antes de
retornar para a banca de estudos, me questionou de forma direta e segura:
- Por onde você anda quando não
está no gabinete da Procuradora ou nos corredores da faculdade?
-Na biblioteca – respondi, com um
riso que logo foi retribuído. Ela insistiu:
- Falo sério. Sempre saio com o
pessoal da faculdade, vejo Fabiana e Ulisses pelos bares, mas nunca te vejo.
- Certamente não andamos pelo
mesmo mundo.
- O que não quer dizer que não
vamos andar.
Aquela frase acabou comigo. Toda
minha alegria em
encontrar Cristiana no final da noite foi por água a baixo.
Da faculdade fui para o estágio e não me concentrei em nada, atordoada com
expectativa de ouvir Maria Amélia bater à porta em qualquer instante. Mas ela
não foi.
Fui direto para casa. Não tinha
condições de ir para a academia, muito menos de encontrar com Cristiana. Só
pensava na criatura de olhos azuis. Precisava ser franca comigo e com minha
recém namorada.
No dia seguinte, conversei com
Cristiana e lhe contei sobre o que estava sentindo pela aluna do quinto ano.
Ela me escutou calada e pensativa. No final, como sempre, me surpreendeu
positivamente:
- Vá atrás do que quer, Jornada!
Não é assim que você funciona?
Uma pontada de mágoa dormitava na
derradeira frase. Ainda assim, ela me abraçou e senti sinceridade no desejo de
que eu ficasse bem.
Cheguei à Procuradoria correndo e
mais uma vez desorientada. Dra. Ágata perguntou se eu tinha visto um passarinho
verde. Prontamente respondi:
- Azul!
Peguei o bilhete que havia
guardado na gaveta e disquei o número. Chamou algumas vezes antes de Maria
Amélia atender. A voz, quando anunciei meu nome, se fez surpresa, mas logo se
recompôs. Definitivamente ela sabia manter o controle. Iniciei ensaiando um
assunto, dizendo que tinha lido um artigo sobre o tema da monografia dela e
havia me lembrado. Enfim, eu estava indo bem com as palavras. Convidei-a para
um cinema, quem sabe uma conversa à beira mar. Talvez o mar fosse um ponto em comum
entre nossos mundos, encerrei tentando dar leveza à frase.
Ela não foi tão simpática como de
costume. Pediu desculpas e, falando em voz baixa, disse que estava um pouco
tumultuada com a apresentação da dissertação, que já havia agendado. Quando
tivesse mais tranqüila, me ligaria. Anotaria meu número. Uma voz masculina se
fez ao fundo quando ela desligou.
Sentindo a aspereza do tapete sob
meus pés descalços, fiquei ali, em meio às estantes empilhadas de livros de meu
pai, com o telefone nas mãos, estática, fingindo que a poeira não me incomodava
e que não me sentia morta por dentro. Fixei o olhar em um desenho preto e
branco pendurado na parede e me senti igual a ele: disforme, sem graça e cor.
No reflexo viabilizado pela moldura de vidro, me vi. Não passava de uma garota
de vinte e um anos, alta e magra, metida a forte, com as sobrancelhas grossas e
bem feitas, indefinida entre ser masculina e altiva, os olhos escuros e firmes,
as roupas maiores do que meu corpo, numa tentativa estúpida de não me sentir
pequena e indefesa, como me sentia agora diante da vida.
Contive a vontade de ligar
imediatamente para Cristiana. Queria pedir desculpas, dizer que estava
arrependida e que fizera uma péssima escolha; queria seu colo, queria seu olhar
carinhoso sobre meu rosto; queria deitar a cabeça entre seus seios e adormecer
sentido suas mãos quentes alisando meus cabelos. Mas não fui tão cretina.
Coloquei o telefone no gancho com mais força do que o necessário e, enquanto
atravessava a sala sob o olhar intrigado de minha mãe, arquitetei minha
vingança.
Então Maria Amélia queria brincar
comigo? Pensava que poderia jogar com entrelinhas, me envolver feito uma idiota
para depois me descartar? Se eu havia aprendido alguma coisa em minha vida
medíocre até aquele momento era como seduzir alguém até conseguir o que eu
queria. Aquele papel era o meu e ela não iria me tomar.
Fui para a casa de Fabiana.
Natascha chegou em menos de uma hora. Sentamos na varanda do quarto, tomamos um
café forte, como geralmente fazíamos no final dos sábados antes de sairmos para
balada, e ficamos conversando bobagens. Não quis contar o que aconteceu. Fiquei
apenas escutando Fabiana falar sobre Ulisses e Natascha contar as últimas
manias de Victor. Fizeram alguns planos para mais tarde, dos quais não
participei. Minha cabeça não pararia enquanto eu não colocasse em prática meu
mais recente projeto. Por volta das nove horas, quando iam começar a ser
arrumar para sair, fui para casa. Não era longe e preferi ir a pé. Precisava de
ar fresco. Enquanto caminhava sentindo o vento do Bosque do Planalto no rosto,
escrevi em meu imaginário o primeiro e-mail.
Descobrir o endereço eletrônico
de Maria Amélia foi fácil. Existia uma lista dos e-mails de todos os alunos na
barraquinha de xérox do bloco de Direito. Eu já havia anotado o que me
interessava. Criar um endereço eletrônico foi ainda menos complexo: 14bis@hotmail.com. Esse seria meu pseudônimo.
Nem masculino, nem feminino. Nada de gêneros. Não queria rótulos nem limites.
Sentei na frente do computador exatamente à meia-noite, com um cálice de vinho
do porto roubado de meu pai. Olhei novamente para o desenho preto e branco na
parede e já não me identifiquei com ele. Sentia-me viva e colorida quando
comecei a escrever no teclado o que já habitava dentro de mim.
Maria Amélia,
Tudo ia e a vida vinha, como sempre vem. Mar calmo, calmaria. Nada
estranho, tudo comum. Até que, por ironia ou acaso, te encontrei. Você não saiu
de mim, nem eu de teus olhos. Sou apenas alguém que queria te conhecer.
Não assinei. Jamais assinaria até
que ela estivesse tão envolvida quanto me deixou. Agora a moça de olhos azuis iria
ver.
Não dormi até me sentir anestesiada
pelo vinho do porto, inebriada pelo líquido bordô e pelo o desejo de ser lida.
Imaginei se ela estaria em algum restaurante caro com o namorado, num cinema
cujo filme logo viraria sessão da tarde, num motel transando alucinadamente ou
simplesmente em casa. O
tempo foi passando e só desliguei o computador quando se tornou indiferente
onde Maria Amélia estava. Queria apenas que, entre um dia e outro, ela
estivesse defronte à tela lendo aquele e-mail e imaginando quem era seu
criador.
Dois dias se passaram e nenhum
sinal de vida. Fui para a faculdade e também não a avistei. Já estava ficando
agoniada. À noite, depois da academia e de me sentir tentada a ir falar com
Cristiana, cedi a um convite de Evandro e Camilo. Saímos em plena terça-feira
para conhecer um novo bar: o Laboratório.
O lugar era bem diferente. Todo
claro, paredes brancas, luzes pálidas, mesas e cadeiras transparentes. Cenário
frio, como eu estava ficando. Enquanto tomava uma dose pura de vodka, resolvi
comentar com os meninos sobre meu telefonema para Maria Amélia. Eles ficaram bobos,
mais com a reação dela do que propriamente com minha ousadia. Juravam que a
criatura estava me dando a maior bola e não entenderam o porquê daquele fora.
Eu, ao contrário, havia entendido perfeitamente. Ela deveria estar com o
namorado e percebeu que a brincadeira de seduzir uma lésbica poderia ter
consequências mais sérias. De fato, teria.
Sai do bar depois da terceira
dose. Revi no Laboratório uma menina que eu já havia ficado um tempo e que
sutilmente me convidou para levá-la em seu carro. Sem qualquer esforço,
deixamos os vidros absolutamente embaçados, enquanto trocávamos salivas, suores
e gozos.
Cheguei em casa de madrugada,
cansada e tonta. Já estava no meio das escadas rumo ao meu quarto, em passos
bem leves para não acordar meus pais, quando resolvi descer e ir até o
computador. On apertado, luz vermelha
se transformando em verde, www.hotmail.com,
14bis@hotmail.com, mariaamelia como senha, “você tem uma nova mensagem”:
Não costumo falar com estranho, nem mesmo com os falsos-poetas.
Quero um nome, ainda que falso.
Espero.
Maria Amélia.
Vacilei entre gritar de raiva e
de alegria. Mantive o silêncio, embora por dentro fosse toda euforia. Aquela
foi a primeira resposta de muitas que viriam. Ela queria um nome, queria uma
mentira. Eu seria especialista. Dei-lhe “Venturine”, em homenagem ao Flávio,
autor de Todo Azul do Mar. E sob tal disfarce, passei a escrever-lhe quase que
diariamente, fugindo dos pronomes masculinos e femininos, mas me aproximando
dos verbos e substantivos mais sinceros.
Aos poucos, minha amiga virtual
também ia se aproximando. Nas entrelinhas, me deixava entrever alguém sem muito
amigos, cercada por livros, desejosa de romances. Isso eu poderia lhe dar e não
seria de todo falsidade. A cada e-mail, parte de nós era despida. Contei-lhe
algumas bobagens de minha vida, deixando transparecer minha forma de ser,
apesar de ocultar minha face. Eu era uma mulher, mas essa carta seria a última
que eu lhe daria. Mostraria quão indiferente seria tal “detalhe” quando
estivéssemos realmente envolvidas. As barreiras que encontrei no início foram
cedendo à minha falsa-poesia. No fundo, creio que ela começou a gostar de ser
galanteada, fonte de inspiração de alguém que ora se mostrava bobo, ora
displicente, ora apaixonado, ora indiferente. Sim, eu tinha muitas caras e
daria a ela quase todas até prendê-la ou me perder de vez.
Fabiana não aprovava nem um pouco
meu plano. Dizia que eu estava brincando com sentimentos. A menina era hetero,
tinha namorado, ia surtar quando soubesse da verdade e nunca me perdoaria por
tamanha cretinice. Já Natascha vibrava a cada e-mail, tendo a plena certeza de
que a tal mocinha de boba não tinha nada. Já deveria saber há muito tempo que
era eu quem lhe escrevia e estava adorando ser cantada por uma mulher. Aliás,
essa deveria ser sua grande tara. Minha amiga inflava meu ego, repetindo que eu
sempre soubera seduzir. E sorte de quem fosse meu alvo! Em meio a opiniões tão
diversas, eu oscilava, ora crendo em uma, ora em outra, conforme me fosse mais
conveniente.
Cada vez que Maria Amélia se
mostrada distante e reticente em corresponder às minhas investidas emocionais,
pensava: a moça supõe que sou qualquer idiota do bloco de Direito, o qual, a
qualquer momento, diante de um fora, poderá mostrar seus e-mails a outros,
chegando inclusive ao seu namorado. Por outro lado, quando minha destinatária
me respondia com curiosidade e até doçura, tentando soar distante, mas, ainda
assim, envolvente, eu vibrava: é claro que ela sabe que sou eu! Deve confiar em
mim e logo me tratará com total cumplicidade.
E assim, os dias iam passando, os
e-mails iam crescendo: frases, sentimentos, verdades substanciais, mentiras
irrelevantes, tudo ia sendo trocado. No mesmo compasso, nós duas íamos nos
misturando, nos conhecendo e, ao mesmo tempo, desconhecendo. Eu já não sabia quem
era: se um pseudo-apaixonado ou real-apaixonada. Ela, não sei como agia: acho
que de maneira genuína e não falsa.
Numa noite de sexta-feira, não
quis sair de casa. As ruas me pareciam vazias ultimamente. A sala do computador
me bastava. Sem pressa, sorvi o vinho do porto e escrevi:
Todo meu desejo se represa agora em saber: por onde anda você?
Imediatamente veio a resposta:
Ando pensando em você.
No dia seguinte, resolvi tomar
uma providencia concreta. Naquela época não era tão simples gravar um CD como
atualmente. Tive, portanto, que partilhar minha idéia com Natascha, que mandava
bem nessa história de computador, gravador, internet.
Empolgadíssima, minha amiga me
ajudou a selecionar e baixar todas as músicas que eu queria. Que as letras
falassem para Maria Amélia o que eu ainda não podia dizer pessoalmente. A
primeira delas foi O Rio, de Ana Carolina. Em seguida, Adriana Calcanhotto com
Medo de Amar e Segundos. Não poderia faltar Madonna com Take a Bow, nem Marisa
Monte, com Pale Blue Eyes, versão que considerava melhor do que a original de
Lou Reed. Na derradeira, como não poderia ser diferente, veio Todo Azul do Mar,
na voz de Flávio Venturine. Talvez agora a destinatária do CD soubesse não
apenas a origem do pseudônimo, mas também o que me prendeu a ela inicialmente:
a cor azul e impar de seu olhar.
Fabiana descobrira que Maria
Amélia dava aulas de inglês na Cultura Inglesa nas tardes de quinta. Evandro e
Camilo não hesitaram em ir lá deixar discretamente na secretaria minha
encomenda. Junto ao CD, uma frase num papel com minha própria letra:
Agora você pode me escutar.
Meu coração quase saiu pela boca
quando Evandro me ligou dizendo que a sorte já estava lançada. O CD havia sido
devidamente entregue à recepcionista. Naquela hora, por certo, poderia estar
ecoando no quarto da destinatária. Estranhamente, me senti mais próxima de Maria
Amélia.
Naquela noite, não consegui
dormir. Inquieta, rolei pela cama de um lado para o outro. Os latidos dos
cachorros do vizinho também não ajudavam. Eu, que não conseguia adormecer
ouvindo música, resolvi recorrer ao som. Se ia passar a noite acordada que, ao
menos, ouvisse Todo Azul do Mar. Liguei o CD baixinho. Havia feito uma cópia
idêntica ao que entreguei a Maria Amélia e me pus a escutar.
A noite se agigantava e, por
cansaço, estava quase adormecendo quando meu celular vibrou sob os lençóis. Levei
um susto, mas não maior do que quando li no visor: Maria Amélia.
Estremeci, sem saber se deveria
ou não atender. Depois de chamar por três vezes, me decidi e aceitei a ligação.
Ela havia desligado. Pulei da cama, andei pelo quarto escuro. As mãos na cabeça,
aperto no coração. Deveria retornar? Retornei. Caixa postal. Aí é que não dormi
nem naquele nem nos próximos dias.
Na manhã seguinte, criei coragem
e resolvi tentar remediar a situação. Convencida de que era o melhor caminho,
mandei para o celular de Maria Amélia uma mensagem:
Você me ligou ontem? Posso ajudar em algo?
A tarde começou e findou sem
resposta. Fui para a faculdade, para o estágio, para a academia e nada! Perdi
as contas de quantas vezes olhei para o celular desejando ver “nova mensagem”
no visor. Apenas por volta das sete horas, enquanto jantava com meus pais
conversando amenidades como todos os dias, um bip quase me fez cuspir a sopa:
Desculpe. Devo ter encostado em alguma tecla e o celular discou seu
número. Não tive a intenção.
Difícil acreditar naquela
desculpa. Meu nome, graças à letra J, estava longe de começar qualquer lista de
contatos! Tive ódio de Maria Amélia por ser tão cínica e mentirosa! Mas será
mesmo que havia sido cínica e mentira? Não queria acusá-la simplesmente. Aliás,
quem era eu para falar em mentiras? Por outro lado, apesar da raiva pela
suposta desculpa esfarrapada, para mim era bem mais agradável imaginar que, de
fato, ela havia ligado para mim na madrugada, embora desconhecesse o motivo.
E mais uma vez me vinha a
inquietação. Será que havia me ligado por não conseguir mais se conter, tomada
pela vontade de falar comigo? Ou seria para me mandar desaparecer e tomar
vergonha na cara? As possibilidades eram muitas e me arremessavam ora para um
lado amargo, ora para um lado querido. Ergui-me da mesa e deixei a sopa esfriar
diante dos olhares reprovadores de meus pais.
Estávamos a menos de uma semana
do Natal. Mais uma vez um ano findava e eu me sentia vazia. Depois do
telefonema esquisito, deixei de mandar e-mails para minha amiga virtual. Quem
sabe assim ela sentia minha falta e ligava novamente? Enganei-me na previsão. O
silêncio também se fez absoluto do outro lado. Não recebi qualquer palavra
durante dias. Parecia haver rompido nosso único vínculo.
Chegou o dia da confraternização
com o pessoal da academia em um barzinho localizado na parte antiga da cidade.
Chamava-se Engenho e era um sobrado de esquina, com o piso de madeira, poucas
mesas e agradáveis sacadas que ampliavam a vista. Fazia tempo que não ia ali.
Tinha o melhor caldinho de feijão da cidade e era frequentado pelo pessoal
ligado a arte, bastante alternativo. A escolha partiu de Evandro e Camilo, que
convenceram mesmo os mais caretas a comparecerem. Afinal, todo ano íamos a
restaurantes tediosos e cheios de frescura. Agora era a vez de a “galera do
mal” escolher o destino. Foi essa a justificativa que, sem maiores encrencas,
foi aceita por todos.
Além de Fabiana, Ulisses,
Natascha, eu e os meninos, foram também Letícia com o marido, Bruno com a namorada,
os gêmeos do halterofilismo, Gustavo, que era professor de musculação, e
Cristiana.
Como já imaginava, a professora
de dança sentou ao meu lado, com uma minissaia jeans e justa, que deixava as
belas pernas à mostra. Os bancos eram compridos e de madeira, o que fazia com
que nossas pernas se encostassem. Vez por outra, a criatura passava as mãos nas
minhas coxas, enquanto contava alguma história ou simplesmente sorria das que
contavam. Não perdia a mania de me provocar, nem eu deixava de me sentir provocada.
Nossos desejos sempre foram bastante recíprocos, esse era o fato.
Depois do amigo secreto e de
várias caipiroskas, todos já estavam por demais leves e descontraídos. Nossos
colegas caretas e os respectivos companheiros estavam bastante à vontade e até
deixaram claro voltariam ao Engenho em outra oportunidade.
Já passava da uma hora da manhã
quando Cristiana se ergueu rumo ao banheiro. Antes de se levantar, todavia,
pegou minha mão e a conduziu por entre as coxas discretamente e por baixo da
mesa. Eu respirei fundo e contive o deslizar de meus dedos, que tão bem
conheciam aquele caminho. Ao sentir que recuei, ela ergueu-se de vez e me olhou
com ar feroz, contrariada pela recusa.
Eu me arrependeria amargamente,
não fosse uma luz que se acendeu no visor de meu celular, que estava sobre a
mesa. Mensagem recebida:
Cansei de fingir não saber. Quero te ver. Você pode vir até a mim?
Então, finalmente, Maria Amélia
admitira! Sabia o tempo todo que era eu! E mais: me queria com tanta ênfase que
não hesitou em dizer, mesmo por mensagem de texto. Aquela explosão de palavras
certamente refletia uma explosão de sentimentos e desejos. Ela havia sentido
minha falta e não recuaria mais. Naquela dança, o primeiro passo no mundo real
havia sido dado. Agora já não havia como nem porque eu me conter.
Com os dedos trêmulos, escrevi
simplesmente sim e, em menos de um
minuto, Maria Amélia me mandou seu endereço.
Desci as escadas de madeira com
pressa, enquanto procurava a chave do carro dentro da bolsa, pulando de dois em
dois degraus. Atravessei a rua sem olhar para os lados e dei a primeira cédula
que encontrei na carteira ao flanelinha, sem consultar sequer de quanto se
tratava.
Sempre fui bastante perdida com
rotas e endereços, ainda mais depois de beber. Não sei por que, nem como, mas,
naquele dia, fugi à regra e não errei o caminho, nem me perdi uma vez sequer.
Em menos de dez minutos estava defronte ao prédio de poucos andares onde Maria
Amélia morava com o irmão, que certamente havia viajado. O porteiro já esperava
e me mandou subir, sem avisar à dona da casa.
Ao abrir a porta, Maria Amélia me
olhou fixamente, um tanto quanto pálida. Os olhos azuis brilhavam de forma
intensa. Com a voz trêmula, me disse que entrasse. Obedeci. Na sala de poucos
móveis, me acomodei no sofá de dois lugares. Ela sentou na outra extremidade.
Sem rodeios, começou o diálogo:
- Você está brincando comigo ou
seu sentimento é real?
- É real.
Não tive tempo de dizer mais
nada. Ela venceu a distância e logo se pôs ao meu lado. Olhando-me de frente com
aqueles olhos absurdamente lindos, me beijou. O contato foi inicialmente
desajeitado. Eu tentei domar a boca, que avidamente buscava a minha. Sentia
nossos corações desesperados, as respirações entrecortadas de desejo e susto.
Segurei-a pela nunca e tentei acalma-la, sem, entretanto, desvencilhar-me do
beijo. Aos poucos, íamos tomando o jeito e o ar, desacelerando as línguas e
lábios, encaixando nossos desejos.
Eu não acreditava no que estava
acontecendo. Acho que ela menos ainda. Sentia Maria Amélia tremendo, não sei se
de nervosismo ou de desejo ou de ambos. Apostei na última opção.
O celular dela nos interrompeu ao
chamar em cima da mesa. Maria Amélia me soltou bruscamente e correu para
atender. Deu as costas e foi à varanda. Eu não ouvi nada. Em menos de um
minuto, ela retornou e me pegou pela mão, puxando-me para o quarto.
No ambiente escuro, com a cama
parcialmente desforrada, ela deitou-se e eu me deitei por cima. Busquei seus
olhos e eles estavam marejados. Com calma e doçura, alisei-lhe os cabelos e
beijei-lhe suavemente os lábios. Senti o gosto salgado das lágrimas. Olhei-a e
perguntei se queria que parasse. Foi quando entendi o porquê daquela comoção:
- Nunca fui para cama com
ninguém.
Tentei não demonstrar a surpresa
que me invadiu. Por segundos, ponderei se era justo tê-la daquele jeito. Será
que eu merecia ser a primeira? Meu sentimento era digno o suficiente? Havia
mentido, ocultado minha identidade, me valido de truques para envolvê-la e
agora? Teria o direito de consumar o que tanto desejara?
As mãos bem feitas me responderam
quando, sutilmente, começaram a se livrar das vestes. Os seios macios, com os
bicos rijos, também me convidavam. Os olhos azuis, que me olharam num misto de
desejo e pressa, me convenceram.
Tomei-lhe os seios com as mãos. Desenhei
flores com a língua ao redor dos mamilos rosados até, finalmente, sugá-los.
Maria Amélia estremeceu e gemeu baixinho. Com precisão e carinho, deslizei as
mãos pela barriga, que instintivamente se contraiu. Dali rumei para o ventre,
apreciando com o dorso da mão a penugem fina e clara. Passeei os dedos por suas
coxas, sentido que ela as abria delicadamente, sutilmente, tentando manter a
calma. Apertei com firmeza a parte interna das pernas, depois ergui seu ventre,
apoiando suas nádegas com força. Ela se arqueou, como eu insinuava. Ofegante,
eu deixei minha boca pousar sobre o que me era oferecido: o líquido quente, o
nervo rígido. Maria Amélia era minha.
Seria eu dela? Essa dúvida me assolou
e devassou. Eu estava excitada e envolvida, mas, definitivamente, não sentia
que estava prestes a possuir o grande amor de minha vida. Seria canalha a ponto
de fazê-la gozar e gozar sobre ela para depois sumir? Seria inescrupulosa a
ponto de sair dali e deixá-la entregue sem o gozo que em silencio me pedia? Tive
vontade de chorar com as possibilidades. Qualquer decisão que eu tomasse não
seria bela, nem digna. Eu passada dos limites com a brincadeira de encontrar na
realidade a personagem de meu sonho.
Atônica, optei por me despir e, sem
machucá-la, dar-lhe todo o prazer que ela merecia. Com candura e suavidade,
beijei-lhe os lábios inferiores, experimentando seu líquido com gosto. Ela já
estremecia quando resolvi mergulhar a língua em seu ventre até sentir que
estava preparado, dilatado, apetitoso. Depois, sem pressa, deslizei os dedos,
experimentando primeiro um, depois dois, de forma precisa, mas confortável.
Intensifiquei quando ela mesma, agarrando-se em meus cabelos, me puxou para
dentro de si, deixando claro que queria mais. Sem demora, Maria Amélia tremeu
inteira, enquanto ainda mantinha minha boca pousada e meus dedos imersos. Dei-lhe
um longo gozo. Depois, escalei seu corpo e a beijei com suavidade, afagando
seus cabelos.
Meu ventre estava quente,
pulsando de desejo, mas me contive. Preferi abrir mão de meu prazer para não me
sentir pior ainda quando fosse embora. E assim, sem qualquer diálogo ou
promessa, eu fiz.
Maria Amélia não me procurou no
dia seguinte, nem eu a ela. Não nos escrevemos mais, nem trocamos mensagens
pelo telefone. Fingimos não nos enxergar na faculdade quando cruzávamos pelos
corredores. E assim, gradativamente, nos perdemos. Certamente seria melhor para
mim e para ela.
No dia da formatura de Ulisses, Maria
Amélia também se formou e estava linda, ao lado do namorado. Eu estava com
Angélica, com quem passei alguns anos. Ao longe, acenei-lhe com a cabeça e lhe
disse “parabéns”. Ela leu os meus lábios e sorriu. A melancolia escurecendo-lhe
o azul dos olhos.
Agora estou eu aqui, falando mais
para mim mesma do que para estrangeira que me acompanha no avião. A moça, que
se apresentou como Beatrice, sentou-se ao meu lado, dizendo-me em português
parco ter pânico de voar. Eu, que já havia devidamente me sedado, tomando um
Rivotril seguido de uma dose de uísque caro, perguntei se podia lhe ajudar de
alguma maneira.
Estranhamente, a moça pediu que a
distraísse contando uma história qualquer. Contou-me que era diplomata da Inglaterra,
atualmente lotada na missão diplomática do Brasil, onde estava apenas há alguns
meses. Queria treinar a compreensão da língua com a qual iria trabalhar nos
próximos anos. Talvez meu relato em português a mantivesse distraída e a
fizesse esquecer do medo.
Sorri da idéia esdrúxula, mas
aceitei. Comecei indagando:
- Acredita em outras vidas?
Diante do incisivo não, resolvi interceder. Dentre as
histórias que vivi, a da estranha dama de olhos azuis que invadira meus sonhos
era a que considerava a mais desvairada e insana. Por conta de tal loucura, que
ainda pendia sem explicação, havia magoado várias pessoas que passaram em minha
vida, sempre em busca do tal “grande amor” que jamais encontrei.
Depois de Maria Amélia, tive
vários relacionamentos, me apaixonei várias vezes, mas nunca senti o que
sentira nos sonhos pela tal desconhecida de olhos azuis claros. E o pior: se
não a encontrei em vida, também não a encontrei mais enquanto dormia. Nunca
mais sonhei com a criatura ao longo daqueles tantos anos. Deve ter sido um
castigo divino pelo mal de causei a tantas.
Enfim, apesar de ter desistido de
procurar, vez por outra ainda me lembro da sensação que aquela imagem me
causava e, sobretudo, do sentimento que nunca experimentei na realidade. Talvez
por isso tenha escolhido exatamente essa história para segredar à minha
companheira de viagem.
Logo atrás de nossas poltronas –
e isso eu também contei a Beatrice – estavam Fabiana e Ulisses, que haviam se
casado e, na atualidade, eram sócios de um grande escritório de advocacia;
Evandro e Camilo, ambos professores da universidade e pais de um menininho de
oito anos que haviam adotado; Natascha, que havia terminado a faculdade de
Direito e ido para São Paulo com Victor, onde cursava moda; e eu, meu Deus, que
havia me tornado Procuradora da República, como planejado.
Aquela era nossa viagem comemorativa
de dez anos de formatura. Natascha, que fora a responsável pelo roteiro,
continuava sem perder a chance de dar a tudo o tom da misticidade: havia
escolhido um castelo britânico, atualmente hotel, como nosso paradeiro e ainda
disse, em tom de graça, que fora em minha homenagem. Nem ela havia esquecido de
meus sonhos.
Com um riso suave, minha
companheira de viagem olhou para trás tentando visualizar os personagens
daquela história estranha que acabara de escutar. Em seguida, olhou-me com a
mesma atenção e cuidado. Percebi certa emoção em sua face, talvez pelo fato de
ter visto de perto pessoas das quais já havia lhe falado com tanta propriedade.
Será que lhe pareceram familiares?
Enfim, mesmo correndo o risco de
parecer uma lunática, o fato é que, na inglesa, já não habitava o medo de voar
quando encerrei meu relato. Disso eu tive ainda mais certeza quando ela, com
polidez, me agradeceu. Em seguida, vencendo os tão britânicos protocolos, tocou
minha mão, que repousava sobre a cadeira. A pele dela, de repente, pareceu me
queimar. Quase puxei a mão em fuga, mas seu olhar me fez deixar.
As luzes estavam parcialmente
apagadas. Viramos-nos sem pressa, uma defronte à outra. Ela então me indagou:
- Seu grande amor precisava mesmo
ter olhos azuis?
Não, não precisava. Por que eu
não havia percebido antes? Eu sei que, naquele instante, me pareceu tarde.
Trovões e relâmpagos cortaram o céu, clareando o interior do avião. Em nossos
olhos, o encontro foi substituído pelo medo, dessa vez mútuo. Medo da vida ou
da morte? Eu não soube responder.
Fechei os olhos e creio que ela
também. Mantivemos-nos de mãos dadas, enquanto tudo parecia desabar dentro e
fora de nós. O barulho infernal dos objetos tombando em confronto com a mudez
dos passageiros. O prenúncio da morte causava silêncio, foi o que constatei.
Dali em diante, não vi nem ouvi
mais nada. Também não me lembro de nada. Apenas de ter aberto os olhos e
pensar: sobrevivi.
Meu corpo repousava sobre uma
cama imensa e antiga. Os lençóis eram azuis e de cetim. Ao redor, paredes altas
e de pedra; móveis e objetos rebuscados; uma lareira. Ergui-me com certa
dificuldade. Observei prontamente meu corpo. Estava inteira. Caminhei até os
janelões de vidro e um jardim de beleza inacreditável se estendia até onde
minha vista alcançava. Cores e formas particulares, como eu nunca havia visto
antes. As flores me diziam que era primavera.
Com euforia, abri a porta e desci
pelas escadas, pulando de dois em dois degraus, como fazia sempre que tinha
pressa. Reconheci prontamente o castelo, o mesmo de meu antigo sonho. A sala
imensa coberta por tapetes e sofás bordô; a lareira gigantesca apagada; os
quadros com os ancestrais da família real dependurados pelas paredes de pedra.
Invadia-me um misto de medo e curiosidade.
Só precisava averiguar um detalhe
para ter a certeza que queria. Será que Natascha havia descoberto que o castelo
com o qual sonhara existia de verdade? Corri até aquele que parecia ser o
gerente e, me aproximando da bancada, gentilmente lhe pedi:
- O senhor poderia me levar à
suíte principal?
- Infelizmente ela já está
ocupada, senhora.
- Mas eu não queria me hospedar
lá. Gostaria apenas de visitá-la.
- Só se a proprietária autorizar
– e o rapaz olhou em direção àquela que chamou de Srta. Hanover, certamente uma
das ultimas descendentes da dinastia inglesa de mesmo nome.
Apenas nesse instante avistei a
mesa imensa onde descansava um farto café da manhã para todos os hospedes. Meus
amigos já me esperavam devidamente sentados, com a felicidade estampada nas faces
que me eram tão familiares. Passeei a vista por todos e, na cabeceira, parei,
enlevada. Nem foi preciso esperar que Beatrice Hanover erguesse a vista,
tampouco investigar a cor de seus olhos, para que a reconhecesse. Autorização
alguma seria necessária. Eu finalmente havia chegado em casa.
FIM
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