Sobremodo me enervam os hipócritas
Com seus semblantes,
Com seu rompantes,
Com sua retórica
Sempre falha e confusa
Sobremodo me enervam os hipócritas
Com suas aulas,
Com suas falas,
Com suas formas,
Sempre despidas de fundo
Com suas fórmulas
Ausentes de qualquer lógica,
Mas, sempre, julgadas perfeitas
Desde que a si não se apliquem
Desde que se enjeite tudo o que diferente se faça
Do que a si se assemelha
Sobremodo me enervam os hipócritas
Com seus conselhos,
Com seus espelhos,
Onde apenas sua imagem se reflete,
Ainda que disforme, triste e absurda
Com seus conjuntos inteiramente vazios
De quaisquer elementos verdadeiros
Com sua mágica simétrica,
Onde o igual se repete,
Ao passo que repele o diverso
Chamando-o, com prepotente ignorância,
De anormal,
Feio,
Imperfeito,
Perverso
Sobremodo me enervam os hipócritas
Que não olham para dentro de si mesmos,
E criticam, incongruentes, nos terceiros
Os defeitos que em suas entranhas escondem
Mas até onde?
Até o dia em que o mundo,
Num girar profundo,
Os faça tontos e atônicos,
A expelir, em refluxo, o que
Dizem eles lhes revirar o estômago
Pois é exatamente da matéria que rejeitam
Que andam os hipócritas cheios!
E, por isto mesmo, sobremodo me enervam os hipócritas
Que são exatamente iguais a nós
Com uma esmagadora diferença:
Faltam-lhes a coragem de dizê-lo.
(17/04/2007)
quinta-feira, 17 de abril de 2008
AOS HIPÓCRITAS (Poesia)
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segunda-feira, 14 de abril de 2008
ANDROGINIA (Conto Erótico Feminino)
Não. Fora essa a última palavra escutada por Cléo, proferida com exagerada veemência pelo pai, antes que ela pudesse tomar com a mão o trinco da porta e sair. Imediatamente a moça estancou. Com ódio, fechou os olhos com força, sentindo-os colarem-se às pálpebras. Respirou fundo, tentando conter o inchaço da veia que insistia em marcar-lhe a fronte, sempre que ficava nervosa, o que acontecia quase que diariamente, diga-se de passagem. Fingindo calma, ainda de olhos fechados e de costas para o pai, levou os dedos à testa, massageando-a, fingindo uma tranqüilidade que, de forma alguma, sentia. Seus movimentos lentos contrariavam a agitação interna de seu sangue. Em seguida, virou-se e o encarou, com rosto vermelho de raiva. Interpelando-o com seu inconfundível tom de agressividade, apesar de um tanto contido, rugiu entre os dentes:
- Como assim, não?
Ao se virar, as tranças negras formadas pelos cabelos enormes de Cléo moveram-se, agitando as pedrinhas coloridas que carregavam nas pontas, provocando aquele som inconfundível e inadmissível aos ouvidos paternos, o que tratou de irritar ainda mais Arthur. Odiava aquele estilo de Cléo, aquele barulho causado pelos cabelos da filha, antes tão lisos e sedosos, agora entrançados com aquelas pedrinhas de rastafare que insistiam em mover-se enquanto ela andava pela casa, causando-lhe verdadeiro ódio! Até os olhos de um azul escuro, profundo, quase violeta, os mais belos que ele já vira, antes motivo de grande orgulho para o pai coruja, ensejador do nome da filha, em homenagem a Elizabeth Taylor, no papel de Cleópatra, agora já não possuíam a meiguice e suavidade de outros tempos. Cléo tratara de colocar um piercing na sobrancelha para lhe apavorar, para dar alguma agressividade ao rosto, aos olhos. Era isso o que ele pensava e o que realmente ocorreu quando ela chegou em casa, pela primeira vez, ostentando aquele prego rude e absurdo, asqueroso, foi assim que o definiu. Depois vieram as tatuagens, ou melhor A tatuagem, que tomava inteiramente as costas de Cléo, em forma de um enorme dragão chinês, adornado com uma frase em mandarim, cujo significado apenas ela conhecia, queimando, por assim dizer, a brancura daquela pele ainda tão jovem, lamentava Arthur! Era um desgosto enorme vê-la assim. Aquelas roupas, aqueles modos, aqueles olhos o amedrontavam. Cléo o amedrontava.
Entretanto, o que mais o assustava era o fato de Cléo conservar-se tão bela, mesmo depois de adotar aquelas formas e de manter-se tão forte, tão dona de si, tão destemida, tão intensa quanto as batidas do rock que tocava na banda, a mesma que Arthur acabara de proibir que entrasse ali, naquela casa, na garagem, onde costumavam ensaiar.
Depois de alguns segundos perdidos na beleza da filha e daqueles olhos violeta que o fuzilavam, que pareciam desejar afogá-lo naquela íris profundamente azul, Arthur continuou áspero, decidido:
- É isso mesmo, você não vai mais ensaiar aqui e ponto final! Sua irmã tem reclamado constantemente do barulho! Diz que não conseguiu ainda terminar a tese dela de mestrado única e exclusivamente por sua causa e isso eu não vou permitir, Cleópatra!
A moça não demorou a reagir, dessa vez com agressividade absolutamente incontida:
- Eu até admito uma coisa, Arthur: que você não queira mais que a Androginia venha ensaiar aqui, na sua casa, afinal ela é mesmo sua, só sua! Mas duas coisas eu não admito de forma alguma: primeiro, que você diga que aquela víbora dissimulada é minha irmã, porque não é e segundo... – Cléo encheu os pulmões de ar e esbravejou, faiscando de ódio, com a veia pulsando na testa, dessa vez sem nem sombra dos dedos longos a massagear-lhe – nunca me chame de Cleópatra! Esse nome ridículo só combina com você, que está mais retrô do que o próprio filme!
Dizendo isso, Cléo finalmente tomou o trinco da porta com as mãos trêmulas e ganhou a rua com as pernas firmes, com os passos largos, quase em fuga, fincando no asfalto os coturnos tão escuros quando o céu que cobria aquela noite de chuva.
Sim, fugir, era tudo o que queria. Mas, em um instante, diminuiu o passo, pois achou que a fuga seria a saída encontrada por alguém covarde e isso ela não era. Jamais seria!
Era explosiva, passional, impulsiva, mas – uma coisa era certa! – com a mesma rapidez com a qual se deixava arrebatar de raiva, restaurava o bom-humor, mesmo que ele fosse ácido ou irônico. Assim, logo que se refez, já acomodada em sua vespa barulhenta, sentindo o vento batendo no rosto, junto com as gotículas da chuva fina que caíam, chegou à conclusão de que seria melhor que eles, todos aqueles que tinha a obrigação de chamar família, estes sim deveriam fugir, sumir, correr dali, antes que ela resolvesse voltar e soltar uma bomba de gás lacrimogêneo naquela casa. Nossa, mas por que justo de gás lacrimogêneo?, pensou. Nesse instante, Cléo já ria da idéia boba, imaginando a madrasta e a filha correndo, chorando convulsivamente. A primeira, tentando levar consigo toda a maquiagem e as jóias que possuía, afinal não sobreviveria sem nenhuma das duas coisas, e a segunda, carregando aqueles livros pesadíssimos com os quais comia, dormia – só faltava trepar com eles, era isso que Cléo dizia a Sarah quando queria irritá-la – escritos em tantos idiomas que Cléo não podia sequer contar.
Dando continuidade ao desvario, tentou imaginar o que o pai levaria, o que lhe seria imprescindível. Só pôde desejar que ele levasse a mala enorme que guardava estrategicamente sobre o armário, com fotos, cartas e tantas outras lembranças de sua mãe, mas, em seguida, Cléo retomou o mal-humor diante da constatação de que isso Arthur jamais faria, ao contrário, era capaz até de deixar a mala queimar por inteiro, caso a bomba não fosse de gás lacrimogêneo.
O pai lhe parecia tão covarde! Não tinha coragem de abrir aquela mala nem para lhe mostrar as fotos de Natália, para deixar que a filha conhecesse sua letra, estampada em tantos papéis, cartões, músicas e poesias que Natália havia escrito. E se não a abria, se temia tanto reavivar aquele passado, também não achava coragem para se desfazer de tudo aquilo. Arthur era, sem dúvidas o maior covarde que Cléo conhecera e, por esse motivo, a covardia era o defeito que a moça mais abominava e combatia. Por isso, jamais fugiria, de nada, nem de ninguém. Nunca.
Enquanto aumentava a velocidade da vespa, sem qualquer vestígio de capacete, tampouco culpa por não usá-lo, Cléo sentia a cabeça livre para que as idéias que insistiam em fervilhar ali dentro brotassem sem qualquer pressão. Passou então a imaginar que apenas desejava se afastar um pouco. Quem sabe passar uns dias na casa de Clarissa. Foi, então, encontrá-la no lugar de sempre.
O Sideral Café era um barzinho bem alternativo que as quatro integrantes da banda Androginia freqüentavam quase diariamente, aliás, noturnamente, como melhor se esclarece. Ficava numa rua pouco movimentada, quase escondida, propositadamente. As donas, duas mulheres de meia-idade que viviam juntas há quase vinte anos, fizeram questão de não divulgar muito o espaço. Preferiam que o público fosse seleto, assim como seletas eram as músicas, que embalavam as noites de conversas intelectualizadas e papos-furados; assim como singulares eram as gravuras coloridas de planetas, estrelas, cometas, da via láctea, com buracos negros e camadas de poeira cósmica banhada em muita luz, que enfeitavam as paredes, dando aos freqüentadores a impressão de estarem em outra dimensão, a mais confortável e livre possível para se comportarem e se descomportarem da forma que desejassem, desde que, pacificamente, sem alardes violentos e desnecessários; seleto feito as fotos de artistas, cantores e filmes gays que, estrategicamente, foram coladas nas paredes dos minúsculos banheiros, para que, até ali dentro, o público – igualmente ímpar – se sentisse em casa.
E Cléo se sentia mais em casa, dentro daquele café, rodeada das únicas amigas, do que em qualquer outro lugar do mundo! Foi essa a sensação que lhe provocou o enorme sorriso que ostentou ao atravessar a porta do Sideral e deparar-se com a mesa onde Clarissa, Li e Martinha já a esperavam.
- Ora, ora, se não é a nossa querida Cléo, atrasada como sempre, que dar o ar da graça! – anunciou Clarissa, em voz alta, erguendo-se e fingindo reverência.
Cléo, apesar de certo abatimento estampado nos olhos pela discussão com o pai, aproximou-se da mesa achando graça, tentando disfarçar. Não foi preciso muito tempo para que percebesse que as amigas tinham alguma boa novidade para contar. Todas estavam visivelmente ansiosas.
Li já segurava uma mecha dos cabelos anelados entre os dedos, enroscando-os ainda mais, como sempre fazia quando se sentia eufórica. E, para evidenciar o nervosismo, como se já não fosse explícito, mascava aquele chiclete com o qual Cléo tanto implicava, de boca aberta e com uma rapidez assustadora. Martinha, que era quase muda, timidíssima, retraída, estava até falante, ou seja, havia dito mais do que três palavras em menos de cinco minutos – Finalmente, Cléo, que demora! – o que era quase um recorde, fosse pela quantidade, fosse pelo tom da frase. Clarissa então, nem se fala! Inquieta de pai e mãe, se contorcia na cadeira, louca pra despejar, tão logo Cléo se sentasse, a notícia! A grande notícia!
Mas, quando Cléo finalmente acomodou-se numa das cadeiras, todas perceberam que algo havia acontecido e a amiga também tinha uma novidade para contar, mas, ao contrário da que elas traziam, deveria ser ruim, muito ruim.
A amizade tem dessas coisas. Faz com que até o que parece incontível se contenha diante da necessidade, diante da falta de espaço para propagar-se. Assim, num esforço sobre-humano, as amigas se contiveram e, mesmo sem trocarem uma palavra, convencionaram que seria melhor adestrarem os impulsos, as euforias e escutar o desabafo de Cléo, antes de qualquer coisa. A boa novidade poderia esperar, ao contrário da má. Diante do silêncio das amigas, Cléo, conteve a própria curiosidade e, aproveitando o espaço, desabafou.
Em poucos minutos, resumiu todo o ocorrido. Era extremamente objetiva, além de nada polida:
- Fodeu! Não poderemos mais ensaiar lá em casa!
Pronto, era aquilo e não adiantava dramatizar! Não interessava relatar ali a discussão com o pai, a frustração pela covardia dele em enfrentar a atual esposa e, principalmente Sarah, a filha dela; a necessidade de sumir, de soltar uma bomba em casa, de fazê-los pagar por todo o mal que lhe causavam diariamente com as implicâncias; tampouco deveria falar sobre a falta que a mãe fazia, sobre o inconformismo diante da morte prematura da única pessoa que acreditava ter sido capaz de amá-la exatamente do jeito que ela era.
Nada daquilo deveria ser exposto naquela mesa, naquele momento. O preocupante, para a Androginia, era apenas o veto do pai e foi apenas isso o que contou. Cléo, porém, apesar do esforço para simplificar a situação, não esperava nunca que as amigas recebessem a infame notícia com uma enorme e coletiva risada! Mas foi assim que fizeram, fazendo Cléo se perguntar onde haviam achado tanta graça! Em seu jeito de falar certamente não fora, pois já estavam mais do que acostumadas com os palavrões e explosões desarrazoadas. Em seguida, veio a resposta, como se tivessem lido sua mente e os olhos azuis e confusos.
- Que nada! Tá tudo certo, aliás, mais do que certo, Cleozinha! Era exatamente sobre os ensaios que queríamos te contar! – foi Clarissa quem continuou a explicação.
Durante muito tempo – mais precisamente durante todas as três horas em que estiveram no Sideral, pois Clarissa não era tão objetiva quanto Cléo, aliás, não era nem um pouco objetiva! – Cléo ouviu com atenção e paciência a conversa.
Clarissa, muito satisfeita por ser o centro das atenções de todas, pelo menos durante aquelas horas, e, mais do que isso, por ver no rosto de Li e Martinha a expressão inconfundível do entusiasmo, quase tão grande quanto o seu, contava com riqueza de detalhes, tão própria de suas narrativas, toda a história.
É que uma tia, já coroa, com uns quarenta e cinco anos, incrivelmente fantástica, chiquérrima, riquíssima e lindíssima – ela também adorava e caprichava nos érrimas e íssimas, pois o exagero também era próprio de tudo o que falava! – havia voltado ao Brasil, depois de morar mais de vinte anos fora. Ela era concertista! – e ninguém pode imaginar a cara de orgulho e entusiasmo com que Clarissa havia dito esta palavra, “concertista”, que coisa mais linda, falava, com os olhinhos pequenos borbulhando de alegria. Sim, e tocava harpa! Uma coisa inimaginável, extraordinária! Indescritível, vocês precisam ouvir! – Clarissa continuava o relato, cada vez mais impregnado de superlativos. Antes de ser solista fez parte de três filarmônicas, dentre elas a de Berlim! E foi preciso Cléo ordenar que bebesse um gole da vodka à frente antes que tivesse um orgasmo! O comentário de Cléo irritou um pouco Clarissa, mas a irritação durou apenas o tempo dela sorver o gole ordenado e continuar, com a mesma euforia de antes.
Disse ainda – e nesse momento Clarissa, Li e Martinha atingiram o auge do entusiasmo! – que a tal da tia, segundo comentários escusos da família, nunca havia se casado e morara durante um tempão com uma grande amiga – pronto, Cléo chegou ao limite! Não agüentava mais aquela história enorme, tampouco a cara de abobalhada de Li e Martinha que escutavam pela terceira vez as mesmas coisas e, ainda assim, estavam adorando a narrativa carregada de Clarissa!
Já cansada, finalmente, Cléo não aquentou e explodiu. E até que havia demorado bastante, pensaram as outras três, surpresas com a paciência dispensada até o presente momento:
- Puta que pariu, Clarissa, e o que é que nós temos a ver com o fato de você querer comer a sua tia? – Cléo estava irritada e todas explodiram numa gargalhada uníssona. Clarissa continuou, dessa vez tentando ser brevíssima.
- Conclusão errada, querida! Eu não quero comê-la, ela quer nos ver tocar. Dependendo do que ache, irá nos ajudar.
As últimas informações de Clarissa foram as únicas que realmente despertaram o interesse de Cléo. Até a paciência renovou-se e foi ela quem passou a fazer as perguntas.
Clarissa, então, explicou – tentando controlar o entusiasmo – que a tia conhecia muita gente do meio musical e já havia até produzido alguns CDs, trabalhado com algumas bandas. Além disso, tinha muita grana, havia comprado uma casa enorme, feito uma sala preparada para gravações, cheia de aparelhos, instrumentos, porque tocava muitas coisas, afinal entendia mesmo de música. Era uma virtuose típica...– e Clarissa começava a querer voltar aos superlativos, apelando e esnobando até com o termo, fazendo biquinho e tudo, tendo Cléo que interferir e vetá-la com um olhar de reprovação.
Tinha apenas um pequeno detalhe: a tia não havia gostado muito do nome da banda. Achava que Androginia era muito explícito, cheirava a sapatagem – esse termo não foi o usado pela tia, mas o escolhido por Clarissa com o único propósito de convencer às outras três de que, realmente, deveriam fazer algumas alterações na banda e nelas mesmas. Li e Martinha já tinham concordado – as cabeças diziam um “sim”, para cima e para baixo, com veemência, mas Cléo...
- De jeito nenhum, Clarissa! Nós somos mesmo lésbicas, até hoje isso não tem sido motivo de vergonha e eu não vou mudar nada! Já chega meu pai, minha madrasta, a cria dela... ninguém mais vai se meter na minha vida! Se for assim, tô fora!
Já esperavam isso. Cléo, nesse ponto, era altamente previsível. Não admitia interferências em sua postura, na sua vida. Li ponderou. Pensou um pouco no que diria, lembrou-se do espírito nato de liderança de Cléo e resolveu apelar para a famosa inflada de ego. Livrando-se do chiclete para não irritar mais ainda a amiga, falou com meiguice:
- Cléo, vamos, pelo menos, tentar falar com ela. Se ela não te convencer a mudar, tenho certeza de que você a convencerá. – esforçava-se Clarissa, tentando captar a atenção dos olhos da amiga, que estavam perdidos no vaivém da vassoura que já atravessava o saguão do bar, enquanto as cadeiras e mesas eram empilhadas por uma das garçonetes – Seus argumentos são sempre tão fortes! Sei que você arrumará um jeito de demonstrar que a Androginia pode fazer sucesso exatamente do jeito que é! Não custa tentar.
Era razoável a opinião de Li e foram engraçadas as caras de Martinha e Clarissa de desespero, de “peloamordedeus concorde com isso!”. A música já tocava mais suave e Cléo não pôde resistir, principalmente ao apelo, quase inaudível, de Martinha, que, aproveitando a trilha sonora e a nostalgia do salão já quase vazio, ensaiou:
- Por favor... – falou baixinho.
Até a amiga quase muda se esforçara em falar para convencê-la e Cléo não teve como não ceder. O encontro foi marcado para sexta-feira, na casa da tal tia, que se chamava Verônica Delgado.
Verônica, no meio da noite, costumava perder o sono. Nesses momentos de total silêncio, preenchia o vazio da casa com o som da harpa. A sensação de solidão, de desapego, de falta de graça nas coisas da vida que vinha sentindo nos últimos anos e que ocupava todos os espaços de seu tempo e de seu corpo, finalmente, dentro da madrugada insone, cedia espaço à a uma sensação de bem-estar trazida pela música, sua música, que rompia suavemente a total quietude da casa.
Mas, naquela noite, algo diferente a tomou. Era uma nova sensação. Acordou e caminhou pela casa, sem a mansidão de sempre. Os passos, antes automáticos, dessa vez desviaram-se. Não tomaram o rumo da sala de música e sim o do terraço. A noite estava fria, mas ela não pareceu importar-se com isso. O corpo estava quente, sentia-se aquecida pela novidade.
Com a morte de Rowena, uma violonista inglesa que conhecera quando eram ainda muito jovens, no conservatório de Londres, Verônica perdera a graça por quase tudo que a movia, que a tornava a mulher exuberante e arrebatadora que tomava conta dos palcos mundo a fora, chamando a atenção de todos, despertando ouvidos e paixões.
Se conheceram quando tinham apenas vinte anos. Foi uma paixão juvenil que superou tudo: preconceitos, distâncias, diferenças, culturas, linguagens e tornou-se um amor adulto, maduro, concreto. Formaram um casal feliz e bem sucedido durante exatos quinze anos, quando um acidente de avião provocou a morte de Rowena, nas vésperas de uma apresentação em Berlim. Tocariam juntas, naquele final de semana fatídico, na filarmônica da qual Verônica já fazia parte.
Depois desse episódio, Verônica entrou em depressão, deixou de tocar durante seis meses e quando voltou não quis mais participar da filarmônica, tampouco de qualquer orquestra. Decidiu que tocaria só, como só se sentia. E assim fez durante quase dez anos, em que se dedicou à carreira solo. Continuava brilhando nos palcos. Havia sido reconhecida internacionalmente e chamava a atenção de todos, mas, intimamente, fora dos palcos, longe das multidões, sentia-se opaca, infeliz. Havia perdido o brilho interno.
Todos os lugares do mundo lembravam Rowena, pois haviam viajado e tocado juntas em tantos cantos quanto pudesse visualizar no mapa, exceto no Brasil, onde Verônica não havia botado os pés, desde que resolvera viver a vida de sua maneira e partira para o conservatório de Londres.
Assim, nunca mais voltara à terra natal, nem mesmo para apresentá-la à companheira. Não queria ser o comentário da família. Preferia conservara a imagem de bem sucedida profissionalmente, mesmo que, para isso, precisasse esconder seu sucesso conjugal, pessoal. Ele só dizia respeito às duas e ambas fizeram questão de escondê-lo durante todo aquele tempo. Eram muito discretas.
Por ironia do destino, atormentando-se sempre pelas lembranças de tudo que ela e Rowena viveram e construíram mundo a fora, o único lugar onde Verônica poderia viver sem as lembranças materiais e concretas seria o Brasil. Por isso, voltara. Tentaria reconstruir a vida, investindo apenas nos outros. Seria produtora musical e começaria, por que não, ajudando a sobrinha? Foi este o pensamento.
Verônica, desde os primeiros contatos, sentiu por Clarissa uma empatia enorme e, em pouco tempo, desenvolveu por ela um carinho especial, quase materno. A considerava uma menina singular. Os olhos vivos, sonhadores, cheia de idéias diferentes, conceitos diferentes. Parecia não se integrar muito bem aos moldes da família, assim como Verônica, tempos passados. Confessara à tia, em pouquíssimo tempo de convívio, que se sentia uma estranha num ninho de comuns, um verdadeiro patinho feio. Disse ainda que se sentia à vontade para falar com Verônica sobre isso porque acreditava que ela também era diferente. Verônica sabia muito bem o que Clarissa queria expressar. Um bicho sempre conhece o outro, costumam dizer os entendidos. Se reconheceram nos primeiros instantes.
Verônica era a irmã mais nova de Valéria, a mãe de Clarissa. Além delas duas, havia mais um irmão, Virgílio. Os pais já haviam morrido há algum tempo e Verônica permaneceu distante no enterro de ambos. Clarissa sabia apenas que ela não se dava bem com os pais, nem com o irmão. O motivo apenas supunha. O assunto era um tabu na família.
Valéria era a única que se dava bem com Verônica. A única com a qual Verônica falava, de vez em quando, ao telefone. Clarissa nunca soube o que a mãe realmente pensava sobre a opção sexual da tia, mas percebia que Valéria nutria por ela uma admiração incondicional e isso bastava. Clarissa também a admirava, mesmo a distância. Depois de conhecê-la pessoalmente, aí sim, passou a adorá-la, endeusá-la, vê-la como um modelo, um paradigma para sua vida. Tudo o que queria ser.
Depois do terceiro encontro com Clarissa, num almoço preparado em casa para a sobrinha e a irmã, um mês após a chegada ao Brasil, Verônica propôs ajudá-la na banda. Já havia escutado Clarissa tocando alguns acordes no baixo e achou que levava jeito de verdade.
Depois de muitas horas de conversa, enquanto Valéria tirava um cochilo depois do almoço, Clarissa tratou de tentar empolgá-la ainda mais, com seus superlativos e suas narrativas encantadas. Descreveu Li, a baterista, e Martinha, a tecladista, fisicamente, emocionalmente e musicalmente, mas o restante da conversa foi voltada à vocalista e guitarrista: Cléo.
Prontamente Verônica chegou à conclusão de que a menina era o sustentáculo da banda. A líder do grupo. Clarissa era uma pessoa apaixonada, empolgada por tudo o que vivia e falava, mas, ao descrever Cléo, o exagero extrapolou a tudo que já havia sido descrito.
- Ela é incrível, tia, uma mistura da Courtney Love, da Hole, com a Shirley Manson, do Garbage. Todas nós sabemos que ela poderia ir longe e nos levar junto! Ela tem charme, é extremamente irreverente, ousada, sensual. Cléo, fora do palco, tem até um jeito moleque, usa umas roupas folgadas, largadas e tal, mas, quando ela sobe nele, se transforma! Fica totalmente despudorada, sexy, depravada, arrebatadora. Ela faz umas performances, umas caras e bocas de matar, como se estivesse, ao mesmo tempo, enlouquecida pela música e de desejo, é uma coisa estranha, indescritível! E tudo é tão natural, tudo é tão ela, isso é o que surpreende! Além do mais, a voz dela é linda, rouca, melodiosa, muito embora, quando precise, ela saiba gritar como ninguém e quando faz, mesmo com a agressividade que lhe é tão típica, ela faz de um jeito tão sensual, tão sexual, mesmo sem querer. E quando quer... nossa, tia!... quando ela quer ela berra de um jeito, parece que está...
E Clarissa imediatamente reprimiu-se, levando as mãos à boca, calando-se, pedindo desculpas, sorrindo e continuou, vermelha de excitação, deixando Verônica na dúvida se a vermelhidão vinha do entusiasmo da sobrinha ou da lembrança da imagem de Cléo, reavivada naquele instante pela mentezinha tão jovem e afoita da sobrinha.
– Quando quer, tia, ela faz de propósito para que as meninas se joguem aos seus pés, aos pés do palco. Elas se rasgam e gritam por Cléo de um jeito absurdo! É uma loucura. Ela é a pessoa mais linda que eu já vi!
Até Verônica, que aprendera e absorvera a frieza tão típica dos ingleses com Rowena, não teve como permanecer inerte aos comentários da sobrinha. Riu com gosto. Ou Clarissa era perdidamente apaixonada por Cléo ou a vocalista era realmente apaixonante! Ou aquela narrativa demonstrava o quanto a sobrinha era criativa ou o quanto era fascinada pela amiga! E Verônica desejou desfazer aquela dúvida. Marcaram o encontro.
Sexta-feira chegou. Li, Martinha e Clarissa só falavam sobre o tal encontro com Verônica, deixando Cléo irritada:
- Mas que coisa essa de vocês, parece que a mulher é a Marlene Matos que vai transformar a gente em Xuxa. Putz, que saco...
Mas, intimamente, também estava preocupada em causar boa impressão. Só não cederia às amigas, não demonstraria a pontinha de nervoso que lhe gelava o estômago cada vez que falavam na tal da tia.
Clarissa, no entanto, que conhecia a amiga pelo avesso, sabia muito bem, pelas duas músicas que Cléo escolhera cantar naquela sexta, que ela também queria impressionar Verônica. Afinal, não era de hoje que a amiga usava aquele truque! Era cheia dos artifícios! Sempre que queria conquistar alguém que estava na platéia vinha com aquelas duas músicas onde sabia, mais do que ninguém, excitar, provocar, conquistar.
Violet, da Hole, e You Look So Fine, do Garbage. Pronto, a palavra de Cléo era sempre a final e todas concordaram imediatamente quando escolheu. Seriam as duas músicas que tocariam.
A primeira, um rock pesado, mais agressivo, onde Cléo caprichava nos gritos, onde se sentia totalmente à vontade, livre, em corpo e garganta, para se expressar. Ninguém conseguia entender como era possível gritar com tanta sensualidade. Só quem ouviu Courtney Love ou a própria Cléo cantado Violet poderia entender o que se está tentando descrever.
A segunda, uma balada com um leve toque eletrônico, suave e envolvente, daquelas que ecoam lá dentro, forte, intensa, onde Cléo explorava com cuidado e precisão a rouquidão da voz, embargada, entrecortada, entorpecida pela música, pela sensação de paixão e vingança que trazia a letra.
Estas seriam suficientes, pensou Cléo com segurança, quase prepotente. Bastariam estas músicas para convencer a tal Verônica.
Já Clarissa, consciente do poder de sedução da amiga concluiu com mais certeza ainda, em sua mente sonhadora e quase infantil, que aquelas músicas seriam as necessárias não apenas para convencerem, mas, sobretudo, para encantarem a tia, por mais exigente que fosse... não havia como não ceder à magia de Cléo.
Sexta-feira, oito horas da noite. Cléo e suas tranças enormes, enraizadas, deixando transparecer pelas frestas abertas entre elas o couro cabeludo alvo. Cléo e seus olhos violetas, pintados, delineados por um lápis escuro, marcando-lhe ainda mais os traços, retirando-lhe parte da meiguice, emprestando-lhe mais idade. Cléo e seu piercing reluzente, pinçando-lhe a sobrancelha bem feita, arqueada, contrastando com a intensidade do azul violeta de seu olhar meio infantil, meio mau. Cléo e seu charme despojado, suas pulseiras de couro, suas correntes de prata, seu sorriso largo, de dentes tão brancos, sua boca cheia, sua beleza tão rara... era isso o que o espelho podia mostrar.
Entretanto, o espelho não mostrava o aperto que sentia no peito, causando-lhe certo enjôo, tampouco a aflição capaz de fazer as mãos suarem frio. Afinal, também era de carne e osso, também temia a desaprovação, o julgamento, o erro e a possibilidade de tudo isso lhe causava grande inquietação e certo desconforto.
Entretanto, apesar de fortes, nenhum desses sentimentos tinha o condão de fazê-la recuar. Em poucos minutos, mirou-se novamente no espelho e, respirando fundo, passou a se sentir exatamente como se via: pronta... para o que viesse!
Na sala, Sarah estava deitada no sofá fingindo ler um livro. Na verdade, esperava por Cléo, para provocá-la, irritá-la, tentá-la. Ao perceber a pressa em sair, Sarah tratou de erguer-se, impedindo que passasse, fazendo de seu corpo uma muralha, alta, esculpida, bem feita. As pernas longas abertas, os braços cruzados sobre o busto, o decote denunciando-lhe o volume, os olhos com ares de riso, de provocação:
- Onde você vai?
- Desde quando você se interessa?
- Desde agora... me dá uma carona até a casa do Guto?
- Se não me engano tem um carro só seu lá na garagem.
Cléo fez menção de escapulir, mas Sarah insistiu, segurando-lhe o braço:
- Eu sei, mas tô com preguiça.
- E eu estou com pressa... peça ao seu namorado para vir lhe buscar.
Sarah queria que Cléo a levasse... Queria atrapalhá-la, enlouquecê-la, queria coisas que nem ela sabia... mas queria. De raiva, pegou o copo que estava sobre a mesa e, de forma cínica, fez o suco de uva que continha estampar a blusa de Cléo, mais especificamente a cara da Courtney Love. Ali, logo abaixo da foto, tinha escrito Violet... e foi exatamente violeta que a blusa ficou. Sarah riu ao perceber a coincidência da brincadeira e ainda comentou:
- Creio que você vá se atrasar mesmo assim.
Cléo não pensou duas vezes. Partiu para cima de Sarah, pegou-a pelos ombros e a sacudiu com ódio. Em seguida, empurrou-a no sofá. Sarah, assustada, ajeitou os óculos de grau que encobria os olhos sonsos, verdes, e bradou entre os dentes:
- Do jeito que você é suja, aposto que nem vai trocar de roupa...
E Cléo realmente não trocou. Não porque fosse suja, ou porque não tivesse incomodada com a blusa molhada, manchada, logo aquela que tanto adorava, mas porque sabia que se ficasse mais um segundo dentro daquela casa ia fazer uma loucura! Saiu, quase chorando de raiva.
Na casa de Verônica, Clarissa, Martinha, Li e a dona da casa esperavam por Cléo, que estava uma hora atrasada:
- Tia, ela não costuma fazer isso não.
Clarissa tentava quebrar o constrangimento da espera, falando como se aquilo fosse verdade e, portanto, nem olhou para a cara das duas outras amigas. Não sustentariam o olhar. Todas sabiam que Cléo era mestra em chegar atrasada.
Já estavam na sala de som, já tinham preparado os instrumentos, conversado sobre as músicas que costumavam tocar e escutado com atenção suprema as opiniões de Verônica. Todas estavam unanimemente encantadas com a tia de Clarissa.
Aquela sim era uma mulher de verdade!, pensaram Li e Martinha assim que foram apresentadas, boquiabertas. Clarissa, orgulhosa, riu ao perceber nas feições das amigas a admiração explícita e instantânea, admiração esta que a sobrinha já sentia.
E tal admiração era mais do que previsível, afinal Verônica, nem de longe, lembrava as universitárias inseguras, imaturas, ocas, feito as que conheciam. Era uma mulher madura, uma figura imponente. A estatura colaborava para aquela imagem sublime, os cabelos ruivos, naturalmente vermelhos, pesados, presos, também. As sardas que estampavam com suavidade a pele branca de seu rosto lhe emprestavam certo ar de juventude quase escondida pelas pequenas rugas que se formavam no canto dos olhos escuros. Isso lhe dava um charme complicado de se assimilar, de se entender e explicar. Só vendo. Além disso, tinha um corpo bem feito, voluptuoso em busto e quadris, corpo de mulher, de causar inveja em muitas adolescentes mirradas que existem por aí. Porém, sem dúvidas, mais encantador que o aspecto físico era a postura firme, o sotaque estranho, exótico, adquirido em virtude da mistura dos tantos idiomas que falava com perfeição e, sobretudo, a simpatia quase antipática. Era de pouco riso. Parecia ser uma pessoa difícil de se agradar, mas fácil de se reverenciar. E as três, Clarissa, Li e Martinha, já a reverenciavam.
Por isso, estavam tão impacientes com a demora de Cléo. Não queriam parecer irresponsáveis. Não queriam desagradar Verônica em nada e ela já parecia meio contrariada com o atraso.
Que Deus está presente em todas as coisas é o que muitos dizem, mas que o diabo tem o dedinho em algumas delas, isso é bem verdade. Afinal, só pode ter sido ele quem cutucou Verônica para que levantasse e se ausentasse da sala por exatos cinco minutos, dizendo que iria beber um pouco d’água. Foi exatamente quando saiu que Cléo tocou a campainha.
Clarissa correu, atravessou a porta da frente e o jardim enorme da casa de Verônica, chegando ao portão esfogueada, arfando. Antes mesmo de abri-lo, questionou, brava, sem nem olhar para a cara de Cléo, chateada da vida:
- Cléo, o que houve? Que demora!
Enquanto tentava recuperar o fôlego, Clarissa finalmente encarou a amiga e viu que Cléo estava ensopada, com a blusa toda molhada – logo aquela, a preferida, tão bonitinha, de cotton, justinha, diferente daquelas outras largadonas, enormes, que cabiam três Cléos dentro!, pensou Clarissa, dramatizando – os olhos borrados, o rosto desfigurado, transtornado.
- Não vou atrasar mais nada... vamos logo.
Dizendo isso, Cléo passou a caminhar jardim adentro, deduzindo o caminho, enquanto Clarissa, aos trancos e barrancos, seguia a amiga, tentando pará-la, sem entender nada do que estava acontecendo e perguntando o que tinha havido, dessa vez por pura preocupação e não por raiva. Mas Cléo não arrefeceu o passo. Sabia que todos deveriam estar chateados e não cabia nenhuma explicação naquele instante.
A dedução deu certo e Cléo logo chegou ao estúdio, que ficava separado da casa, do lado esquerdo do jardim. As luzes acesas o denunciaram. Foi ela mesma quem abriu a porta, de supetão, com Clarissa no percalço, enquanto Li e Martinha abriram a boca de susto, ao verem a amiga naquele estado, justamente naquela noite! Mais uma vez o dedinho do diabo... o diabo em figura de Sarah, aquele demônio louro e maquiavélico.
Por sorte – ou azar, vejamos o que vem depois – Verônica ainda não havia voltado e as três questionaram em coro o que diabos havia acontecido e que coisa violeta era aquela na cara da Courtney. Logo foram verificar se era sangue, se era vinho... se Cléo havia bebido, se havia se ferido, o porquê daqueles olhos borrados, que denunciavam um possível choro! Chorando, Cléo? Deveria ter sido algo grave...
Diante daquela chuva de perguntas uma, em especial, tirou Cléo de tempo e destemperou-se de vez. E foi Clarissa quem soltou:
- E agora, como você vai cantar com essa roupa?
Sem nem titubear, irada com aquela enxurrada de perguntas que, ao seu ver, não deveriam ser feitas naquele momento, pois só atrasariam mais o tal ensaio e desconcentrariam o grupo, Cléo respondeu à pergunta, que julgou a mais estúpida de todas, com outra:
- Vocês preferem que eu cante sem roupa?
E, numa atitude bem peculiar de seu temperamento explosivo, completamente desarrazoado, Cléo ergueu a blusa justa, encharcada, exibido os seios. Nesse exato instante, Verônica apareceu na porta, segurando uma bandeja com vários copos d’água que quase foram ao chão. Só mesmo sua frieza inglesa – ou a encenação dela – para segurá-los diante de uma cena feito aquelas.
Mortificada, Cléo virou-se rapidamente, dessa vez exibindo o enorme dragão colorido e a ossatura larga e magra das costas. Se ao seu dragão fosse dado o poder de cuspir fogo e a ela o de comandá-lo, ordenaria, naquele momento, que a queimasse bem ali e a transformasse num montinho bem discreto de pó, imperceptível, num ritual brevíssimo em homenagem àquele mico estúpido que acabara de pagar.
Ainda de costas, com a vergonha avermelhando-lhe a face, repôs a camiseta, que àquela altura insistia em prender-se aos ombros, o cotton lhe pressionando, quase tanto quanto os olhares das amigas, sentindo os seios intumescidos pelo frio da exposição tão brusca e constrangedora.
Clarissa, Li e Martinha não tiveram reação alguma, ficaram completamente paralisadas, mas também desejaram desaparecer, se teletransportar, se desintegrar, bem ali, diante dos olhos de Verônica. Esta, complemente abismada, baixou a cabeça enquanto Cléo se vestia, preparando-se para encará-la. Nem sabia que cara faria depois de presenciar aquilo. Que criatura mais louca... que seios mais lindos! Foi um pensamento inevitável.
Quando Cléo, finalmente, se virou, ainda ajeitando a blusa, tentando cobrir o resto da dignidade que tinha, olhou fixamente para Verônica, que estava visivelmente sem graça. Cléo, tinha o rosto vermelho, a veia pulsando na testa, mas falou com firmeza.
- Desculpe.
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de tirar a guitarra da capa, plugá-la na caixa de som, tomar o microfone entre as mãos, ainda trêmulas, e testar o som, tentando fingir que nada daquilo havia acontecido. Por dentro, só ela sabia a vontade que teve de fugir, sair correndo dali, mas como já fora dito, não era covarde e não se permitiria a essa fraqueza. Ficou. Como as outras permaneciam imóveis, falou em alto e bom som, dessa vez utilizando-se do recurso que estava nas mãos, o microfone
- Estão esperando o quê?
Como se as outras houvessem saído de um transe, ergueram-se ao comando da vocalista, tomaram os lugares, respiraram fundo e rezaram os segundos que lhes restavam antes que Li desse a virada na bateria e Cléo entrasse com o solo distorcido da guitarra.
De olhos fechados, Cléo iniciou a primeira música: Violet. E antes que os abrisse para entorpecer com o azul profundo os olhos escuros de Verônica, esta, séria, a observava. Verônica, nos primeiros segundos, soube, sentiu, entendeu tudo. Tudo o que Clarissa havia dito sobre Cléo era a mais perfeita e relatada verdade. Era simplesmente fantástica! A sobrinha não havia exagerado na narrativa, mas sim, sido muito precisa, honesta, fidedigna. A menina era realmente apaixonante.
Quando a música encorpou-se, chegando ao auge da agressividade através das batidas da bateria sustentada por Li e da voz embargada de Cléo, Verônica, finalmente, entendeu o porquê dos anglicanos fervorosos e antiquados abominarem e pregarem tanto contra o rock. Sim, realmente as batidas, associadas aos movimentos do corpo de Cléo, pareciam espasmos, contrações, reproduções perfeitas do ritmo intenso de uma transa, de um orgasmo, pulsando através da garganta e do corpo ensandecido daquela vocalista.
Cléo, naquele instante em que se sentia muito à vontade, daquele jeito tão louco e ardente, dessa vez de olhos bem abertos e consciente do poder de sedução, pela primeira vez, olhou, sem qualquer discrição, para Verônica que, do canto da sala, a assistia, a admirava, calada, séria, contrita. Foi, então, no refrão da música, que as duas, pela primeira vez, se falaram com os olhos e Verônica soube onde aquela história toda poderia terminar: Go on, take everything, take everything, I want you to... Era isso o que Cléo cantava olhando em sua direção, com força, sem esconder o tom – dissimulado ou não, Verônica não soube decifrar – daquela tão ousada intenção, daquele tão descabido desejo...
Verônica agradeceu ao canto escuro da sala, que escondeu a vermelhidão do rosto alvo, enrubescido pelo jeito desconcertante, envolvente e até pedante daquela menina, absurdamente linda. Sim, porque ela era apenas uma menina, deveria ter, no máximo, uns vinte anos, como a sobrinha, mas sabia seduzir como uma mulher. Cléo era uma mutante, uma andrógina e a banda só poderia chamar-se Androginia! E não havia por que mudar, não tinha esse direito, e nem que tivesse, mudaria... Essa foi a primeira descoberta da noite.
A segunda veio com a outra música, You Look So Fine, a balada. A nova descoberta foi, entretanto, mais assustadora do que a primeira e não causou em Verônica apenas o enrubescimento. Fez as mãos suarem frio, o estômago congelar de nervosismo, a pele aquecer-se, o corpo queimar por dentro. Descobriu que Cléo poderia resgatá-la, retirá-la daquela mansidão na qual havia submergido desde a morte de Rowena, trazendo-a novamente para o mundo da carne, do desejo, do medo, da paixão... sim, soube, na única vez em que se permitiu olhar para Cléo, que poderia se apaixonar... e o olhar durou menos do que dez segundos.
Constatado o perigo, Verônica desviou os olhos, com receio, susto, pânico! Não sabia se estava preparada. Na verdade, o não estar preparada e ser pega de supetão era típico da paixão, do tão dito clichê amor a primeira vista. Disso sabia.
Cléo, dessa vez não tão consciente do que estava realmente despertando em Verônica, estranhou o fato de ela ter desviado o olhar, enquanto tentava, justamente captá-lo, com seus truques, suas armas, às quais estava mais do que acostumada a usar. Ousando, como era praxe, retirou o microfone do pedestal que apoiava entre as pernas e saiu do centro do tablado, aproximando-se de Verônica que não teve como sair correndo. Acuada, ela não pôde evitar encarar novamente a menina, tão mulher, que se aproximava. E olhou-a com receio de que, caso não o fizesse, a moça se aproximasse mais, a desconcertasse mais. Foi quando, em tom rouco, Cléo cantou a parte que dizia “You’re taking me over, over and over...” e, por instantes, Verônica a viu fechar os olhos, perdendo-a de vista, deixando-a em paz, fora de seu alcance, livre do visgo que aqueles olhos violetas possuíam... mas o alívio de Verônica foi infinitamente inferior ao desejo de rever os olhos de Cléo abertos, a fisgá-la novamente.
A vocalista, entretanto, não o fez. Deu as costas e encerrou a participação. A voz rouca cedendo ao backing vocal de Li e Martinha, aos últimos acordes do teclado. Até a guitarra de Cléo calou-se e, sem ela, a melodia tornou-se suave, lenta, baixa e foi encerrada.
Quando a música terminou, Verônica estava pasma. Muda. As luzes se acenderam e, com elas, Cléo retomou as cores dos mortais. Os olhos continuavam borrados, a roupa manchada, molhada, mas não perdera a pose um só instante, nada daquilo havia atrapalhado, interferido. Ela prescinde de tantas coisas, constatava Verônica, abismada.
A vocalista, então, retomou os ares, o fôlego e, em voz baixa, pediu licença e foi para o jardim, passando feito um furacão por Verônica. Mais uma vez ninguém entendeu nada.
Clarissa, antes de sair porta afora atrás da amiga, estancou perto da tia, ensaiando uma explicação:
- Ela é assim mesmo, tia, meio destemperada... imagine quando for realmente uma estrela, aí é que vai dar uns pitis fabulosos! Volto já...
Verônica não teve como evitar o riso pelo comentário da sobrinha e a curiosidade pelo destempero da vocalista. Por isso, seguiu Li e Martinha, quando as duas também resolveram averiguar o que havia ocorrido com Cléo.
No jardim, Cléo estava agachada perto da primeira mangueira que havia encontrado. Alheia aos espectadores, com pressa, lavava o rosto, os braços, o colo, tentando livrar-se da maquiagem, dos vestígios do suco, daquela agonia horrível que somente agora voltava a perturbá-la. Quando percebeu o quanto estava sendo observada, ela explicou:
- Tava toda grudando! Eu ia voltar já, já... – ia começar a fazer cara de enfezada, mas até Verônica riu e ela cedeu, rindo também.
- Você não existe, Cléo! – foi tudo o que Clarissa disse.
Já dentro da sala de estar, Verônica tentava travar um diálogo com todas da banda, conhecê-las, escutá-las, saber o que realmente queriam.
Cléo, agora ensopada de água, estava tirando a atenção de Verônica, que não conseguia parar de olhá-la catando as gotinhas que escorriam pelo rosto e eram capturadas pela boca, antes tão despudorada, e que naquele instante movia-se de forma quase infantil, despida de pretensões, parecendo brincar. Ela era realmente uma mistura inquietante.
Quase desconfortável, Verônica ofereceu:
- Quer uma toalha ou uma blusa minha?
- Se estou lhe incomodando tanto, quero... – e Cléo demonstrou perceber a agitação interna de Verônica, com um olhar maroto.
Quando Verônica ausentou-se da sala, Li comentou:
- O que deu em você hoje, hein? Pensei que ia dar tudo errado, mas, apesar dessa palhaçada toda, você cantou muito!
- É, mas da próxima vez vê se age como se fosse uma pessoa normal, tá? – pediu Clarissa rindo, no fundo, achando tudo ótimo! Suspeitava que a tia havia gostado e muito. Cuidara de observar Verônica e analisar as expressões diante de Cléo. Seria até capaz de dizer que a danada da menina havia sido afoita demais e, mesmo assim, agradado bastante. Entretanto, guardou a observação. Sabia que Cléo era metida e não a ajudaria a inflar seu ego ainda mais.
A dona da casa voltou com uma toalha enorme, na qual a vocalista enrolou-se sem qualquer constrangimento e a sala se fez silêncio para escutar a tão temida opinião. Ela foi franca, direta:
- Muito bom – sentenciou quase sem expressão no rosto.
Em seguida, fez apenas algumas críticas – tentando não soar rude – em relação à postura de palco de Martinha, que tocava de cabeça baixa, escondida atrás dos cabelos longos de tanta vergonha, e também em relação aos arranjos. Podem ser mais elaborados, menos previsíveis. De resto, tudo estava muito bom, inclusive o nome da banda e, naquele momento, Cléo não se agüentou e comentou, com ironia:
- Viu, Clarissa, o cheiro da sapatagem às vezes termina sendo bem-vindo.
E Clarissa quis morrer ou matar Cléo ou uma coisa seguida da outra, na ordem inversa, claro! Olhou imediatamente para Verônica imaginando que deveria estar horrorizada com aquele comentário, mas a dona da casa apenas ria, com suavidade, enquanto Cléo também a observava.
Que mulher mais estranha!, pensava a mente livre de Cléo. Nem de longe lembra as sapatas, tampouco as peruas e as frescas. É um ser meio indefinível, quase incompatível com o mundo gay. O olhar e essas unhas curtas são as únicas coisas que a denunciam. O resto é feminino demais. O corpo, os gestos, o jeito da boca, os modos finos. Interessante...
O devaneio de Cléo foi interrompido por uma palavra: CD. Sim, Verônica falou que elas tinham que, imediatamente, gravar um CD para que pudesse apresentá-lo aos amigos, donos de gravadoras e dos lugares onde a banda poderia vir a tocar. Sim, uma idéia perfeita! Todas vibraram, inclusive Cléo. No dia seguinte, estariam no estúdio para mudar alguns arranjos, modificar algumas melodias, acertar alguns detalhes e começar as gravações.
Quando todas saíram, Verônica quedou-se no sofá, exausta. A casa pareceu-lhe maior ainda. Olhou o relógio enorme na parede e desejou que ele se apressasse. Gostaria que o amanhã não tardasse a chegar.
Antes de adormecer, uma imagem, apenas uma, veio perturbar-lhe. A de Cléo, cantando para ela. E não importava o que havia por trás daqueles olhos, daqueles gestos provocativos: se o desejo de impressioná-la, de envolvê-la, de inquietá-la ou de seduzi-la – embora essa fosse a hipótese mais desejada por Verônica, naquele instante –, fato era que Cléo havia conseguido o que queria, fosse o que fosse: impressioná-la, envolvê-la, inquietá-la e... seduzi-la!
Naquela noite, Verônica não perdeu o sono e a harpa atravessou a madrugada calada, sozinha, na sala imensa, enquanto a dona dormia.
Cléo resolveu voltar para casa. Sabia que a mãe de Clarissa não gostava muito quando ela dormia por lá. Valéria havia visto umas cartas da filha e lido seu diário, onde Clarissa falava bastante sobre a amiga, apaixonadamente, como sempre. Por isso, nutria um certo receio por Cléo, vigiava as duas no quarto, por entre o furinho do trinco, um abuso! – reclamava Cléo, sempre que percebia. Odiava essa sensação de ser observada, analisada, como se fosse uma criminosa, pervertida.
Ademais, já havia se recuperado totalmente da discussão com Sarah. Na verdade, havia até esquecido que aquela peste loira existia. Enfim, não havia por que não voltar para casa. Já estava bem, totalmente absorta com a idéia do CD, com a possibilidade, finalmente concreta, de a Androginia fazer sucesso e... mesmo meio sem jeito, sentia-se encantada também pela tia de Clarissa.
Nunca havia sequer parado para prestar atenção numa mulher – como mulher! – daquela idade. Elas nunca fizeram seu tipo. Cléo tinha até um certo respeito, uma certa reverência, diante de qualquer mulher que tivesse, pelo menos, o dobro de sua idade, o que, com certeza, era o caso de Verônica. E havia calculado, se preocupado com esse fato. Era quase uma barreira. Encarava as mulheres mais velhas como se pudessem ter sido sua mãe, como se existisse a possibilidade de trazerem nos rostos, nos corpos, mãos, traços, alguma semelhança com Natália. Tentava adivinhar sua aparência, já que o pai nunca havia permitido o acesso às fotos, à bendita mala.
Mas Verônica havia lhe despertado a certeza de ser diferente da mãe, dela própria e das demais “coroas” que havia conhecido ou, simplesmente, visto. Em seu devaneio, Cléo concluía que a tia de Clarissa tinha um jeito atraente de olhar, um charme no jeito de falar e as rugas que começavam a surgir no canto dos olhos escuros haviam lhe impressionado... Davam um ar sério, um encanto maduro, abrandado pelas sardas. As mãos longas, delineadas, possuíam unhas curtas, dorso um tanto quanto marcado pelo tempo, mas não eram maternais. Verônica, definitivamente, não era uma figura maternal. Era diferente, atraente à mente libertina de Cléo, que já fantasiava, com os olhinhos brilhando, contra o vento que engolia sua moto. Como seria tocá-la, como seria desbravá-la?... Ela deveria ser experiente na cama, aconchegante, com aqueles seios fartos, cativos. Deveria ser delicioso tomá-los e, em seguida, ser tomada por eles, deitar a cabeça naquele colo sardento e ganhar um carinho, depois do gozo... sim, deveria ser gostosa, era isso. Cléo sorriu. Teve vontade de revê-la e observá-la durante mais tempo, para captar todos os detalhes daquela criatura. Não havia mal nenhum nisso, pensou, fingindo inocência.
Em casa, tudo era silêncio, tudo estava escuro, nem sinal do pai, da madrasta, tampouco de Sarah, da cria. Foi direto tomar um bom banho e tirar os últimos vestígios do suco de uva. No chuveiro mesmo, lavou o rosto da Courtney. Sorte de Sarah que não ficou manchado!, pensou ela, quase em voz alta. Depois foi para o quarto, tomada pela ansiedade do dia seguinte.
Sarah parecia estar dormindo, na cama ao lado, abraçada com um de seus enormes livros. Cléo, por mais afoita e raivosa que fosse, não conseguia guardar o rancor que sentia por muito tempo. Aproximou-se da cama, retirou, com cuidado extremo, o livro das mãos de Sarah, em seguida, os óculos de grau que pendiam no nariz afilado. Depois, cobriu-lhe com suavidade, apagou o abajur e foi para a cama, totalmente alheia ao fato de que Sarah estava acordada, imóvel, com os sentidos todos aguçados, tentando captar Cléo, sentir o carinho e os cuidados que lhe dispensava naquele raro instante.
De olhos fechados, Sarah sentia o cheiro de sabonete que emanava do corpo da quase-irmã, misturado ao cheiro do próprio corpo de Cléo. Aquele cheiro tão procurado por Sarah entre os lençóis da cama vizinha. Quantas e quantas vezes, antes que Cléo voltasse para casa das noitadas, Sarah havia se aninhado em sua cama, abraçado, cheirado, se contorcido sobre seu travesseiro, gozado com ele entre as pernas, pensando em Cléo, catando aquele cheiro, seu cheiro, seus vestígios, seu calor. A adorava, a desejava, a queria sobremodo!
As únicas vezes em que conseguira transar com Guto, o fizera pensando em Cléo, nas mãos, cujos traços, as formas, os gestos, havia decorado. Elouquecia por se sentir assim... lésbica! Não admitiria jamais tal fato, odiava-se por isso, odiava Cléo por haver lhe despertado tanto desejo, tanto sofrimento, ao mesmo tempo em que a amava. Sim... ela a amava! Foi essa a certeza que ficou e aqueceu seu corpo durante o resto da noite, mais do que o lençol com o qual Cléo lhe cobrira.
Alheia a tudo, Cléo adormeceu depressa, enquanto Sarah a observava em silêncio.
O dia seguinte foi corrido, complicado. Às nove da manhã as quatro já estavam na casa de Verônica. Dessa vez, Cléo foi pontual. Cuidaria de não pisar na bola. Era a chance da Androginia e não estragaria aquilo por nada. Verônica as recebeu com entusiasmo... o seu entusiasmo. De seu jeito vibrava, mesmo contida, sem alterar-se muito, sem elogiar, sem deixar que as meninas percebessem o quanto tudo aquilo estava lhe fazendo bem.
Cléo estava admirada. A tia de Clarissa realmente entendia de música, sabia o que fazia, o que dizia. Todas as alterações que havia proposto, inclusive nos solos de guitarra, nas entradas da bateria, tudo havia se encaixado com perfeição, dando uma originalidade fantástica às músicas. Ela realmente era tudo de bom!, concluíra a vocalista.
Aliás, tudo de bom em muitos sentidos! Foi o que Cléo constatou ao olhá-la com mais cuidado. Mais precisamente, enquanto Verônica abaixava-se para plugar uma das caixas de som, Cléo teve uma visão panorâmica do decote e Clarissa percebeu o olhar de aprovação, repreendendo-a, também com os olhos. Cléo sorriu. Conhecia de longe a cara de zangada de Clarissa. E sempre achava graça ao invés de temer. Verônica nem percebeu.
No final do dia, depois de muito trabalho e esforço de todos, finalmente resolveram repassar as músicas com as alterações. Deu tudo certíssimo! Nem acreditaram na qualidade alcançada.
Cléo, além de caprichar na guitarra, caprichou na voz, encantando Verônica mais ainda. Não conseguia resistir e deixar de admirar aquela menina. Dessa vez, Verônica, tentando fingir estrito profissionalismo, não desviou o olhar de Cléo nem por um segundo e esta, por sua vez, não deixou de encará-la um só instante.
Por alguns momentos, esqueceram do resto da banda e a vocalista quase errava a letra. Pela primeira vez na vida, Cléo sentiu-se desconcertada. Logo ela que só estava acostumada a desconcertar! Mas a sensação de timidez não durou mais do que segundos... sabia muito bem driblar as fraquezas e Verônica já havia percebido isso.
Quando, finalmente, encerraram a quinta música, “Down by the water”, de P. J. Harvey, Cléo estava cansada. Não por cantar, mas por se permitir envolver... definitivamente, não estava acostumada a isto.
Verônica desejou adiar aquele ensaio, prolongá-lo noite afora, mas não podia. Com pesar, despediu-se:
- Acho que por hoje foi mais do que o suficiente... podem ir descansar – e olhou na direção de Cléo, que guardava a guitarra na capa, com cuidado.
Cléo ergueu a vista. Os olhos violetas provocando, fisgando os de Verônica. Em resposta, completou:
- É uma pena... eu queria mais – e logo sorriu, com ares de criança, confundindo Verônica, arrebatando-a, constrangendo-a.
Mas Verônica estava descobrindo o quanto era maravilhoso sentir-se constrangida. Na verdade, já quase desejava que a menina a constrangesse, de qualquer forma.
Clarissa, calada, percebia o clima que estava rolando entre as duas, enquanto Li e Martinha estavam empolgadas demais para enxergarem qualquer coisa.
O resto da semana passou rapidamente. Durante todos os dias as meninas foram para casa de Verônica, menos por necessidade de ensaiar, mais por prazer. E cada uma sentia um prazer distinto.
Clarissa, Li e Martinha sentiam o prazer de tocar sob a orientação de alguém tão experiente quanto Verônica, que, aos poucos, lhes repassava parte da experiência e perfeição.
Já Cléo, além do prazer das outras, sentia também o de aproximar-se, cada dia mais, o de conhecê-la, provocá-la, rir cada vez que implicavam sobre alguma coisa e terminavam concordando no final. Estavam ficando próximas. Verônica sabia, como ninguém, se aproximar de Cléo sem afrontá-la, com cuidado extremo, com zelo, com compreensão. Sim, parecia compreendê-la, respeitando suas convicções, ingenuidade, experiências. Guiando-a, orientando-a, sem lhe dar a sensação de tentar conduzi-la, moldá-la, podá-la, o que tanto odiava.
Verônica sentia o prazer tão simples e, ao mesmo tempo, indispensável, de sentir-se viva novamente, capaz de apaixonar-se, de ficar vermelha de vergonha, de sentir o frio nas mãos e no estômago sempre que ouvia o barulho da moto de Cléo anunciando a chegada, de sentir o corpo quente, o ventre pulsando, sempre que aquela menina parecia cantar e cantá-la, através das músicas, das letras, dos olhares, ora sorrateiros, ora tão diretos, mas sempre verdadeiros, cúmplices, vorazes.
Elas já se queriam e ambas sabiam disso. Além de Clarissa, é claro. A sobrinha simplesmente vibrava com a hipótese da tia estar apaixonada por sua amiga e vice-versa. Sentia-se vivendo um pouco daquela história fantástica através delas, dos olhares fortuitos que captava, da troca de palavras, sempre pontilhadas de segundas intenções, de entrelinhas. Sua cabecinha encantada torcia pelas duas e já havia maquinado vários modos de aproximá-las ainda mais.
Como se adivinhasse as intenções de Clarissa, mais uma vez o diabinho entrou na história. Porém, dessa feita, exagerou.
Foi numa noite de quinta-feira, quando Cléo chegou em casa, exausta, empolgada, vibrando. Haviam, finalmente, gravado o CD. Tudo corria na mais perfeita ordem. Experimentava uma felicidade ímpar: a de ser compreendida... Verônica parecia, realmente, compreendê-la ou, ao menos, se esforçava para isso. Sim, era apenas aquilo o que aquele ser andrógino, mutante, explosivo, passional, desejava. Por este motivo gostava tanto de cantar, de tocar, pois, sobre o palco, tinha a sensação de se fazer entender melhor do que fora dele, onde enfrentava o eterno conflito da falta de compreensão. Por mais atenção que chamasse por sua beleza, estilo louco, irreverências, no fundo, sentia que as pessoas lhe observavam, reagiam, até a afrontavam, como fazia o pai, a madrasta e Sarah, mas, definitivamente, não a compreendiam. Não sabiam o que lhe movia, desconheciam aquela necessidade de ser cuidada, protegida, velada, orientada. Talvez porque aparentasse prescindir de tudo isso, embora não prescindisse. Mas Verônica, aos poucos, estava desvendando seus segredos.
Verônica parecia estar deixando de lado as barreiras e já interagia, quase com intimidade. Isso a excitava. A menina achava um charme aquele jeito sério, aquela cara, por vezes, tão sisuda, aquela distância que Verônica fazia questão de manter, quando se impunha diante da banda. Mas, sobretudo, vinha achando o máximo os raros momentos em que ela cedia aos seus sorrisos e correspondia, brincava, deixando a intimidade surgir entre ambas, percebendo que Cléo tinha lá também suas barreiras e, sobretudo, a necessidade de encontrar alguém que, finalmente, estivesse disposta a rompê-las. Era quase mágico perceber Verônica tentando exatamente isso: transpô-las. Cléo sentia-se extasiada e já pensava nela constantemente. Isso era totalmente novo, totalmente inevitável, intenso. Nunca havia se envolvido tanto com alguém, sem ao menos lhe tocar a pele, sem trocar mais do que meia dúzia de palavras por dia.
Seus romances eram passionais, assim como ela. E se dissolviam no tempo com a mesma rapidez com que surgiam. Eram amores adolescentes. Mas aquilo era diferente. Sentia. Tinha até medo de tocar Verônica, falar bobagem, desagradá-la... temia quebrar a magia.
Sentia-se tão leve que, ultimamente, nem mesmo Sarah lhe perturbava. Simplesmente havia esquecido que o diabo louro existia, ignorado sua presença, provocações, birras, tentativas de diálogo.
Ignorava também que, por dentro, Sarah se consumia. Estava percebendo a mudança de Cléo, suspeitava que ela estivesse de casinho com alguma outra pirralha. Ela nunca agira assim, com tanto desprezo. Nunca sorrira assim, com tanto brilho! Estava ficando louca com aquele jeito voador, com aquela cara de abobalhada... apaixonada! Era isso! Ela estava apaixonada por alguém!, supôs acertadamente o diabo loiro.
Depois dessa conclusão, Sarah ganhou a rua, antes mesmo que Cléo voltasse para casa. De modo que, naquela noite de quinta-feira, quando Cléo chegou, a casa estava vazia.
Foi para o quarto, ligou o som e adormeceu. Nem percebeu quando Sarah entrou, totalmente embriagada, incandescida pelo ciúme, pelo desejo. Sarah fora se encontrar com Guto, estava desesperada. Transaram no carro dele mesmo, no meio da rua, mas ela, dessa vez, não havia conseguido gozar. Não conseguira imaginar Cléo, suas mãos, seu corpo, pois a menina estava lhe escapando! Largou Guto de qualquer jeito, saiu feito louca do carro, apanhou um taxi, sem lhe dar qualquer explicação, entrou num bar qualquer, cujo nome nem se dera o trabalho de ler e bebeu... bebeu muito. E nunca havia bebido, nunca havia se perdido daquele jeito. Agora estava ali, em casa, no quarto, onde Cléo era só sua, onde só ela podia vê-la, tocá-la, sonhar com ela. Mas dessa vez, Sarah não se contentaria com um sonho apenas. Queria a carne, o toque, o gozo que não tivera.
Tirou a roupa, sentindo o ventre já molhado, dilatado. Em seguida, com cuidado, tirou o lençol que cobria Cléo e, por instantes, admirou as costas, as ancas, as pernas, o rosto que tanto lhe encantava. Suavemente, ergueu a camisa de Cléo e deparou-se com aquele dragão. Duvidou que ele tivesse mais fogo do que ela. Desejou colar-se na pele de Cléo como ele estava e deslizou a língua quente pela figura estampada na pele alva.
Cléo tomou um susto. Quando se virou, deparou-se com aqueles olhos verdes, quase fluorescentes, que lhe fitavam de forma quase insana. Sarah estava nua, sobre seu corpo. Cléo pôde sentir o calor que nascia entre as pernas de Sarah, a viscosidade da umidade que brotava do sexo e chegava a molhá-la. Ficou sem reação.
Sarah lhe tomou a boca, desgovernada, sedenta. Sugou os lábios de Cléo, que, fechando os olhos pelo impacto da surpresa, recebeu o beijo com susto. A língua de Sarah invadindo-lhe o espaço, misturando-se à sua, inundando-a de saliva, fazendo com que seu desejo também surgisse, em forma de umidade.
Sarah era uma mulher muito bonita, Cléo não podia negar, mas jamais se permitira olhá-la com outros olhos, tampouco desejá-la. Naquelas circunstâncias, entretanto, era impossível não sentir o peso daquele corpo sedento, louco para ser tocado, possuído! Foi preciso uma força quase sobrenatural para resistir e Cléo a teve. A razão tomando o espaço do desejo. Era um absurdo aquilo tudo! Afastou-se bruscamente, ergueu Sarah pelos punhos, segurou-a, impedindo-a de continuar.
Transtornada, emergindo bruscamente da loucura na qual havia sucumbido, Sarah sentou-se na cama. A vergonha estampando o rosto já esfogueado, a frustração pelo desprezo escurecendo-lhe os olhos, o desalento, o pedido de desculpas entre os lábios trêmulos. Em seguida, um novo bote, um beijo roubado de Cléo, agressivo, quase uma mordida, e uma promessa, quase uma praga:
- Você vai se arrepender de me rejeitar assim, promíscua! – rosnou Sarah entre os dentes.
Cléo saiu de casa desolada, no meio da noite. Foi direto pra casa de Clarissa, que a recebeu com os olhos sonolentos, de pijama, escondida da mãe. No quarto, Cléo lhe relatou o ocorrido, com a objetividade de sempre:
- Sarah queria, dessa vez, literalmente foder comigo!
Aos poucos, embalada pelas perguntas detalhistas de Clarissa, Cléo contou os pormenores com o máximo de brevidade. Estava em estado de choque, aquilo era inacreditável! Mas, para Clarissa, nada fora surpresa:
- Eu sempre soube que ela era alucinada por você, Cléo. Não tinha sentido tanta implicância, sem desejo.
Tentando se restabelecer do susto, Cléo buscava resgatar o bom-humor e demonstrar que nada daquilo tinha lhe afetado tanto. E foi típico o comentário, já com o riso brotando nos lábios, ensangüentados pelo ataque de Sarah:
- Eu deveria, pelo menos, ter comido aquela puta antes de dispensá-la! Quem sabe assim ela ficava mais calma...
Clarissa riu baixinho e puxou Cléo para perto, fazendo-a deitar-se em seu colo, sabendo que, apesar da brincadeira, a amiga ainda estava abalada, constrangida, magoada. Aquilo tinha sido o fim da picada!, e nem foi preciso dramatizar para Clarissa chegar a esta conclusão. Somente depois de muito tempo, Cléo adormeceu.
Logo cedo, Cléo saiu sorrateiramente, antes que Valéria a notasse. Voltou para casa e lá outra bomba explodiu em sua cara. Essa realmente sem perdão. Assim que abriu a porta, o pai, Lúcia e Sarah a esperavam, todos sentados no sofá, consternados. Sarah chorava compulsivamente, descaradamente. Quando entrou, fez-se o silêncio. Foi o pai que, totalmente sem jeito, relatou, entrecortado pelo choro, o que acabara de escutar de Sarah. A madrasta nem ficou para escutar novamente aqueles absurdos. Retirou-se da sala, não suportaria ouvir mais uma vez aquela história horrorosa!
Sim, Sarah havia revirado o ocorrido, acordado a todos, durante a madrugada, depois que Cléo saíra de casa e avessado a história. Em seu relato, em sua mentira, mudou de cama, de fala, de gestos, de língua, de desejo. Contou exatamente o contrário. Pôs Cléo, em sua cama, molestando-a, enquanto, sossegada, dormia. Pôs-se acordada de supetão por um beijo roubado, asqueroso de Cléo, em sua boca. Pôs-se aflita, angustiada, horrorizada com aquela invasão, com a homossexualidade despudorada de Cléo, com o desrespeito. Não havia perdão. Colocou-a para fora de casa aos berros e, muito embora ninguém mais tivesse ouvido os gritos relatados por Sarah, cegos, surdos e loucos, acreditaram nela, para o espanto e revolta de Cléo. A história revirada revirara seu estômago. Mal pôde escutar o final, sobriamente proferido por seu pai, seguido da pergunta cretina:
- O que você tem a nos dizer sobre isso, Cleópatra?
A moça não disse absolutamente nada. Aquela dúvida na voz de Arthur era insana. O fato de passar-se na cabeça do pai que realmente seria capaz de tal atitude era imperdoável. Filho da puta! Foi o que teve vontade de gritar. Preferiu ficar calada. Se a ele não restava nenhum escrúpulo, a ela sim. Dando as costas aos dois, rompeu casa adentro, em direção à única coisa que lhe importava naquele instante, a única coisa que levaria. Que o resto fosse para o inferno! Pegou a mala guardada sobre o armário de Arthur e saiu arrebentando as portas.
Antes de atravessar a última delas, entretanto, retrocedeu o passo. Olhou na direção de Sarah e dirigiu-se única e exclusivamente a ela, com os olhos violetas alucinados de ódio. À Sarah, tinha algo a dizer e não importava se o pai e Lúcia escutariam. Diria sim! Que Deus e o Diabo escutassem! Diria algo que destruiria Sarah, que a maltrataria. Cléo sabia muito bem ser cruel quando queria e seria o mais cruel que a frieza permitisse:
- Sabe, Sarah, eu até transaria com você! Afinal, você não é de se jogar fora! – declarou Cléo, embargada pelo cinismo e ironia, e continuou – ou melhor... eu até me apaixonaria por você... se você prestasse!
O choro de Sarah, somente naquela hora, diante daquelas palavras e principalmente da possibilidade aventada, seguida da ferina ressalva, encorpou-se, extravasou-se e ganhou sinceridade. Naquele instante em que Cléo atravessou a porta, teve a certeza de que a perdera de vez. Isso sim lhe impregnava de lágrimas reais, dignas de serem apanhadas com aquele lenço ridículo que tinha entre as mãos, oferecido pela mãe, que voltava à sala. Assim como a estampa do lenço, aquilo tudo era ridículo! Sentia-se ridícula. Mas nem Arthur, nem a mãe foram capazes de adivinhar o motivo de seu choro avolumar-se naquele momento, causando-lhe vontade de vomitar. Arthur e Lúcia ficaram mudos.
Sem rumo, Cléo, pela primeira vez na vida, controlou-se e não se afobou quando ganhou a rua. Sem pressa, dirigiu a moto, afinal não tinha mesmo para onde ir e isso lhe causava desalento na mesma proporção em que lhe dava uma sensação de liberdade. Sim, estava totalmente livre, sozinha, assustada, mas sem pressa... sem nenhuma pressa.
Depois de quase uma hora rodando, com a mala apoiada entre o corpo e o guidão, finalmente parou, desceu, sentou-se no chão, numa calçada qualquer que lhe deu sustentáculo e ligou para Clarissa:
- Cla... – respirou fundo, tentando continuar calma, sem pressa – ...finalmente saí de casa!
Cléo e seu jeito de simplificar o insimplificável.
De sobressalto, Clarissa, finalmente, conseguiu ser mais objetiva do que Cléo. Deixaria para depois os “porquês”, “o que houve”, “como foi”, tão próprios de sua curiosidade. Limitou-se a questionar onde estava e foi ao seu encontro com rapidez.
Ao ver a amiga sentada no chão, com uma mala enorme e abatida, soube que algo sério tinha realmente acontecido, mas ali ainda não era o melhor lugar para conversarem. Sua casa também não, afinal Valéria não as deixaria à vontade. O Sideral, àquela hora da manhã, por certo ainda estava sendo submetido a uma meticulosa faxina. Foram, portanto, para casa de Verônica, que lhes pareceu o único abrigo.
Verônica as recebeu ainda de camisola, coberta com um penhoir de seda. Acabara de acordar e não esperava ninguém àquela hora. O ensaio seria apenas à tarde e a dona da casa demonstrou a surpresa instantaneamente, com os gestos protetores, cuidado de apertar a faixa que lhe enlaçava a cintura, eliminando o último vestígio da fresta que denotava o colo alvo, as sardas, a intimidade.
Clarissa foi quem falou, notando o constrangimento da tia:
- Tia, precisamos de um lugar para conversar, eu e Cléo. A senhora se importa que seja aqui?
Sem jeito, sem chance ou motivo de dizer um “não”, Verônica baixou a guarda, abriu a porta e indicou que entrassem e se acomodassem onde quisessem.
Cléo estava visivelmente envergonhada, diferente. O brilho dos olhos empalidecidos. Verônica preocupou-se e perguntou se a moça queria alguma coisa. Cléo respondeu agradecida:
- Não, obrigada.
A voz estava triste, a dona da voz estava triste! Verônica teve vontade de abraçá-la, confortá-la, mas não achou espaço para tanto. Deu as costas e fez menção de retirar-se, deixando as duas a sós. Foi Cléo quem a interpelou:
– Verônica... mudei de idéia. Quero algo sim... quero que você fique – confessou.
Verônica quase agradeceu a Cléo. Queria muito ficar, escutá-la, saber o que tinha sido capaz de afetá-la daquele modo. Sentou-se, tentando deixá-la à vontade e ficar à vontade.
Cléo soube exatamente o porquê de querer partilhar com Verônica aquela angústia, aquela tristeza, aquela sensação estranha de liberdade e perda que sentia: ela a compreenderia.
Clarissa e Verônica escutaram em silêncio o relato, dessa vez não tão despido de simplicidade. Estava difícil ser objetiva naquelas circunstâncias.
Clarissa já havia inteirado a tia sobre os conflitos de Cléo em casa, sobre madrasta, o pai e, principalmente, sobre Sarah, que a perseguia, a irritava. Verônica, com a supremacia da maturidade, deduziu imediatamente o que estava por trás das atitudes de Sarah no exato instante em que a sobrinha lhe descrevera, só não esperava que fosse capaz de ir tão longe!
Depois do relato, foi inevitável o convite. Não por educação, mas por profundo desejo:
- Fique aqui, Cléo, o tempo que você quiser – foi o que Verônica disse, com medo das próprias palavras.
Cléo ficaria. Clarissa vibrou. Verônica respirou fundo.
Quando as duas ficaram a sós, o constrangimento foi inevitável. Cléo não esperava exatamente um abraço de Verônica, embora o desejasse. Mas também não esperava que a dona da casa fosse tão fria a ponto de permanecer inerte, à sua frente, com apenas uma frase:
- Você vai fica no segundo quarto do andar de cima.
Na verdade, Verônica quis loucamente abraçá-la, acarinhá-la, levá-la para o próprio quarto, mas não podia de forma alguma. A condição imposta a si mesma para que Cléo pudesse ficar era manter a distância. Sim, porque não havia morado mais de vinte anos fora para colocar toda a sua reputação a perder agora! Era esse o argumento. Afinal, se seria um escândalo na família sabê-la lésbica, imagine sabê-la lésbica e amante da amiga da sobrinha, vinte e cinco anos mais nova! Definitivamente não estava preparada... estava era apavorada! Deu as costas e sumiu.
Cléo sentiu-se um tanto quanto desolada pela atitude de afastamento que acabara de assistir. Mas não se deixaria sucumbir. Procurou, mais uma vez, ver o lado bom da situação: agora já tinha um refúgio e, ainda que Verônica, naquele momento, não fosse capaz de acalentá-la como gostaria, sem dúvidas o simples fato de acolhê-la já era um grande alento. Arrastou a mala para o quarto indicado e lá se instalou.
Era um quarto grande, aconchegante, provido de conforto até exagerado, principalmente se comparado ao que Cléo dividia com Sarah...ao lembrar-se dela, sentiu um certo desgosto, um arrepio percorrendo o corpo e grande tristeza... o ódio já não era tão intenso quanto a decepção, quanto a surpresa pela total falta de caráter, pela capacidade daquela criatura de deixar-se sucumbir totalmente pela ira, pelo despeito... pela paixão! Era incrível descobri-la apaixonada por si. Algo insano, inimaginável!
Resgatada ao presente pelo peso incômodo da mala que, sem piedade, já machucava os dedos, sem demora, logo a postou sobre a cama, que cedeu ao peso com mansidão. A complacência tão própria dos colchões de molas. Em seguida, foi a vez de sentar-se. Respirou fundo e, antes de abrir aquele tão temido e imponente zíper, decidiu-se: aquela era a hora de recomeçar! Uma nova fase se iniciava naquele instante! Aquela abertura de malas inaugurava a abertura de uma nova perspectiva em sua vida: tornar-se-ia adulta!
O primeiro passo era conhecer a mãe, ler e reler todas suas cartas, falas, às entrelinhas, ver as fotos, os traços, para finalmente abandonar aquela mania, quase compulsiva, de procurá-la pelas ruas, nos rostos das mais variadas mulheres de meia-idade. Abandonaria o mito e se encarregaria de assimilar a mulher que Natália realmente fora. Desejara isso durante tantos anos! Apenas nunca havia se sentido livre o suficiente para fazê-lo. Agora era e o faria.
O segundo passo seria dedicar-se com afinco à Androginia. Já sabia muito bem o que queria ser, profissionalmente falando. Apesar de cursar – e gostar – jornalismo, sabia que, na verdade, não suportaria ter a música apenas como hobbie. Queria cada acorde, cada letra, cada cifra como parte integrante de sua vida. Aproveitaria a musicalidade que tinha, sem, entretanto, desperdiçar seu talento para as letras e o curso de jornalismo: cuidaria de dedicar-se às composições, aos escritos! Sim, pois já tinha quase duas dúzias de músicas e muitos artigos! Poderia investir nisso! Aproveitaria a estada na casa de Verônica e as férias da faculdade para dedicar-se a aprender ao máximo com ela... quem sabe conseguiria até inspiração para novas letras e composições!
Também procuraria um trabalho... afinal, não poderia manter-se sem isso, tampouco ficar ali, de favor, às custas da tia de Clarissa. Arranjaria uma forma de ganhar alguma grana, nem que fosse cantando por aí, em barzinhos, enquanto a Androginia não vingasse. Também procuraria um estágio em algum jornal... já havia recebido tantas propostas e se lamentava, apenas agora, por não tê-las abraçado.
Depois de traçar, em apenas alguns minutos, planos que, sabia, poderiam durar anos para concretizarem-se, sentiu-se mais forte e segura. Ao menos tinha as metas. Respirou fundo e abriu a mala.
Maravilhada, ficou durante horas admirando e admirando aquela figura, em imagens e palavras, algumas claramente escritas, outras decifradas nas entrelinhas. Eram tantas poesias, tantos textos, tantos desabafos escritos, tanto da mãe ali, em suas mãos, em folhas amareladas pelo tempo, que sentiu-se invadida por sua presença. Mas havia muito de Cléo por ali também. Eram semelhantes! O espírito virtuoso dos destemidos, dos precipitados, dos incontíveis pelas regras, seja de gramática ou de etiqueta, daqueles que são tão naturais em gestos, tão impulsivos em atos, que chegam a assustar aos mais tradicionais e lentos... sim, pareciam a mesma! Inclusive fisicamente, reparava, alucinada! Isso impressionou por demais à menina! Ah, se soubesse, teria deixado de buscar Natália em tantos rostos e cuidaria de olhar-se mais no espelho, pois era ali que a mãe estava o tempo todo: em seu próprio rosto, em seus próprios olhos violetas e valentes, faiscando translúcidos diante das novidades, em seus cabelos negros que se derramavam pelas costas altivas, apesar de contidos pelas tranças... finalmente Cléo entendeu o horror do pai ao vê-la daquele jeito desfigurada, como o próprio definia e criticava, pelas tranças que usava, pelo piercing que perfurava a expressão tênue dos olhos, pela tatuagem que adornava-lhe a pele, sem piedade! Arthur procurava na filha o que Cléo procurava em outras mulheres: a imagem de Natália! Era isso! Por um segundo, também se sentiu tomada de revolta por si mesma. Resgataria a mãe, ao menos, em alguns detalhes, de frente para o espelho.
Tomada de entusiasmo, proporcionou o encontro. De qualquer jeito, despida de qualquer cautela ou habilidade, afoita, começou o ritual, que beirava o interminável, de retirar trança por trança, com as próprias e agoniadas mãos. O piercing e a tatuagem que ficassem. O primeiro, porque Cléo julgara ser prescindível retirá-lo para dar aos próprios olhos o brilho que achou nos de Natália. Vê-la em si, por si só, seria o suficiente para que o violeta abandonasse a agressividade que tantas vezes chegava a turvá-los... a imagem materna, certamente, atenuaria a revolta, a tristeza, a violência daqueles olhos, pelo menos, naquele instante de trégua! A tatuagem, esta dispensa qualquer explicação, diante de sua natureza de imagem eternizada em pele. Que ficassem!
Mas os cabelos, estes sim, mereciam reparos. Em seu cálculo, devolver a si mesma a moldura do rosto já seria o suficiente para o que queria: emprestar à própria face a imagem da mãe... mesmo que isso significasse usurpar-se por instantes. Depois veria o que fazer... agora apenas cuidaria de desfazer... trança por trança, custasse o que custasse!
Verônica, absorta, apenas observava de esgueira, na exata proporção mesquinha e estreita em que a fresta da porta entreaberta lhe permitia, àquele ritual que exigia paciência, mas que estava sendo celebrado sem nenhuma!
Cléo, nervosa, se sentia dissolver no espelho. Aquela imagem de estilo confuso, misturado, cedia, aos poucos, aos trancos e barrancos, a uma imagem mais do que sublime! Reparava Verônica, boquiaberta, silenciosa, clandestina. Não interromperia aquela cena por nada... ou quase nada.
As lágrimas de Cléo, diante do reencontro que se iniciava e se propagava no tempo à medida que as mechas dos cabelos eram soltas, fizeram Verônica afobar-se, deixar-se notar por entre a porta, surgindo em auxílio. Ao ver aqueles olhos violetas derramarem-se em lágrimas que pareciam igualmente azuis, tamanha a capacidade translúcida de reproduzir a cor, Verônica cedeu. Não entendia nada até aquele instante em que se aproximou e perguntou mansamente, próxima a Cléo:
- Posso fazer alguma coisa por você?
- Sim, ajude-me!
As palavras de Cléo soaram como um apelo quase desesperado e Verônica, apressada, imaginou que poderia começar naquele exato instante e, porque não, desfazendo as tranças. Puxou a cadeira que, alheia às duas por sua condição inanimada, postava-se inerte, ao largo, e sentou-se.
Em silêncio, juntas, fizeram Natália ressurgir no espelho. Cléo consciente da chegada, Verônica apenas sabendo de uma partida. Sim, porque sentia que Cléo, aquela que conhecera, esta sim, partia naquele instante. Aquela menina abria espaço, naquele momento singular, à sua partida, anunciando a chegada de uma mulher. Despedia-se das tranças e, no mesmo aceno de mão, da imaturidade, da necessidade de mostrar-se diferente, de fazer-se perceber a todo custo, enfim, despedia-se de parte de si mesma, enquanto chegava, através do espelho, a outra parte: a parte mulher, a parte adulta, a Cléo capaz de ser peculiar mesmo sem tranças ou artifícios. E ainda mais linda!
Depois de algum tempo, absortas, próximas, cúmplices naquela mutação, com carinho extremo, foi Verônica quem desfez a última trança... talvez a mais difícil, não por guardar-se mais justa do que as outras, mas por uma questão de desapego. Era difícil desapegar-se, permitir a mudança, encará-la no espelho! Verônica sabia disto e temeu a reação.
Mas a menina, agora mulher, apenas sorriu ao ver-se transmudada no espelho e Verônica sentiu um alívio inesperado. Natália, finalmente, chegara aos olhos de Cléo, enquanto, aos olhos da outra espectadora, a menina partira. Restou-lhe a mulher que agora a fitava, a pouca distância, com os olhos encantados, de cílios molhados pelas águas azuis, felizes pela mudança e os lábios nervosos:
- O que achou?
O que Verônica poderia responder? O que mais poderia achar diante daquela imagem tão perfeita, daquela atitude tão ousada, inesperada? Começava a conhecer uma Cléo diferente, em formas e gestos. A androginia mais uma vez marcando presença no semblante daquela mutante indecifrável, pela qual Verônica já se achava totalmente apaixonada!
- Achei o melhor de você...o melhor!
Feliz, Cléo abraçou-se a Verônica sem muita cautela, sem medições, com entusiasmo, demonstrando-lhe que, em parte, a menina ainda estava ali e sempre estaria, perambulando na alma afoita e andrógina, ressurgindo sempre espontânea para surpreender e fazê-la sorrir. E Verônica quase se confundiu, achando que o melhor de Cléo talvez nem fosse a maturidade que pudesse adquirir, tampouco a juventude que ainda adornava seu corpo, seus atos, mas sim a espontaneidade, o poder de surpreender.
E Verônica sorriu, reparando o contraste entre a imagem de mulher e o ar de criança, ainda presente.
O abraço foi quente, justo, e, de início, fraterno. Mas quando os corpos finalmente se reconheceram e as duas retomaram a consciência da matéria, dos seios colados, dos braços enlaçando o abraço, unindo os desejos já tão delineados, definidos, o que era fraterno transformou-se em lascivo e os corpos ficaram unidos por mais tempo do que o esperado por ambas.
Cléo sentiu a textura da pele de Verônica, macia, das costas sardentas que captava suas mãos na medida em que estas também a captavam. A menina, agora mais mulher, deslizou os dedos pelas costas de Verônica, fingindo ingenuidade, acaso, mas, conscientemente, causando-lhe arrepio.
Aturdida, Verônica afastou-se um pouco, olhou-a nos olhos e interrompeu a vertigem de ambas, denunciada pelo olhar esfogueado que se lançaram. Uma de frente para outra e então a dança do desconcerto: Cléo afastou-se também e recolheu as mãos descabidas, desculpando-se pela invasão. Verônica, sem saber onde pôr as próprias mãos, passou-as pelos cabelos, fingindo colocar no lugar os fios ruivos já milimetricamente dispostos e presos.
Cléo só pôde rir, demonstrando entender o motivo do desenlace: medo! Sim, só podia ser! Deliciava-se ao perceber que, mesmo desprovida de idade, poderia causar medo numa mulher como aquela! Mas quebraria o gelo a qualquer hora, bastaria ter uma boa oportunidade. Sabendo disso, sem pressa, agradeceu:
- Obrigada... pela ajuda e... pelo abraço.
Verônica, ainda sem saber onde pôr as mãos, cedeu ao impulso de permitir que elas escolhessem o caminho. Sem titubear, tomou as mãos da menina. Os dedos longos, de unhas bem cuidadas e curtas, captaram as jovens mãos da mutante e foi inevitável compará-las. Cléo possuía mãos cálidas, cobertas por uma pele quase infantil, de uma brancura de mármore. Eram mãos fortes, decididas, destemidas, capazes de carregarem o peso dos anos que ainda viriam, enquanto as suas já estavam marcadas pelo tempo, calejadas pelos transtornos dos anos, pelo caos de uma vida que já havia sido dada por perdida e agora ressurgia, exatamente através daquelas outras mãos, que se apertavam às suas. Sorriu, enquanto pensou... “eu é que lhe agradeço, minha cara”.
Em seguida, Verônica questionou, observadora:
- Essa mala não é propriamente sua, é? Você não trouxe roupas?
E Cléo respondeu do melhor jeito que pôde:
- Essa mala contém o que há de mais meu em toda face da terra... guarda as únicas coisas que eu não poderei substituir jamais. O resto eu arranjo.
E a menina sorriu, enquanto Verônica olhava e captava o que podia daquelas fotos, daquelas cartas, daquela história, mesmo de relance. Sem titubear, convidou:
- Venha... vamos às compras! Vou ajudar você a arranjar tudo o mais que possa substituir na vida!
E Cléo também a compreendia! Sabia que, por trás daquela frase, havia muito mais do que a promessa de roupas novas, sapatos, matéria, impulso capitalista... os olhos de Verônica, que conseguiram, naquele momento, ser límpidos mesmo na escuridão da íris, deixavam transparecer a promessa de tudo o quanto precisasse para ser feliz! Ela prometia e Cléo entendia! Ela seria capaz de dar-lhe proteção, cuidados, mimos, paixão, carne, desejo e satisfação. Só precisava de um pouco de tempo e Cléo tentaria não ter muita pressa. Aceitou as promessas e o convite.
Juntas, saíram pelas ruas, pelas mais variadas lojas, num entusiasmo infantil e partilhado. Verônica se permitiu à empolgação, antes tão inglesamente reprimida, e Cléo, a futilidades, antes descabidas. Deixou que Verônica gastasse o quanto quisesse e controlou o remorso. O prazer de ver aqueles olhos negros a admirar-lhe cada vez que provava as mais variadas roupas era infinitamente maior do que o constrangimento de vê-la pagando por cada peça.
Verônica nem percebia o desconforto da outra. Era rica e nada daquilo pareceu-lhe caro. Caríssima era a felicidade que sentia em agradar a menina.
O último dos presentes foi uma guitarra! Sim, a melhor e mais linda de todas! Escolhida pela experiência de Verônica, com o total aval da menina, é claro. E veio a explicação:
- Isso, para você, é tão necessário quanto as roupas! – sorriu, deixando Cléo com a certeza de que queria retribuir toda aquela felicidade.
Chegaram em casa quando a noite já estava fria. A tarde havia sido perfeita, capaz de apagar parte de tudo que vivera durante aquela manhã absurda e Cléo já não se sentia mais vazia e sozinha. Não porque a matéria dos presentes houvesse ocupado o espaço daquilo que ela havia perdido, mas porque Verônica vinha preenchendo vazios que ela jamais havia ocupado.
Guardadas as sacolas, foi Verônica quem propôs:
- Estou morrendo de fome... vou tomar um banho e podemos jantar juntas – sugeriu em voz que começou denotando entusiasmo e terminou quase inaudível.
Verônica tentou soar discreta, mas o coração estava acelerado, querendo conter os desejos, mas sequer controlava as palavras... ela, que havia prometido a si mesma manter a distância, era exatamente quem propunha o encontro, a proximidade. Em seguida, quis arrepender-se, mas era tarde. Cléo já havia dado as costas e corrido escadas acima para aprontar-se também e encontrá-la o mais rápido possível antes que a dona da casa desistisse. Afinal, Cléo também vinha se tornando capaz de decifrá-la, de antecipá-la, e, por isso, teve pressa.
Meia-hora depois, Verônica a esperava, sentada à mesa, com a sensação de que seu coração já havia sido servido de bandeja àquela criatura tão linda que, naquele instante, descia as escadas vestindo um de seus presentes.
Era o vestido preto que adornara o corpo de Cléo com perfeição naquela mesma tarde, entre uma prova e outra. O preferido de Verônica, aquele que foi recebido com o olhar de aprovação absoluta! Era ele que, naquele instante, a tornava a mulher mais arrebatadora que Verônica havia visto. Os cabelos pretos, soltos, misturando-se ao escuro do tecido, mesclavam negritude e maciez. Os seios, ainda juvenis, lembrando frutas deliciosas e, contraditoriamente, maduras, discretamente oferecidas pelo decote, prontas para serem colhidas, apanhadas, sugadas, despidas, desvendadas, corrompidas por suas mãos. Os olhos translúcidos, contrastando com o tom alvo da pele tão jovem, a boca bem feita, exibindo a alegria em forma de dentes perfeitos, dispostos francamente num sorriso.
Verônica, admirada, a recebeu com uma taça de vinho e muita cautela. Falou pouco durante o jantar, talvez por uma total ausência do que dizer, diante de tudo o que sentia. E também por medo... medo de quebrar o encanto, de invadir o espaço daquela alma, daquele corpo tão jovem com seus tantos anos, com todo seu passado, sua bagagem, que até para ela, tornara-se pesada demais.
Cléo, como se percebesse o receio nos olhos daquela mulher que se sentava à frente, desejou mais ainda romper aquela distância, dizer-lhe que não precisava ter medo, que a queria tanto, que precisava tanto de sua mão cativa, de seu amor, de seu colo, de seu gosto... e, para dar mais leveza ao momento, propôs um brinde para que as duas sugassem do vinho a suavidade e a embriaguez de que precisavam naquele instante para porem-se como realmente se desejavam: próximas.
Verônica aceitou o brinde proposto com certa graça, apesar das tristezas vividas por Cléo naquele dia:
- À minha liberdade... ao meu pai covarde, que não teve coragem para me expulsar de casa, muito embora a tenha tido para me deixar sair... à Sarah, que me arruinou a vida para me fazer renascer... à minha mãe que também está livre agora, pois já não cabe apenas numa mala e... à você, Verônica, à você!
E beberam os goles que puderam, de uma só vez, olhando-se e bebendo-se, uma à outra, também em tudo o que podiam. A embriaguez provocada pelo olhar foi mais poderosa do que a advinda da bebida e Verônica, consciente da quase inconsciência, encerrou o jantar, dizendo-se cansada e despediu-se... se ficasse, talvez se arrependesse.
Cléo, mais uma vez a compreendeu e soube ter paciência. Estava aprendendo! Mas é bem verdade que se inquietou ao ver Verônica subindo as escadas, afastando aquele corpo tão desejado, os quadris movendo-se sutilmente, as pernas denotando pela fresta da saia longa certa cautela, certa pressa e muito charme.
Frustrada, excitada pelo vinho, pelo dia, pelas expectativas, Cléo recolheu-se também ao quarto. Apenas quando a porta foi fechada e o escuro se fez, quase palpável, ela se sentiu novamente sozinha. A tristeza voltou a querer lhe ocupar o coração. Foi quando o telefone rompeu o silêncio do desalento:
- Alô... – disse, logo se repreendendo pelo desplante, afinal estava atendendo ao telefone da casa de Verônica e isso ainda não tinha cabimento!
- Cléo? – questionou Clarissa, preocupada.
Aquela voz tão familiar e amada a fez lembrar-se de que ainda tinha as amigas, sua real e escolhida família, e isso a fez sorrir e sentir-se aquecida novamente. Ainda mais porque Martinha e Li também estavam na casa de Clarissa e todas fizeram questão de conversar com ela, enquanto se aglomeravam ao redor do telefone que tornou-se um objeto mais do que disputado... Cléo sentiu-se na mesa do Sideral, desabafando, rindo, chorando, falando de si e escutando as fiéis escudeiras. Conversaram durante mais de uma hora e, só então, Cléo pôde dormir sossegada.
Enquanto isso, Verônica vivia o desassossego. Quis atravessar a porta do quarto mais de mil vezes e ir encontrar Cléo de qualquer jeito, daquele jeito, de camisola, descalça, insone! Chegava a doer na têmpora e pulsar no ventre aquele desejo infernal e sublime, despertado por uma menina de apenas vinte anos! Sim, a queria demais e isso a fez perder o resquício do sono emprestado pelo vinho. O pecado mora ao lado, foi inevitável lembrar-se do filme e plagiar-lhe o título para conceituar aquela lembrança que a consumia.
Duas horas da manhã e nada! Impedida de ir em busca do que queria e ocupar as mãos no corpo que são saía de sua mente, foi encontrar sua harpa que, apesar do ciúme e do despeito pelo abandono de tantos dias, a recebeu afinada e saudosa. A música invadiu a sala e o sono de Cléo.
Despertada por uma melodia perfeita, Cléo adivinhou sem esforço a dona daquelas mãos que a conduziam com tanta precisão. Tateando pela escuridão da casa, encontrou Verônica, na sala de música, cercada pelos instrumentos e pela penumbra, absorta, de olhos fechados, concentrada no ofício para o qual nascera... naquele momento Cléo soube disso! Teve essa certeza.
Apesar das insistências de todas da banda, Verônica nunca havia lhes dado o prazer de escutá-la. Dizia-se ora indisposta, ora preguiçosa, ora despida de inspiração. Fato era que, naquele instante, Cléo agradeceu à espera. Não queria partilhar aquele som, nem aquela imagem, nem aquela mulher com mais ninguém! Não naquele momento...
Jamais esqueceria daquela cena: a mulher de cabelos ruivos finalmente os havia deixado soltos, enormes, pesados, contrastando com a alvura do colo farto, exposto sem pudor pelo decote generoso da camisola negra de seda. As sardas maculando a brancura da pele, emprestando alguma disparidade, alguma revolução àquele mar de perfeição que era o corpo de Verônica. Um corpo de leite, um copo de leite, a ser sorvido com prazer por Cléo... cogitou a hipótese com água na boca e umidade entre as coxas. Teve sede. As pernas entreabertas de Verônica despontavam pela fenda da camisola longa e, com uma firmeza admirável, adornavam a harpa que, no meio delas, se postava, entre musculatura e sensualidade. Estava simplesmente perfeita! À meia-luz, de olhos fechados... a testa levemente franzida pela emoção da melodia que empenhava, o canto dos olhos suavemente adornados por aqueles traços pequenos trazidos pelo tempo, que tanto fascinavam Cléo, as mãos longas, os dedos hábeis, deslizando pelas cordas da harpa... por onde mais deslizariam? Ao imaginá-los em seu corpo, Cléo teve a certeza de que teriam a mesma ou maior habilidade. Desejou, então, aqueles dedos longos e ágeis a afundar-lhe o ventre, mergulhando dentro de si, de seu espaço morno, àquela altura, já lubrificado, tocando-a com igual magia, arrancando de sua garganta melodia quase disforme, em forma de gemidos, de sussurros, de pedidos, de promessas, de desejos e confissões partilhados no ouvido. Sim, falaria e muito, ao ouvido de Verônica, quando finalmente estivesse sob ou sobre ela, na cama... lhe excitaria falar-lhe ao ouvido e dizer-lhe do tamanho de seu desejo, desde sempre.
Sem mais motivos para apenas admirá-la a distância, Cléo aproximou-se. A chegada fez com que Verônica despertasse, abrisse os olhos e parasse. Mas Cléo insistiu:
- Por favor, não pare...
Mas Verônica sorriu e ficou sem jeito, ruiva e vermelha, incendiando-se aos olhos de Cléo que, percebendo o constrangimento, mudou de pedido:
- Então me ensine alguma coisa!
Mesmo que não tivesse permissão, faria o que fez: sem qualquer pudor, pediu espaço e postou-se sentada entre as pernas de Verônica, que, instintivamente, afastou-se, emprestando parte do banco. Em seguida, muda, Verônica tratou de conduzir às mãos de Cléo pelas cordas, fazendo os dedos tocarem os dela e encaminhando-os com cuidado. O cheiro dos cabelos de Cléo a invadir-lhe, o calor daquele corpo tão perfeito a inundar-lhe o ventre. Fechou os olhos e, tateando, conduzia o som, enquanto Cléo tentava concentrar-se na lição.
O momento era mais oportuno para aprender outras coisas. Que a harpa esperasse! Decidiu-se Cléo, sorrateiramente colando as ancas no sexo de Verônica, do qual já emanava o calor tão próprio da excitação. Cléo sentiu nos quadris a quentura daquele ventre, imaginando-o já molhado, já viscoso, exatamente como o seu estava. Sentiu ainda, dessa vez já de olhos cerrados, a respiração de Verônica em sua nuca, igualmente quente e alterando-se. Impulsiva, cedeu para trás mais ainda, colando as costas nos seios macios da mestra e pôde sentir-lhe o coração acelerado, o ritmo afobado do desejo. Sim, Verônica estava excitada e Cléo deixou os dedos desgovernarem-se, parou de prestar atenção na condução que as mãos de Verônica lhes compeliam.
Verônica, também, pouco se concentrava. Continha, a contragosto, a duras penas, o impulso de soltar a harpa e enlaçar Cléo pela cintura, tomar com as mãos os seios firmes e apalpá-los com firmeza, depois descê-las até o ventre da menina mais despudorada e atiçadora que conhecera, penetrando-o com vigor. Mas não o fez... o dragão de carne que habitava as costas de Cléo, visível graças à camiseta de alças que usava, estava ali, entre elas, a lembrá-la do perigo. Ela estava, literalmente, mexendo com fogo!
Mas Cléo já lia seus pensamentos e, antes que Verônica tentasse fugir, foi a menina quem largou a harpa e virou bruscamente o tronco, parando a centímetros da boca de Verônica, já entreaberta pelo susto. Os olhos negros aflitos, a expressão séria alterada, o medo em formas e gestos. Cléo segurou-lhe o rosto entre as mãos e lhe disse:
- O que estamos esperando? – o violeta dos olhos ensandecidos pelo desejo pareceu, aos olhos de Verônica, um pequeno lago azul e translúcido onde sua imagem mergulhara. E ela se viu, assustada, nos olhos de Cléo.
Sentiu-se uma presa nas mãos daquela menina caçadora, capturada, apaixonada, sedenta pelos toques, pelo beijo. E ele veio, mesmo sem expressa permissão.
Cléo, de impulso, a beijou... e o encontro dos lábios foi incrivelmente perfeito. Se ajustaram na firmeza exata, na moleza exata, soltos, molhados, desejosos, lentos. As línguas se reconhecendo, se misturando. Depois a lentidão foi se perdendo ao descompasso do desejo e o que era suave tornou-se sôfrego, lascivo. A respiração alterada de ambas a contorcerem os corpos, os ventres dilatados, a derramarem-se em desejo e quentura... alma se desfazendo em semi-gozo.
Cléo afastou-se, houve o desenleasse das bocas diante dos olhos incrédulos de Verônica e a menina respondeu à pergunta silenciosa erguendo-se e puxando-a pelas mãos:
- Venha... eu quero você agora!
Verônica ergueu-se obediente, sentindo o ventre latejando e as pernas bambas. Tomou a mão de Cléo que, com pressa de animal no cio, arrastou-a pela escuridão da sala. O percurso até o quarto era grande e ela não estava agüentando! Estancou na sala e quedou-se no sofá enorme e macio, na espera de Verônica sobre seu corpo, ensandecido de desejo.
Verônica não tardou a pousar sobre ela com cuidado extremo. Apesar do fluxo rápido e desgovernado de fluídos que percorriam o corpo, em forma de sangue, nas veias tão azuis que se escondiam sob a pele alva, de saliva e de desejo, teve calma. A maturidade lhe compelia a apreciar com cautela aquele momento.
Apesar da ansiedade explícita e convidativa dos olhos violeta que a fitavam desejosos, Verônica fez tudo com muita lentidão: primeiro beijou novamente a boca de Cléo, com sensualidade ousada, depois cuidou de despi-la, admirando a brancura do corpo jovem e firme, branco e sedento, em contraste com o tecido escuro do sofá. Cléo a observava e começou a entender o prazer da lentidão.
Sentiu-se excitadíssima ao ver que Verônica, antes de comê-la com a língua, com as mãos, com o ventre, a comia, primeiramente, com aqueles olhos negros, perturbadores, encantados com o que viam. As mãos, hábeis como imaginava, a libertaram, primeiro do short de algodão, em seguida da camiseta e, por fim, da calcinha, já ensopada.
Depois Verônica passou a apreciar o gosto de Cléo e percorreu cada espaço de seu corpo com a língua quente e macia. Ajoelhou-se ao chão, enquanto Cléo, nua, deitada, cedia à maciez do sofá e à experiência da amante.
Nesse ritual de paciência extrema e autocontrole, a língua de Verônica, finalmente, tomou os seios de Cléo e, nesse instante, nenhuma das duas resistiu ao desgoverno do desejo e se afobaram, se quiseram mais ainda, sôfregas, sedentas, molhadas.
Enquanto Verônica lhe sugava afoita, a língua hábil a mordiscar-lhe o mamilo róseo, de há muito arrepiado, convidativo, Cléo contorcia-se de prazer, os olhos cerrados, as mãos comprimindo ainda mais a cabeça de Verônica contra os seios, aflita, à beira do gozo. Queria que Verônica a tomasse por inteiro, a bebesse, a chupasse, e Verônica, como sempre a compreendia.
Cederia ao desejo da menina e a faria gozar do jeito que tanto desejava. Foi então que Verônica abandonou o seio que segurava, mantendo apenas a boca colada nele, mas emprestando às mãos uma outra utilidade: afundar os dedos em Cléo, no ventre quente e molhado. E, com essa intenção, os dedos longos percorreram o abdome da menina, na lentidão de que foram capazes, traçando alguns desenhos imaginários com as pontas, quase flutuando sobre a pele alva, arrepiada. Em seguida, já decididos e impiedosos, percorreram a penugem escassa que encobria o sexo e, firmes, a penetraram.
O corpo de Cléo retesou-se, ergueu-se, fazendo dos cotovelos o apoio, a cabeça ainda pendendo para trás, os olhos ainda cerrados e ela gemeu alto, ansiosa, satisfeita. Depois, abriu os olhos e o violeta estava brilhando como nunca. Então pediu num sussurro.
- Eu quero mais, mais fundo, Verônica, eu quero que você me foda com força... preciso disso há tanto tempo!
E Verônica, mais uma vez, obedeceu, enlouquecida com aquela criatura despida de qualquer vergonha, de qualquer pudor, vestida apenas de sinceridade, intensidade e desejo. Afundou-lhe os dedos, num vaivém ritmado e denso, sentindo as paredes do sexo de Cléo a comprimir-lhes, a caber-lhes, a apertá-los, a soltá-los. Enquanto os dedos deslizavam para fora e para dentro daquele ventre já dilatado, a palma da mão, experiente em toque, pressionava-lhe o clitóris, ora lentamente, ora em toques curtos, sorrateiros, ora com força, de forma intensa, a esfregar-se, a rodopiar em torno dele, sentindo a ereção de que era capaz e o sêmen que dali também brotava. Criatura mais andrógina aquela!, constatava Verônica, maravilhada, com a boca ávida ainda a sugar-lhe, ainda a beber-lhe a alma, enquanto as mãos imprensavam o gozo, para, logo em seguida, libertá-lo.
E Cléo gozou, preenchendo a casa com um gemido alto, gostoso, que se transformou em riso de prazer e satisfação.
Agora era a sua vez de mostrar o que sabia e para tanto não lhe restara nenhuma calma, nenhuma cautela... só tinha pressa e fogo, desejo, desejo e desejo. Bruscamente apanhou Verônica ali, no chão mesmo, onde ainda estava e arrancou-lhe a camisola fina, com a sofreguidão tão própria do corpo jovem. Verônica apenas deixava que conduzisse de seu jeito, sentindo-se excitada com aquela fome louca da menina, com aquele jeito insano de mulher... sim, uma mulher jovem e ardente que a queria!
Cléo, ao perceber o corpo feminino, maduro e voluptuoso que acabara de despir, não conseguiu comê-lo primeiro com os olhos, como sua dona havia feito. Sua fome era muita, era tanta, que não teve como não tomá-la com as mãos, com os braços, com as pernas, com a língua, com os dedos, com o ventre...queria o toque, a prova, a carne... queria dar a Verônica o gozo que recebera e para isso olhá-la não bastava, a apreciaria depois de saciar-lhe a sede e a sua própria sede, sua própria fome de comê-la.
Assim, logo pôs-se sobre Verônica, que recebeu a leveza do corpo de Cléo com prazer infinito e com as pernas entreabertas. A menina logo procedeu ao encaixe desejado e escanchou as próprias pernas numa das pernas que Verônica lhe cedia. Os sexos de ambas se encontraram e, instantaneamente, se misturaram em pêlos, líquidos, calor e movimento. Cléo a beijava como se quisesse possuí-la para sempre. E queria! A queria demais!
Verônica dessa vez também teve pressa e exigências. Não deixou que Cléo brincasse apenas emprestando ritmo aos corpos. Desejou as mãos, os dedos e Cléo também a compreendia e como se possuísse um membro ereto e cheio, a possuiu com força – mais uma vez o ser andrógino surpreendia, em mutação – fazendo Verônica delirar, deliciar-se com o jeito daquela menina que, sem qualquer pudor, a comia e tão bem! Com tanto gosto, com tanto tato, com tanta força, como se cavalgasse desgovernada rumo ao maior dos prazeres: o orgasmo. E chegaram juntas.
Depois de muitos beijos e líquidos trocados, trocaram também o tapete pela cama enorme de Verônica. Entre os lençóis de seda, se quiseram, se tocaram, se beijaram e fizeram amor muitas outras vezes até cederem ao cansaço. Adormeceram abraçadas, Verônica feito uma concha a captar o corpo de Cléo que, de forma convexa, encostava-se. O contato com os quadris da menina a despertarem em Verônica novamente os líquidos efervescentes do desejo, apesar de todo o cansaço. Cléo, consciente do poder que tinha, provocando-a ainda mais, virou-se e tomou-lhe a boca de forma fêmea, com um beijo febril, um sorriso, um “boa noite” e uma promessa: a de que teriam muitos dias pela frente para darem continuidade àquele encontro, àquela história.
Mas Verônica não dormiu por muito tempo. O medo novamente a despertar-lhe. Enquanto observava Cléo, tranqüila, agora deitada de bruços, emprestando ao dragão movimentos vivos pela respiração que fazia as costas arquearem e baixarem lentamente, Verônica convenceu-se de que não era apenas paixão o que sentia. A amava, a queria ali, por toda a vida!
Mas a vida já havia passado muito mais para ela do que para aquela menina que, ao lado, adormecia, alheia às armadilhas do tempo. Verônica sentiu um calafrio ao se imaginar nos próximos dez anos. Teria cinqüenta e cinco e Cléo apenas trinta, ou seja, em plena flor da idade. Se naquele exato momento seu corpo ainda era bem feito, firme, bonito, apesar dos quarenta e cinco, talvez não o fosse dali em diante. Uma diferença absurda e visível poderia fazer com que Cléo se afastasse, deixasse de querê-la, de admirá-la, de desejar tocá-la. Não suportaria a dor de não ver mais aqueles olhos violetas reluzentes de desejo.
Ademais, Cléo, com certeza, despontaria. Aliás, a Androginia despontaria e a faria ficar famosa. E se já era rodeada de fãs mesmo sendo uma menina, mesmo tocando no Sideral, o que dizer de quando acumulasse fortuna, fama e a experiência dos anos. A moça tinha um poder inato que seria multiplicado por todos esses fatores. Seria capaz de ter quem desejasse, de destruir mil corações, inclusive aquele que batia abafado.
O que as aguardaria no futuro? Essa era a pergunta crucial, diante da qual Verônica sentiu-se afogar em meio a tanta incerteza. Parecia faltar-lhe ar. Foi quando Cléo despertou, pressentindo-a acordada.
Quando aqueles olhos violetas a fitaram, acesos pela paixão, e a boca quase infantil a beijou lentamente, ela teve coragem apenas de fazer uma pergunta, em meio a tantas que gostaria:
- Cléo, o que significa esta frase em mandarim rodeando seu dragão?
Verônica sempre acalentou a imensa vontade de saber o que seria tão importante para aquela menina, tão crucial em sua vida, tão presente em sua alma a ponto de fazê-la eternizar também em sua pele? Segundo Clarissa, Cléo nunca havia revelado a ninguém o que significava aquela inscrição. Intimamente, Verônica chegou a duvidar e a temer que ela também lhe negasse o esclarecimento, mas arriscou fazê-lo mesmo assim. Se obtivesse resposta, era porque a menina já confiava nela e isso era um bom começo.
Cléo olhou-a simulando mistério, fingindo titubear, mas, em seguida, diante da ansiedade explícita e sincera dos olhos de Verônica, cedeu e riu, demonstrando que estava decidida a decifrar-se.
Foi então que, finalmente, contou o que trazia nas costas, o pensamento que guiava sua vida, gestos, escolhas e, sobretudo, sua pressa. Segundo a menina, era um antigo ditado chinês, que assim poderia ser traduzido:
- Se o passado é sempre findo e o futuro, ausente, só nos resta o presente.
O significado entrou pelos ouvidos de Verônica como um antídoto adentra à garganta de alguém em desalento. Era exatamente isto o que precisava ouvir naquele momento de impasse! Era esse o lema que deveria seguir, junto com Cléo, até onde a vida permitisse, fosse ou não aquela a verdadeira tradução da frase.
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